Você está na página 1de 1

!

"

A luta de classes será geossocial. Artigo de


Bruno Latour

17 Outubro 2022

Referência mundial do pensamento ecológico, Bruno Latour aprofunda no texto a seguir o conceito de
classe geossocial delineado em seu último ensaio, Onde estou? (Bazar do Tempo, 2021). O filósofo e
antropólogo da modernidade desenha os contornos de uma nova classe ecológica que ele deseja
ardentemente, e cuja preocupação não seria mais a de garantir apenas a produção econômica, mas as
condições de reprodução da vida.

O artigo é de Bruno Latour, publicado por Socialter, 29-09-2022. A tradução é do Cepat.

 
Eis o artigo.
 

É uma anedota simples, mas que acho interessante. Eu me encontrava em um estúdio de TV para falar sobre
um livro que escrevi recentemente sobre a “zona crítica”, essa diminuta camada do planeta Terra que a
história da vida com V maiúsculo modificou ao longo de quatro bilhões de anos e dentro da qual nos
encontramos confinados, e por assim dizer envoltos. Enquanto expressava sua admiração pelo meu livro, a
jornalista havia me dado dez minutos e o resto do set estava levemente entediado parecendo dizer com sua
atitude: “Esta zona crítica, mesmo assim não é de grande interesse”. E então, de maneira inesperada, a
jornalista emendou a conversa com as três sondas que vários Estados estavam enviando naquela semana
para o planeta Marte.

No entanto, isso é o mais surpreendente, esse contraste entre a chata Terra e o emocionante planeta Marte,
ela não o havia elaborado para o maior benefício dos telespectadores. Ela não tinha criado nenhum truque
para ridicularizar meu amigo e a mim. O óbvio se impôs: Marte interessa mais aos humanos do que a
Terra. Se Marte aparece para alguns como o plano B depois que a Terra do nosso nascimento, o plano A,
foi sacrificado, é porque nos acostumamos a comparar planetas entre si. No entanto, se é verdade que
Marte é um planeta, esse não é mais o caso da Terra. Como disse naquela noite meu amigo geoquímico sem
conseguir intrigar os jornalistas da televisão: “Marte não tem zona crítica!”

Com efeito, ali a vida não transformou as condições iniciais a ponto de criar um ambiente duradouramente
favorável à continuação de sua experiência multifacetada. Para ser franco, Marte é apenas um planeta entre
outros, enquanto a Terra tem, ou é, uma zona crítica. Marte é careca, a Terra é cabeluda. O que torna a
anedota com a qual comecei engraçada é que a Terra parou de se comportar como um simples planeta há
bilhões de anos. E é provavelmente por isso que Marte fascina tanto: parece o planeta ideal, sem vida, e
revela de forma impressionante como aqueles que sonham em migrar para lá imaginam a Terra finalmente
livre da lentidão, do peso e das complicações que a contínua interrupção dos seres vivos impõe a qualquer
deslocamento. Assim como a Lua só recebe luz do Sol, é da Terra que se projeta sobre Marte esse desejo de
um mundo inabitável onde tudo seria mais fácil porque os seres vivos não mais interfeririam com nenhum
movimento.

Se a anedota do desejo mortífero de Marte me impressiona tanto, é porque sou obrigado a levar em conta a
situação de extrema violência a que nos leva a falta de preparação do século XX. O grande historiador Adam
Tooze, em um filme recente sobre a economia de guerra nazista, evocou o aterrorizante discurso de Goebbels
em 18 de fevereiro de 1943, oferecendo ao povo alemão a escolha entre a capitulação e a “guerra total” ao
perguntar: “Vocês querem uma guerra mais total e radical do que a que podemos imaginar hoje?” Enquanto
todos sentiam que era uma loucura, que a guerra estava perdida, que estavam sob as bombas, vemos, ao
contrário, a multidão entusiasmada aplaudir loucamente esse projeto da Totaler Krieg. No documentário,
vemos inclusive Albert Speer, o operador dessa fuga para a frente, aplaudir freneticamente esse novo
impulso para adiar por alguns meses a inevitável queda. Qualquer coisa menos capitular. Como os falidos na
mesa de jogo que esperam “se recuperar”.

Temos tanta certeza hoje de que os povos amedrontados pela perda de seu ideal de modernidade não se
levantariam com o mesmo entusiasmo que em 1943 pela “ produção total ” diante da pergunta: “ Vocês
querem uma destruição planetária mais total e mais radical do que a que podemos imaginar até hoje?” A
sugestão me faz estremecer. Especialmente porque, se acreditarmos nos historiadores da grande aceleração,
não é exatamente a escolha dos vencedores de 1945 que se jogaram de cabeça na Totaler Produktion?

Aqueles que acreditaram ter vencido o mal absoluto, não se comprometeram a reproduzir em outro nível, em
uma escala completamente diferente e às custas do planeta, o mesmo movimento de mobilização total,
retomado de década em década com a mesma negação do abismo que se abria pouco a pouco debaixo dos
seus pés? Como podemos imaginar que diante de uma crise tão mal preparada, o século XXI, sempre
animado, inspirado, transportado pelo mesmo sentido da história, reagiria de forma diferente e, finalmente,
escolheria, se não a capitulação, pelo menos algo como uma proposta pela paz, um armistício? Se a história
faz sentido e caminha para a “retomada da produção”, então o pior parece inevitável. Aplausos unânimes,
torcida fanática, certezas do desastre, aqui vamos nós para um empurrão final em direção à produção total,
viva la muerte!

No entanto, o pior nem sempre é certo; felizmente, não é inteiramente certo que a história tenha um único
sentido. Para pensar em outro seguimento da aventura moderna que não a “recuperação e a extensão da
produção”, é preciso conseguir desprender o amálgama moderno que uniu a abundância, a liberdade e a
unidirecionalidade da história universal. É possível reabrir este pacote tão bem amarrado e distribuir os
elementos de forma diferente? Podemos preservar a aspiração à liberdade, o gosto pela abundância, sem por
isso ligá-los à produção – produção cujo telos (finalidade) exige que se torne total e que preparemos o
inevitável plano B de um exílio ou de uma expulsão para Marte? Em um livro de grande importância,
apropriadamente intitulado Abundância e liberdade (Boitempo, 2021), Pierre Charbonnier fez muito
para reabrir esse pacote de presentes que os Modernos pretendiam oferecer ao resto do mundo.

O que pode significar, de fato, apreciar a autonomia, se essa autonomia for obtida negando a presença de
todos os seres, humanos e não humanos, que a tornam possível? No entanto, deve-se reconhecer que o
“suporte em falso”, como diz Charbonnier, é uma lacuna, e em todos os níveis, individual e coletivo, entre
o mundo em que vivemos e o mundo do qual vivemos. Há muito tempo que se denuncia a hipocrisia
daqueles que falam de liberdade porque outros trabalham para eles. Os vários movimentos socialistas,
feministas, terceiro-mundistas e decoloniais não cessaram de revelar a extensão desse suporte em falso.
Nesse sentido, todo o movimento ecologista nada mais fez do que aumentar ainda mais a já muito longa lista
de seres vivos de que dependem, sem o reconhecer, aqueles que afirmam estar em busca de autonomia.

O termo “suporte em falso” é importante porque não sublinha apenas a situação física de estar suspenso
sobre o vazio, o abismo, mas também a situação cognitiva de pensar mal. Aqueles que falam de liberdade
negando a existência do mundo em que vivem tendem a pensar erroneamente e, em particular, a não
entender o sentido da sua história. Não é exagero dizer até que ponto a aventura moderna foi levada tão
longe pelos amantes da liberdade e da emancipação que se enganaram seriamente sobre as condições
materiais e sociais necessárias para essa emancipação. O que não significa necessariamente dizer que a
aventura acabou, mas que devemos deslocar a emancipação para outro lugar, tentando dar-lhe outro
significado.

Ora, começamos a ter uma ideia mais precisa desse “outro lugar”. Esse outro espaço e esse outro tempo é
exatamente o que indiquei quando introduzi a noção de zona crítica ou de Gaia. A emancipação não é
semantizada da mesma forma sobre o planeta Terra escapando para o espaço e sobre a zona crítica. A
questão dos limites e da superação dos limites não se coloca da mesma forma. Como diz Charbonnier com
tanta veemência, não basta se perguntar se podemos ser livres, mas é preciso explicar onde estamos para
exigir ser livres. O que os Modernos acabaram esquecendo era que a liberdade depende de uma cosmologia.
As diferentes noções da liberdade, negativas e positivas, compartilhavam uma determinada cosmologia,
certamente, mas sem precisar dizê-lo, pois estava evidente: era a cosmologia da res extensa, inventada no
século XVII para servir de palco para a movimento irrestrito dos corpos pesados. Eles tomavam a Terra por
outro Marte. Como o espaço-tempo, hoje, na Terra, não é mais o mesmo, os valores mudam de direção e de
intensidade.

Voltar a colocar a questão da busca da autonomia é, curiosamente, restaurar imediatamente algo como um
sentido da história, em todo caso, um projeto político claramente orientado. Só que essa orientação, se me
perdoem esse jogo de palavras, não tem mais nada a ver com uma ocidentalização. Orientar-se pela
autonomia é dar-se a imensa tarefa de acabar com o suporte em falso. Faça-se por um segundo a pergunta do
que você depende para sobreviver, tente na sua imaginação sobrepor o mundo do qual vivemos e o mundo
em que vivemos, e perceberá que é preciso agir em todos os lugares e em todas as escalas para reduzir um
pouco o abismo do suporte em falso. Imediatamente mil questões espinhosas se apresentam: a da escravidão
passada, mas também as da colonização atual, a enorme desigualdade do comércio internacional, a ocupação
do espaço, os hectares fantasmas que os Estados desenvolvidos estão adquirindo constantemente para “se
libertar” dentro de suas fronteiras, das migrações, do direito internacional, até das questões de aparência
local, como a fabricação do pão, o destino das sementes camponesas ou a permacultura.

É justamente a imensa variedade de tarefas que contrasta tão claramente com a unidirecionalidade da versão
anterior. Existe uma orientação, mas é preciso ir a todos os lugares, em todas as direções, para recuperar a
autonomia e fazer coincidir, o máximo possível, os dois mundos. Não vamos a um determinado lugar
liderados por uma vanguarda; vamos nos espalhar em todas as direções para identificar o que nos impede de
sermos livres. É de fato uma orientação, mas que consiste em sair da prisão da produção por todas as saídas
possíveis. Há um sentido da história, vamos de uma situação a outra, mas atenção!, essa história não tem
direção. Não é a flecha do tempo que a define, mas a atração universal do terrestre que a obriga a mudar
aquilo que chamava de “ter um objetivo”, “avançar”, “ser resolutamente moderno”. Trata-se de fato de ser
progressista, pois há progressão, mutação, metamorfose, mas sem ser capturado pela velha figura do
progresso. Meço a dificuldade desse deslocamento dos afetos políticos pela dificuldade que tenho para
encontrar a metáfora certa. O movimento dos estudantes de uma escola quando o sinal sonoro chama para o
recreio talvez não esteja tão longe daquilo que estou tentando captar... Todos vocês conheceram esse
movimento, os estudantes correm por toda parte e em todas as direções, soltando gritos de alegre libertação.

Enfatizei isso desde o início com a minha história no set de TV: Marte excita, a Terra entedia. Você não
encontrará uma alternativa à produção total, ao sonho de Marte, até encontrar algo que tenha o mesmo
apelo estético, moral, esportivo, a mesma emoção, a mesma atmosfera, a mesma sonoridade oferecida pela
busca da liberdade e da emancipação. No entanto, encontramos algo dos esforços a serem feitos para nos
emancipar, tão logo tentamos nos colocar a questão da retomada, sob uma nova forma, do conflito e da
substituição daquilo que chamarei de “conflito de classes geossocial”. A expressão é um pouco pesada, mas a
tomo por enquanto para combinar o significado muito particular que Norbert Elias dá à palavra classe com a
mutação cosmológica que acabei de mencionar – e pela qual ele certamente não estava interessado.

Para mim, ela tem dois traços essenciais: os conflitos são detectados por variações, a princípio
imperceptíveis depois cada vez mais visíveis, nas maneiras, no gosto e no desgosto por certas práticas, certos
valores e atitudes; e, sobretudo, a classificação não depende primordialmente das relações de produção, mas
da invenção ou da captação de um certo sentido da história. Não há nenhuma dúvida de que as variações
atuais nas maneiras oferecem um repertório imensamente rico de maneiras de se argumentar sobre o uso do
mundo. E também não há nenhuma dúvida de que é de fato a produção que está sendo questionada hoje e
não apenas o seu aumento e a distribuição dos seus tesouros. Duas boas razões para abordar a questão dos
conflitos de cultura geossocial na perspectiva de Elias.

Se você acompanhou meu argumento sobre a cegueira do século XX sobre si mesmo, percebeu que o que
Bruno Karsenti, comentando Elias, chama de “classe pivô”, aquela que ele chamava de “racional” porque
ela enxergava mais longe do que as outras e que ele assimilou à burguesia em sua análise da sociedade de
corte, essa classe não apenas traiu a si mesma, mas traiu todos aqueles que ela pretendia conduzir em seu
rastro no “processo civilizador”. Desde que a figura do Antropoceno apareceu sob a figura do
desenvolvimento e da modernização, essa classe só pode ser considerada traidora de seu próprio projeto.
Além disso, é essa traição, esse abandono, esse “escapismo” que explica o vasto processo de descivilização
que estamos testemunhando por toda parte dentro e fora dos Estados-nação, na desordem internacional,
bem como no chamado, em um nível mais modesto, abandono de todas as formas de civilidade – cívica ou
acadêmica.

Essa velha classe “iluminada” continua incrédula a fazer os outros acreditarem que todos vão entrar no trem
do progresso e do desenvolvimento – enquanto se preparam para escapar o mais rápido possível da
magnitude da crise geral. É, por exemplo, o inevitável Elon Musk, fundador da SpaceX, se preparando para
levar todos a Marte e, para maior segurança, também se preparando para se refugiar sozinho em um bunker
de sobrevivência na Nova Zelândia. Mobilizar por um lado e rejeitar por outro; é essa atitude que explica a
brutalização geral da vida pública. Eles nos pedem para que nos desenvolvamos um pouco mais, quando
sentimos que, pelo contrário, devemos aterrar. O suficiente para enlouquecer as pessoas e, para usar um
clichê, não contar-lhes toda a verdade.

Se tomarmos o processo de descivilização para classificar os grupos em luta, começaremos a inquirir se não
existiria uma nova classe geossocial que pudesse servir de classe-pivô, agregando por sua vez, depois da
burguesia e contra ela, uma forma superior de racionalidade. Este termo deve ser tomado no sentido vago e
contingente que Elias lhe deu: não há nada de cognitivo ali, nada de racionalista à moda antiga, ele não
apela ao Iluminismo, nada de teleológico em seu argumento, é uma série completamente contingente de
eventos. Não, uma classe só pode reivindicar um pouco mais de racionalidade do que outra quando seu
horizonte é um pouco mais amplo, um pouco mais consistente que o das outras, justamente porque se
preocupa com o sentido da história de longo prazo e com o quadro cosmológico em que ocorrerá.

Aqueles que estão preocupados com a mudança cosmológica para definir o quadro em que as lutas ocorrerão
agora têm o direito de acusar os outros de inconsequência e irracionalidade. E de repente, segundo Elias, é
também o seu modo de vida que começam a destacar e a oferecer como modelos. Eles não estão mais a
reboque das outras classes. Eles anseiam por dar um sentido. Coloca-se então a questão de saber se, em meio
ao processo de descivilização, não se poderia discernir os contornos de um processo de recivilização, mas
sobre outra base que distribuiria de outra maneira o que também se poderia chamar de classes geossociais
de acordo com seu diferencial de “racionalidade”. A questão pode parecer bizarra, mas permite, na minha
opinião, pensar de outra maneira a continuidade da aventura moderna.

No entanto, há de fato nos chamados movimentos ecológicos algo como o embrião de um novo agregado em
luta contra aqueles que traíram e que tenderam a oferecer aos outros grupos um sentido da história. Querer
sobrepor, em todas as escalas, o mundo do qual vivemos e o mundo em que vivemos, é, no final das contas,
alongar o horizonte da ação coletiva, propor um projeto se não de desenvolvimento pelo menos de
envolvimento. O espírito das lutas está aí, o objetivo é a autonomia e a libertação, mas o sentido da ação foi
invertido. Só que não se trata de uma ascensão contínua em direção à liberdade à moda antiga, mas de uma
descida, de uma aterrissagem, em uma nova forma de emancipação que obriga a lutar, pé a pé, contra
qualquer coisa que ameace a habitabilidade da Terra. Não é a favor, mas contra a produção que as frentes
de luta se organizam agora. O interesse em partir de Elias é que esse tipo de nova luta de classes cujos
contornos percebemos nos conflitos de mundo, nos conflitos de planetas, não se baseia justamente nas
relações de produção. Isso pode parecer uma fraqueza, e é assim que a tradição marxista considerou seu
empreendimento.

Mas é também uma força, se é precisamente da produção em si como horizonte insuperável que se trata de
sair! É porque a antiga luta de classes se concentrou apenas na produção – perguntando-se como ampliá-la e
como melhor distribuir os frutos dessa riqueza –, que ela perdeu justamente o grande evento do
Antropoceno. Sob, antes, atrás, abaixo, além disso, em torno da produção, surge a questão fundamental da
reprodução dos seres que participam dessa produção – e, de fato, como podemos ver claramente em Marx,
sempre fez a mesma pergunta. O que os movimentos ecológicos revelam é o quanto essa questão da
reprodução não foi pensada, dentro da qual todo o sistema de produção está inserido, incrustado, embedded,
como diríamos em inglês. Como mostram claramente Karl Polanyi, Charbonnier e muitos outros, o mundo
da economia – liberal ou não, pouco importa – permaneceu dependente de um mundo material que não
levava em consideração. Era um materialismo sem matéria. Em todo caso, sem matéria mantida de forma
duradoura na existência. Adequado para um planeta comum como Marte, talvez, mas não à Terra tão
especial.

E é aí que encontro meu pesadelo da “produção total”. De fato, a escolha agora é decidir se devemos estender
a produção a tudo que a cerca e a permite, ou se é do próprio princípio de produção que devemos nos afastar.
Podemos ver claramente nas discussões sobre os “serviços ecossistêmicos” que a “natureza” deveria dar;
podemos imaginar a tentação de estender os princípios do cálculo econômico a montante da produção
propriamente dita, enquanto os camponeses, os ativistas e os chamados povos indígenas procuram, ao
contrário, diminuir o papel da produção a jusante daquilo que permite a reprodução dos seres vivos. Se a
classe emergente da ecologia tem tanta dificuldade para se orientar, é porque há um conflito não apenas
entre as classes, mas também um conflito sobre o tipo de classe e, portanto, de classificação, de localizações,
de alianças, que se trataria de usar. Em um caso, buscamos nos colocar em continuidade com as classes
definidas pelas relações de produção; em outro, a ecologia se define porque está em descontinuidade com as
classes tradicionais sobre a questão-chave da produção.

Num caso, retoma a grande aventura iniciada com os socialismos para expandir a produção e distribuir seus
bens da melhor maneira possível; situa-se, portanto, na aventura moderna; está situado entre a esquerda e a
direita; mas tem algum outro resultado além da produção total? No outro caso, ela inventa sua própria
posição; identifica seus próprios caminhos; define-se pelos limites impostos à produção; redistribui o vetor
esquerda/direita, assim como o vetor progresso/atraso, e inventa a forma de racionalidade que pode servir
de modelo para organizar o deslocamento das classes umas em relação às outras. Ela tem uma chance de
escapar da tragédia da Totaler Produktion, mas deve encontrar uma maneira de como se dirigir àqueles que
foram traídos, oferecendo-lhes outro destino, outra definição de abundância e identidade. Só a esse preço
que ela poderá agregar em torno de si e ambicionar esse papel de pivô que desencadeará um processo de
recivilização. À beira do abismo. Na urgência da mudança climática. Sem o longo processo de formação que
Elias relata em seus livros sobre “a dinâmica do Ocidente”. Ah! Se você buscava paixões e interesses, uma
história cheia de fúria, você a encontra ali, com certeza, em uma dinâmica de reorientação. Ainda temos que
aprender a discernir seus campos e movimentos.

É neste ponto que pode começar o outro movimento de retomada da aventura moderna, não mais
procurando um futuro para si, mas debruçando-se sobre o seu passado ou, mais precisamente, fazendo sua
antropologia. Embora o projeto de uma antropologia dos Modernos tenha parecido bizarro quando o
apresentei em 1979, a mutação ecológica à qual levou torna-o completamente evidente: “O que aconteceu? O
que eles tinham em mente?” Desta vez, não é pelas operações classificatórias e identificando mudanças de tal
forma que poderemos nos orientar, mas buscando entender por que os Modernos foram tão cegos em
relação à sua própria história. A hipótese que venho perseguindo há quase quarenta anos diz respeito sobre a
dificuldade do pluralismo. Por que os Modernos, como Eric Voegelin mostrou tão magnificamente bem,
foram incapazes de alimentar e valorizar o pluralismo.

Não o pluralismo no sentido social ou “ multicultural” que as sociedades contemporâneas se gabam um


pouco apressadamente de tolerar, mas o pluralismo dos modos de existência. Quando falamos de
pluralismo, Isabelle Stengers mostrou desde os tempos de suas Cosmopolitiques, parece que temos uma
mente ampla porque definimos de maneira muito estreita o mundo social e o tipo de seres que somos
prontos a admitir. O inventário é feito rapidamente: objetos e temas. Como podemos esperar, com tal
sistema de coordenadas, acomodar a diversidade dos modos de existência, a natureza das entidades que
habitam a Terra, que povoam o céu, que agitam as mentes, que fundamentam as leis, que estabelecem os
povos, que geram as ficções, que formam os valores? Os Modernos acreditavam estar em um mundo de
ontologia extremamente simplificada. A mudança ecológica, este é basicamente o meu argumento, é a
oportunidade perfeita para vir e complicar sua ontologia, pluralizar seus modos de verdade e,
consequentemente, reabrir a história. A aventura não terminou, mas deve recomeçar sobre novas bases: uma
outra cosmologia e uma outra antropologia.

 
Leia mais
 

Morreu Bruno Latour, o pensador da crise ecológica


Bruno Latour e uma sociologia planetária
Bruno Latour (1947-2022), o primeiro profeta do Novo Regime Climático
“O grito dos pobres e o grito da Terra estão juntos.” Entrevista com Bruno Latour
Bruno Latour, uma reinterpretação teológica
A Terra grita. Entrevista com Bruno Latour
‘Jamais Fomos Modernos’ e a potência da transformação do pensamento de Bruno Latour. Entrevista especial
com Fernando Silva e Silva
Das políticas da natureza à natureza das políticas. Um sobrevoo sobre a obra de Bruno Latour. Entrevista
especial com Letícia Cesarino
“O Novo Regime Climático impõe uma nova forma de fazer política”. Entrevista com Bruno Latour
“É gravíssimo que o religioso tenha se tornado incompreensível”. Entrevista com Bruno Latour
Mudanças climáticas: uma oportunidade para a teologia se libertar do passado. Artigo de Bruno Latour
Bruno Latour, o pensador (crente) da crise ecológica
Bruno Latour, o novo profeta da ecologia
A Terra como novo ator político que reconfigura os campos em disputa
Bruno Latour, Nicolas Hulot, François Ruffin: como a covid-19 pode recrudescer a mutação ecológica
Imaginar os gestos-barreiras contra o retorno da produção anterior à crise. Artigo de Bruno Latour
“A crise sanitária incita a nos preparar para as mudanças climáticas”. Artigo de Bruno Latour
“O sentimento de perder o mundo, agora, é coletivo”. Entrevista com Bruno Latour
Bruno Latour, antropólogo e escritor: "Temos que reconstruir nossa sensibilidade"

DEIXE SEU COMENTÁRIO !

Enviar
"

SOBRE O IHU PROGRAMAS NOTÍCIAS PUBLICAÇÕES EVENTOS ESPIRITUALIDADE


Gênese, missão e rotas Observasinos Mais notícias Mais publicações Comentário do Evangelho
Sala Ignacio Ellacuría e Teologia Pública Entrevistas Revista IHU On-Line Ministério da palavra na
Companheiros IHU Fronteiras Páginas especiais voz das Mulheres
Rede SJ-Cias Repensando a Economia Noticias en español Cursos de Espiritualidade
CCIAS Sociedade Sustentável Orações Inter-Religiosas
CEPAT Ilustradas
Martirológio Latino-
Americano
Sínodo Pan-Amazônico
Mulheres na Igreja

Av. Unisinos, 950 - São Leopoldo - RS


CEP 93.022-750
Fone: +55 51 3590-8213
humanitas@unisinos.br
Copyright © 2016 - IHU - Todos direitos reservados

Você também pode gostar