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Pau{o

22 ?- .0lt
55''3p
, 33 5'} e by E. P. Sanders

Titulo Qrigi11al:
Paul, the Law, and lhe Jewish People
C Fortress Press, PhiladeJphia, 1983

SUMÁRIO
Diaxramnçilo:
Dálet- Diagramações- (1J)3241-1045

Revisão: ABREVIATURAS ···············••u•••••••••••u••·····································.. ···...... 7


Edson Gracinda
PREFÁCIO............................................................................................... 9
Tradução:
José Raimundo Victigal !PARTE
PAULO E ALEI
Dados In ternacionai s d e Catalogação na Publicação (CfP)
(Cámara Brasileira do Livro, SP, Brasil) INTRODUÇÃO .......................................................................... -······u·· 15
Várias perguntas, diferentes respostas ........................................... 15
Sanders. E. P. Convicções centrais e esquema soteriológico ................................ 17
Sl98p Paulo, a lei e o povo judeu / E. P. Sande.rs; (tradução José Raimundo Vidigal).
- São Paulo: Ed. Academia Cristã / Paulus, 2009. CAPíruLo 1-A LEI NÃO É EXlGÊNCIAPARA ABRAÇAR A FÉ .... 29
Gnlntns 2-3 .............................................................................................. 30
ISBN 978-85-98481-24-1
Gálatas 5,3 . . .................. ...... ... ............ . . ... . .. ..... . .......... ............................. ... ......... ....... .... 49
1. Bíblia. NT. Epistolas de Paulo - Critica e interpretação 2. Judaísmo - História Ror11a11os 3-4 e 9-11 ................................................................................ 52
- Período pós-exi1io, 586 a.C.-210 3. Lei (Teologia) - Ensino blblico 4. Paulo, Santo,
Apóstolo -Atitude em relação ao judaísmo 1. 11tuJo. li. Série. Filipenses 3,9 .... .......... ... ................... . . ... ........ ..... ... ................ ................ ...... ............ .. 75
Conclusão: não pela lei. ........................................................................... 78
CDD-241.2
-227.06
-261.2
CAPfTUlO 2 - o OBJETIVO DA LEI..................................................... 83
88-1645 -296.09 Gálatas 3,19-4,7 ...................................................................................... 84
Índices pa.ra catálogo sistemático:
Romanos: o objetivo da lei e sua relação com n carne, o pecado e a morte... 91
Todos estão sob a lei. Os cristãos morrem para a lei ..................................... 106
1. Cristianismo: Relações com judaísmo 261.2
2. Judaísmo: História, até 499 296.09 C APITULO 3 - A LEI DEVE SER OBEDECIDA ...................................115
3. Lei religiosa: Teologia moral 241.2
4. Paulo: Epístolas: Interpretação e crítica 227.06
A observância da lei ...................................................................................................... 115
A lei e as conseqüências da transgressão e da obediência .......................... 133
Síntese ..................................................................................................... 148
Editor a Academia Cristã Editora PauJus APÊNDICE: ROMANOS 2 ....................................................... u .... .... .. 151
Rua Vi tória Régia, 1301 - Campestre Rua Francisco Cruz, 229
~320 - Santo André - SP O·H 17--091 - Selo Paulo· SP
Teb./Fax: (11) 4424-l204 · Vendas: (11) 4421 81 70 Tels.: (11) 5087-3700 - Fax: (11) 5579·3627
CAPiTULO 4-0 ANTIGO E 0 NOVO MINISTÉRI0 ...................... 167
E-mail: academiacista@globo.com E-mail: edJtorial@paulus.com.br
Site: www .editoraacadl'miaoista.com.br Site: www.paulus.com.br CAPfTULO 5- CONCLUSÃO: PAULO E A LEI...................................173
6 SUM.ÃRJO

Síntese dos resultados .............................................................................. 173


Preocupações centrais e falta de sistema .................................................. 174
Gálatas e Ro1na11os .................................................................................. 180
A origem do pe11snme11to pnulino sobre n Lei............................................ 182
A crítica de Paulo no judaísmo e ao legnlismo em geral ........................... 189
A Lei e a Escritura .................................................................................... 198
ABREVIATURAS
ll PARTE
PAULO E O POVO JUDEU ARNA Aboth de Rabi Natã, versão A
ATANT Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen
CAPITULO 6 - PAULO COMO APÓSTOLO DE CRISTO E Testaments
MEM"BRO DE ISRAEL...................................................................... 203 BBB Bonner biblische Beitrãge
L11trod11çiio ............................................................................................... 203 BEvTh Beitrage zur evangelischen Theologie
A terceira raça ......................................................................................... 203 B[RL Bullelin of the John Rylands Library
A prática missionária de Pau/o ................................................................ 215 BNTC Black's New Testament Commentaries (-HNTC)
Conflitos com se11 próprio povo ...............................................................231 BZ Biblische Zeitschrift
A salvação de Israel .................................................................................234 CNT Commentaire du Nou veau Testament
Co11clt1são ................................................................................................ 242 ConBNT Coniectanea bíblica, New Testament
EvT/1 Evangelische Theologie
CONCLUSÃO: PAULO E A RUPTURA COM O JUDAÍSMO .....245 Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und
FRLANT
BIBLIOGRAFI A .....................................................................................251 Neuen Testaments
Hermeneia Hermeneia - A Critica! and Historical Commentary on
REFERÊNCIAS BÍBLICAS .................................................................. 263 the Bible
ÍNDICE ONOMÁSTICO ...................................... r . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . 273 HNT H andbuch zum Neuen Testament
HNTC Harper's New Testament Commentaries (-BNTC)
ÍNDICE ANALÍTICO ........................................................................... 277 HTKNT Herders theologischer Kommentar zum Neuen Testament
HTR Harvard Theological Revíew
ICC The International Critica! Commentary
[BL fournal of Bíblica/ Literature
JS] fournal for the Study of ]ud11ism
]SNT ]ou mal for t/Je Study of the New Testament
]TS fournal of Theological Studies
KEK Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament
Ku D Kerygma und Dogma
MMM Manuscritos do mar Morto
Migr. Filo, De Migratione Abralwmi
NEB New English Bible
NTS New Testament Studies
8 ABREVIATURAS

PP] E. P. SA.\IDERS, Paul and Palestinia11 judaism


lQM MilhãmãJz (Rolo da Guerra)
lQS Serek kayya~ad (Regra da Comunidade, Manual da
Disciplina)
lQSa Apêndice A (Regra dn Congregação. A Regra Messiânica) a
lQS PREFÁCIO
4QpPs Comentário dos Salmos
Quest. Ex. Filo, Q11aestio11es et Solutiones in Exodum
RB Revue Biblique A presente obra compõe-se de dois ensaios, cada um deles expla-
RSR Reclzerches de Sciences Religieuses nando importante questão para entender a relação de Paulo com o
RSV Revised Standard Version judaísmo. O primeiro ensaio (I Parte), sobre a lei, analisa a principal
SBLDS Soàety of Bíblica! Literature Dissertation Series dificuldade para compreender o pensamento de Paulo a respeito da
SBT Studies in BiblicaJ Theology sua religião materna. Os capítulos 1 e 3 desenvolvem e escla recem, al-
SNTS Society of New Tetament Studies gumas vezes corrigem, a descrição da mentalidade de Paulo sobre a
SNTSMS Society of New Testament Studies Monograph Series lei, conforme se esboçou em Paul and Palesti11ia11 /udaism (Fortress Press,
ST Studia theologica Filadélfia) Paulo e o Judaísmo Palestinense, no prelo, editora Academia
TDNT G. W. Bromiley (trad. e ed.), Tlzeological Dictionary of tlze Cristã. E te estudo contém ainda certo aspectos do pensamento de
New Testame11 t Paulo sobre a lei, que não foram anteriormente tratados, e eu tento con-
TZ Theologisc/1er Zeitschrift siderar como um todo a questão da atitude de Paulo perante a lei. as
UNT Untersuchungen zum Neuen Testament notas de rodapés, algumas das quais bastante discursivas, levei em
USQR Union Seminary Quarterly Revitrw conta algumas das avaliações críticas mais importantes da minha obra
WUNT Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament anterior. O segundo ensaio trata de ponto que não enfoquei naquele
ZNW Zeitsc/zrift fiir die 11e11testame11tlic/1e Wisse11sc/1aft livro: o que Paulo pensava dos seus companheiros judeus e como se
ZTK Zeitsclzrift fiir Theologie und Kirclre relacionava com eles. Esta questão exige também que consideremos a au-
tocompreensão de Paulo e sua atividade como apóstolo de jesus Cri to.
Aqui desejo fa zer uma observação. Em Paul and Palt>sti11ia11 ]udnism,
não pretendi investigar o caráter judaico de Paulo, sua relação global
com a tradição e com o pensamento judaicos. Apesar das d imensões
daquele livro, o tema se limitava a como Paulo e seus próximos con-
temporâneos no judaísmo entendiam a "conversão e a vivência cristã".
t
O presente e tudo, porém, enfoca mab de perto o relacionamento ge-
ral de Paulo com o juda ísmo do seu tempo e, por conseguinte, incluj
análises obre temas tais como o modo de Paulo usar a E critura, até
que ponto ele era judeu praticante durante sua missão de apóstolo dos
gentios, e seu pensamento sobre o destino dos seus "parentes de raça"
que não aceitaram Jesus como o Mes ias. Assim, a presente obra, em-
bora sob certos aspectos seja exposição mais completa de idéias que já
publiquei, deseja er monografia independente, que fala do pensa mento

l PARTE

PAULO E ALEI
..

INTRODUÇÃO

Várias perguntas, diferentes respostas

Não é sem grande hesitação que alguém se propõe enfrentar de


novo a questão da atitude de Paulo perante a lei. E tema estudado mi-
nuciosamente por numerosos autores e a conseqüência é que se pen-
sa duas vezes antes de afirmar que se pode lançar nova luz sobre a
questão. Tal consideração leva a outras: o tema é difícil,1 e as horas de
trabalho que os estudiosos gastaram nele não produziram consenso.
Entretanto a dificuldade do assunto rivaliza com sua importância, de
modo que merece o esforço que tem sido feito. Trata-se de questão que
deve ser analisada, se se deseja entender o pensamento de Paulo, e
é não menos crucial para perceber importante momento no divórcio
entre o cristianjsmo e o judaísmo. Se, apesar da dificuldade e da exten-
são do problema, aventu ro-me a analjsá-lo em espaço relativamente
pequeno, é com a espera nça de que se possam apresentar a lgumas
propostas esclarecedoras, mesmo se nem todos os problemas exegéti-
cos possam ser resolvidos.
Há um fato decepcionante no estudo da visão paulina da lei: é
muito o que Paulo diz sobre ela. E deveria ser possível, usando os re-
cursos normajs da exegese, determinar com precisão seu pensamento.
Não é estudo como o do jesus histórico, onde se precisa rustinguir
entre redação e trarução, tentar descobrir as tradições mais antigas e
tentar estabelecer critérios para determi nar qual materiaJ é autênti-
co. Tampouco acontece aqui como no estudo da "sabedoria" em 1Cor,
onde o material disponível é pouco demais para poder definir com

1
H. J. ScHOO'S (Paul: TI1e TI1cology of tlle Apostle i11 tlle Ug/11 o fewis/1 Religious History
[Filadélfia: Westminster Press, 1961}, p. 168) comentava que a lei é o aspecto mais difí-
cil do pensamento de Paulo. Cf. PETER STUHL\1AO-IER, "Das Ende des Gesetzes", in ZTK
67 (1970): 35; "Das Gesetz aJs Thema biblischer Theologie", in ZTK 75 0978): 272..

..
..
16 L'1TRODUÇÃO INTRODUÇÃO 17

suficiente clareza qual "sabedoria" Paulo refutava. Para este estudo (11,16). Neste caso particular, pode ser que ele nunca tenha indicado o
sobre "Paulo e a lei" ternos diante de nós urna série de afirmações pau- verdadeiro motivo da sua asserção: ele era judeu.6 Não obstante, vê-se
linas indubitavelmente autênticas sobre o assunto; sabemos também como mistura todo tipo de argumento. Este fato, como veremos, ajuda
a qual lei se referia. Com poucas exceções, referia-se à Tanak, a Torá a explicar por que os autores discordam entre si no tocante ao motivo
judaica. 2 Todavi a, a pesquisa para apurar o que ele realmente "quis por que ele diz o que fala sobre a lei: razão e argumento nem sempre
dizer" segue adiante. Pode-se indagar, naturalmente, se ele teve ou são fáceis de distinguir.
não posição única e bem estruturada sobre a lei, e esta é pergunta que A tese da presente monografia é que as diferentes coisas que Paulo
faremos aqui. Mas n priori a suposição é que ele tinha posição clara disse sobre a leii dependem da pergunta feita ou de problema colocado.
sobre a lei. Conforme seu próprio testemunho, a lei fora su a vida antes Cada resposta tem sua p rópria lógica e deriva de um dos seus interesses
que Deus revelasse nele seu Fill10 (Fl 3,4-6; Gl 1,3-15). Sua rup tura com centrais; mas as diversas respostas, se colocadas lado a lado, não for-
ela foi bem consciente.3 Sua reação diante da possibilidad e de que os mam conjunto lógico, como se poderia esperar acontecesse na discussão
gálatas convertidos tivessem aceita o a lei foi tão violenta, que se ima- do problema da lei como tal O primeiro objetivo é mostrar que é este
gina ele tivesse dara e decisiva razão para dar resposta como aquela. E o caso e esboçar as principais perguntas e respostas. Não analisamos
no entanto, "repito, não existe con senso entre os autores sobre qual era cada categoria com exegese igualmente pormenorizada; a primeira ca-
essa razão e memos ainda existe consenso quanto ao modo de entender tegoria - por que Paulo dfase que ninguém é justificado pelas obras da
a relação entre suas muitas outras afirmações sobre a lei e a posição lei - merece mais atenção que as outras. Antes de falarmos da primeira
que ele tornou na controvérsia gálata. categoria, porém, será útil descrever as linhas gerais do pensamento
Um dos fa tores que dificultam a compreensão das afirmações de paulino, que comandam boa parte da discussão que vem a seguir.
Paulo sobre a lei é a dificuldade gera l de distinguir entre a razão pela
qual ele adotava urna posição e os argumentos que ele alega em favor Convicções centrais e esquema soteriológico
dela. Vamos dar um exemplo. É clar o que em lCor 11 o pensamento de
Paulo é que os homens devem orar de cabeça descoberta e as mulheres, Já demonstrei anteriormente, e aqui desejo simplesmente repetir,
de cabeça coberta. Em defesa dessa posição, diz ele que, para a mulher, que muito do que Paulo diz nas circunstâncias bem diferentes das suas
ora r de cabeça descoberta é o mesmo que se sua cabeça estivesse ras- cartas existentes, é comandado por algumas convicções centrais iden-
pada (1Cor 11,5). Diz também que ela deve orar de cabeça coberta "por tificáveis: que Deus enviou Jesus Cristo para a salvação de todos; que a
causa dos anjos" (11,10).-1 Afirma a seguir que a própria natureza ensi- salvação é, assim, posta ao alcance de todos, seja judeus, seja gregos, na
na que os homens devem usar cabelos curtos e as mulheres, compri- mesma base ("fé em Cristo", "morrer com Cristo"); que o Senhor volta-
dos (ll,14s; embora não seja claro como é que isso fundamenta sua tese rá em breve; que ele, Paulo, foi chamado por Deus para ser o apóstolo
principal).5 Finalmente, d iz aos que ainda não se deixaram convencer, dos gentios; que os cristãos devem viver de acordo com a vontade de
que "não reconhecemos outro costume", tampouco as outras igrejas Deus.7 Há, sem dúvida, outras teses que Paulo defendeu firmemente

2
Ver adiante, n. 29. n Cf. Sifre N11111. 11 (sobre 5, 18).
3
Aqui já começa a dificuldade: seria correto dizer que ele rompeu com a lei? Se s im, ; O . E. P. SA.'IDERS, Paul n11d Pnlesti11in11 ]udais111 (Filadélfia: Fortress Press, 1977), pp.
de que modo e até que ponto ele o fez? Quanto à autoconsàência de certa ruptura, +41s (daqui para a frente, citado mediante a sigla PP]). O comportamento correto
entretanto, pode-se pensar em Fl 3,7. é uma ad ição à lista primitiva. C. J. A. H 1CKUNC, num artigo profundo e valioso,
~ Para o nosso objetivo no momento, não é preciso discutir a razão pela qual ele usa apresenta como centro do pensamento de Paulo aJgo mais fundamental que es-
exo11sin em 11,10. A idéia globaJ é bem dara. sas "afirmações intima mente ligadas": "Deus já operou em Cristo decisiva e final
o; Talvez seja este o raciodrUo: a mulher deve usar cabelos compridos; cabeça descober- trmisformnção do ti:mpo": O centro do pensamento e d a religião de Paulo " não está
ta é o mesmo que cabeça raspada; por isso ela deve orar com a cabeça coberta. simplesmente, nem principalmente, no conteúdo das suas asserções sobre Deu s e



20 btTRODUÇÃO I NTRODUÇÃO 21

Esta entrada no corpo de Cristo, por mais importante que seja para convicções primárias") e "a terminologia mais significativa peJa qual
Paulo, não é a totalidade do seu pensamento; deve-se distinguir entre ele exprime a passagem da vida antiga à nova".
"o centro do seu pensamento" (ou, citando as palavras que usei, "suas Entretanto, desejo focalizar agora o último tópico, pois é especial-
mente importante para entender o que ele fala da lei. Muita coisa do
que Paulo escreveu pertence a uma estrutura que eu denomino "de
coisas dão no mesmo, em última anáJise, minha posição é ambivalente porque eu
entrada e de permanência". A estrutura, além destes dois tópicos, in-
minimizo a importância da justificação. Isto é simplesmente ignorar minha expo-
sição das "convicções centrais" de Paulo Cem PP/. pp. 441s; acabo de repeti-las), clui o que acontece com os que não "entram" e o que acontece com
como também a explicação pormenorizada que dei de como jus tificação e par- os que entram, mas não se comportam conforme o modo que Paulo
ticipação são dois termos que apontam para a mesma realidade, ao passo que a considera apropriado para a vida no Espírito. Analisando a entrada e
última nos diz mais sobre o modo como Paulo pensava (PP], pp. 502-8). 0 comportamento apropriado para permanecer dentro, Paulo emprega
HAl\'S H C'Bl\tR ("Pauli Theologiae Proprium", in NTS 26 (1980): 445-73) afuma, que- apreciável d iversidade de terminologia. A terminologia para indicar
rendo aludir à minha obra, que é a do11tri11a da justificação pela fé e não o "ser em
Cristo" que é o "centro da teologia paulina " (a fra se aparece na p. 449). HOBN'ER, de
a entrada no corpo por parte dos que serão salvos foi analisada por
fato, simplesmente se engana no interpretar minhas principais posições: G ERO Tt LEISSEN de maneira esclarecedora Ele divide os termos em dois
1. ão reconhece minha distinção e ntre as convicções centrais de Paulo e as varia- tipos principais; sóciomórficos e antropomórficos. Faz a importante
ções de sua terminologia da passagem (PP/, pp. 441s; 463-72; 502-8). observação que todos os termos são descrição metafórica de mudança
2. ão toma conhecimento de minha idéia de que as diferentes opiniões sobre "justi- do estado de não-salvação para estado de salvação. 16
ça" e " participação" são, em boa parte, controvérsia terminológica (PP], pp. 507s).
3. De ponta a ponta HCBJ\"ER discute "a d outrina da justificação pela fé" (die Igualmente diversificada, às vezes igualmente metafórica, é a
Recl1tfertigungslel1re) como se fosse doutrina indiscutivelme nte unificada, estabe- terminologia de Paulo para designar o comportamento apropriado
lecida, ignorando minha afirmação de que a terminologia da justificação é usada para aqueles cujo estado mudou. A terminologia que se esperaria de
por Paulo de diversos modos (PP), pp. -191-5). alguém do ambiente de Paulo, a terminologia justo-injusto, hones-
4. Tendo observado alguma concordância entre minha posição e a de 5cHWBTZER, to-perverso, não aparece com freqüência nas suas análises do com-
Hos, ER gasta boa parte da sua obra criticando Sct-IWEITZER (e ocasionalmente
W REDE), como se estivesse refutando minha posição, quando, de fato, concordo
portamento apropriado.'7 A terminologia da justiça, especialmente o
com muitas de s uas críticas a Sc:HwETZCR (ver, p. ex., HOBNER, p. 453 n. 40, p. 454 nn. verbo passivo "ser justificado" 111, é usada nas s uas discussões sobre
46e 4n.
HuBNER traz novos argumentos a favor de considerar como centro do pensamen-
to paulino a "justificação pela fé" entendida de modo jurídico. ão os acho con- te.C(Jm TmtSSE", "Soteriologische Symbolik in de n paulinischen Schriften", in K11D
vincentes, sobre tudo porque não visam realmente a meus argumentos anteriores 20 (1974): 282-304.
para provar o contrário; embora mereçam atenção, não posso prosseguir aqui a 17 O modo de Paulo usar os termoséfrisadoadiantena P- 22 ediscutidobrevemente no

discussão. cap. 3 d este e nsaio. Quanto à temunologia na literatura judaica mais ou menos con-
Ftnalmente, agradeço ao prof. H OB"IEK por me ter chamado a atenção para las ti- temporânea, ver PP/, pp. 624s, verbetes "The Righteous" (o justo) e "Righteousness"
mável erro que cometi. a p. 441 de PP/, eu concordei com SatWEJTZER e m que "a (justiça). Obra mais recente é o livro de BEXNO PRZYBYl..SKl, Rigltteous11css i11 Mathew
jus tificação pela fé pode ser proveniente de e entendida na base de outros aspectos a11d His World of Tl1011glil ( ova Iorque: Cambridge University Press, 1980).
d o pensamento paulino tais como a posse do Espírito e a vida no Espírito, mas 1" É bem conhecido o problema da tradução das formas verbais da raiz dik- nas lín-

não vice-versa" (citado por HUB.'IER, P- 4-19). Ai fui longe demais no concordar com guas modernas. Exemplo de estudo recente é A j . MArnLLjr., "Translation of Word
ScttwEJTZER, e a expressão " proveniente de" não representa minha opinião. Como \vith the Stern Dik- in Romans", in Andrews U11 h"'rsity Semiuury Shnlies 9(1971): 89-
minha ulterior d iscussão mostrará, minha opinião era - e é - que "ser justificado 98. A proposta d e KE.'0R1i... GROBEL (na sua tradução inglesa da obra de Bu1 rMAN":
pela fé" e "estar e m Cristo" apontam para a mesmn realidade, ao passo que as cate- Tlleology o{ tire Neu• Teslament [Nova Iorque: Charles Scribner's Sons, 1951-1952])
gorias "participatórias" servem para definir as "jurídicas" <PP], pp. 502-8, esp. pp. de reintroduzir o tem10 " righhvisen" parece que não vingou. Eu decidi tentar o
507s). Além do mais, outros pontos da teologia paulina realmente "provêm" das recurso existente em inglês de formar um verbo diretamente do substantivo ou d o
categorias participatõrias e não das jurídicas <PP/, pp. 439s e nn. 47 e 51). Contudo, adjetivo. esta linha, recorde-se o famoso " to small" d e Hardy (verbo de rivado d o
eu não deveria ter dito que a linguagem jurídica " provém" da participatória. adjetivo).
22 lNTROOUÇÃO I NTRODUÇÃO 23

a passagem de um estado ao outro e não aparece muitas vezes nas "fruto" da vida no Es pírito. 21 É sobretudo notável para o nosso p re-
discu ssões sobre a conservação do novo estado.'9 Paulo usa bastante sente objetivo o fato de que ele pode usar nesse contexto a linguagem
a linguagem de pu reza da Bíblia, ao descrever a atitude adequada à do viver pela lei.
condjção de cristão, 20 e pode também analisa r esta condição como o Pode ser útil ilustrar a estrutura da entrada, da permanência e as
conseqüências do comportamento por um diagrama e algumas listas.
A intenção é mostrar ao mesmo tempo a estrutura básica e a diversi-
Um autor cuja con ideração muito aprecio, pois lhe tenho grande estima, disse-
me francamente que vou decair no seu conceito se persistir neste barbarismo. Já
dade da terminologia. Embora seja útil apresentar esta estrutura na
que persisto, quero explicar a razão. Concebo plenamente que não há razão para forma de diagrama, percebo que é também um risco. Poderão pensa r
"to loan", "to author", "to exegete", e semelhantes. Os ingleses têm plena raLào que estamos redu zindo pensa mentos complexos a simples gráfico. Por
ao considerar essas expressôt:.'S como barbarismos criados por meus compatriotas, amor à clareza, porém, correrei o risco. Preciso frisar que não conside-
muitos dos quais agora residem mais para o sul. Mas a coisa é diferente quanto ro todos os termos do diagrama e das listas como simples sinônimos,
a " to righteous" e "to faith". A força e a modalidade do argumento de Paulo cm
GI 3,6-8, por exemplo, escapam inteiramente ao leitor inglês, se dikniosy11c (em 3,6) tampouco acred ito que tudo quanto Paulo pensou pode ser reduzido
for traduzido por " righteousncss" e dikaio1m (cm 3,8) por "ju5tify". O argumento a uma estrutur a ou nela inclu ído, e muito menos no diagrama que a
depende do fato de que o verbo em 3,8 é construid o a partir d o sub tantivo na ilustra. Creio, no entanto, que o diagrama e as listas ilustram algumas
citação bíblica de 3,6. PauJo usa a Escritura para sustentar ua posição e eu argu- conv icções básicas de Paulo sobre o processo de se tornar e de perma-
mento é de caráter terminológico. necer cristão, e ajudam a aLienta r uma coerência que está subjacente à
Há muitas passagens deste tipo. ão tiveram êxito as tentativas de tratar com
sutileza o problema nas versões inglesas oficiais. Isto faz parte da justificação (o diversidade de expressão.22
trocadilho não é proposital) da agressão frontaJ, brutal O diagrama tem dois elementos básicos: a passagem de um estado
Há um segundo motivo para o neologismo, e este me parece enfim decisivo. O ao outro (a seta hori zontal) e o comportamento dentro d e cada estado
verbo, especialmente na sua forma passiva, varia notavelmente de significado, e suas conseqüências (as seta verticais). Devo esclarecer, ainda, que
enquanto na frase mais comum o significado é debatido por boas razõe.. Mas
o diagrama precisa er estudado junto com as listas que o seguem .
dikaio1111 é importante demais no vocabulário paulino, para deixá-lo desaparecer
por d etrás de significações variantes. A RSV com muita raUJo traduziu o pas ivo A primeira lista elenca os texto onde aparece a terminologia da pas-
de dikaioun por "freed " (liberto) em Rm 6,7; em 1Cor 6,11 o sentido é provavel- sagem; a segunda, os que usa m a terminologia do comportamento.
mente "perdoados" ou "purificados", em 1Cor 4,4 "quitado" e em Rm 2,13 "serão Ienhuma delas prete nde ser to talmente exaus tiva.
tidos como inocentes". É discutida a questão do significado preciso da frase mais A estrutura ilustrada pelo diagrama é esta: os seres humanos par-
importante para nosso presente objetivo, "justificado pela fé, não pela lei"; é claro
que o verbo, aí como em outros lugares, significa a passagem para a vida cristã,
tem de um estado de condenação: estão "em pecado", são "pecadores".
mas é difícil determinar a conotação precisa. Costuma-se questionar se "ser toma- Graças à ação de Deus em Cristo, eles podem passar para o grupo dos
do justo" ou "ser reabilitado" exprimem melhor o sentido. Há fundadas objeções qu e serão salvos. O que não passam, serão d estruídos. Os que pas-
contra ambas as traduções, e parece-me temos de recusar-nos a ficar presos a uma sa m, devem adotar certo tipo de vida. Há diversas possibilidades no
das aJternativas d o dilema. Já que "justificado" é o termo mais usado, tenho a ob- caso dos que peca m após a passagem: podem ser castigados ou sa lvos,
servar que ele exprime para grande parte das pessoas a idéia de "ser declarado ou
achado inocente"; ora, a questão é precisamente definir se Paulo transportou ou
não o significado do termo para o campo jurídico. 21
Gl 5,22; d. Fl 1, 11 .
i ci PP/, pp. 470-2; 5 18, nn. 5; 544s . O adjetivo pluraJ dikaio1 em Rm 5, 19 não constitui :?2 X AVTER LtoJ1.-0l.FOt..1t ("Jugement de l'homme et jugement de Dieu. 1Co4,1-5 dans
exceção. "Muitos serão feitos justos" (dikaioi knlastat/1eso11tni l1oi pollm) signiíica o le cadre de 3,18-4,5", in Pnolo n 1111n Cl1it sn Diviso (1 Co 1-4] [Roma: Abbazia di S.
mesmo que se Paulo tivesse escrito: "muitos serão justificado " (dikniõl/1eso11tni /101 Paolo, 1980], pp. 137-75) oferece um diagrama muito interessante para ilustrar o
polfo1). pensamento paulino (p. 152). Há alguns pontos de correspondência, mas os dia-
2{I PP/, pp. 450-3. Ver a análise completa em MlcHAa 11::\vro:o-, "The Concept of Purity gramas visam a objetivos diferentes e não adianta tentar reconciliá-los. Mas um
at Qumran and in the Letters o( Paul" (tese de doutorado, Hamilton, Ontario: estudo do artigo e do diagrama do prof. Lto,-DuFol.;~ ajuda a confirmar que cada
MacMaster University, 1980). diagrama visa ilustrar apena um aspecto do pensamento.
24 INTRODUÇÃO l ITRODUÇÃO 25
podem corrigir sua rota e ser salvos, podem recusar-se a corrigir sua TERMINOLOGIA DA PASSAGEM
rota e ser excluídos do grupo dos que serão salvos. 23
Pecadores justificados } pela morte
Rm 5,8-10
inimigos reconciliados de Cristo
• sob e pecado • fé • justos
• no pecado • 1ustiflCados • vida condenação morte de C risto quitação Rm 5,18
• sob a lei • no espírito (dikniÕISis)/ vida
• pecadores • reconciliados • espírito de vida
• 1nim1gos • lavados • em Cristo justos
• morte • santificados • 1ustificados pecadores morte de C ris to Rm 5,19
• condenados • a morte de Cristo • filhos de Abraão
(dikaioí)
• injustos como purificação • filhos de Deus
• Justiça sob a • participação na • de Cristo no pecado morte com Cristo: vida Rm 6,4
lei/ recusa morte de Cristo • 1ustiça que vem de Deus
• não pela lei
santificados po r
no pecad o participar da vida Rm 6,7
• obras da carne • fruto do espirita morte de C ris to
• não herdam o reino • fruto da Justiça
• o fim ê a destruição transgressão • a lei de Cristo
• toda a lei
escravizad os à lei/ vida nova
mo rte com C risto: Rm 7,4-6
• a lei/os mandamentos à carne no espírito
castigo arrependimento • os mandamentos de Deus
• irrepreenslveis condenação/
• irreprovâveis em Cristo não Rm8,ls
• santos
pecado/ morte d e C risto
morte há cond enação
• fazendo o bem
exclusão salvação •
• _____
puros e irrepreensfveis
moral, puro, santo __, lavados,
justificados,
injustos [justos] 1Cor 6,9-11
santificados
salvacão [no batismo]

Judeus
justificados
ou gentios
(pecad ores) pela fé Gl 2,16
23
Há dupla complexidade com relação ao pensamento de Paulo obre a "passa-
gem" de um estado a outro, que não pode ser repre entada pelo gráfico. (1) A pela fé espírito Gl 3,2.14
seta da esquerda para a direita mostra a seqüência lógica. Demonstrei em outro pela fé filhos de Abraão Gl 3,7.14
estud o (PP}. pp. 442-7) que organicamente a solução de Paulo precede o proble- pela lei Justiça /vid a Gal. 3:21
ma. (2) O prof. J. Louis M ARn'< me fez notar que falar de " pa sagcm'' d á a im- pela fé filhos de Deus GI 3,26
pressão de que Paulo considerava a mudança de estado como puramente voliLi-
va, quando na verdade ele a imaginava como algo que acontece com alguém. É
justos sob fé / participação ne le/justificação
assunto bem complicado. Pelo menos parcialmente aceito a opinião de MARn,, Fl 3,6-11
mas não pretendo que o gráfico esclareça este aspecto da visão paulina obre a lei/ recusa nos sofrimentos que vem de Deus
Deu e a humanidade. Ele mostra o que acontece, o que Paulo naturalmente
pensava que aconteces e "por meio da graça", mas que também implica esforço
humano.
26 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 27

TERMINOLOGIA DO COMPORTAMENTO E SUAS Deve-se prestar especial atenção ao u so da raiz dik- (certo). O verbo
CONSEQÜÊNCIAS na voz passiva é usado para exprimir o ato de transição, e, assim, ele
aparece junto com "fé" e com "morrer com Cristo'~ na segunda coluna
obras da carne Gl 5,19; cf 1Cor S,9s; 1Cor 6,9s a partir da esquerda, na lista da terminologia da passagem. Mesmo
n ão herda.r o reino GJ 5,21; ICor 6,9 neste sentido, podem-se distinguir dois usos: a pessoa é justificada
o fim é a destruição Fl 3,19; d. 2Cor 4,3; 2Cor 11,15 de pecados concretos (lCor 6,9-11) ou do (poder do) Pecado (Rrn 6,7).
Talvez nem seja preciso dizer que para Paulo as duas coisas vão juntas:
fruto do espírito Gl 5,22
quem estava no Pecado também pecou, e em Cristo Deu s outorgou a
fruto da justiça Fl 1,11
purificação do pecado e a libertação do pecado.24 Três formas da raiz
o justo preceito da lei Rm 8,4 dik- aparecem junto com "vida" e "no Espírito", para indicar o estado
a lei de Cristo Gl 6,2; cf. 1Cor 9,21 dos que abandonam o pecado: dikaiõsis (Rm 5,18), dikaios (Rrn 5,19) e
toda a lei GI 5,14 dikaiosyne (Gl 3,21; Fl 3,9). Ademais, estes três termos não têm preci-
lei/mandamentos Rm 13,8-10 samente o mesmo significado. Um homem que é dikaios é manifesta-
mandamentos de Deus ICor 7,19 mente alguém que é correto, que não peca. Tendo sido purificado, não
mais carrega o fardo de suas precedentes transgressões. Assim, ele
irreprováveis 1Ts 3,13; d. 5,23; Fl 2,I Ss tem também dikniõsis, quitação, tendo sido perdoado. Da pessoa que
irrepreensíveis 1Cor 1,8 participa dos sofrimentos de Cristo pode-se dizer também que possui
santos lCor 7,34; cf. 2Cor 7,1 a dikniosy11e ek theou, que parece ser equivalente a estar "em Cristo" (Fl
p rática do bem GI 6,9 3,9). Faço estas observações para enfatizar não só a importância da raiz
puros e irreprováveis FI 1,9-11
dik, mas também a importância de observar usos flexíveis e variações
moral, puro, santo 1Ts 4,3-7
do significado preciso dentro de estrutura coerente.
(cristãos)
O diagrama deve esclarecer, assim o espero, que Paulo usava o ter-
transgressão mo nomos em pelo menos dois contextos bem distintos: um, na análise
.J, l Cor 3,12-15 (cf. 4,4-5); de como a pessoa "entra" (não pelas obras da lei), o outro na análise de
castigo l Cor 5,1-5; 1Cor 11,30-32 como se comporta quem está "dentro" (observa a lei). Assim, já chega-
J, d . 2Cor 5,10 mos a un1a de nossas conclusões principais: a questão que discutimos
salvação determina o que Paulo diz a respeito da lei. Sempre se observou que
Paulo tem afirmações "negativas" e "positivas" a respeito da lei e fo-
transgressão ram propostas várias explicações. Voltaremos a falar das principais,
.J, no final do capítulo 2. Aqui apenas comentarei que a explicação que
arrependimento 2Cor 7,9-10
J,
salvação 14
Ou talvez é preciso dizê-lo. BRE.'IDAM B YRNE ("Sons of God- Seed of Abraham" [Roma:
Biblical lnstitute Press, 19791, p. 213), tentando refutar minha posição, sublinha
impenitência
.J,
exclusão } 1Cor 5,11-13; 2Cor 12,21
que Paulo "manteve em união essencial" os conceitos "de Cristo que não só morre
por nós, mas também nos permite morrer com ele". lsto, de fato, é precisamente
o que eu disse (PPJ, pp. 463-8; 487; 498s; 502s; e esp. p. 507). Este fato, no entanto,
não prova que o esquema arrependimento/ perdão seja central para Paulo, coisa
que B YRNE afirma.
28 l l\ITRODUÇÃO

procura, como ponto de partida, determinar qual questão está sendo


proposta é dife rente da explicação que se baseia nas distinções de sig-
nificado que PauJo conscientemente tinha em mente (p. ex., a lei como
código externo cumprido legalisticamente e a lei como princípio ético
de amor).25 CAPÍTULO 1
Quando se começa a partir dos principais contextos até aqui indi-
cados e se procuram outros, descobre-se que existem aJguns outros. A LEI NÃO É EXIGÊNCIA
Existem quatro principais questões em resposta às quais Paulo usou
a palavra nomos; enfrentaremos agora cada uma delas. Na discussão PARA ABRAÇAR A FÉ
dos principais contextos, temos de deixar de lado algumas das vezes
em que aparece a palavra nomos em Paulo, sobretudo aquelas em que
parece significar "princípio".26 A nossa primeira categoria é a que suscitou a produção exegética
ma is extensa e a que costuma ser considerada como a coisa mais carac-
terística que Paulo disse sobre a lei: o homem é justificado pela fé, não
pelas obras da lei. São três os principais problem as levantados no de-
correr dos debates entre os estudiosos. (a) Contra quem esta afirmação
é feita? (b) Por que Paulo a firma que a justificação não pode acontecer
25 ERNEST
através da lei? (e) Qual a reJação entre afirmar que a justificação não
oEWm BURTO:'ll, especialmente, explicou as diferentes a firm ações feitas so-
bre a lei com base na idéia de que Paulo tinha e m mente d iferentes definições
acontece através da lei e afi rmar que o julgamento se faz com base nas
conscientemente. Ver Tlle Epistle to llie Gnlatúms (Edinburgh: T. & T. Clark, 1921), ações ou que, no julgamento, os que praticaram a lei serão justificados
pp. 447-60, esp. p. 451 . Ver também a nota seguinte e pp. 99-104. (Rm 2,13)? O terceiro problema ficará para o capítulo seguinte e vamos
v. Rm 3,27; 7,21.23; 8,2 (a frase: "a lei do Espírito de vida"). AJguns ustenlaram agora considerar os outros dois.
recentemente q ue "nomos d a fé" (Rm 3,27) e "11omos do Espírito de vida" (8,2) Existe número limitado de resp ostas possíveis à primeira pergun-
significa m a lei bíblica conforme vista ou encontrada pelos que crêem. Isto lhes
possibilita, entre o utras coisas, unir as afirmações paulinas negativas e positivas a ta. A afirmação "ninguém é justificado pelas obras da lei" pode ser
respeito da lei - ponto ao qual voltaremos no capítulo 3. Essa linha de a rgumen- entendida como dirigida contra a compreensão judaica de salvação,
tação foi contestada de modo convincente por H EJKJ...I RA~A~ li.'\I, "Das 'Gcsetz dcs contra os adversá rios cristãos de Paulo (quer judeus, quer gentios), ou
Glau bens' (Rõm . 3.27) und das 'Gesetz des Geistes' (Rõm . 8.2)", in NTS 26 (1979): contra ambos. A segunda questão provoca maior discussão e elenco
101 -17, deba tendo as opiniões d e e. FRIEDRJCl l, E. LoHSi:, P. VOl\ DER Osri;N-SACKEl'ol e
maior de respostas. Paulo sustenta a opinião que ele manifesta com
H. H LBMR. Hoe~ER respondeu a RAISANEN no a pêndice da segunda edição de Das
Gesetz bei Pn11/11s (Gõttingen: Va ndenhoek & Rup recht, 1980), pp. 136s; e RAISÀ~E'll tanta freqüência, porque é impossíveJ cumprir toda a lei (é a resposta
replícou a esta resposta cm Paul flluf tlte Lnw. O ponto mais d ecisivo é este: confor- "quantitativa"), porque é alienante cumprir a lei - cumpri-la é pior que
me a interpretação de H OBNElt e de outros, a lei mosaica (vista através dos olhos da não fazê-lo, como H EIKKI R Ã ISÂNEN observou' (é a resposta "qualitati-
íé) deveria ser o meio pelo q ua l fi ca excluída a va ngló ria (Rm 3,27) e também o meio va") -, por causa de sua soteriologia exdusivista (só pela fé em Cristo,
pelo qual os cristãos sAo libertados da (pervertida) lei (8,2). Isso parece clara mente
impossível. Entre ou tras coisas, tom aria sem sentid o a visão paulina da mo rte d e
portanto, não pela lei), por causa das exigências da missão entre os
Cristo. É muito melhor, cm a mbos os casos, considera r 110111os como referente ao
princípio salvffico da fé ou do Esp(rito. Ver, adiante, pp. 104s.
1
Deve-se acrescentar que até há pouco os autores geralmente (e com razão) enten- Lendo Ri.;ooLF BLLT\tAN , " tem-se a impressão d e que o zelo pela lei é mais pre-
diam nomos em Rm 3,27 e nas o utras passagens aqui citadas como sign ificando jud icial q ue a transgressão": l IDKKI RA1SA'llE.'1, " Legalism and Salvation by the
" regra" o u " no rma"; assim, p. ex., WoLFCA.'G SafRAGE, Die ko11krete11 Ei11zelgebote i11 Law", in Die Pa11li11isc/1er Literat11r 1111d Tlreologie (Aarh us: Forlaget Aros, 1980),
der pa11/i11iscJ1c11 Pnrii11ese (Gütersloh: Gerd Mohn, 1961 ), p. 99. p. 68.
30 CAPÍTULO 1 A LEl ÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 31

gentios.2 Naturalmente, é possível combinar algumas dessas explica- rem herdeiros das promessas bíblicas, tinham de aceitar a lei bíblica.
ções da visão paulina - e HANs H üeNER propôs recentemente que a Falando nos termos usados anteriormente: os gentios convertidos só
resposta quantitativa aparece em Gálatas, a qualitativa em Romanos.3 Podiam entrar ao povo de Deus sob a condição de se fazerem circun-
cidar e de aceitarem a lei. Usando os termos próprios deles, os mis-
Gálatas 2-3 sionários ensinavam que os que quisessem ser verdadeiros filhos de
Abraão e herdeiros das promessas deveriam fazer como fizera Abraão
Encontramos pela vez primeira a formulação "não pelas obras da e circuncidar-se (Gn 17,9-14.26s).5 É incerto quem eram precisamente
lei" em Gl, que é feliz sob muitos aspectos, pois tanto o contexto como esses missionários, mas sua posição parece ser materialmente idêntica
a mensagem principal de GI são relativamente fáceis de determinar e a das pessoas que Paulo chama de "falsos irmãos" em Gl 2,4. Então, é
nos dizem bastante sobre o modo de Paulo considerar a lei na ca rta. provável que fossem judeu-cristãos "da direita".6
Para entendermos as afirmações sobre a lei em Gl, é importante ter cla-
reza em dois pontos: (n) O tema de Gl não é se os homens, considerados HANs DtETER BETZ, RSR 7 [19811: 312-14). A questão é estudada em pormenores na
abstratamente, podem ou não conseguir através das boas obras mérito segunda parte da presente obra.
suficiente pa ra serem declarados justos no julgamento; trata-se da con- 5 A maior parte dos autores concorda que os missionários opositores faziam refe-
dição para os gentios entrarem ao povo de Deus. (b) Os argumentos de rência a temas bíblicos tais como a filiação de Abraão. Ver, p. ex., Josr ECJ<ERT, Die
Paulo a respeito das exigências para essa admissão dos gentios são ge- 11rchristfiche Verkiíndigung im Streit zwiscl1en Paul11s und seinen Gegnern 11acl1 dem
Galnterbrief (Regensburg: F. Pustet, 1971), pp. 76, 105; HuBNER, Gesetz, pp. 17s.
ralmente tomados da Escritura, e com toda probabilidade ele está res- Alguns duvidam: BRENDAN BYRNE, "So11S of God - Seed o/ Abraham" (Ro ma: Biblical
pondendo a afirmações feitas pelos missionários rivais. Embora esses lnstitute Press, 1979), pp. 148s.
pontos sejam importantes para entendermos o modo como Paulo trata b A maioria dos autores concorda q ue os missionários adversários eram cristãos.
a lei, o primeiro é absoluta mente vital. Contudo, não pretendo anteci- Note-se a descrição q ue Paulo faz da mensagem deles como sendo " um evangelho
diferente" (Gl 1,6) e sua acusação de que seus adversários desejam escapar de serem
par a prova de nenhum deles. A evidência aparecerá à medida que a perseguidos por causa da cruz d e Cristo (6, 12). Além disso, suas alusões aos "fal-
argumentação caminha. Começaremos com uma visão panorâmica da sos irmãos" em Jerusalém e à concordâ ncia com Pedro e Tiago só têm sentido se a
situação na Galácia (nas notas, colocamos o grosso da discussão com disputa acontece no seio d o cristianismo. Para a história da pesquisa, ver HETh.'RICH
os outros especialistas). 5cHLIER, Der Brief an die Galater, 5ª ed. (Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1971),
Certos missionários estavam tentando, ao que parece com algum pp. 19-24; FRANZ MUSSl\"ER, De Galaterbrief (Freiburg: Herder, 1974), pp. 11-29 (com
elenco pormenorizado das teorias); HANS DIETER Baz, Galatia11S (Filadélfia: Fortress
sucesso, convencer os gentios~ convertidos por Paulo de que, para se- Press, 1979), pp. 4-9; EcKERT, Verkii11dig1mg, pp. 1-18.
Em seu ataque à escola de Tübingen, M UNCK defendeu como tese central que "os
2 adversários judaizantes em Gl são gentio-cristãos OoHANNES M uNoc, Paul and the
Daremos pouca ou nenhuma atenção a três teorias sobre o motivo pelo qual Paulo
d isse "não pela lei": (a) era idéia corrente n o judaísmo que a lei haveria de ces- Snluation of Mm1ki11d [Atlanta: JmlN l<Nox Press, 1977), pp. 87s). O argumento prin-
sar com a chegada da era messiânica (ScHWEITZER, Sa IOEPS); (b) Rm 7 mostra q ue cipal é o particípio presente hoi peritemnomenoi em 6,13. É o que dizem também H.
Paulo ficou frustrado na sua ten tativa de atingir a justificação pela lei e por isso ]. ScHoEPS, Paul (Filadélfia: Westminster Press, 1961 ), p. 65; PETER RlcHARDSON, Israel
denunciou-a (muitos autores, esp ecialmente em época menos recente); (e) Paulo in tire Apostolic CJ111rch (Nova Iorque: Cambridge University Press, 1969), pp. 84-
tinha idéia apoca üptica da lei como totalmente monolítica e assim podia de cartá- 97. a . PI ERRE BoNNARD, L'Épitre de Saint Paul aux Galâtes, 21 ed. (Neuchâtel e Paris:
la i11 tolo {WtLCKE.NS). Sobre isso, ver E. P. SANDERS, Paul a11d Palesti11ia11 /11daism (PP// Delachaux & Niestlé, 1972), pp. 2-5, 13: os adversários eram certamente cristãos,
(Filadélfia: Fo rtrcss Press, 1977), pp. 47-80 e as notas. A segunda explicação conti- provavelmente de origem judaico-helenística ou ex-gentios que se fizeram proséli-
nua a ser reapresentad a e voltaremos a e la brevemente nas pp. 99s e n. 33. tos antes de abraçar o cristianismo. GEORGE HOWARD (Crisis i11 Galatia [Nova Iorque:
3 HANS H O'B.'iER, Das Gesetz bei Pa11l11s, 2• ed. (Gõtting en: Vandenhoeck & Ruprecht, Cambrid ge Unjversity Press, 1979), pp. 17-19) leva plenamente em conta o particí-
1980). pio presente, não obstante concJuj q ue os adversários eram provavelmente judeu-
4 cristãos; Ver integralmente o seu cap. 1. Ele propõe que taJvez eles não soubessem
Numa recensão do come ntário d e BETZ sobr e Gálatas, DAVIES refuta a teoria d e q ue
os convertidos eram gentio-pagãos (W. D. D A\1.ES, recensão do livro Galatúms de que Paulo chegara a acordo com as "colunas".
32 C APÍTULO 1 A LEI 'ÃO É E>.IGÊ"1CIA PARA ABRAÇAR A FÉ 33

A posição deles era inteiramente razoável, e sua grande força era porém, nenhuma halaká determinando as condições para sua admis-
quase certamente o apoio que a Leitura da Bíblia daria. A passagem são. As passagens proféticas e poéticas (p. ex., Or. Sib. III, 772-5) que
mais contundente é Gn 17,9-14, onde Deus diz a Abraão que ele e sua faJam da entrada ou da su bmissão dos gentios nos últimos dias geral-
descendência (to spermn; d. Gl 3,16.19) devem ser circuncidados e todo mente não trazem pormenore legais." Todavia os judeu-cristãos, que
ser masculino não circuncidado será destruído (d. a resposta de Paulo consideravam próximo o fim, tinham de tomar decisões práticas. A
em Gl 5,4). Os missionários opositores podem também ter lido aos exigência normal para entrar ao povo de Deus era passar pela condj-
gálatas ls 56,6-8, onde se espera dos "estrangeiros" que se incorporam ção de prosélito, 10 e alguns judeu-cristãos obviamente pensavam que
ao povo de Deus que se mantenham fiéis à aliança (circuncisão) e es-
pecialmente que guardem o sábado. Assim, a maioria .dos argumentos
de Paulo contra a posição adversá ria é baseada na Bíblia (Gl 3,1-5 é promessa de que na era messiânica a nações e associariam a Israel na adoração de
seu Deus... " (citando Zc 3,9). Mt.r-.ci.. sublinhou especialmente o contexto escatoló-
notável exceção), já que ele claramente desejava dar combate a seus gico da missão aos g1mtios, como também a inversão que Paulo faz do esquema tra-
opositores no p róprio terreno deles e mostrar, peln Escritura, que os dicional em Rm 9-11 . Ver sua obra C/rrist nnd Israel (Filadélfia: Fortress Press, 1967),
mandamentos bíblicos não eram condição necessária nem suficiente pp. lls (citando Is 2,2-4 e Mq 4,1-4); Pn11/, pp. 123, 255-8, 276s, 303-5. Ver também
para a entrada no "Israel de Deus".7 ER.'5T l<ÃSE.\1A,N, Co111111e11tnry 011 Ro111m1:, (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1980),
É fácil imaginar como surgiu o litígio. Muitos judeus, e todos os pp. 307, 312. O argumento principal está em Rm 9-11, especialmente na luta de
Paulo pela inversão do esquema tradicional (de modo que a inclusão dos gentios
judeu-cristãos cujas idéias conhecemos, esperavam que os gentios preceda a salvação plena de Israel) em 11,13-26. Ver mais sobre isso adiante, na li
fossem incorporados ao povo de Deus na era messiânica.8 Não havia, Parte.
DRA'JE não concorda com a afirmação de que todos os judeu-cristãos cujas idéias
se conhecem eram a favor da missão ao gentios, discordando apenas quanto às
Alguns têm tentado descrever a situação dos missionários opositores com mais condições sob as quais deviam ser admitidos. "Sob qualquer aspecto da história
precisão. Assim, por exemplo, R OBERT jEWETT ("The Agitators a nd the Galatian da lgreja primitiva, uma das questões mais difíceis para os cristãos da Igreja pri-
Congregation", in NTS 17 [1970-71): 198-212) propôs que eles agiam sob pres- mitiva era decidir se a fé cri tà devia ser simplesmente uma seita do judaísmo e se
são "zelótica" por parte de judeus não-cristãos. Essa teoria parece ser aceita por por conseguinte sua pregação devia restringir-se aos judeus, ou se a mensagem se
W. D. DAVIES em " PauJ: From the Semit Point of View", in Cambridge History of destinava também aos gentios" O. W. DRA,E, Paul: Libertine or Legalist? (Londres:
]11dnism TI. SPCK, 1975), p. 24). Ele tem em vista Mt 10,5~, que de fato põe o problema. A difi-
Para nosso objetivo, o que é importante é a posição dos adversários, não sua preci- culdade está em encontrar o Sitz im Lcbe11 dessa passagem. Em todo caso, até onde
sa identidade. Aqui apenas outra tese dos autores precisa ser mencionada. Alguns chega a documentação de Gl, a alternativa não é "ou uma seita do judaísmo" ou "a
afirmaram que Paulo enfrentou "segunda frente" na Galácia e que o cap. 5 é res- missão ao gentio ", ma im "a missão aos gentios sem exigir a lei'' ou "a missão
posta aos libertinos. Sigo a maioria dos a utores, que situa a parênese do cap. 5 aos gentios, exigindo plena proselitização".
dentro do contexto da recusa da lei por Paulo nos caps. 3 e 4. Os dois últimos ~ Is 56,6-8 apresenta uma halaká (circuncisão e sábado), mas esse texto não é citado

capítulos de Gl pressupõem a mesma situação polêm ica que os quatro primeiros. nas cartas paulinas, e não podemos saber se era usado contra ele.
10
Notar as referê ncias à lei em 5,14.18.23; 6,2. A respeito de tudo isso, ver ECt<ERT, Não precisamos discutir aqui a questão e alguns judeus do éc. 1 permitiam a
Verkii11dig1111g, pp. 15-18 (bibliog rafia), 64-71 (resposta), 149s. proselitização sem a circuncisão. Sobre isso, ver NlllL J. McELD.'EY, "Conversion,
; Agradeço a J. Louis MARTY'I: por vários debates sobre a ocasião e o objetivo de Gl e Circumcision and the Law", in NTS 20 (1974): 319-41, esp. pp. 328-33; FEDER BoRGE."-',
sobre a posição dos missionários opositores. "Observations on the Theme ' Paul and Philo': Paul's preaching of circumcision
"Judeu-cristãos" aí inclui PauJo. Sobre a expectativa judaica, ver J. JEREMIAS, Jesus' in Galatia (Gal. 5:11) and debate on circumcision in Philo", in Die Pmili11isc/1e
Promise to the Nntions (Filadélfia: Fortress Press; Londres: SCM Pres , 1982), p. 61. Uternt11r 1111d T11eologie (Aarhu: Forlagct Aros, 1980), p. 88; L ARR\ So 111:n1A "1, "At
Deve--se acrescentar q ue se conhece o utra teoria judaica: q ue os gentios seriam des- the Crossroads: Tannaitic Perspt.>ctives on the jewish-Christian Schism", in /ewis/1
truídos. Assim IQM; jub. 22,20s e alhures. n11d Christian St!lf-Definitum, \'OI. 2, Aspects of /udnism in tlie Grncco-Ro111ai1 Period
Muitos autores enfatizaram o contexto escatológico da obra de Paulo e da sua mis- (Filadélfia: Fortress Press; Londres, SCM Press, 1981), p. 127 e a nota na p. 3-12;
são aos gentios. Assim ScHoEl'S (Paul, p. 219): "Em toda a sua vida, as mesmas Earnn, Verhi11dig1111g, pp. 53-8. O.. mis ionários rivais na Galácia obviamente
promessas proféticas constituíam a força impulsiva subjacente à sua atividade, a eram de parecer que a circuncisão era necessária.
34 C APin.JLO 1 A LEI ÃO~ EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 35

a mesm a cond ição se devia impor inclusive nos últimos dias. 11 É esta Se essa descrição da situação é inteiramente corre ta, então pode-
a op inião q ue s usten tavam os "falsos ~ãos" de Gl ~,4 e é est~ dou- ª.. mos facilmente entender as grandes linhas do raciocínio de Paulo. A
trina que Pau lo combate no corpo da ep tStola aos Gaiatas. A 1de1a de a rgumentação de GJ 3 é contra missionários cristãos, não contra o ju-
Pau lo situava-se no outro extremo: os gentios deviam ser incorpora- d aísmo, e visa refutar a opinião de que os gentios devem aceitar a lei
dos ao povo de Deus, em deles exigir q ue aceitassem a lei mosa ica, como condição ou como exigên cia básica para a sua entrada no cristia-
m as apenas media nte a fé em Cristo, e era missão dele incorporá-los. nism o.•t> O a rgumento de Paulo não é em favor da fé nem contra as
Mais ad ia nte terem os de considerar se PauJo aplicou ou não, e em q ue o bras propriamente. É muito mais particular: é contrário a que se exija
m edida, aos nascidos no judaísmo, a exigência d a fé para a entrada no dos gentios a observância da lei mosaica para poderem ser verdadei-
cristia nism o, a ponto de exc/11ir a circuncisão e a lei. Mas o problem a ros "filhos de Abraão".'7
que encon tramos e m Gálatas é o da admissão dos gentios. 12 Parece que Tornamo-nos tão sensíveis à questão teológica da graça e do m é-
Ped ro e Tiago concordara m basicamente com Pau lo qua nto à questão rito, q ue com freqüência perdemos d e vista o tema real da disp uta.
dos gentios. Não era m issão de les introdu zi-los no cristia nism o, m as Muitos autores q ue consideram como judeu -cristãos os missionários
pa ra Paulo estava certo fa2ê-lo sem exigir q ue se tornasse~ pro~é litos. opositores, não obs tante vêem Gl 3 como a rejeição do judaísmo po r
Era provavelmente a responsabiJidade de Pedro pelos c1rcunc1dados Paulo.ts Mas não se trata da qualidade e do caráter do ju daísmo, tra ta-se
que poderia fica r prejudicada, se ele próprio não fosse observante da
Torá, e não um desacordo com a missão de Paulo como ta l, q ue o levou
•~ H. RÃJSÃ.-.e:-., num artigo com o qual o presente ensaio concorda p lenamente
a afastar-se dos gentios em Antioquia.13
("Legalism and Salvation by the Law"), põe o problema muito interessante da
Se supomos que eram cristãos tod os os pa rtidos q ue Gl menciona
razão pela qual Paulo p ropôs a lei como meio de salvação apenas para derrubá-la
o u aos q ua is a lude, te mos de supo r també m que os m issioná rios riva is (p. m. A resposta dele fornece explicação convincente duma parte da história de
não arg umenta ra m contra a "fé em C risto". Essa é exp ressão comum Paulo (pp. 78-82). No entanto, eu poria o problema de modo diferen~. Nenhum
no cristia nismo,11 embora, sem dúvida, significasse coisas difere ntes dos dois lados considera a lei como possível meio de salvação no sentido de pro-
pa ra pessoas diferentes.1<; duzir suficiente mérito. Os adversários d e Paulo adotam a visão judaica trad icional
de que para obter as promessas bíblicas deve-se aceitar a condição bíblica: a 1~ de
Moisés. Sobre a prática da lei como condiçifo de salvação, mas não para consegw-la,
ver PP/, índice, verbete "Obed ience".
11 A opinião de Mt.'°' é um tanto diversa: os judeu-cristãos (além de Paulo) não ,- a. l..u>YO GASTO. "Paul and the Torah", in Anti-Semitism and tlie Foundations of
I

se opunham à missão aos gentios (Paul, p. 11 9), mas "nem estabeleceram nor· 01ristia11ity (Nova Iorque: Paulist Press, 1979), p. 56: "É notável que nas d iscussões
mas para a admissão dos gentios na Igreja nem refletira m sobre o problema". intermináveis sobre a idéia paulina d a lei, poucos tenham perguntado o que um
Julgavam que "a conversão de Israel resultaria na salvação dos gentio " (p. 130; judeu do séc. J pensaria sobre a lei na sua relação com os gentios-: Mas ele depois
d . pp. 255-8). É claro em GI 2,Js, porém, q ue a vinda de Tito a Jerusalém forçou discute os conceitos rabínicos de "o justo entre as nações do mundo", os manda-
os cristãos da cidad e a pensar no assunto, ainda que não tenha havid o outro fa- mentos d ados a Noé etc. Devemos ser ainda mais precisos. Em Rm 2,14 s urge a
tor que os levasse a isso; e o fato de que os emissários vieram da parte de Tiago questão dos "gentios justos", mas a questão d o quanto da lei os gentios devem
(GI 2,12) mo tra que alguns em Jerusalém pensavam nas conseqüências da mis· praticar para serem justos segu11do os pnriimelros dn lei não é a qu estão principal
ão ao gentios, ainda que, no tocante a eles, estivessem prontos para deixar a em GI (sobre 3,10 e 5,3, ver a análise que se acha logo em seguida). A questão diz
coisa para outros. respeito aos gentios, mas se trata da circuncisão e d a admissão.
12 Cf. a análise da "terceira raça" mais adiante, 11 Parte. 11' Ou da "soteriologia farisaíca ". Ver, p. ex., BETZ, Galntü111s, p. 116 (sobre 2, 16); mo-
ll Ver, p. ex., F. F. BRua:, Paul: Apostle of tlie Henri Set Free (Grand Rapids: Wm. B. dificado na p. 146 (sobre 3, 12); "não só contra o judaísmo em geral, mas também
Eerdmans, 19n), pp. 176s; P ETER RlotARDSO:-.., "Pauline lnconsistency: 1Corinthians contra a expectativa dos gáJatas, introduzida pela oposição antipaulina". H OBNLR
9:19-23 and Galatians 2:11-H ", in NTS 26 (1980): 347-62, esp. pp. 348, 360s. pensa que o raáocinio é contra o judaísmo conforme Paulo o entendia, deixando
• ~ B uLT\1AN' o demonstra bem em TDNT 6, 203-19. Cf. PP/, pp. 441 nn. 54, 445. aberta a possibilidade de que ele o entendesse mal (ver, p. ex., " ldentitatsvcrlu t
15 Deve-se disbnguir, p. e>.., a fórm ula àtada em Rm 10,9 (pisteuei11 hoti) do uso pau-
und pauJinische Theologie", in KuD 24 (19781: 183). A distinção é irrelevante se
lino caracteristico. o raáoónio não é contra o judaísmo. Sobre GI 3, en quanto refutação d~ judeu!>
36 CAPÍTULO 1 A LEI 'ÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 37

apenas do modo como alguém se toma verdadeiro filho de Abraão, (para ser descendente de Abraão, para ser justificado) seja exigência
isto é, como entra ao povo de Deus. Penso ser este o motivo pelo qual passageira que não tem importância alguma para prosseguir vivendo
se julga que Gl 3 é argumentação contra o judaísmo: o raciocínio de no seio do povo de Deus. O debate em Gl é sobre "a entrada" no senti-
Paulo sobre a justificação pela fé ou pelas obras da lei em Gl 2 e 3 é do de definir o que é essencial para alguém ser considerado membro
considerado como se ele estivesse afirmando que o homem não pode nbsolutamente. 20 Paulo afirma ser a fé a única exigência para pertencer
merecer a salvação rea lizando número suficiente de boas obras para ao povo; seus adversários exigiam também a circuncisão e a aceitação
poder apresentar saldo positivo perante Deus.19 Acredita-se que é ca- da lei mosaica. Como veremos mais a fundo, adiante, na visão de Paulo
racterístico do judaísmo sustentar essa tese, de modo que se pensa ser o que está errado não é a prática da lei em si própria. A circuncisão é,
contra o judaísmo a argu mentação de Paulo. Estudando os escritos ju- sob certo aspecto, algo indiferente (GI 6,15). Mas é completa mente er-
daicos não se encontra ta l tese. No nosso caso, entreta nto, não é este o rada, quando transformada em requisito essencial para pertencer ao
argumento de Paulo. Não se trata de quantas boas obras a pessoa deve povo de Deus.
apresentar perante Deus para ser declarada justa no julgamento, mas, A controvérsia tem como centro o rito de admissão, a circuncisão,
repito, trata-se de dizer se os gentios convertidos por Paulo devem ou mas inclui igualmente outros aspectos da lei, como os alimentos e os
não aceitar a lei judaica para entrarem ao povo d e Deus ou para serem "dias" (GI 2,11-14; 4,10). Então, se vê que os adversários de Paulo eram
considerados verdadeiros membros do povo. de opinião - uma opinião, repito, inteiramente compreensível - que os
Ao afirmar que o ponto central da controvérsia se refere à "entra- gentios convertidos ao povo de Deus tinham de ser circuncidados e ti-
d a'~ não quero insinuar que a exigência apenas da fé para a entrada nham de aceitar o resto da lei. (A importân cia de Gl 5,3, para entender
a tese deles, será considerada adiante). A tese de Paulo é igua lmente

como tais, ve.r também G. WAG!l.ER, "Pour comprendrc l'apõtre Paul", in Lw11icre
211
et Vie (1978): 5-20; FERDIM"ID HAH , "Das Gesetzesverstandnis im Rõmer und Assim também ULRICH WtLCKb,S, "Über Abfassungsweck und Autbau des
GaJaterbrief', in ZNW 67 (1976-77): 51s (depois de excelente análise de certos as- Rõmerbriefs", in Rec/1ifertigu11g ais Freiheil: Pa11/11sst11die11 ( eukirchcn-Vluyn:
pectos da lei em Rm, H Aii curiosamente diz que Gl trata quase exclusivamen- Neuk:irchener Verlag, 1974), p. 132: o argumento dos adversários em GI é que "os
te do judaísmo); ULR1c1 1 L L7, Das Gesclúcl1tsverslii11d11is des Pa11/11s (Munique: Chr. gentios devem antes de tudo cumprir o pressuposto básico de toda pertença à
Kaiser, 1968), p. 219 C GI é a primeira carta que considera o judaísmo). Entre os Jgreja de Deus, a saber, pertencer a Jsrael".
tratados relativamente recentes, o de HER.\fA' RlooERBOS é notável por sua falta de a. W. D. ÜA\'lES, " Paul and the People of Israel", in NTS 24 (1977): 10: Também
atenção para a ocasião e o contexto (Paul: A11 outline of His Tltrology [Grand Rapids: quando lem Gil ele apresenta em todo o seu vigor a doutrina da justificação pela
Wm. B. Eerdmans, 19751). EJe mantém com absoluta consistência que os debates fé, Paulo... tinha como preocupação essendaJ estabelecer quem constitui o verda-
de Paulo sobre a lei se dirigem contra o judaísmo. Ver pp. 131-43, 151 , 170, 178. deiro povo de Deus"; assim também Ü AVTES, na recensão que faz do livro de Bcrz
Não fala da posição dos adversários de Paulo na Galácia, e Paulo é apresentado Galntimts, p. 317; " Paul: From the Scmitic Point of View": a luta em tomo da lei,
como se atacasse as obras judaicas legalisticas - justificação, sa lvação pelas obras como tambc5m a doutrina da justificação pela fé, tem a ve.r com "a questão central
meritórias etc. (esp. pp. 131-53). de definir quem constitui 'Israel', o povo de Deus".
Que os adversários na Galácia eram judeu-cristãos, não judeus, foi especialmente um estudo apresentado no congresso da Society of BiblicaJ Li tera ture em dezem-
enfatizado por FRA-.iz Muss.,ER, que vê também as implicações teológicas da dis- bro de 1981, ROBERT GuNDRY afirmava que, do ponto de vista de Paulo, a q uestão
tinção. Ver Der Gafalerbrief, pp. 11-29; "Theologische 'Wiedergutmachung'. Am em GI é como e permanece cristão, e não como se ingressa no cristianismo. Em
Beispiel der Auslegung des Galaterbriefes", in Freib11rger R1111dbrief 26 (19?.l): 7-11 . certo sentido, está plenamente certo. Os que aceitam a lei serão desmembrados de
R1CHARDSO~ (Israel p. 91) observa que a discussão da lei em GI, embora atacasse os Cristo {Gl 5,4). Mas isso não altera o fato de que o raciocínio versa sobre um requi-
judeus, se dirige contra adversários dentro do cristianismo (Rtowmso:-.: considera sito da pertença: como ser justo ou como ser verdadeiro descendente de Abraão.
o adversários como gentio-cristãos): "não é polêmica contra aqueles que por na!r Paulo garante que os gálatas cristãos já têm esse estado e não devem aceitar a lei,
àmento se acham sob este manto". representada pela circuncisão, para estarem realmente "dentro". Aceitar outro re-
1q Notar a opinião de HOB, ER, estudada adian te. Cf. Brrz, Gnlalia11s, p. 117; RmoERBOS, quisito de pertença além da fé em Cristo significa rejeitar o único que, na opinião
na nota precedente. de Paulo, realmente conta.

..
38 CAPiruLO 1 A LEI NÃO E EX1GÊ:'l:C1A PARA ABRAÇAR A FÉ 39

clara, embora não seja imediatamente evidente a razão pela qual a de- Em primeiro luga r, temos de considerar como Paulo escolhe as ci-
fendia. Os gentios não precisam aceitar a lei mosaica para entrarem no tações em Gl 3. O raciocínio é terminológico. Depende da descoberta
povo de Deus. Assim, temos um debate que além de compreensível é de textos que provem a tese de que os gentios são justificados peln fé. As
também de importância óbvia. três palavras são cruciais, e Paulo consegue unir "gentios" com "justi-
Espero que essas observações gerais sejam suficientes para escla- ficados pela fé" por meio da história de Abraão. Abraão é, pois, o termo
recer o que está em jogo e a principal posição tomada pelos adversá- médio que é unido com "gentios" em um texto-prova e com "ju stifi-
rios de Paulo. Quero agora analisar mais de perto o papel de Gl 3,10-12 cação pela fé" no outro. o decu rso desta argumentação, Paulo cita as
na argumentação, para enfocar a questão do motivo pelo qual afirmou duas ún icas passagens dos Setenta (LXX), nas quais a raiz dik- é Ligada
que os gentios não precisavam aceitar a lei de Moisés. É sobretudo na com pistis (Gn 15,6; Hab 2,4). Obviamente Hab 2,4 se enquadraria me-
base desse texto, especialmente quando relacionado com 5,3, que se lhor na sua argumentação se trouxesse forma passiva de diknioun em
argumenta que Paulo fazia objeção à lei porque esta não poderia ser vez do adjetivo diknios; Paulo toma ho dikaios ek pisteõs zesetai ("quem é
cumprida de modo satisfatório. 21 justo pela fé viverá"), para prova r que en 11omõi oudeis dikaioutni ("nin-
Certamente é verdade que a palavra "todos" aparece na citação guém é justificado pela lei").:n Mas apesar disso o texto servirá para
de Dt 27,26 em Gl 3,10. Pode-se, porém, perguntar se a ênfase da argu- eu objetivo; liga justiça com fé. A citação que traz à cena os gentios
mentação de Paulo está em que a lei não deveria ser aceita por ser im- ligando-os com Abraão é a primeira passagem na história de Abraão
possível cumpri-la toda.22 Desejo apresentar três considerações contra que menciona a bênção aos gentios, que Paulo claramente interpreta
esta opinião. como a inclusão deles na era messiânica. A citação em Gl 3,8 se baseia em
Gn 18,18, não em 12,3 (como às vezes se diz), pois a intenção principal de

21
Analisei anteriormente GI 3,10-12 em "On the Question of Fulfilling the Law in Paul
and Rabbinic judaism", in Dom11n Gentilidum: New Testnment Studies i11 Ho11011r of
Dauid Daube (Oxford: Oarendon Press, 1978), pp. 103-26. O presente estudo a lte ra que o prinápio "não pelas obra da lei" se aplica aos pecadores; mas todos são
d e certo modo e expande notavelmente a posição ali tomada. É também exegetica- pecadores; por conseguinte, os pecadores(= todos) só podem ser ju tificados pela fé
mente distinto ao limitar a GI a discussão em vez de combinar GI e Rm. em Cristo Cp. 94). a. p. 84 CRm 1-3,7), pp. 97 (Rm 4,1-8), pp. l Ols CRm 9,30-10,13),
O principal defensor recente da tese que está sendo contestada é HA: Hlle,ER. p. 103 CR 3) e a conclus.10: é o pecad o atual que toma impossível a justificação pe-
Ver "Gal. 3, 10 und die Herkunft des Paulus", in KuD 19 (1973): 21S-31 (comentado las obras da lei (p. 104). Como veremos, interpreto de modo diferente todas essa
em PP/, p. 138 n. 61); "Das Ganze und das eine Gesetz", in K11D 21 (1975): 239-56; passagens.
" ldentitatsverlust", in Gesetz, pp. 19s; " Pauli Theologiae Proprium", in NTS 26 :?J A construção da citação de Hab 2,4 e m GI 3, 11 continua em d ebate; alguns pen-
(1980): 44S-73. Os principais pontos de HCBNERsào que GI 3, e 3,10, particuJarmcn- sam que ek pisteõs modifica zesetni e não /10 dikaios. Assim, p. ex., A. T. HA,so:-.i,
te, refuta uma compreensão da existê ncia humana e q ue o acento cai na palavra Studies i11 Pnul's Tecl111iq11e m1d Tl1eology (Londres: SPCK, 1974), pp. 4l s: a cons-
"todos" em GI 3,10: Paulo combate a idé.ia de que a existência humana se baseia no trução de ek pisteõs modificando zêsctai é confirmada por 3,12, ' por e las viverá'
11

volume da operosidade. "(citação de Lv 18,5). H A,SON acredita que o contraste visado está entre viver
22
Em favor dessa tese (porque é impossível cumpri-la toda), além de HOe\IER, pode- pcla fé e viver pela lei. De modo seme lhante, H. C. C. GwALLI,, 'The Righteous
11

mos citar recentemente Mussner, Galnterbrief, p. 226. GEORG E1CHttOLZ (Die Tlicologie Shall Live by Faith'. A Deci ive Argumenl for the Traditional lnterpretation", in
des Paulus im Umriss [ 'eukirchcn-Vluyn: eukirchener Verlag, 19721, p. 247) ST 32 (1978): 33-43.
também sublinha a palavra " todos". Bo11.-xARo (Galiites, p. 67) observa q ue a lguns Não há dúvida alguma de que Paulo tenha pensado que se deve viver pela fé e
sublinham " todos", outros " maldito". Ele prefere a segunda opinião. Compare- não pela lei. No nosso texto, porém, a argumentação contrapõe ser justo pela fé a
se aqui a posição de Uuua1 W1LCKE."5 ("Was heisst bei Paulus: 'Aus Werken des ser justo pela lei. A opinião de HA11.so' e CA\IAWN exige que o leitor omita as notas
Gesetzes wird kein Mensch gerecht?' ", in Rec'1tfertig1111g ais Freílreit: Pnu/11sst11die11, interpretativas do próprio Paulo quanto ao sentido de Hab 2,4 e Lv 18,5. O modo
pp. n-109). Assim ele vê o desenrolar do raciocínio de GI 3,10-12: ninguém con- mais natural de ler é entender a observação inicial de Paulo, " ninguém é justifica-
segue praticar toda a lei (v. 10); portanto, a justificação já não é pela lei mas pela fé do pela lei", como o oposto da citação de l lab 2,4. O sentido de Lv 18,5 em Gl 3, 12
(v. 11); pois só quem pratica toda a lei terá a vida por ela (v. 12) (p. 92). Segue-se é debatido imediatamente a seguir.

________
, ~
40 CAPITULO 1 A U .I ~ÀO C C\ICtNCll\ PARA ABRAÇAR A FÉ 41

Paulo é incluir o · gentios, e o termo etlme não aparece em 12,3. 2~ Mai~ comum afirmar que e deve interpretar o que dizem o textos-prova,
uma vez, do ponto de vista de Paulo, teria sjdo preferível que o verbo para descobrir o que Paulo quer dizer.17 Pen o que o que Paulo afir-
dikmoun con ta e em Gn 18,18; mas "abençoadas" erve bastante bem ma com suas próprias palavra é o que e darece o que ele pensava
e ele o repete em 3,9. Todavia, o versículo não foi escolhido por cau- que os textos-prova significassem. As im, em 3,10 Paulo diz que os
sa de "abençoadas", mas por causa de etlme. Então, citando Gn 1 ,18, que aceitam a lei são amald içoados.2'1 Es a consideração também leva a
Paulo "prova" que os gentios ão abençoados em Abraão, enquanto concluir que a ênfase não e tá na palavra "todos".
Gn 15,6 é usado para "provar" que Abraão foi justo pela fé. Repito: Em terceiro lugar, temo de leva r em conta a p osição de GJ 3,10-13
Abraão é a ligação e ntre os termos-chave no raciocínio.25 no raciocínio global de 3,8-14. Considero que o raciocínio de 3,8-14 se
Após e sas ob crvações, não surpreende notar que Dt 27,26 é a desenrola assim: a proposição central é que Deus justifica os gentios peln
única passagem dos LXX onde nomos está ligado com "maldição'~· Há fé (3,8),2'1 o que é provado pela citação de Gn 18,18, que diz que em Abraão
passagens que di.lem: quem não observa os mandamentos (e11tolm; ver 05 gentio serão abençoados. A palavra "abençoados" conduz natural-
Dt 28,15) será amaldiçoado, mas i to não se enquadra na argumentação mente ao seu opo to: malditos. GI 3,10, então, anuncia a prova negativa
de Paulo. Ele quer um texto que diga que 110111as acarreta maldição, e da afirmação positiva de 3,8. Dt 27,26 comprova que "os que são pelas
cita o único que afirma isto. Por isso proponho que a ênfase de GI 3,10 obras da lei estão debaixo de maldição" (afirmação feita por Paulo do
deriva das palavras 11omos e "maldito", não da palavra "todos", que sig nificado da citação). Tendo mencionado a lei, Paulo reitera que " nin-
aparece casualmente.in guém pode ser ju tificado" por ela, e para prová-lo cita Hab 2,4 (3,11).
A nossa segunda con ideração trata do modo como ler a r_elação en- Mas a fé exclw a lei? Sim: "a lei não é pela fé'~ afirmação que ele prova
tre o raciocínio de 3,10-12 e os textos que servem de prova. E ba ta nte citando Lv 18,1 , que e pecifica que se devem cumprir os mandamen-
tos (3,12).10 Gl 3,11-12, considerado em bloco, afirma que a justificação é
• A c1taçJo de Paulo cm GI 3, concorda com Gn 1 ,1 c\ceto quanto a t'll .;o1, nndc
concorda com Gn 12,3 (1 , 18 traz e11 a11tõi). B \R.,ABAS Lt,D·\lb <New Tt.'sta111t•11t -::: Para bom exemplo, ver l I Lll,[R, " Proprium", p. 462.
Apologett( (Londr~ SC\il Prcs'i, 1961I, p. 225) coloca a ênfa~ de outro_ modo a -' A ~1m também BtT7, G11lnt11111'>, p. 114 ("primeiro ele coloca suas condu~>s"; o
citação !>e ba!>t!ia cm Gn 12,3, mas o termo etl111é ,·em d e 1 , 1 . Lmdar.. 1ulga que sentido "é simplesmente que a exclusão da 'bênção' (d.. 6,161 equi,•ale a ' maJdi-
Paulo deve ter hdo cm mente 12,3, já que, a c;eu ver, o raciocínio de Paulo C\igc que çào' "); Sc11uER, Da Brir( 1111tf du• Gnl11ter, pp. 132s ("Oie Sch.rift tellc soll viclmehr
a prom1..'SS<1 a Abra.lo tenha sido fei ta antes de Gn 15,6. Contudo, o pensamento nur bekraftigen, dass d1e Geseta.-sleute unter dem Pluch stehen").
de Paulo n.,o parece c;cr esse. Os \'erbos começad os com pro cm GI 3, igmficam ~ Aqui deixo de lado a rclaç3o do texto-prova em 3,6 com o raóocínjo como um todo.
"antes da prc:.cnte revelação do C\ angclho" e não " ant1..-'!> de Gn 1c;,6". • E muito d ebatida a força da citação de Lv 18,5 em GI 3,12. H LB'~ considera como
Devemo notar queº" termos "bênção" e "gentios" estào ligado com Abraão cm "varia nte interessante" minha o pinião de que Paulo usa o versículo para provar que
Gn 22, 18; e c m 17,5.6 "C diz q ue Abraão é o pai de muitas nações (t•t/111c, gentios). "lei nJo se funda na fé ("Proprium", p. 461). Mas a variante interessante é afirmação
Gn 18,18 e e nquadraria melhor no raciocínio d e Paulo. feita pelo próprio Paulo do que e le pretende provar citando o versículo. Na interpre-
1
~ O raciocínio de Paulo prova a tese para o q ue ~ dl'ixam ro nvcnc«.?r por tc\tO'>·
tação de 1-11..0!\IL K, Lv 1 8,~ vai junto com Dt 27,26 e mrn.tra que, ao escrever GI, Paulo
prova. 111..'l.ito cm tirar condusõc ~bre a educação dos leitores de Paulo a partir pensava que teoricamente "a vida" poderia resultar do "agir", embora na realidade
da sutileza dns argumento paulino , como faz BE17 (Gnlnt111115, p. 2). Pode ser que não fosse assim, pois ninguém pode cumprir tudo. Quer dizer, Paulo cita Lv 18,S
Paulo tcnhil argumcntildo de ilcordo com a formação su.1 e a d os lcitor1..'l>. Terão para concordar com a citação teoricamente, ao pa~ que cita Dt 27,26 para mo trar
percebido quão sagaz ele foi? Em todo caso, é quase ~erto que de ar~u~cntou do que a teoria não pode ser levada à prática (HOB,n<, Gesct-:, pp. 19s; " Proprium", PP·
mod o aprO\ ado nos círculo'i fori'i<lico , como também seus t1 d vc~mos, egun· 46 ls). Posso apenas repetir que devemos dcsco b rir o pensamento de Paulo nas suas
do se d eve '>upor. Quanto aos texto -prova, ver ELLIS Rtv"-"· A l11ddc11 RL't'Ol11t1011 próprias afirmações quanto ao que cada citação prova. Ele mesmo diz q ue Lv 18,S
(Nashville; Abingdon Pre:. , 197 ), pp. 273 . Sobre o caráter judaico d os raciocm ios prova que "a lei não se fundamenta na fé". ~'ARr> observa com rau1o que a idéia ~
de Paulo e a 1mplicação dts:.o, ver mais por extenso adiante, pp. 199 e as nota .
que "a lei nada tem 0 11 comum com a fé" (Galâtes, p. 68). Assim também j OSEJ·11 T'~''
~ O mesmo argumento \•ale contra a opinião de 5cHUER d e que a ênfase está em
" 'Wo rks o f Law' in Galatia~", in JBL 92 (1973): 428; F. F. BRucr, "The C urse of lhe
I"''""' CBruj a111i d1r Gnl11ter, p. 132). Law", in Paul aud />a11l111is111 (Londres: SPCK, 1982), pp. 27-36, aqui p. 29.
42 A LEJ ÃO E EXJCÊ.\ICIA PARA ABRAÇAR A FÉ 43

pela fé e que a lei não é pela fé. Isto, na realidade, é repetição do argu- claramente errado dizer que Paulo, em Gl 3, defende a opinião de que,
mento de que a fé, e não a obediência à lei, é a condição para ser justo.J' uma vez que a lei não pode er inteiramente observada, em conseqiiência
O raciocínio continua com a explicação de como Deus providenciou o a justificação é pela fé. 15
cancelamento da maldição da lei (3,13). O v. 14 resume a a rgumentação Mesmo admitindo que a ênfase da argumentação não seja que a lei
precedente de forma quiástica: a primeira cláusula com lzilla ("a fim de não possa ser cumprida, devemos ainda indagar se Paulo adotou ou
que") repete a a firmação positiva de 3,8 (a bênção de Abraão para os não essa opinião. Será que ela exerce, por exemplo, função subsidiá ria?
gentios), a segunda, a afirmação positiva de 3,1-5 (o Espírito é recebido Alguns afirmam - e eu era um deles - que GI 3,10-11 contém dois ar-
pela fé).32 Essas duas afirmações positivas, por sua vez, contribuem para gumentos contra a lei: (a) a lei não pode ser praticada (pressuposto, não
o argumento negativo mais amplo contra a exigência da observância da afirmado, em 3,10); (b) a inda que pudesse ser, a justificação vem só pela
lei (anunciado em 2,16 e subentendido do começo ao fim). O sumário em fé. Nesta construção a ênfase está no segundo ponto (v. 11).>n
3,14 mostra onde se situa a ênfase do raciocínio de 3,1-13. Assim RAISANEN, observando que Paulo não diz nunca explicita-
Assi m, considero 3,10-13 subsidiário de 3,8:u e penso que consiste mente que a lei não pode ser observada, sustenta não obstante que
em uma série de asserções feitas por Paulo com suas próprias palavras esta idéia está subjacente a Gl 3,10-12. "Isto se deduz de Rm 1,18-3,20;
e comprovadas pela citação de textos-prova que contêm uma ou mais o mesmo pensamento se espelha em Gl 5,3 e provavelmente 6,13".17 É
palavra -chave da sua argumentação. diferente o meu modo de compreender esses textos. Gl 6,13 recorda
Essas três considerações - o caráter do a rgumento terminológico a crítica de Paulo a Pedro em 2,14"' e provavelmente reflete o dilema
em favo r da j11sfificaçiio dos gentios pela fé, que se baseia em textos- de muitos judeu-cristãos. w Queriam ma nter plena comunhão com os
p rova; o fato de Paulo afirmar em suas pró prias palavras o que ele gentios conver tidos e por isso, às vezes, não observavam a lei com todo
quer que os textos-provas signifiquem; e a subordinação dos vv. 10-13 o rigor, embora ainda pensassem que os gentios deviam ser incentiva-
ao v. 8 - me parecem decisivas contra a opinião de que a ênfase e o dos à plena observância da le i. Em outras palavras, para se relaciona-
centro do raciocínio estão voltados para a conclusão de que a lei não rem com os gentios convertidos e debaterem o caso deles, correriam o
deve ria ser aceita porque ninguém pode cumpri-la toda.3-1 Parece ser risco d e miná-la. Paulo usa o dilema dos outros missionário contra

AJé~ de l l ~'B~ER, ~utros autores também acham q ue Paulo concorda q ue quem 'the Works of Lhe Law' ", in Westminster Tl1oolog1cnl joumal 38 (1975): 2842. Não
pratica a lcJ vivera, contanto que a lei fosse perfeitamente observada: LIXDARS, encontro vestígio nenhum desta idéfa em GI.
Apologetic, p. 229; B,R.,E, HSo11sofGod", p. 152; RrooERaos, Paul, p. 134. ,~ Essa é a leitura requerida pela teoria de HLB, ER de q ue a ênfase cai em 3, 10, espe-
11
Sobre GI 3,lls, d. T,'SO,, " 'Works of Law' in Galatians", p. 428: " A citação de cialmente na palavra " todos", e que a objeção de Paulo à lei é que quantitativa-
Habacuc visa mostrar que Deus quer que o hom e m viva na base da fé; a do Levítico mente não se pode ob ervá-la uficientemente.
esclarece q ue a lei não fornece tal base". ~ Cf. A. VA>' DOLM["l., DreTl100/ogredesGl'Sl'tzcsbeiPa11l11s(Stuttgart: Verlag Katholisches
32
Çf. Eet<ERT, Verlkii11dig1111g, p. 79. Bibelwerk, 1968), pp. 31-5); E. P. SA...DLRS, "On the Question of Fulfilling the Law".
33
E ligeiramente diferente a análise que BETZ faz da estrutura. Ver o resumo em otar como Uuuc11 LL/ formula com g rande cautela a relação entre 3,10e3, 11 : GI
Galnlia11s, p . 19. Ele pensa que as afirmações de 3,8-9; 3,10; 3,11; 3,12 e 3,13 são 3, 10, que pressupõe que ninguém cumpre a lei, funda-se por sua Vt!Z no versícu-
cinco argumentos sucessivos, mas, a meu ver, 3,10-13 subo rdina:se a 3,8. Pa ra o lo seguinte. Paulo pensa de modo cristológico (Luz, Das Geseltielttsverstll11d11is dcs
ponto que agora nos inte ressa, porém, a diferença não é substancial, já que con- Pa11l11s, pp. 149-51).
17 HfilKKt RAISM'EN, " Paul's Theological Difficulties weith the Law", in St 11dia Biblicn
co~d~mos ~ua nto à força de 3,10. H OBXER, sem análise literária para convalidar sua
opmrão, afirma q ue 3, 10, particularmente " todos", tem peso decisivo no raciocínio 1978, vol. 3 (Sheffield: JSOT Prcss, 1980), p. 308.
("Proprium", p. 462). li! Notar também a frase "vos forçam a vos circuncidardes", em 6,12, também ecoan-
.M Para a m~ conclusão, baseada em outros argumentos, ver &rz, Ga/atians, pp. 145s.
do a 2,14. GI 6,14 ecoa 2,20.
Alguns amda afirmam que Paulo contesta não a aceitação da lei como tal, mas :N Paulo tinha seu próprio dilema com relação à observância da lei, como se vê em
apenas um modo de observá-la: o legalismo. Assim, p. ex., O. P. FLLLER, " Paul and lCor 9,20s. Cf. RIOtARD'iO,, "Pauline lnconsistency".
44 Ú\PmJLO 1 A LEI ' ÃO!: EXIGENCJA PARA ABRAÇAR A FÉ 45

eles em Gl 6,13. ão vejo aí nenhuma prova de que eles eram incapazes a exortação à vida de perfeição e a pretensão de ser perfeito se en-
de cumprir a lei. contram na literatura judaica, especialmente nos manuscritos do mar
Adiante, serão discutidos mais a fundo Gl 5,3 e Rm 1,18-3,20 e aqui Morto:u Então, podemos supor com razão que ambas as idéias fos em
pouco mais farei que observar que nenhum dos dois textos diz que conhecidas no judaísmo do tempo de Paulo. O Apóstolo, em contextos
a lei não podia ser praticada. De fato, isso fica claro em relação a Rm diferentes, usa ambas as afirmações. Seria arriscado supor que Paulo
1,18-3,20 na análise do próprio ~'-IE.'.J. Este trecho contém a acusa- devia ter defendido posição como realmente sua, enquanto usava a ou-
ção de que todos cometem pecados hediondos, mas mantém aberta a tra só para argumentar. Pode muito bem ser que ele defendia ambas,
possibilidade de que alguns, tanto judeus como gentios, possam ser sem ter colocado oposição entre elas, de forma que tinha consciência
justos pela lei. R AISÃNEN mostra que o exagero de Rrn 1,18-3,20 é forçado de que mutuamente se excluíam. Quer dizer, ele pode ter pensado que
pela conclusão anterior de Paulo de que, se a lej pudesse salvar, Cristo obedecer à lei perfeitamente era difícil mas não inteiramente impos-
teria morrido em vão.40 Não parece ser motivado de modo algum pela sível e então pode ter afirmado a respeito de si próprio que ele era
idéia de que a lei é tão dilicil que não pode ser cumprida. irreprovável; e que, de modo geral, todos vez ou outra falham. Pode-se
Em FI 3,6, um dos textos onde Paulo fa la da "justiça pela lei': d iz citar a história de R. ELJcz.tR, que ensinava que "não existe ninguém
de si mesmo que outrora tinha tal justiça, tendo sido irreprovável. que seja justo': e no entanto se admirava de que tivesse cometido al-
Concorda com isso o fato de que ele, nas suas admoestações aos cris- gum pecado pelo qual devia sofrer.u
tãos, os exorta a serem "irreprováveis" ou "irrepreensíveis" (1Ts 3,13; Essa tentativa de explica r Fl 3,6 e Rm 5,U não é necessá ria para o
5,23; 1Cor 1,8), embora não "segundo a justiça que está sob a lei". Vemos argumento contra a idéia de que Paulo baseou sua oposição à lei como
assim que, ao menos para finalidades retóricas, Paulo podia admitir a caminho para a justiça no fato de que a lei não podia ser obedecida,
possibilidade da irrepreensibilidade humana. Como contrapartida a mas a análise de Rm 5 lança luz indireta na motivação da opinião
F1 3,6 podem-se citar Rm 3,23s; Rm 5, especialmente 5,12; Rm 7: todos de Paulo. Rm 5 mostra que Paulo estava perfeitamente acostumado
esses textos afirmam diretamente ou pressupõem a devassidão uni- à idéia de que todos pecam, mas apesar disso ele não usa esse argu-
versal. Entre essas passagens, só Rm 3,23s menciona diretamente "a mento nos principais debates sobre a justificação. Rm 5 foi escrito na
justificação pela Lei" e, ao que eu saiba, é a única passagem paulina que suposição de que ele já provou, em Rm 4, que a '1ustificação é pela fé,
pode razoavelmente ser lida do modo como H OBNER deseja ler Gl 3,10- não pela lei" (ver 5,1) e como tal não é argumento contra a possibili-
12: 'já que todos pecam, por isso a justificação é pela graça, por meio da dade da justificação pela lei. Sente-se, de fato, certo embaraço quando
fé". Também aí a construção "já que... por isso" não é certa de modo Paulo tenta ligar o pecado universal com a lei (5,13s), embaraço que é
algum. Ademais, geralmente se aceita que ao menos parte desse trecho sintomático, como veremos.'13 Entretanto, importante notar é que Paulo
é citação de tradição pré-paulina e seria muito precário citá-lo como não cita a incapacidade humana de cumprir a lei nos seus principais
sendo a fonte da idéia paulina de lei. raciocínios contra os adversários - Gl 3 e Rm 4 -, onde eJe tenta provar
Mas que dizer do claro conflito entre F1 3,6 e Rm 5,12? Seria exage- que a justificação 11ão pode ser pela lei.
ro e o outro a verdadeira posição de Paulo? Permitam-me que, ao de- Não podemos, pois, dizer que Paulo nunca pensou que todos pe-
bater questão obviamente especulativa, proponha resposta um tanto cam; simplesmente que essa idéia não é alegada como base da sua tese
especulativa. A idéia de que alguém, vez ou outra, comete pecado, é de que a justificação deve ser pela fé, a ponto de excluir a prática da lei.
luga r-comum na literatura rabínica e no restante da literatura judaica,
embora a conclusão que Paulo tira daí seja própria dele. Por outro lado,
~ 1 Ver o índice em PP/,p. 626, verbete "Sin, as ITansgression" (pecado, como ITans-
gressão).
.e Sanhedrin 10la. Para o nosso assunto, não importa se a história é ou não apócrifa.
43
.l(l IWsA\/E , "PauJ's Theological Difficulties", pp. 308-10. Adiante, pp. 56.
48 CAPiTuLO 1 A LEI ' ÃO E EXJCÊ:\:CIA PARA ABRAÇAR A FÉ 49

- não temo afirmação explicita da razão pela qual Paulo sustentou de Deus que exclui a justificação pela lei; sua posição é dogmática.~ É
que ninguém é justificado pela lei. Vimos, antes, a habilidade de Paulo fáál concluir que a ua idéia revista da lei no plano divino deriva de sua
em argumentar exegeticamente de maneira judaica. Ele "prova" pela com'icção de que a salvação é pela morte de Cristo (Q 2,21). Por entre urna
Escritura que a aceitação da lei conduz à maldição, que a justificação série às vezes desconcertante de argumentos, citações e alusões, parece
é pela fé, que ela está ao alcance dos gentios, que a lei não é pela fé. haver em Gl duas frases em que Paulo afuma inequivocamente não só
Essa diver as afirmações não são razões, são argumentos. Elas têm, qual é a sua posição (que nunca é duvidosa), mas também por que a susten-
entreta nto, base comum identificável: baseiam-se na visão paulina do ta. Tais frases são as duas últimas citadas. Transformando-as em preposi-
plano divino de sa lvação. Paulo pode argumentar a partir da Escritura ções, temos: Deus enviou Cristo; ele o fez para oferecer a justificação; i to
precisamente porque considera estar analisando o eterno plano divi- seria inútil, se já se pudesse alca nçar a justificação pela lei (2,21); a lei não
no, claramente esboçado na história de Abraão e depois enunciado na foj dada para conferir a justificação (3,21). Parece-me evidente a afirmação
própria lei. A revelação plena e final desse plano pode ser recente (d. positiva sobre a justificação por Cristo fundar a negativa sobre a lei.
Gl 1,16; 3,23-25), mas o plano não. A Escritura previu que Deus justifi-
ca ria os gentios pela fé e prennunciou esta mensagem a Abraão (Gl 3,8, Gálntns 5,3
enfatizando o prefixo pre). Com outras palavras, em Gl 3,10-12 Paulo
afirma, com prova tirada da Escritura, o que ele considera a rea 1idade Uma das razões para enfatiza r a palavra "todos" na citação de Dt
do plano divino de alvação: a justificação é pela fé e inclui os gentios; 27,26 em Gl 3,10 é que Paulo volta ao assunto em GI 5,3: "Declaro de
a lei amaldiçoa. novo a todo homem que se faz circuncidar: ele está obrigado a obser-
Em Gl 3,15-26 vemos ainda mais claramente que o ponto de vista var toda a lei"."'3 Quanto ao modo de entender o aí proposto, isto mo -
de Paulo é o do plano divino de salvação. esse texto se estabelece o tra que, embora Paulo cite Dt 27,26 por causa da conexão entre "maldi-
lugar da lei e o lugar da fé na história da sa lvação.'õO A descendência ção" e nomos, ele não e queceu que o texto diz "todos". Porém utiliza
de Abraão não tem nada a ver com a lei (3,15-18); a lei tem objetivo di- o fato de que aceitar a circuncisão implica aceitar toda a lei, não para
ferente da sa lvação (3,19-24); ao dar a lei, Deus tencionava conduzir à argumentar que a lei não deve ser aceita porque toda ela niio possn ser
sa lvação por Cristo (3,22.24).51 Com referência à justificação pela lei, a observada, mas como uma espécie de ameaça: se começam a observá-
"linha-mestra" parece ser 3,21: a justificação não pode ser pela lei; não la, ela toda deve ser observada. Para fazer com que isso apóie a idéia de
foi dada lei nenhuma capaz de comunicar a vida. que Paulo argumenta contra a lei porque é impossível praticá-la toda
Então, toda a ênfase do raciocínio é que no seu plano Deus nunca quantitativamente, deve-se aceitar longa lista de hipóteses sobre os
pretendeu que a justificação fosse pela lei. lsso nos ajuda a ver que não pressupostos de Paulo e dos gálatas quanto à lei: deve-se observar a lei
se trata d a impraticabilidade da lei. Paulo tem uma visão da intenção toda; isso é impossível; a transgressão é imperdoável; por conseguinte
aceitar a lei leva a ser amaldiçoado. Paulo nunca defendeu os termos
médios desta seqüência de pensamento e ela tampouco se encontra
"41 Poder-se-ia preferir o termo Heilsgescliicl1leà expressão "plano divino da salvação",
e Heilsgrscl1ic/1te pudesse ser entendido como "evolução". Paulo. cm consonância
na literatura judaica do seu tempo. 54 Ela parece plausível, mas não se
com seus contemporâneos, pensava que a intenção de Deus era sempre a mesma.
O argumento de l<ASE.\IAN' contra entender Paulo em termos de Heilsgescl1icl1le é
primariamente contra atribuir a Paulo a noção de evolução no relacionamento de ~2 a . H AHI\, "Gesetzesverstândnis", p . 55: "Que não exista justificação pela lei é para
Deus com a humanidade (Romnns, pp. 254, 464, 273). K ECK gostaria de manter a Paulo não apenas afirmação ba eada na experiência, mas é muito mais algo decla-
expressão "história da salvação" no sentido da intenção de Deu , não no sentido rado no seio do próprio Antigo Testamento por Hab 2,4..."
de evolução da intenção de Deus (lEA\.TIER KECK, Paul and l1is Lellers [Filadélfia: 'iJ Ver Hl.ie,u , Geset2. p. 22.
Fortress Press, 1979), pp. 66-9). ;; a . n. 41, acima. Até nos manuscritos do mar Morto, onde a perfeição é encorajada,
"'' GI 3,19-24 é analisado mais a fundo no cap. 2. está prevista a expiação (PP/, pp. 284-7, 298-305). A idéia de que se deve observar a
50 CAPíTULO 1 A LEI NÃO ~ EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 51

encontra em Paulo,55 nem no judaísmo do seu tempo sob qualquer Em suma, Paulo se afastaria demais do farisaísmo e até do judaísmo
forma. se insistisse em que, uma vez assumida a lei, a obediência a ela deveria
Isso nos leva à consideração geraJ que tem relação significativa ser perfeita. Tal posição implicaria indiretamente que os meios de pu-
com a compreensão da origem da visão paulina da Lei. HOBNER pensa rificação especificados na própria Escritura para nada serviam. Apelar
q~e ~ argumentação de Paulo é comandada não pelas suas convicções para jdéias pré-cristãs de Paulo não serve para confirmar a tese de que
cnstas (Q 2,21), mas pela sua visão farisaica da lei Ele chega a dizer o peso da argumentação paulina em Gl 3 está na palavra "todos" (3,10),
que a razão principal da oposição de Paulo à lei em Gl consiste na in- ou a tese de que Paulo chegou à sua posição negativa sobre a justificação
capacidade humana de cumprir toda a lei, porque ele descreve Paulo pela lei porque esta não pode ser adequadamente observada. O passado
como discípulo de Sh amai, o qual ensinava que a lei devia ser observa- farisaico de Paulo é argumento de peso contra essas teorias. A opinião
da sem ex~eção. 56 O de~~te em G~ seria, entã?, entre Paulo ex-discípulo do judeu comum (incluindo os fariseus, enquanto podemos conhecê-los)
de Shamru e os adversar10s seguidores de Hilel, que apenas requeriam obre a nossa questão seria esta: a lei não é difícil demais para ser cum-
que a obediência suplantasse a desobediência. Mas essa explicação prida satisfatoriamente; não obstante, todos mais ou menos pecam vez
não resiste a uma análise. Todos os rabinos cujas idéias conhecemos por outra (ver acima); mas Deus instituiu meios de expiação que estão
eram de opinião que a lei devia ser aceita na sua totalidade. Não era só ao alcance de todos. Ora, para dizer que os raciocínios de Paulo sobre
a escol~.de_Shamai _que ensinava isso. Nenhum rabino sustentava que a lei derivam das suas idéias pré-cristãs, precisa-se fazê·-lo negar dois
a obediencia devena ser perfeita.57 Os fariseus e rabinos de todas as desses pontos. Ele deve afirmar que a lei é por demais difícil para ser
escolas e de todos os tempos creram firmemente no arrependimento adequadamente cumprida e que não existe perdão. Ora, é plenamente
e _nos _ou tr?s meios ?~ reparação no caso de transgressão. Do ponto de certo que, no epistolário que temos, Paulo nunca sustentou tais opiniões.
VISta Judaico, a pos1çao que HOB~ER atribui a Paulo é inaudita. Até em H üBNER e outros devem afirmar que a idéia de que a lei não pode ser
Qumrã, onde se valorizava a vida de perfeição, admitiam-se a trans- posta em prática está subjacente a GJ 3,10 e 5,3 como algo por demais ób-
gressão e o perdão. Pelo fato de exigir obediência vir tualmente perfei- vio para precisar de afirmação explícita. Mas para isso ser válido como
ta, 4Esd s~b~ess_ai ~orno obra singula r na literatura judaica do período explicação, devem também afirmar que Paulo, embora argumentando
- e e~ta exigenaa e absolutamente inaudita antes de 70 d.C. com base nos seus pressupostos judaicos, também suponha impossível
E igualmente estranha ao judaísmo a idéia de que a lei seja difícil o perdão. Meu argumento é que nada disso seria óbvio para alguém do
demais para ser cumprida. Como diz Filo, "os man damentos não são ambiente de Paulo. Com efeito, ser ia algo sem precedentes.
por demais difíceis ou pesados para os ombros daqueles aos quais são Voltando a falar de Gl 5,3, além de observar que o texto não diz
impostos..." (De Prnemiis ef Poenis [Sobre os Prêmios e os Castigos] 80). seja impossível praticar toda a lei e que por esta razão ela não deva ser
Mas não se trata de idéia só de Filo: é comum na literatura judaica. praticada, p ode-se apenas arriscar uma conjetura quanto à força da
ameaça de que aceitar a circuncisão exigiria a observância da lei toda.
Há bons motivos para pensar que, embora não fosse pesado para os
lei perfeitamente mas muito poucos o fazem (não que ninguém o faça) se encontra judeus observar a lei, para os gentios seria oneroso e inconveniente. Os
em 4Esd, mas isto é atípico (como também claramente posterior ao ano 70 d.C.)
(PP/, pp. 415, 427s). adversários de Paulo devem ter adotado política de gradualismo, in-
55
Quanto ao subentender a suposição de que é impossível observar a lei toda ver culcando primeiro alguns dos principais man damentos (circuncisão,
a análise em ~er, Der Brief an die Galater, pp. 132s e n. 1 da p. 133. Com r~o alimentos, dias), política essa que provavelmente não era única entre
5aruER se opoe a que se acrescente algo à afirmação de Paulo. os missionários judeus.38 Pode ser muito bem que Paulo simplesmente
: H OBNER, ''.f'.erkunft"; darame~te aceito p~r BEKER, Paul tlte Apostle, pp. 43s, 52s.
HO~NER (1b1d:) en tend: ~ai Sifra Qedoshi.m pereq 8.3 ao dizer que os prosélitos
deVJam praticar com exito toda a lei. O que se afirma é, antes, que devem aceitá-la ;s Um dos dados da famosa história sobre Hilel e o suposto prosélito (Shabbath 31a)
toda. Ver PP/, p. 138 n. 61. é que os pormenores da observância da lei deviam ser introduzidos ou atingidos
52 CAPÍTULO 1 A LEI '-ÃO E EXICÊl\CIA PARA ABRAÇAR A FÉ 53

estivesse lembrando a seus convertidos que, se aceitassem a circunci- que deve ser formada igualmente por judeus e cristãos na mesma
são, a conseqüência seria que teriam de começa r a levar a vida confor- base."3
me novo código de normas para a vida diária.w ão podemos, com certeza, dizer que isso seja inovação paulina, já
que em Gl 2,15s Paulo afirma que Pedro está de acordo. Em todo caso, é
Romanos 3-4 e 9-11 nessa passagem que encontramos pela primeira vez a idéia, apaixonada-
mente defendida por Paulo, de que os judeus e os gentios são igualmente
", Já observamos que Q 3 é argumento para provar que os gentios que
ingressam no povo de Deus devem fazê-lo apenas na base da fé e que a lei
justificados somenteM pela fé em Cristo. O tema é desenvolvido em Rm.

não deve ser condição para a admissão deles. É surpreendente que Paulo f>l Es e parágrafo apre cnta o mais sucintamente possível minha posição sobre a
aplique o mesmo principio aos judeus. O motivo pelo qual digo que é Cr~tol ogia de Paulo em confronto com a de W. D. Ü AVTF.S. Ele afirma, com efeito,
surpreendente a aplicação aos judeus é porque ela não procede das tradi- que a ch ave do pensamento de Paulo é a expectativa messiânica. (Ver a reafirma-
cionais expectativas messiânicas judaicas, pelo menos enquanto podemos ção modificada de ~u a teoria, contra minha critica a nterior, em Paul nnd Rnbbi111c
/11dais111, 4• ed. [Filadélfia: Fortress Prcss, 19 O), p. XXXfY.) Não discordo dele sobre
agora determiná-las. Já observamos anteriormente a opinião bem comum se a obra de Paulo se inclui ou não num contexto geral gerad o por tal expectativa
entre os judeus de que os gen tios haveriam de ingressar no povo de Deus (ver ibid.). Certa me nte <5 e se o caso: Paulo pensava que o fim era imine nte e que
na era messiânica.611 Mas se deve notar que, nos textos que expressam esse era o tempo de os gentios entrarem no povo de Deus. Se lhe perguntassem,
essa idéia, o "povo de Deus" é formado pelo " Israel segundo a ca rne"."' sem dúvida concordaria também que jesus e ra o messias judeu. Mas é só até aí que
a expectativa messiânica judaica explica as posições que caracterizam suas cartas e
Podia-se esperar que os gentios ingressassem em Israel, mas parece ser que diferenciam ua idéia das dos outros judeu-cristãos que também pensavam
inovação cristã afirmar que o povo de Deus é, de fato, terceira realidade62 que Jesus era o messias. Para Paulo, Cristo é o Senhor universal: é o salvador tanto
dos gentios como dos judeus. Os judeus como tais ainda não estão na nova criação.
Devem ainda entrar. Nenhuma vantagem têm eles sobre os gentios com respeito
à admissão. É por isso que julgo acertado falar de "conversão" (ver a critica de
gradualmente. Ver DAvro ÜAUBE, The New Tesfament a11d Rnbbi11ic /11dais111 (Londres: 0AvtES, ibid., p. X:XXVl; adiante, li Parte).
University of London, Athlone Press, 1973), p . 336s. É o que consta também ~ Paulo não usa a palavra "somente", mas muitos exegetas corretamente a suprem.
nas instruçõe:. posteriores para a admissão dos prosélitos: na época do batismo Essa teoria tem sido refutada por EUCE..\.'E BoRL'c em estudo ainda não publicado.
lhes são comunicad as algumas informações e certos mandame ntos importantes Ele observa com razão que, alé m dos textos que d escrevem a destruição d os que
(Yebamoth 47a). Esperava-se dos prosélitos a aceitação d a lei toda (T. Demai 2,5), não crêem (p. ex., A 3, 18-21), há outros que supõem a salvação universal (p. ex.,
mas parece que os rabinos se deram conta d e que apresentar a lei por inteiro seria 1Cor 15,22; Rm 5, 18). Não se decide a "verdadeira" posição de Paulo enumeran-
pesado. Se os missionários rivais seguiam política de gradualismo, a ameaça de CI do textos. Os dois tipos de afirmação, explica BoRr:-.G, derivam de duas imagens:
5,3 seria o ataque de Paulo a ela. a do julgamento, na qual deve haver "perdedores" se há "ganhadores", e a da
EcxERT (Verkii11dig1111g. p. 41) considera a possibilidade aqui proposta, de que os soberania, na qual todos são reunidos sob o império do Cristo vitorioso. Parece-
adversários de Paulo adotavam a tá tica do gradualismo, mas rejeita-a cm favor da me basicamente certa a sua exp licação das duas figuras. Eu diria assim: q uando
idéia de que em 5,3 Paulo supõe que os gálatas reconhecerão que cumprir toda a Paulo pensava nos que rejeitam o evangelho, ele os considerava " perdidos" o u
lei é impossível. "destruídos" (ver 2Cor 2, 16; 4,3). Quando pensava no desígnio de Deus e na gran-
"" H OWARD (Crísi , p . 16) não vê em Gl 5,3 a intenção de amedrontar os gálatas com a deza de sua misericórdia, deveria dizer que todos seriam salvos (lCor 15,22; 15,28;
dificuldade de cumprir uma lei estranha a eles. Diz ele que a ên fase cai na palavra Rm 11,32.36).
oplieilefés e que a ameaça é que quem aceita a circuncisão assume o jugo da lei e Contudo não sou de o pinião que seja impossível descobrir o pensamento de Paulo
portanto está sujeito ao pecado. po r detrás de difere ntes modos de falar. Como disse antes e estou tentando de-
~ Acima, n. 8. Deve--se notar que nas passagens em questão não se supõe necessaria- monstrar nesse ensaio, a visão paulina da lei depende m ais do exclusivismo da
mente um messias individual. sua cristologia do que de qualquer outra coisa. A conclusão de Cl 3 parece impli-
"' Ver, p. ex., Tb 3,3.13 ("vós que sois os filhos de Israel"); SI Sal 17,32 ("sob seu jugo", car muito d istintamente um "somente": são os que crêem em Cristo que são a des-
a saber, a lei); SibOr LU, 702-20. cendência d e Abraão (3,29), não os que o são pela lei, os quais estão sob a maldição
62
Ver adiante, li Pa rte. e escravizados (3,10.23).
54 CAPÍTULO 1 A LEI NÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 55
Nos capítulos iniciais de Rm, Paulo analisa um caso diverso d o de Gl, e do seu tema. Essas questões são debatidas também em relação a Gl,
não obstante as semelhanças entre Rm 4 e Gl 3. Em Rm o tema é a condição roas aí julgo fácil a resposta. Discutir a ocasião e os d estinatários de
igual do judeu e do gentio - ambos estão sob o poder do pecado - e a idên- Rm, porém, é entrar num d os mais controvertidos pontos da recente
tica base na qual mudam esta sua condição: a fé em Jesus Cristo. Assim, pesquisa neotestamentária, e a controvérsia se baseia em probl.emas
embora não seja contra a opinião geral de que o tema de Rm é anunciado muito reais. A questão básica é: Paulo se refere a problemas existen-
em 1,16, eu colocaria a ênfase m ais na segunda parte do versículo ("de todo tes em Roma, sobre os quais tem alguma informação, ou a composi-
t ' aquele que crê, em primeiro lugar do judeu, mas também do grego'') do ção de Rm deve ser e ntendida no contexto d o ministério de Paulo, já
que na frase: "a justiça de Deus".IÓ Várias expressões indicam ser a força tendo passado pelas polêmicas na Galácia e em Corinto e aguardan-
do raciocínio em favor da igualdade dos gentios e contra a aceitação d o do o encontro com os apósto los d e Jerusalém? O segundo problema,
privilégio judaico. Assim, Paulo pergunta em 3,9 se os judeus estão em embora relacionado ao primeiro, é este: Paulo se imagina discutindo
melhor situação que os gentios (sua resposta é negativa), em 3,29 se Deus com judeus não-cristãos, ou seus raciocínios sobre a lei são ainda
é o Deus somente dos judeus (não, é dos gentios também) e em 4,9 se a dirigidos, ao m enos na s ua m ente, a outros cristãos?68 Geralmente se
bênção mencionada no salmo 32 é apenas para os circuncisos (não, é tam- reconhece o cará ter dialoga l d e Rm,69 mas com quem Paulo se imagi-
bém para os incircuncisos). A situação dos judeus é manifesta: também na dialogando?
eles estão sob o pecado e só podem ser justificados pela fé em Cristo; mas Considerando tudo, d eixo-me convencer pelos que, liderados p or
os judeus vêm a ser o tema principal só em Rm 9-11. Em Rm 1-4, mesmo T. W. MANsoN, julgam Rrn d erivada primariamente da situação d o pró-
levando em conta 2,17-29, o olhar de Paulo está voltado para os gentios. prio Paulo.70 É especialmente significativo que, no longo d ebate sobre
Rm 3-4 e 9,30-10,13 são as principais passagens nas quais se baseia
a idéia de que o raciocínio d e Paulo contra a lei era que a s ua ob ervân-
cia levava ao o rgulho e à alienação. Para RuooLF BuLTMA\. esta era a .,.., Alguns dos artigos mais importantes estão reunidos por KARL P. Do.'llFRIEo em Tlze
chave para entender a atitude de Paulo perante a lei,i.t. e recentemente Romans Debate (Mineápolis: Augsburg Pu blishing House, 1977). Ver também a
H OBi\ER defendeu essa opinião. Todavia H üs, ER restringe a Rm essa análise feita por DIETER 2.Eu.ER, /11derz 1md Heiden in der Missiorz des Paul11s. Studierz
::ur Riimerbrief, 21 ed. (Stuttgart: Verlag Katholisches Bibelwerk, 1976), pp. 42s, 75s,
razão da rejeição da lei da parte de Paulo; diz que em Gl Paulo se opôs 285s. Ver adiante, n. 70.
à lei porque esta não podia ser cumprida satisfatoriamente. A seu ver, ~ RuooLF BuLTMA.'· , Der Stil der paulinisclum Predigt mzd die kynisclz-sloiscl1e Diatribe
o raciocínio em Gl é "quantitativo" e em Rm, "qualitativo"."7 (Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1910); Roer~ 5c:ROGGS, " Paul as Rhetoridan:
Ao tentar entender o raciocínio de Paulo contra a justificação pela lei Two Homilies in Romans 1-11", in /ews, Greeks and C11ristia11s (Leiden: E. J. Brill,
1976), pp. 271-98. Breve e excelente avaliação com correção de alguns aspectos da
em Rm, levanta-se a questão da ocasião da carta, dos seus destinatários
teoria de BuLTMANI\ encontra-se e m ABRAHAM J. MALHERBE, " ' MH íENOITO' in
the Diatribe and Paul", in HTR 73 (1980) 231-40. MALHERBE também faz referência
a uma tese da Universidade d e Yale, escrita por STANLEY K. SmwERS, A Criticnl
O pensamento de Paulo se to ma mais claro q uando ele fala de casos concretos. A Reassessme11t of Paul a11d tire Diatribe (Chicago, Calif.: Scholar's Press, 1982).
não ser que eu leia Rm 9-1 1 inteiramente errado, ele se mostra angustiado q uanto m T. W. MANsoN, "St. Paul's Letter to the Romans - and Others", in BJRL 21 (1948):
a seu p róprio povo, temendo que não se converta - o termo não é forte demais - e 224-40. ão é necessário seguir MANsoN em supor que Rm foi preparada por Paulo
seja salvo (Rm 9,2; 10,1). em duas recensões, uma das quais devia ser usada como carta circular, para ado-
65 PP/, pp. 488s e as notas. Assim também RlcHARDSON, Israel, pp. 134-7: o tema do tar sua teoria sobre s ua s ituação no ministério do próprio Paulo. Quanto a essa
igual acesso para judeus e gentios na base d a fé "paira por sobre toda a carta". teoria geral, ver também M uNCK, Pn11l, pp. 66, 197-200 ("Rm é essencialmente uma
66 Como diz com razão RAisÃXE: ("Legalism and Salvation by the Law", p. 68), os recapitulação do ponto de vista que Paulo atingiu durante a longa polêmka que
textos-chave para BuLT\IA.'I eram Rm 3;1.7; 4,2ss; 7,7ss; 10,2-3; F1 3,4ss. os dois começa em 1Cor e FI 3" (p. 1991); JACOB JERVELL, "The Letter to Jerusalem", in Tlze
últimos, a ênfase está em "sua própria". Ver RuooLF BULTh1AJ' , Tlzeology of tlze New Romnns Debate (Mineápolis: Augsburg Publishing House, 1977), pp. 61-74 (Rm
Testanumt, vol. 1 (Nova Iorqu e: Charles Saibner's Sons, 1951-1955), pp. 264-7. l-11 é a defesa d e Paulo em Jerusalém, escrita para ele m esmo; a carta é enviada
67
H os:-.u, Gcsetz. a Roma a fim de solicitar intercessão d os romanos); JACK SuGGS, " 'The Word is
..
56 C APfnJLO 1 A LEI ÃO É EXIGENCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 57

o judeu e o gentio em Rm 1-11, não há referência direta a problemas da oração de in tercessão an tes de encontrar os "incrédulos" e os "santos"
comunidade de Roma.71 Isso poderia talvez refletir apenas a reticência em Roma é provavelmente um dos principais motivos pelos quais es-
de Paulo em fa lar diretamente de problemas numa comunidade que creve esta carta??
não fund ou e não se pode excluir completamente a possibilidade de Mais adiante apresentaremos a lgumas observações sumárias so-
ele saber dos problemas e a eles aludir indiretamente. Todavia parece bre a relação de Rm com Gl. Aqui, porém, é necessário notar clara
melhor considerar Rm como sendo a reflexão de Paulo sobre o proble- diferença. Em Gl a polêmica se referia à entrada dos gentios ao povo
ma do judeu e do gentio à luz da dificuldade encontrada na Gálacia e de Deus e fazia-se referência de modo confuso à condição dos judeus
do futuro encontro em Jerusalém. Ele se mostra preocupado porque os e dos gentios antes da fé ou sem ela (p. ex., Gl 3,23-4,10).i1 Em Rm,
romanos poderiam ter ouvido falar que sua posição sobre a lei levava por sua vez, Paulo se esforça por determinar o que ele percebe como
ao antinom ianismo ou que ele próprio era antinom iano (Rm 6,1.15; cf. sendo a condição dos judeus e dos gentios sem fé dum modo que fa z
3,8). Sem dúv ida, queria explicar sua posição sobre a lei em vista de distinção entre eles, para ainda concluir, porém, que o estado deles,
sua próxima visita, mas a explicação é de u m a posição que já en con- seja anterior à fé, seja na comunidade cristã, é o mesmo (R.m 1,18-3,9;
tramos em Gl. Assim, sua carta às vezes repete temas da carta aos 4,ll s). Essa mudança de enfoque leva-o a discutir em pormenores, pela
gá latas, mas com maior freqüência aperfeiçoa-os e altera a ên fase. Em única vez no seu epistolário existente,74 a situação do "Israel segundo a
Rm 15,30s se vê claramente que o olhar d e Pau lo está voltado em parte carne" (Rm 9-11),75 e ele também tenta explicação muito mais completa
para o p róximo encontro com os apóstolos de Jerusalém; seu desejo de do papel d a lei no plano divino do que aparece em Gl Tudo isso con-
fere às suas discussões sobre a lei uma perspectiva diferente da que
encontramos em Gl. Essa "perspectiva diferente': contudo, será espe-
'ear Vou': Ro?'ans 10:6-10 within the Purpo e of the Lettcr", in Clzristia11 Hislory cialmente visível quando examinarmos a questão do motivo pelo qual
a11d Interprelal1ot1 ( ova Iorque: Cambridge University Press, 1967), pp. 289-312; Deus concedeu a lei (cap. 2). Antes de mais nada, investiguemos as
GL'IHER BoR.,KML\I, "Des Rõmerbrief aJs Testament des Paulus", in Geschicl1te 1111d passagens onde Paulo diz que a justificação não é pelas obras da lei.
Gla11be, vol. 2 (Munique: Chr. Kaiser, 1971), pp. 120-39; PP/, p. 488; Uoo BoRSE, '' Die
geschichtJiche und theologischc Einordnung des Rõmerbriefes", in BZ 16 (19n):
7~83. A mais completa e, a meu ver, melhor colocação da teoria é a de W tLCKE.'S
Rm 3,27-4,25. É este texto que, ta lvez mais que qualquer outro, tem
"Über Abfassu~g zweck und Aufbau d es Rõmerbriefes". W1Lc11.a-. concede qu~ servido como alicerce para os que acreditam Paulo se opor à lei porque
P~ulo tc~ha sab1d~ d a tensão entre judeus e gentio-cristãos e m Roma (p. 124), mas
nao consid era a situação romana como principal referência. O conteúdo da carta
é ~et:rmin_ado primariamente pelo próxim o debate em Jerusa lém. Apesar disso, -i lbid., p. 128: "A intercessão dos romanos é para Paulo algo da mais realista eficá-
nao e precasamente uma "carta a Jerusalém" UERVEt.L). E dirigida à comunidade cia, precisamente tão real quanto a esperada oração de ação de g raças dos hforo o-
romana porque Paulo deseja sua prece intercessória CWtLCKE'IS, pp. 128, 138s). limitas".
73
A objeção d e BEKIR a essa teoria, alegando que ela d esfaz "a con tingência da carta" Ver adiante, pp. 79s.
74
e conduz a ler Rm como tratado teológico abstrato (Pn11 / the Apostle, pp. 6ls, 69), é Com parar a referência muito mais breve cm 2Cor 3,14s.
fora de propósito. Ter idéia diferente da de BEKER sobre a ocasião de Rm não é d e ;;; É sem dúvida esse fato que leva BLKER a considerar Rm como diálogo com o ju-
mod~ ~lgu m a mesma coisa que fazer da carta um tratato teológico intempo ral.
daísmo e como reflexo das polêmicas de Paulo com a sinagoga (acima, n. 70; ver
A opm1ão de BEKER que Rm tem em mira os p roblemas d os cristãos romanos e os especialmente B FKI R, Pn11/ tlte Apostle, p. 86). Mas até quando, em Rm 9-11, Paulo
judeus não-cristãos adversários da pregação de Paulo (pp. 69s, 74-86) - não con- considera diretamen te a condição do Israel infiel, ele o faz na terceira pessoa. As
vence. Assim, BEKER diz que Rm é resposta a "qu estões judaicas" tais como: "Qual únicas pessoas a que se refere dire tamente são os gentio-cristãos (11, 13-24). A in-
a função da To rá e da circuncisão?" (p. m. Essas questões, porém, surgem muito terpelação retórica aos ju deus em 2,17 se baseia prova\·elmente em material tra-
.. naturalmente da missão de P aulo aos gentios: se Deus providenciou a salvação
deles independentemente da lei e da circuncisão, qual a função d esses sinais da
dicional (ver adiante, pp. 136-150). Não se consegue determinar com precisão o
destinatário de Rm 7, 1. Em todo caso, a despeito dessa discordância quanto à parte
aliança de lsrael com Deus? com quem Paulo pretende estar em diálogo, todos os autores concord am que em
71
WtLOcE.'liS, " Abfassungszweck", p. 126. Rm se discute o judaísmo como tal. Cf. ZELLER, /ude11 und Heiden, pp. 42s..
58 C APÍTULO 1 A LEI NÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 59

a sua observância leva ao orgulho. Em 3,27 Paulo diz que a "fé" exclui a obra que produziria justiça (afumando que isso se pode deduzir de
a "vanglória", e é comum considerar "vanglória" como ''vangloriar-se 3,9ss), mas, em segundo lugar, quis ser justificado pelas obras. Por cau-
de suas próprias ações meritórias". Assim, por exemplo, J. C HRJSTIAAN sa de s ua fé, Deus perdoou-lhe ambas as coisas (4,7).81 Então, na inter-
BEKER descreve a vanglória que Pau lo combate como a "autoconsciência pretação dessa secção, HOBNER concorda globalmente com o modo de
orgulhosa que os judeus têm de sua estatura moral e de suas obras". Bun MAJ."lN entender a crítica que Paulo faz à lei.82
Ele vê que a palavra "vanglória" em 3,27 se prende ao uso da palavra H ü sNER pode então fazer Rm 1,18-3,26, especialmente 2,17-19, con-
em 2,1Z23, mas acredita que 3,27 leva mais adiante o ataque de Paulo. corda r com o resto da carta aos romanos, propondo que h á diferença
Em 3,27 ele critica não já o comportamento imoral (como em 2,23), mas entre a justificação pela lei (que 1,18-3,26 p ermite) e a "justificação pe-
mos tra que o erro do judeu é que ele transgride a vontade de Deus las obras" (qu e 3,27ss exclui). Não há conflito entre as duas secções.83
"por sua própria tentativa de ser moral".76 Sua distinção entre o uso distorcido da lei e a lei corretamente pratica-
da também lhe possibilita entender "a lei da fé" em 3,27 como a lei m o-
H OB'1ER se mostra muito mais consciente do grau até onde esse saica.s.i Na mesma linha, como veremos, ele é de opinião que apenas o
modo de ler Paulo pode ser questionado.77 Reconl1ece que nem em Gl uso distorcido da lei chega ao fim (Rm 10,4).85
nem nas cartas aos coríntios existe prova de que Paulo defina a vida Devo confessar que discordo de quase todos os aspectos dessa in-
cristã como negação da vang lória.78 Os três primeiros capítulos de terpretação. Em vez de examinar um por um os vários aspectos da
Rm, considerados em si mesmos, não refletem essa idéia.19 Af Paulo sentença de HüsNER, pretendo seguir o sistema até aqui adotado de
critica o comportamento inconveniente, não o orgulhar-se da própria concentrar a discussão no texto que analisamos.
observância da lei. À luz de Rm 4, porém, diz HOBNrn, torna-se claro Antes de tudo, devemos notar, o que é amplamente aceito, que o
que a frase "lei das obras" em 3,27 significa o uso distorcido da lei: a termo "vanglória" em Rm 3,27 se relaciona com o mesmo termo em
justificação pelas obras.80 Assim ele entende a reflexão de Paulo sobre 2,17.23.86 Aí se referia à presunção de condição especial por parte dos
Abraão: ele era pecador sob dois aspectos. Em primeiro lugar, não fez judeus. Existe alguma razão para interpretar o termo de modo diverso
em 3,27? O tema dos vv. que se seguem imediatamente nos leva are-
7" BEKER, Paul lhe Apostle. pp. 81-3. jeitar qualquer mudança. Paulo passa a afirmar que Deus é o Deus dos
77 Ver H Cs:-..ER, Gesetz. pp. 96, 102 e nn. 86, 87 e 102. HOBl\l!R diz que o d ebate é p rin- gentios tanto quanto dos judeus (3,29) e justifica os incircuncisos e os
cipalme nte entre a posição d e BUl.TMAN' d e um lado ( . 66, acima) e a d e ULRICH circuncisos sobre a mesma base, a fé (3,30). Em outras palavras, o ar-
W rLCKENS d o outro (W~. " W as heisst bei Paulus: 'Aus W erken d es Gesetzes
gumento é em favor de condição igual e contra privilégios - especial-
wird kein Mensch gerecht?"').
Quanto aos argumentos con tra a leitura desse texto em particular, ou de Paulo em mente contra o vangloriar-se de condição privilegiada.87 O nomos que
geral, como se fosse contrário à lei porque esta leva à vang lória, ver especialmente
RÃISANEN, "Legalism and Salvation by the La\.v'', pp . 68-n (na p. n , ele refuta com
razão uma ambigüidad e na minha posição anterior, que espero será corrigid a aqui). ~ 1 lbid., p. 101. Não consigo ver que Abraão esteja diretamente em mira em Rrn 3,9-20
Cf. VA.'< D LLMEN, T11001ogie des Gesetzes, p. 87 (não "obras e fé", m as lei mosai- ou ainda e m 4,7, mas este ponto não é essencial.
ca e fé); KARL Ho1lEISEL, Das antike /11de11h1111 in 01ristlicl1er Sic/11 CWiesbaden: O. trz Ver HOB.'IER, Gesetz. p. 102.
Harrassowit.z, 1978), p. 200: llittt liLX<XtOOÚVTl " hat. aber nicht d as geringste mit 113 lbid., pp. l02s.
'Selbstgerechtigkeit'... zu tun ". 14 Ver acima, lntrodução, n. 26.
78 H OB'-!ER, Gesetz. pp. 81-93. 65
Hus;o.'.ER, Gesetz. p . 118.
1'l Ibid., pp. 93-9. Ili> Assim W ILCKENS, "Was heiss t bei Paulus", p. 94. ,, Abfassungszweck", p . 151;
80 lbid., p. 99 (4,2 d esqualifica a justificação pelas obras); d . pp. 101s. Até certo ponto, RA1SÃJ1. EN, " Legalism und Salva tion by the Law" , p. 70; d . H OHEISlíl, Das an tike
porém, Hcur-.ER parece pensar que a expressão " 110111os das. ob ras" e 3:27 como ta l j11de11t11111, p . 201; VAA DL'L';!EN, Theologie des Gesetzes, p. 86.
mostra que Paulo se opõe à lei somente quando se toma lei q ue peroute au tocom- '<l Ver especialmente GEORGE HowARD, " Romans 3:21-31 and the inclusion of the
placência (p. 96) . Gentiles", inHTR 63 (1970): 233: os vv. 3,27-30 "formam uma unidad e e esta belecem

..
60 C APÍTULO 1 A LEI , ÃO É EXIGÊ.\;CIA PARA ABRAÇAR A FÉ 61

é o meio pelo qual é excluída essa vanglória é a "fé" - dificilmente "a é pela fé; sempre tem sido pela fé; é assim que Deus age. Podemos
lei quando praticada dentro do verdadeiro espírito': mas a fé na morte parafrasear 4,2s assim: Abraão não foi justificado pelas obras, já que a
expiatória de Jesus, que, como Paulo acaba de dizer, é acessível a todos Escritura diz explicitamente que a justiça lhe foi atribuída por causa
sem distinção (3,21-25). É a fé em Jesus Cristo, que é acessível a todos, que da fé. Se tivesse sido justificado pelas obras, teria podido vangloriar-
exclui o vangloriar-se de condição privilegiada. Assim, nomos em 3,27 se, mas ainda assim não perante Deus, pois, repito, a Escritura diz que
é corretamente traduzido por "principio". Neste modo de ler, 3,27-30 Deus o justificou por causa da fé.
se enquadra perfeitamente no contexto de toda a discussão precedente A citação de Gn 15,6 em Rm 4,3 responde a ambas as metades de
sobre a condição do judeu e do gentio: são iguais. 4,2. Mostra que Abraão, de fato, não foi justificado pelas obras e tam-
Em Rm 4 Abraão é apresentado para provar a visão de Paulo. "Se bém que de qualquer forma as obras não teriam valor para a justifica-
Abraão tivesse sido justificado pelas obras, teria tido do que se gloriar, ção, já que Deus considera apenas a fé.
mas não perante Deus" (4,2). Não vejo aí menção algu ma da idéia de Procura ndo entender a referência a Abraão em 4,2, temos de notar
que Abraão tentou ser justificado perante Deus pelas obras,88 tampouco as conclusões que o próprio Paulo tira. O caso de Abraão prova que
da idéia de que o esforço para mer ecer a justificação observando a lei Deus vai tratar os incircuncisos d a mesma forma que trata os circun-
é o que constitui o pecado humano e é por isso que Paulo combate a cisos (4,9-12). O cerne do argumento é em favor do que Paulo considera
lei. O raciodnio de Paulo é escrituristico-fatual: Abraão foi justificado, como fato soteriológico, fato afirmado em 4,13 com tantas palavras: a
não o foi pelas obras e ele não podia vangloriar-se. Adiante, Paulo dirá promessa a Abraão e à sua descendência estava ligada não à lei, mas
que Abraão sequer fora circuncidado (4,10). Por ora, entretanto, Gn 15,6 à fé. Especialmente significativo é 4,14. Se os que são "da lej'' são her-
permanece a prova escriturística. Abraão não foi jus tificado pelas obras, deiros de Abraão, não tem sentido a fé. Aí é claro que a negação da lei
pois Gn 15,6 diz que sua fé fez com que fosse considerado justo. Isso como meio para a justificação é dirigida contra a condição privilegia-
faz de Abraão um tipo paradigmaJb'"' que mostra corno Deus justifica: da, não contra o orgulhar-se das ações meritórias. O alvo da argumen-
tação é o mesmo de 3,27 a 4,25: os judeus que não têm fé em Cristo.
uma coisa, a saber, a adm issão dos gentios". Do mesmo modo, p. 232: "A idé ia da Se se olha apenas a frase "lei das obras" (3,27) e a expressão "quem
justificação pela fé como polêmica contra as obra meritórias domina a teologia fa z um trabalho" (4,4),llO pode parecer, como propõe H üBNER, que Paulo
cristã da época moderna. E por isso que (3,2 ) com tanta freqüência parece não se esteja ataca ndo as obras. Mas devem- e notar os outros termos que
relacionar com o v. 27 que o precede o u com os vv. 29 e 30 que o seguem. Todos caracterizam os que Paulo critica: "judeus" (3,29); "a circuncisão" (3,30;
c:.ses versículos aludem à inclusão dos gentios, mas não o modo moderno de en-
tender a justificação pela fé".
4,9.12); os "da lei" (4,14.16) - expressões todas que enfocam um estado,
Ver RAlsÃS E., , "Legalism and Salvation by the Law", p. 70 n. 43: " Note-se que não uma atitude religiosa ou um comportamento. O que chamei de
Paulo mio diz que Abraão lentou ser justificado pelas obra , então sua atitude teria posição "escriturístico-fatual" d e Paulo aparece com especial nitidez
s ido a de quem se vangloria". Também HowARo, Crisis in Galatin, p. 56: ''Paulo na conclusão do capítulo. Com efeito, diz Paulo que a Escritura se ex-
concede a possibilidade de que Abraão se glorie de suas obras, nega apenas que se pressou com muita precisão ao dizer que foi a fé de Abraão que lhe foi
glorie diante de Deus" . Minha leitura é ligeiramente d iferente: Abraão não teve do
que se gloriar nem diante dos homens nem diante d e Deus com base nas obras, já
q ue de fato ele não foi justificado pelas obras, pois Gn 15,6 diz outra coisa. Mesmo
se titoesse sido justificado pelas obras, não teria de que se gloriar dfante de Deus, universalismo que sempre foi potencialmente acessível". A única a plicaçJo é para
pois Deus justifica pela fé. Seja como for, RAJSA~ E."1, H O\\ ARD e eu concordamos que " nó " 14,24 1); Lu7, Gescl1icl1tsverstii11d11is, p. 181 (Abraão é exemplo de justificação
no texto nada há a respeito de querer ser justificado pelas obras (contra H ü s.,ER, pela fé, mas ele está isolado da história anterior e subseqüente). Sn.11L\fACI IER
acima, n. 81), e certamente nada quanto à a titude de a utojustificação. denomina "paradigmaticamente histórico" o uso que Paulo faz de Abraão
"" Sobre Abraão como tipo, ver LEO:'l.HA RD GorPELT, Typos (Güterslo h: Gerd Mohn, ("lnterpretation von Rômer 11:25-32", in Probleme biblisclzer T11eolog1c (Munique:
1939), pp. 164-9; HA'SO' , Studics i11 Paul's Tecl111iq11e n11d T11cology. p. 79 (embora Chr. Kaiser, 1971], p. 563).
se duvide que o raciocínio d e Paulo seja realmente que Abraão representa " um "<l H t s"íl:R, Geset::. pp. 96, l Ols.
62 CAPtrut.O l A LEI l\ÃO ~ EXICÊ.'ICIA PARA ABRAÇAR A FÉ 63

levada em conta de justiça. Isso mostra que os que têm fé no Deus que Até aqui nos limitamos a responder à pergunta se a objeção à jus-
ressuscitou Jesus terão a justificação (4,22s). tificação pela lei em 3,27-4,25 se baseia ou não na suposta atitude de
Assim, dois temas inter-relacionados dominam Rm 3,27-4,25: (o) autojustificação que a obediência à lei produz, uma vez que é este o
Deus justifica judeus e gentios sobre a mesma base, a fé, e sua ação não tema que veio à tona na recente discussão dos autores. Devemos notar,
depende de modo algum da obediência à lei, nem a promessa se res- porém, que Rm 4 vem depois de 1,18-3,26, onde Paulo afirma que todos
tringe aos que são "da lei" (3,29s; 4,9-14; 4,16). (b) O exemplo de Abraão pecam. Também em Rm 5, como já observamos, diz Paulo que todos
prova este ponto. Abraão foi justificado pela fé; isso nada tinha a ver pecaram. Pode-se então supor que o que realmente está por detrás da
com a lei (4,2-4.10s.13.16s). Sublinhando ambos esses temas inter-rela- objeção de Paulo à justificação pela lei nesta secção é o fato universal
cionados, há uma visão do plano divino. O exemplo de Abraão mostra da tran sgressão.
como Deus age. A justificação vem pela fé por causa da intenção de É esta, na verdade, a seqüência do raciocínio de Paulo: os gentios
Deus de fazer a promessa incluir todos os descendentes de Abraão, pecam segu ndo a lei "escrita em seus corações" (Rm 2,15); os judeus
a saber, todos os que têm fé e não exatamente os que são "da lei", os pecam segundo a lei conforme foi dada por Moisés (2,21-24); todos
judeus (4,16). A afirmação de Génesis de que a fé de Abraão é o que lhe estão sob o pecado (3,9), todos pecaram (3,23) e a justificação é pela fé
foi contado como justiça deve ser aplicada no presente, e a intenção de (3,24). De modo semelhante, no cap. 5: todos pecaram (5,12), todos es-
Deus e a base sobre a qual ele justifica nunca mudaram (4,23s). tão condenados pelo pecado de Adão (5,18s), todos (ou muitos) adqui-
En tão ficam claras as principais linhas do raciocínio de Paulo. A rem a ju tificação por meio de Cristo (5,18s). Assim, Paulo apela, sem
continuação de 3,27 nos vv. 29s mostra que o ponto principal é que ju- dúvida, para a iniqüidade universal como argumento. Entretanto, é
deus e gentios devem ser postos no mesmo nível; e de modo seme- manifesto que o argumento está baseado na conclusão, mais que a
lhante, o uso da história de Abraão em 4,9-25 mostra que Paulo está conclusão no argumento. As afirmações da iniqilidade universal são
interessado primariamente na condição dos gentios, em negar que os notavelmente inconsistentes. Como mostraremos em pormenores no
que são "da lei" (judeus) sejam privilegiados e em afirmar que Deus apêndice ao cap. 3, Rm 1,18-2,29 não é, de fato, argumento consistente
justifica no presente sobre a mesma base que no passado. Rm 3,29s e nem bem sucedido mesmo em favor da culpabilidade unjversal. Rm 2
4,9-25 parecem mostrar, fora de dúvida, que o cerne da argumentação repetidas vezes apresenta como real a possibilidade da justificação
não é contra o mau uso da lei por vangloriar-se de praticá-la. Mas que pela lei. Além disso, não combinam entre si as afirmações de Rm 2
dizer de 4,4? Este versículo não mostra que Paulo era contrário à reivin- e de Rm 5. Rm 2 diz que a mesma lei julga a todos; Rm 5,12-14 diz
dicação da "recompensa" como se Deus a devesse e a favor da aceitação que, durante, o período de Adão a Moisés, o pecado levou à mor-
da justificação como dom gratuito? De fato. Outros textos mostram que te mesmo sem a lei. Paulo depois diz de modo inconsistente que se
Paulo era contra o gloriar-se em qualquer outra coisa que não a cruz requer a lei para que o pecado seja levado em conta, mas que ele de
de Cristo (Gl 6,14; d. as críticas feitas à vanglória dos gentios em Rm qualquer forma foi levado em conta. A transgressão levou à conde-
• 11,17-20 e à vangloria humana em lCor 1,26-31) e que ele era a favor da nação mesmo entre Adão e Moisés (5, 14.18). A diversidade e a incon-
confiança na graça de Deus para a justificação é também fora de dúvida sistência das afirmações da iniqüidade universal, especia lmente o
(isso também em Rm 3,24). Aí, no entanto, não há nenhuma indicação fato de Paulo associá-la à lei e ao mesmo tempo declarar que ela foi
de que Pau lo tenha pensado que a lei falhara porque a sua observância a cond ição humana independentemente da lei, levam à conclusão de
levaria à atitude errônea ou de que a sua oposição à vanglória explique q~e a .d.ific~d~de de praticar a lei não é o fundamento da tese de que
sua afirmação de que a justificação não é pela lei. Todo o raciocínio de a JUStificaçao e pela fé. O argumento de Paulo parece ser indutivo
Rm 3,27-4,25 refere-se não à atitude de autojustificação, mas ao plano e empírico, mas é evidente que as várias afirmações da iniqüidade
divino de salvação, que é definido claramente na história de Abraão e humana são argu~entos a favor de posição à qual Paulo chegou por
agora é posto ao alcance dos que têm fé em Cristo, sem distinção. algum outro motivo. Rm 1,18-2,9 e Rm 5 não levam à conclusão de
64 CAJ'ÍTLLO 1 A LEI 1 ÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 65
que o fundamento da tese paulina seja a incapacidade humana de receberam, a saber, a justiça baseada na fé. Mas Israel, procurando lei
observar a le.i.111 que levasse à justiça, não conseguiu praticnr a lei. Por quê? Porque a pro-
curavam como se fosse baseada não na fé, e sim nas obras. Conforme
Rm 9,30-10,13. A argumentação de Paulo em Rm 9-11, no que concerne esse modo de compreender o versículo, o argun1ento é que se Isr ael
à lei, também se baseia na sua visão dos fatos da soteriologia Para o tivesse procurado a lei de modo diferente,~ não como atos exteriores a
objetivo da presente análise, consideraremos apenas Rm 9,30-10,13. serem feitos para estabelecer a autojustilicação, mas confiando na gra-
ça de Deus, o cumprimento da lei concederia a justificação - indepen-
Esta passagem, ou parte dela, à primeira vista oferece a melhor pro- dentemente de Cristo.
va de que a argumentação de Paulo contra a lei seja realmente contra A primeira dificuldade, embora relativamente pequena, nessa in-
um modo legalístico de observá-la. Além do mais, esse trecho tem sido terpretação de CRANFIELD é entender o verbo ephthasen, comumente tra-
usado para provar que Paulo acusa o judaísmo, ou pelo menos os judeus duzido por "alcançar" ou "conseguir", como se significasse "cumprir".95
não-cristãos, de legalismo. Esse modo de ver pode ser fundamentado A principal dificuldade, porém, é que o resto do argumento de Paulo
numa plausível leitura de 9,30-32a e enfatizando ten idian em 10,3. nesta secção lhe é contrário.
A tradução d e 9,30s constitui dificuldade bem conhecida. Traduzido Antes de tudo, devemos observar que Rm 9,30-33 é o começo de
mais ou menos literalmente, o texto diz: "Os gentios, embora não pro- di cussão que termina em 10,21. Ao passo que não há clara ruptura
curassem a justiça, alcançaram a justiça, isto é, a justiça da fé; ao passo entre a "restante" passagem precedente e 9,30, a pergunta "que dire-
que Israel, embora procurasse uma lei de justiça, não conseguiu a lei". mos, então" marca o início de nova fase na argumentação. }OHANNFS
O problema está na última frase. Qual é exatamente a falta de Israel? Mu 'CK, por exemplo, considerou 9,30-10,21 como a secção central dos
Que eles não tenham conseguido a justiça pela lei, ou que não conse- caps. 9-11. Esta secção "serve para explicar o modo de sa lvação inau-
gufram cumprir a lei? O texto típico da koiné traz " lei de justiça" em gurado por Deus em Cristo - a justificação pela fé - e para esclarecer
vez de "lei" e assim resolve o problema; e muitos autores interpretam que Deus nunca se cansa de lançar o apelo à salvação, apelo este que
o texto afirmando que se deve subentender "de justiça" ou "esta lei".in inclui Israel".%Muitos outros autores têm observado a conexão de 9,30-
Neste caso, "justiça" é o complemento do verbo final. 33 com o que se segue.97 Sem tentar ilustrar em pormenores a estrutura
C. E. B. CRANFIELD argumentou fortemente contra esse aperfeiçoa- da passagem, precisamos apenas notar que a interpretação de 9,30-32
mento do texto pelo acréscimo de termo que modifique a última pa- p recisa ter sentido d entro do contexto do que se segue.
lavra, "lei".llJ Se se tivesse de aceitar este ponto e e 9,30-32a não fosse
seguido de 9,30b-10,13, seu modo de entender esse difícil texto seria o
'4.lIbid., p. 509. Assim também C. K. BARRETT, "Romans 9:30-10:21", in Essays 011 Paul
melhor possível: alguns gentios não procuraram a justiça e no entanto a (Filadélfia: Westminster Press, 1982), p. 143.
3
" Notar a tradução da RSV: "did not s ucceed in fulfilling that law [não conseguiu
cumprir essa lei]". Sobre ep11tlmsen, ver a análise que C. H. Dooo faz de Mt 12,28;
1
" Cf. PP}, pp. 47.ts. Lc 11 ,20: 7711! Parables of tlie Kingdom, ed. rev. (Lond res: William ColJins Sons, 1961),
"2 Assim, p. e :\., SruHL\IAOfER, " Das Gesetz a1s Thema biblischer Theologie", in ZTK p. 29. Sobre a diferença entre a interpretação de CIVWFIELD e s ua própria tradução,
75 (1978): 276 ("esta lei"); HAH~, " Das Geser~esverstandnis", p. 50 (esta nomos ver n. 127, adiante.
dikniosy11t:s), KAs~lAN, , Romans, p. 277 ("não atingiram tal Lei") (o texto alemão "" Mu!\CK, Christ a11d Israel pp. 78s. Não posso seguir M UNO< e m supor que 9,30-10,4
[Tübingen: J. C. B. Mohr - Paul Siebeck -, 1974], p. 267, traz: "drang jedoch zu e refere à vida terrestre de Jesus e que 10,5--21 refere-se à presente situação de
[solchcml Gesetz nicht vor"); W1tCJ<El\:S, " Abfass ungszwcck", p. 163 (parafraseia: Paulo.
Is rael não atingiu sua meta, a justificação); Rio lt\RDSO~, /srnel, p. 133 ("Israel estava ~,. Cf. ZELLER, julfe11 und Heiden, p . 122: 9,30 é "enigmático", mas 9,30-33 é prelúdio
buscando, mas não atingiu o que buscava"). ao cap. 10. Luz (Gescl1icl1tsverstii11d11is, p. 31) propõe correlação muito estreita entre
"3 C. E. B. CRANllEI o, Tlze Epistlc to t/ie Roma11s, vol. 2 (Edinburgh: T. & T. Oark, 1979), 9,30-33e 10,1-3, descrevendo-os como paralelos. Ambos tendem para Cristo como
PP· 504-6. o ponto decisivo que determina quem recebe a salvação.
66 CAPiTUt.O 1 A LEJ NÃO É EXIGÊNCIA PARA ABRAÇAR A FÉ 67

A seqüência imediata esclarece a afirmação de Paulo de que Israel judeu com base na observância da lei. 101 Gom outras palavras, "a justiça
procurou seu objetivo não por meio da fé, e sim por meio das obras: deles" significa "aquela justiça que só os judeus têm o privilégio de obter"
tropeçaram na pedra de trop eço que Deus ("eu", a citação combinada e não "n autojustificação que consiste em o indivíduo apresentar seus méri-
de 9,33) colocara em Sião. Se tivessem acreditado nela, não seriam con- tos como reivindicação perante Deus". O argumento é cristológico e está
fundidos (9,33b). A mais simples interpretação do sentido da citação, e cons truído em tomo do principio de igualdade entre judeus e gentios.
a que geralmente se aceita, provavelmente é correta: a "p edra de tro- Rm 10,1-3, sem dúv ida, tem sido entendido como confirmação da
; ' peço" é Cristo e os que nele crêem não ficam confundidos.98 Assim, a tese de que a objeção de Paulo à lei é que esta leva à autojustilicação.
explicação do "não pela fé, mas pelas obras" é: "eles não creram em Assim, ao falar sobre o "zelo", HERMAN RrooERBOS comenta: "O zelo pela
Cristo", e não: "eles indevidamente tentaram a ju stificação e ao tentá-la lei pode alienar o homem inteiramente de Deus e tem precisamente o
alcançaram apenas a autojustificação". O erro de Israel não é não obe- efeito de fazer dele pecador".1º2 Assim ele interpreta a expressão "a jus-
decer à lei do modo correto, mas não ter fé em Cristo.99 tiça deles": "Já é fundamentalmente pecado querer assegurar para si a
E continua essa linha de raciocínio. Israel fa lha não quanto ao justificação e a vida; aliás, este é o pecado humano por antonomásia".1º3
modo como o objetivo é buscado - zelosamente, e Paulo aprova o zelo BEKER traz uma paráfrase igualmente generalizada da idéia de Paulo:
no sentido de "fervor"100 - , mas porque o objetivo era por ignorância
percebido erradamente. Não souberam da justiça de Deus e buscaram Embora eu esteja "confessionalmente" e publicamente engajado
com zelo no serviço de Deus e do próximo, secretamente estou esforçan-
a própria (10,3). O contraste entre a própria justiça e a de Deus é expli-
do-me por minha própria justificação (Rm 10,3). O homem sob a lei é, do
cado no v. 4: Cristo é o fim da lei, de forma que haja justiça para todos ponto de vista da soberania de Cristo, o homo incurvatus in se (Lutero).104
os que têm fé. Aí Paulo repete um dos principais temas de Rm 3-4: que
a justiça de Deus, por meio de Cristo, está ao alcance de todos com base Devo confessar que julgo desconcertante tal tipo de interpretação.
na fé ao mesmo nível. Se a justiça de Deus é a justiça que é p ela fé em Paulo não diz nada que remotamente se aproxime desta interpreta-
Cristo e está ao alcance do gentio corno do judeu, a justiça judaica que ção Individualizada e generalizada do texto. Não identifica "zelo" com
era zelosamente procurada é a justiça, que está ao alcance apenas do "pecado': mas, antes, concede que isto é crédito para os judeus, que,
apesar dele, miram o alvo errado. Ten idian em 10,3 é indubitavelmente
a justiça "deles': como observamos acima, e não a "minha". O con-
98
P AUL MEYER apresentou uma alternativa para esse modo de entender 9,32b-33 (ver trário da justiça "deles", que se atinge pela lei, é "a jus tiça de Deus",
"Romans 10:4 and the End of the Law", in The Divi11e He/111smn11 [ ova lorque: manifestamente a justiça "verdadeira",105 que tem duas características:
KTAV, 19801, p . 64). A pedra de tropeço é a Torá, que desencaminha (d . Rm 7).
vem pela fé e é acessível a todos (10,4).106 A justiça "deles", então, não é
"Crer nele" refere-se à fé em Deus, e o raciocínio de Paulo é mais teocêntrico que
cristocêntrico. Para encontrar Cristo em 9,33, alega MEYER, "deve-se... simplesmen- caracterizada como sendo autojustificação, mas, antes, como sendo a
te ler Paulo antecipando ai a menção que faz de Cristo em 10,4". Numa carta, ele justiça reservada aos seguidores da lei.107
me fez observar que pisteuein epi (na citação do v. 33) não é o uso regular de Paulo
e disse que o uso de pisteuein talvez ainda não se tivesse cristalizado, de modo a
referir-se apenas à fé em Cristo, dado que encontra apoio em Rm 4, 16s e 10,9b. 101 Cf. VAN D OLM EN, Tlreologie des Gesetzes, p. 127.
Concordo plenamente com as observações sobre pisteuein em geral e pisteuei11 epi 1m RrooERBOS, Paul, p. 139.
em particular, mas a leitura mais simples d o presente texto é entender " pedra" IOJ fbid., p. 142.
como antecedente de autõi e dizer que ambos se referem a Cristo. É embaraçoso, l i).! B EKER, Paul the Apostle, p. 247. 0. p. 106.

com o M EYER reconhece, supor que litho11 e autõi se referem a dois antecedentes ios Sobre as duas ju stiças, ver mais adiante, pp. 67-70.
diversos. Ul& a. H OWARD, Crisis, P· 76.
'l9 RÃISÃNEN, "Legalism and Salvation by the Law", p. 71. 107 Cf. GASrON, " Paul and the Torah", p. 66:" 'A jus tiça deles' não significa que os
100
a. 2Cor 9,2. judeus procuravam justificar-se por seus próprios a tos num desafio ao Deus da
68 CAPÍTULO 1 A LEJ NÃO É EXlGÊNClA PARA ABRAÇAR A FÉ 69

Talvez Rm 10,4 tenha sido objeto de tanta atenção quanto nenhum objetivo da lei... levar à justificação todo aquele que crê". Soa assim
outro versículo. O debate se concentra sobretudo em torno de feios, que a sua paráfrase do verso inteiro: "Pois a intenção e o objetivo da lei,
pode significar "meta" ou "fim". Ambas as interpretações podem ser levar à justificação todo aquele que crê, não é outro senão Cristo".' 10
apoiadas por outros textos paulinos. A tese de Paulo de que os cristãos F RANZ Muss ER também liga eis dikaiOSlJnên diretamente com te/os, mas
já não estão sob a lei (Rm 6,15; 7,4; Gl 2,19) poderia facilmente redundar para ele te/os significa "fim". É esta a sua tradução: "Christus (ist) des
numa afirmação sua de que a lei chegou ao fim. O fato de a lei ter a Gesetzes Ende zur Gerchtigkeit für jeden, der glaube'.m Na mente de
' f função de manter o povo na escravidão de modo que pudesse ser salvo MussNER, isso significa que Cristo é o fim da lei para a justificação dos
pela fé (Gl 3,23s) poderia sem dificuldade levar a afirmar que Cristo que crêem, ao passo que fica aberta a possíbilidade de Israel, sem ter
era a meta para a qual a lei apontava. Ademais, para complicar a ques- fé, ser justificado pela lei. Cristo é o fim da lei com respeito à justifica-
tão, pode-se observar que essas duas interpretações de telos em 10,4 ção dos cristãos, mas não necessariamente dos judeus. 112
não se excluem mutuamente. Cristo pode ter ao mesmo tempo posto Nem o estudo do vocabulário nem considerações de ordem gra-
fim à lei (para os cristãos) e realizado seu objetivo. matical ou sintática produzem resultados inquestionáveis. Os autores
Inclino-me a dizer que te/os em 10,4 significa primariamente "fim", continuarão interpretando esse versículo de acordo com sua compreen-
mas a questão não é decisiva para entender o tema geral. Em todo caso, são geral da lei e da justificação em Paulo e em conformidade com sua
a característica distintiva da justiça que cristo trouxe transparece nas construção do contexto imediato. O mais que podemos fazer aqui é
palavras finais do versículo: "para todos os que crêem". Para entender o indicar a leitura que adotamos do versículo e as razões para a escolha
que precisamente Paulo quis dizer, é importante, porém, compreender dessa leitura. Em primeiro lugar, parece provável que eis dikaiosynên
a força da expressão eis dikaiosynên, "para a justiça".108 Não se trata de seja final ou consecutivo, "com vistas a" ou "resultando em". Podemos
frase final, que Paulo usa em outro lugar, quando tenta esclarecer a citar muitos textos em apoio dessa interpretação de eis: Rm 5,18, eis ka-
relação entre a lei, de um lado, e a fé e a justiça, do outro (Rm 5,20s; Gl takrimn, eis dikaiõsin zoes; Fl 1,19, eis sõtêrian; Rm 10,1, eis sõtêrian; 10,10,
3,22.24).109 eis dikaiõsynen, eis sõtêrian. 113 Em segundo lugar, é improvável que eis
O paralelo mais próximo é Rm 3,22, "a justiça de Deus que ope- dikaiosynen modifique apenas telos ou nomou (este último significaria
ra pela fé em Cristo em favor de todos os que crêem" (eis pantas tous que Cristo é o fim da lei como caminho para a justificação, mas não sob
pisteounta). Esse versículo, não obstante a semelhança, não resolve o outros aspectos). 114 l<ÃSEMANN e outros têm razão ao entenderem a frase
problema de eis dikaiosynên em 10,4. Em 3,21 eis pantas é regido por
dikaiosynê. Paulo está analisando a justiça de Deus, que é "para todos 110 MEYER, "Romans 10:4 and the End of the Law", p. 68. Parece desnecessariamente
os que crêem". No entanto, o antecedente de eis dikniosynen em 10,4 não canhestro fazer de tetos o sujeito da frase e Cliristos o predicado nomina l.
é de modo algum claro. Alguns autores propõem ligá-lo diretamente 111
"Cristo éo fim da lei para a justificação de todo o que crê". Ver Mus.sNER," 'Christus
a te/os. Assim PAULO MEYER, que entende telos como "meta'~ traduz "o (ist] des Ge.setzes Ende zur Gerechtigkeit für jeden, der glaubt' (Rm 10,4)", in
Pa11l11s -Apostaf oder Apostei (Regensburg: 1977), pp. 31-44.
i 12 lbid., PP· 40-4.
113 Ver C. F. D. MouLE, An ldiom Book of Nf:w Testamcnt Greek, 2A ed. (Nova Iorque:
alian ça, mas que Israel como um todo u1terpretava a justiça de Deus como se es-
tabelecesse o estado Cambridge University Press, 1959), p. 70. O próprio Mouu traduz "Cristo é um
108
Vários autores têm observado que a interpretação do versículo depende mais da fim para o legalismo a fim de se atingir a justificação'', apresentando a tradução
compreensão de eis díkniosy11ên do que de feios. Ver C. K. BARREIT, A Commentary com um " talvez".
on the Epistle to Lhe Romans (Nova Iorque: Harper & Row, 1957), pp. 197s; RICHARD 114
O. Bui.TMANl\, Tlzeology, vol. l, p. 341. CRANFIELO (Romans, vol. 2, pp. Sl 9s e n. 2)
LoxGENECJ<ER, Paul: Apostle of Liberty (Nova Iorque: Harper & Row, 1964), pp. 144-53; observa que alguns pensam que 10,4 s ignifica o fim da lei como meio de atingir a
M EYER, "Romans 10:4 and the End of the Law", p. 61, onde são apresentadas vá- justificação, mas ele nota com razão que nesse caso eis dikniosynêrz devia ser ime-
rias traduções de eis dilmiosynen. diatamente seguido de no111011. Essa construção também dificulta unir "para todo
109
Sobre o uso das cláus ulas finais, ver adian te, pp. 76. o que crê" com "para a justificação" .


70 CAPÍTULO 1 A LEI NÃO É E>.ICt"ClA PARA ABRAÇAR A FÉ 71

que começa com eis dikaiosynên como modificando toda a cláusula pre- e existe uma justificação pela fé. H UB"1ER lê até mesmo este versículo
cedente.115 Desta forma, seria este o modo de ler: Cristo é o fim da lei; corno significando que o contraste é entre dois modos de observar a
daí decorre que a justificação está ao alcance de todos os que crêem. lei. Rm 10,5, a seu ver, diz que Moisés corretamente afirmara que a lei,
Traduzindo te/os como "meta': o sentido não fica muito alterado.' 11t A quando não deturpada por atitude legalista, conduz à vida.1211 Mas um
ênfase está na afirmação de que a conseqüência ou resultado da vinda modo mais natural de ler o texto dá melhor sentido: existe uma justiça
de Cristo é que a justificação é disponível para todos os que crêem. fundada na lei, sobre a qual Moisés e creveu: "Quem [a) praticar, en-
C. K. BARRETT adota esse modo de compreender a sintaxe, mas o contrará nela a vida" (Lv 18,5). Mas, continua Paulo, a Escritura mostra
que ele acentua é á justificação: "A chave do presente texto situa-se nas que existe outra justiça, que está próxima da "palavra de fé que prega-
palavras 'realizando a justificação' (literalmente 'para a jus tificação' mos". Quando alguém reconhece Cristo como Senhor e crê de coração
- 'para' exprime objetivo, meta). Cristo é o fim da lei, tendo em vista que Deus o ressuscitou dos mortos, então este alguém será salvo (10,9s).
não a anarquia e sim a justificação".' 17 Mas o contexto parece exigir Isso é comprovado por outra passagem escriturística: " Todo aquele que
que se ponha a ênfase em "todos" e "fé". O debate começa com "Israel" (pas) nele crê não será confundido" (10,11). Depois se atinge o clímax do
e "gentios" (Rm 9,30s) e continua negando que a justiça "própria" de tema imediato: " ão há 11e11/111111a distinção entre judeu e grego. Ele é o
Israel seja idêntica a "a justiça de Deus" (10,3). Paulo continua opondo Senhor de todos (pas); suas riquezas são para todos (pas) que o invocam;
"justiça que se baseia na lei" a "justiça que se baseia na fé" (10,Ss). todo aquele que (pas) invocar o nome do Senhor será salvo" (10,12s). Isto
Assim, o ponto em discussão não é "justificação" versus "a narquia'~ é, Moisés não estava certo quando escreveu que todos os que cumprem
mas "justificação para todos pela fé" versus "justificação para os ju- a lei "viverão". Há outra ju tiça, baseada na fé, ao alcance de todos sem
deus pela lei". dis tinção, e é esta justiça que salva. A quádrupla repetição de pas (to-
Alguns, como vimos, encontram em Rm 10,4 uma distinção quanto dos), a frase "sem distinção" e o contraste explícito entre "justificação
a como a lei é observada (Cristo põe termo ao legalismo, à lei enquanto pela lei'' e "justificação pela fé" mostram sem ambigilidade a ênfase da
deturpada pela autojustificação, não à lei como tal), 118 ou quanto àque- argumentação. Podemos sintetizá-la, começando em 10,2. Os judeus
les para os quais a lei termina (Cristo acaba com a lei para "aqueles não conheceram a justiça de Deus. Eles a procuraram zelosamente,
que crêem': não necessariamente para os judeus, que podem ainda mas a compreenderam mal. Procuraram "a sua própria" justiça, que é
esperar ser justificados pela lei).' 19 A distinção de Paulo, porém, é ex- pela lei. Cristo é o fim da lei e a conseqüência é que a justificação está
pressa em termos inequívocos em 10,Ss: existe uma justificação pela lei ao alcance de todos com base na fé. Embora Moisés diga que os que
ão jus tos pela lei viverão, a própria Escritura mostra que a verdadeira
jus tificação se obtém pela fé e leva à salvação todos os que têm fé, sem
115 KAsEMA; 11., Romans, p. 283. distinção.
1111 Assim CRM.rlEl.O (Romnns. vol. 2, pp. 519s), que toma tetos como sendo "objetivo", Recentemente, discutiu-se se Paulo vincula ou não a fé exclusiva-
mas entende eis como consecutivo e iniáando frase que modifica toda a dáusuJa mente com Cristo. Uma resposta era que o pensamento de Paulo pode
• precedente, traduz: "Se Cristo é o objetivo da lei, segue-se que um estado de jus·
tiça está ao alcance d e todo aquele que crê". Embora eu discorde da interpretação
ter sido mais teocêntrico que cristocêntrico.'21 "A fé" em Rm 10,9 é "a fé
que CRAJ AU o a presenta de Rm 9,30--10,13 e do seu modo global de entender a
visão paulina da lei (a saber, que Paulo contestou apenas a deturpação legalista
da lei), acho que essa tradução de 10,4 concorda com a sintaxe e com o contexto. A opinião esboçada em Cesetz. p. 93, foi aprofundada por Hue~ER em "Der theo-
120

117 BARRETT, Roma11s. pp. 197s. logische Umgang des Paulus mil dem Alten Testament in Rõmerbrier", estudo
118 M Oliu: (n. 113); H OBNER (Geset2. pp. 118, 129). Cf. Lo'GENECKER (Paul pp. 144-53): apresentado no seminário sobre o Uso do A11tigo Testam1!11to 110 Novo. SNTS, 1980.
Paulo distingue a Lei como norma e juízo de Deus (que ele aprova) da norma como m Quanto à aplicação dessa tl>oria a Rm 4 e Rm 9-11, ver especialmente ME)Efl,
obrigação contratual (que ele ab-roga). " Romans 10:4 and the End oíthe Law", pp. 59-78,esp. pp. 67s. Para a compreensão
11 ci MvSSNEJt, n. 111, acima. desse ponto, devo agradecer por uma correspondênáa com o prof. Moa BcxFR,
72 C APÍTULO 1 A LEJ NÃO É EXIGÊ 'CIA PARA ABRAÇAR A FÉ 73

que Deus o ressuscitou dos mortos", mas isso pode implicar mais "fé dele se diz se aplica a "nós" (Rm 4,23), e não há generalização. ''A fé"
em Deus" que "fé em Cristo".122 O "Senhor" de 10,12s pode ser Deus pode ser "fé no Deus que ressuscitou Jesus" (Rm 4,24; 10,9) ou "fé em
de preferência a Cris to. Rm 4 pode ser citado em apoio ao significado Cdsto" (10,17: a fé vem pela pregação de Cristo), aparentemente sem
teocêntrico de "fé" em Paulo. 123 Os vv. 16s são especialmente surpreen- alterar o sentido. A teologia moderna tem razão ao estudar a distinção,
dentes: "os que tê_?l a fé de Abraão", do qual explicitamente se diz que
• mas provavelmente exige demais de Paulo quem busca nele uma solu-
estava em Deus. E notável que, numa frase semelhante à de 10,9, Paulo ção para este problema particular.
em 4,24 caracteriza a fé como "fé naquele que ressu scitou dos mortos Agora deve estar dara toda a seqüência do argumento em Rm 9,30-
Jesus, nosso Senhor". 10,13. Podemos exprimi-lo na forma de três proposições: (a) Israel fa-
Penso que Rm 9,30-10,13 é cristocêntrico globalmente. O fato de que lhou porque, desconhecendo a justiça de Deus, procurou a justiça que
os judeus "não se sujeitaram à justiça de Deus" se funda na afirmação só os que cumprem a lei podem alcançar; (b) a justiça de Deus está ao
de que "Cristo é o fim da lei". Isto é, a justiça de Deus se define com alca nce de todos na mesma base; (e) essa base é a fé em Cristo.116 Esses
referência a Cristo. A "palavra da fé que nós pregamos" inclui Cristo; pontos são tão claros e têm tão pouco a ver com a maneira israelita de
a profissão de fé é "jesus é Senhor" (10,8s). O conteúdo cristológico da observar a lei ou mesmo com o êxito de Israel em cumprir a lei, que nos
pregação que leva à fé é reafirmado em 10,17. permitem entender com certeza o que 9,31 quer dizer. O sentido é que
Contudo, é provavelmente erro contrapor uma à outra as interpre- lsrael não atingiu (tradução melhor, de ephthasen, do que "cumpriu")127
tações "teocêntricau e "cristológica" de Paulo. Pode-se duvidar se Paulo a única coisa que daria verdadeira justiça. Essa "única coisa" Paulo a
pôde fazer clara distinção entre "fé no Deus que se revela em Cristo" e chama enigmaticamente de nomos. Mesmo subentendendo "esta" an-
"fé em Cristo".1 24 Ao falar de Abraão, ele não especula sobre se alguém tes de nomos ("esta lei", a saber, a "lei de justiça" mencionada na frase
teve "a fé de Abraão" entre a era do próprio Abraão e a vinda de Cristo. anterior) ou a expressão "de justiça" após nomos/18 temos de dizer que
Abraão, corno observamos acima, é um tipo paradigmático.125 O que Paulo não falou precisamente o que queria dizer. O contexto exige que a última
cláusul.a de 9,31 seja mais geral do que 110111os o permite. Paulo imediata-
mente especifica o que Israel não atingiu: a justiça de Deus que vem
embora enfatize a teocentricid ade de Paulo, não usou, enquanto pude perceber,
Rm 4 e Rm 9-11 para expor sua posição (ver Pn11f the Apostle, esp. pp. 362-7). pela fé em Cristo. Usar nomos quando se quer exprimir "justificação
122
Já que Rm 10,9 é quase certamente fórm ula herdada, pode-se perguntar se d eve pela fé" é certamente curioso e o ataque de CRANFIELD contra os autores
ou não ser usado para determinar o pensamento "pessoal" de Paulo. o caso que pretendem mudar o que Paulo escreveu para que combine com o
presente, ele cita a fórmula quase como qualquer outro texto-prova no meio de que ele pensou é certamente compreensível.129 Provavelmente Paulo
uma série de textos-prova tirados d a Escritura. (Quanto ao l10ti introdutório, cf.
repetiu a palavra nomos porque ela acabava de aparecer e pensou que
Gl 3,11). Podemos perguntar aqui, como o fizemos acima (pp. 34s. se a melhor
interpretação de Paulo se faz interpretando os próprios termos do material q ue daria uma frase equilibrada. 130 Pode-se talvez observar que este não
e le cita. Já que o. nosso principal interesse é a lei, mais d o que se a "fé" é ou não
algo que sempre deve ser entendido como sendo cristologicamente de terminado,
deixo de lado por enquanto essa questão. l?o Sobre o sentido de Rm 9,30-10,21, ver também E ICHHOLZ, Pa11/11s, pp. 223s: o erro
123
MEYER, " Romans 10:4 and the End of the Law", p. 68. de LsraeJ é recusar o evangelho da fé em Cristo.
127
124
A fé é equiparada com a vinda de Cristo em Gl 3,23s, mas isso não precisa ser de- CR.ANFIELo (Roma11s, vol. 2, p. 503) traduz corretamente ep11thasen por "attained"
terminante para Rm. Q que estamos afirmando é que em Rm não se faz distinção (atingiu), embora depois interprete esse verbo como se s ignificasse que Lsrael é
entre "fé em Deus" e " fé em Cristo". culpado "porque deixou de obedecer à sua própria lei" (p. 505).
125 Acima, n. 89. Parece-me engano ler Rm 4 como se implicasse a existência contínua, ou 128 Acima, n. 92, especialmente a paráfrase de RJCHARDSO •

ao menos esporádica, de um povo de fé entre Abraão e Cristo. Davi (4,6) não é citado ll'l CRANFTELD, Romnns, vol. 2, pp. 507s. Mas também CRANFIELD acredita que no v. 31

como uma segunda pessoa histórica que também teve fé: o que é citado é um salmo depois de "Lei" deve-se entender "de justiça".
(tradicionalmente atribuído a Davi) que pronuncia uma bênção sobre os que têm fé. 130 Passei alguns meses pensando que talvez ai Paulo joga com a palavra 11omos. como
Abraão retoma imediatamente (4,9) e continua a ser lembrado de modo tipológico. faz em Rm 3).7 ("11omos de fé") e 8). ("nomos do Espírito da vida"), e que es.5e termo


74 CAPITULO 1 A LEI ÃO É EXJCÊNOA PARA ABRAÇAR A FÉ 75

seria o único caso em que o desejo de antítese equilibrada levou Paulo que Deus chamou, quer de Israel quer_ d~tre. os gentios (9,24). Nesse
a uma combinação de palavras quase incompreensível. Rm 8,10 é um contexto, a questão sobre quem possw a JUStiça e de que forma esta
caso a mais.131 A despeito das dificuldades de 9,31, porém, o sentido se obtém, deve-se considerar como questão de pertença ao povo de
do texto é claro e parece excluir a tese de que PauJo se opôs à lei por- Deus. Essa questão, por sua vez, refere-se diretamente à salvação, que
que ninguém é capaz de praticá-la ou porque os judeus procuravam é mencionada como o assunto em pauta em 10,1 e como o resultado
cumpri-la de modo errado. Paulo está analisando o que ele considera da fé em 10,13. Então, concluímos que a "justificação pela fé, não pela
um fato soteriológico. Sua esperança quanto aos israelitas é que sejam lei" permanece em Rm o principio de Paulo ao discutir a pertença ao
salvos, mas ele afirma enfaticamente a única base de salvação: a fé grupo dos que serão salvos.
em Cristo, que é acessível a todos sem distinção (10,11-13) e exclui a lei
como caminho para a "justificação". Filipe11ses 3,9
Antes de deixar Rm, temos de nos perguntar se em Rm 3-4 e R:m
9-10, trechos em que Paulo debateu a "justificação pela fé, não pela lei", Para sermos completos, temos de levar em conta de certa fo rma Fl
o tema é ou não "a entrada na comunidade por parte dos que serão sal- 3,9, onde aparecem os termos justiça, lei, fé. Voltaremos a Fl 3, adiant~,
vos", como foi em Gálatas. Rm não tem o caráter polêmico de Gl, onde no cap. 4, e aqui temos de fa zer só uma ou duas observações. Em pn-
Paulo estava contestando a imposição de nova exigência para a entrada meiro luga r, não se trata de texto onde Paulo diga que "a jus~ifi~ação
de seus gentios convertidos. Em Rm 3-4 a discussão não se exprime não é pela lei". Mais claro ainda que em Rm 9,30-10,13, ele distingue
tão explicitamente em termos de pertença ao povo de 'Deus como em duas justiças - uma pela lei, outra pela fé. A distinção é mais clar a que
Gl. A seqüência global do racioánio de Rm 3 a 5, porém, mostra que o em Rm 10,4-6 porque em Fl 3,9 o sentido óbvio é que o próprio Pau lo
tema é como fugir do poder universal do pecado (3,9) e como ganhar a tinha a justiça da lei, ao passo que em Rm 10,3 se diz que os judeus
vida eterna (5,21). Em outras palavras, o contexto geral do debate sobre buscavam essa justiça, sem afirmar expLicitamente que a encontraram,
a justificação pela fé é a passagem de um estado a outro. No trecho que mas que acabou sendo uma justiça errônea,132 que é o que Paulo diz
fala de Abraão, Paulo naturalmente coloca parte da sua argumentação dele mesmo em Fl 3,6.9. Como veremos adiante, no cap. 4, considero
em termos de pertença a um grupo: pela fé, o homem se torna descen- essa passagem extremamente reveladora da visão paulina global so-
dente ou herdeiro de Abraão (4,13s). No entanto, boa parte da termino- bre a lei. Podemos observar aqui que esse texto não serve de base nem
logia descreve não a condição para atingir a pertença a um grupo, mas para a opinião de que Paulo considerava impossível cumprir a lei, nem
o m odo de atingir a correta relação com Deus (p. ex., 4,2). para a opinião de que ele considerava errado cumpr i-la porque levava
Em R:m 9-10 é ainda mais claro que a "justiça pela fé e não pelas à autojus tificação.
Sem dúvida, o texto tem sido geralmente interpretado como se fun-

e
obras" ainda tem a ver com a passagem para o grupo dos que serão 133
salvos ou com a pertença a este. Um dos tópicos do cap. 9 é "quem per- damentasse a segunda opinião - com efeito, é uma de suas bases. A
tence a Israel?" (9,6) e a tese de Paulo é que não há equivalência entre expressão "minha justiça" (emen dikniosynen) em 3,9 é entendida como
"Israel" e os descendentes físicos de Abraão (9,7s). "Meu povo" são os "minha justiça individual, conseguida pela execução de boas obras, que
levam à vanglória". Esse modo de ver exige a fusão de F1 3,9 com Rm 3,27

em 9,31b significa pois "prinópio". Refletind o melhor, porém, e ajudado por pro-
veitoso diálogo com o prof. 5TUHL\1ACHER, persuadi-me de que em Rm 9,3lb a rn Creio q ue a melhor leitura de Rm 10,5 é que os judeus podi_am ter_ a justiça prati-
mudança de significado não é deliberada. O versículo continuará difícil, mas a cando a lei, mas que não se " vive" por ela. Mas não se preosa. U:~ esse pont~, e
melhor solução parece ser q ue Paulo quis criar um fraseado surpreendente. Fl 3,6-9 continua sendo o único lugar onde Paulo diz sem amb1gwdade que e iste
131 uma justiça que realmente se pode alcançar pela lei.
Note-se a explicação que BUl.NANJ>. dá de Rm 8,lOe tCor 6,17: "as reais dificulda-
des se devem à sua formulação aguda, retórica" (Theology, vol. J, p. 208). 133 BLLTMA.'fl\, T11eology. vol. J, pp. 266s.

- -- - - - - - - - - --
..

76 CAPÍTULO 1 A LEI NÃO É EXJGÊNOA PARA A BRAÇAR A FÉ 77

e 4,2 ("vanglória"), a explicação de "vanglória" como "vangloriar-se de se entende por "autojustificação". É a justiça que vem pela lei, portanto
seu agir individual" (Sích-Ruhmen), 134 de preferência a "vangloriar-se o resultado peculiar de ser judeu observante, o que é como tal coisa boa
da condição especial de Israel'~ e a suposição de duas idéias que Paulo ("zelo'~ Rm 10,2; "ganho", Fl 3,7), mas que se manifesta "errada" ("per-
não exprime: (a) a justiça pela lei é obra meritória que permite à pessoa da", Fl 3,7s) pela revelação da "justiça de Deus", que vem pela fé em
exigir de Deus recompensa e, assim, é negação da graça; (b) essa justiça Cristo.
é evidentemente algo errado. Acompanha essa surpreendente leitura À luz de Rm 10,4-6 e especialmente de Fl 3,9, também se adquire
a suposição, implícita ou explícita, de que Paulo acusava o judaísmo importante visão do uso paulino da raiz dik- Nos outros textos, Paulo
de levar a esse lamentável estado de coisas.135 A referência ao "confiar diz que ninguém é justificado por cumprir a lei; nesses dois, ele faz
na carne" em Fl 3,3s136 favorece a união de Fl 3,3-11 com Rm 3,27 e 4,2. distinção entre duas justiças: a justiça da lei e a justiça de Deus (ou
Além disso, Paulo diz que sua anterior confiança na carne era em par- que vem de Deus), a qual vem pela fé em Cristo. Parece honesto con-
te na sua condição (de circuncidado, israelita, benjaminita) e em parte cluir: afirmar que a justificação não é pela lei significa que n verdadeira
no seu comportamento (zeloso e irrepreensíveD. Assim, pode-se Jazer justificação não é pela lei. Acho simples a explicação do uso paulino
crer que Paulo acusasse o judaísmo, citando seu caso como exemplo, dos termos. Paulo sabe que o termo mais comum no judaísmo para a
da atitude de vangloriosa autojustificação. manutenção do estado correto é "justo". Fl 3 mostra que ele está pronto
Essa linJ1a de interpretação precisamente se apresenta tanto mais a admitir que os judeus observantes - ele é um exemplo - têm essa
convincente devido a duas suposições: a oposição à autojustificação justiça. Nos termos familiares ao judaísmo, alguém é introduzido na
faz parte da fé cristã e, portanto, Paulo tinha de mencioná-la; a própria aliança pela eleição gratuita de Deus; permanece nela observando a
literatura judaica mostra o judaísmo como religião de autojustificação lei e pedindo perdão pela transgressão; esse alguém é "justo pela lei".
legalista;137 por isso, quando Paulo fala de sua confiança em sua vida Paulo, entretanto, usa a forma passiva de dikaiowz para significar "ser
passada, ele deve ter pensado nesta atitude. transferido do estado de pecado à vida nova de Cristo". Os que rea-
Mas essa interpretação tradicional não é confirmada por simples lei- lizam essa passagem têm "a justiça de Deus''. Então ele pode dizer,
tura do texto. Paulo não diz que gloriar-se da sua condição e do seu com- como diz em Gl e em algumas passagens de Rm, que ninguém é "justi-
portamento era errado porque gloriar-se é atitude errada, mas diz que se ficado" pela lei (seu uso distintivo do verbo na voz passiva), mas pode
gloriava de coisas que eram lucro. Elas se tornaram perda porque, neste seu dizer também que os que têm a justiça que vem pela observância da lei
m undo de tudo ou nada, não há meio-termo. A crítica que faz à sua vida (significado comum no judaísmo) não têm a justiça de Deus, a saber, a
pregressa não é que ele fosse culpado do pecado de autojustificação, mas verdadeira justiça.
que ele punha confiança em algo que não a fé em Jesus Cristo. Paulo também pensou, como acima dissemos e como ficará mais

e
Assim, "a minha justiça" em Fl 3,9 é de fato, como se costuma di- claro adiante, no cap. 3, que os cristãos deveriam comportar-se de
zer, o mesmo que "a justiça deles" em Rm 10,3. Mas não é o que hoje modo correto para manter sua nova condição. Ordinariamente não
usa a raiz dik- para tal comportamento, e sim uma variedade de ter-
134
Tomo o termo de H OBNER, Gesetz, pp. 93-104. Hoe~, porém, observando que Fl
mos, muitos dos quais tirados da linguagem bíblica da pureza, como
é d ifícil d e d atar (p. 105), deixa-a amplamente fora de consideração. A fusão de "irreprováveis".138
"minha justiça" em Fl com "gloriar-se" em Rrn é evidente em 13ULTMA~, Theology,
vol. 1, p. 267.
135 138
Ver PP}, pp. 2-6; 549-51. Sobre essa distinção entre termos de pureza para o comportamento e termos de-
I)(, Ver R u OOLF Bu LTMANN, "Romans 7 and the Anthropology of Paul", in Existe11ce rivados d a raiz dik- para a passagem, ver PP}, esp. pp. 544-6; sobre cada conjunto
n11d Faith: Shorter Writings of Rudolf Bult111an11 (CleveJand e Nova Iorque: World de termos: PP}, pp. 450-3 (comportamento); 470-2, 493-5 (dik-). Ver recentemen te
Publishing Co., Meridian Books, 1960), pp. 147-57. MIGiAEL N EWTo -.., "The Concept of Purity at Qumran and in the Letters of Paul"
137
PP}, pnssim, esp. pp. 41 9-23, 426s, 550. (tese de doutorado, Hamilton, Ontario: McMaster University, 1980). A distinção
78 CAPÍTULO 1 A LEI NÃO É EXIG~ 1ClA PARA ABRAÇAR A FÉ 79

Conclusão: não pela lei final. O contexto soteriológico é também evidente em Fl 3, especial-
mente no v. 11.
Agora estamos prontos para ver que conclusões se podem tirar Quanto à identidade daqueles contra quem Paulo diz "não pelas
dos textos em que Paulo diz não se poder ser justificado pela lei. A obras da lei", vimos que o ataque mordaz de Gl refere-se não ao ju-
primeira conclusão é confirmar a observação inicial. O assunto é como daísmo segundo seus próprios termos, mas a uma posição cristã. Não
passar do estado de pecado e de condenação ao estado que é o requi- obstante, Paulo aplica o princípio também ao judaísmo, primeiro em
sito para a salvação final. 139 Já que Paulo imagina os que serão saJvos GJ 2,lSs, depois de modo mais completo em Rm 3-4; 9-11. A aplicação
como constituindo grupo que ele designa de vários modos, denominei ao judaísmo, porém, não é contra suposta tese judaica de que se alcan-
esse tópico "como entrar no grupo dos que serão salvos". O que Paulo ça a justificação com certo número de boas obras. Na frase "não pelas
diz sobre isso, no tocante à Lei, é que "não é med iante a observância obras da lei" a ênfase não está na palavra obras abstratamente entendi-
da Lei". da, mas na lei, a saber, na lei mosaica. O raciocínio e que não se precisa
Assim, efetivamente, o tema é soteriológico, embora sempre se ser judeu para ser "justo" e é então contra a típica teoria judaica d~ que
deva respeitar o costume próprio de Paulo de reservar a raiz sõzõ/sõter abraçar e viver a lei é sinal e requisito de condição privilegiada. E esta
para a salvação final. 140 Rm 3-4, repetimos, integra o debate sobre como a posição que, conforme sabemos, independentemente de Paulo, cnracterizou o
livrar-se do poder do pecado e como atingir a vida eterna (3,9; 5,20). judaísmo 141 e é a posição que Paulo atnca. 142
Em 4,13 a promessa a Abraão é que ele haveria de herdar "o mundo", Em outras palavras, a expressão paulina "não pelas obras da lei"
onde "o mundo" quase certamente significa, na terminologia judaica, mostra que Paulo chegou a outra visão do plano divino de salvação,
"o mundo vindouro". O significado soteriológico de "justificados pela diferente da do judaísmo não-cristão. Nunca foi intenção de Deus, en-
fé, não pela lei" é explicitamente afirmado em Rm 9-10, onde sõterin sina ele, que o homem devesse aceitar a lei para se tornar um dos elei-
aparece em 10,1.10 e sõzõ em 10,9. Gl é notável pela ausência da lingua- tos. Embora plenamente evidente agora que Cristo veio, a intenção de
gem relativa ao fim dos tempos, mas o tema predominante do cap. 3 é Deus de salvar, tomando por base a fé e não a lei, estava previamente
como tom ar-se descendente de Abraão, e a razão pa ra debater isso é a anunciada na Escritura.143 Exemplo disso é acima de tudo Abraão, que
tácita suposição de que os verdadeiros descendentes de Abraão serão foi escolhido sem ter aceito a lei.
salvos. Em 5,5 se vê que o objetivo que se tem em mente é a salvação: De fnto, isto é ataque no modo tradicional de entender a aliança e n eleição,
a "esperança da justiça" com muita probabilidade se refere ao juízo conforme o qual aceitar a lei significava aceitar a aliança.

H1 Ver, p. ex., a análise da relação da aliança com os mandamentos em PP}. pp. 81-4,
• não é absoluta. Em lCor 6, 11 a terminologia da pureza se junta aos termos deriva- e o sumário, pp. 419-22.
dos da raiz dik- para descrever a passagem da vida pagã para a cristã. °' Alguns recensores de PP) indagaram por que não aceito a crítica que Pau lo faz
12

i:w Em F1 3 Paulo não usa forma passiva de dikaio1111, e o verbo que indica a passagem ao judaísmo como argumento para as características do judaísmo (p. ex., a re-
' de um estado para o outro é kerdésõ, "ganhar". "Em Cristo" ele tem "a justiça que censão de W. H ORBURY em Expository Times 96 (1979]: 11 6-18). Esp ero esclarecer
vem de Deus", mas aí o termo justiça ainda não é usado para designar o compor- que, a meu ver, a crítica de Paulo ao judaísmo, devidamente entendida,_corres-
tamento apropriado para permanecer em Cristo, mas antes o que se ganha com a ponde ao judaísmo conforme se manifesta em s ua própria literatura. E este o
passagem. sjgnificado da minha observação prévia de que o verdadeiro ataque de Paulo
140
Essa é uma observação comum nos estudos paulinos: ver PP}, pp. 449s e as notas. refere-se à adequação da aliança judaica (ou do conceito de eleição nadonal):
A afirmação é repetida aqui porque um recensor não percebeu a distinção entre a "Fulfilling the Law", p. 124; PP/, pp. 551s. B EKER (Paul the Apostle, pp. 87s) aceita
presente passagem para o grupo dos que serão salvos e a própria salvação futura, essa teoria, inclusive a expressão "norrusmo da aliança" para o judaísmo que
e daí nasceu sua principal crítica a PP/: que eu analisava a soteriologja como um Paulo rejeita.
ponto importante das cartas paulinas, ao passo que Paulo usou sõtêria e sõzõ rara- 143 Além dos verbos em pro- de Gl 3,8 (acima, p. 43), notar também Rm 1,2; 15,4. a.,
mente. Sn.:HL\tACHER, "Erwãgungen zum Problem von Gegenwart", pp. 434s.
80 CAPÍTULO 1 A LEI ÃO É EXIGÊ. ClA PARA ABRAÇAR A FÉ 81

Com respeito à última pergunta - por que Paulo disse "não pelas eleição que ele ataca, e em outro lugar escrevi que seu verdadeiro ata-
obras da lei"-; as nossas primeiras conclusões são nega tivas. ão foi que ao judaísmo se d irecionava contra a idéia da aliança e q~e o que
porque a lei não pudesse ser praticada, nem porque segui-la leva ao ele achara errado no judaísmo era que nele faltava Cristo.'"' Talvez,
legalismo, à autojustificação ou à alien ação. A maior pa rte dos a rgu- colocando o assunto nos termos do plano divino de salvação, se for-
mentos de Paulo se baseiam na Escritura, mas é dilicil pensar que pela mulem essas idéias de modo mais preciso e compreensível. O que é
simples leitura dela ele tenha chegado à tese de que a obediência aos problemático na lei e portanto no juda ísmo, é que não dá oportunjdade
mandamentos como ta l não é o requisito para a justificação. Vemos, ao desígnio último de Deus, que é o de salvar o mundo todo p ela fé em
an tes, que ele chegou a uma posição que o levou a ler a Escritura e a Cristo e sem o privilégio concedido aos judeus mediante as promessas,
entender o pla no divino sob luz nova.1+1 as alianças e a lei.'48
as passagens até aqui consideradas, vimos dois princípios que Até aqui, pois, encontramos esta resposta à pergunta por que Paulo
dominam os debates de Paulo. Um eu chamei de plano d ivino de sal- disse "não pelas obras da lei": aprouve a Deus que a entrada ao grupo
vação ou o fa to da soteriologia. É que Deus quis que a salvação fosse dos que são salvos seja fra nqueada a todos na base da fé em Cristo.
pela fé; então, por definjção, não é p ela lei. Além disso, essa discussão Essa pergunta pode ser desmembrad a em duas: a cristologia e a con-
está ligada com a fé em Cristo/15 de modo que igualmente se pode dição dos gentios,14'1 mas se deve sublinhar a unidade fundamental da
chamar esse princípio de princípio da cristologia. O outro princípio tese revista de Paulo.
importante é que os gentios devem ser salvos na mesma base que os A resp osta à nossa pergunta tem duas limitações que devem ser
judeus. Assim, a lei judaica enquanto tal fica excluída como meio de notadas. Em primeiro luga r, é resposta que leva em conta o número li-
salvação. Interessante é que também esse princípio pode ser chamado mitado de textos onde Paulo estuda a lei, a saber, aqueles nos quais diz
"idéia revista do plano ruvino de salvação": aprouve a Deus que os que runguém é justificado pela prática da lei e aqueles onde ele contra-
gentios fossem admitidos e que a lei e a eleição, privilégios dos judeus, põe a justiça da lei à justiça de Deus. Não são esses os únicos textos em
não contassem em vista da salvação (p. ex., Rm 3,1-9). É claro que esses que Paulo en contra "falha" na lei, e por isso não é certo que tivemos
dois pontos formam estreita unidade: aprouve a Deus que todos fossem êxito em explicar adequadamente o que Paulo acha problemático na
salvos na base da fé. A Escritura predisse que os gentios receberiam a lei e conseqüentemente no judaísmo. Em segundo lugar, até aqui nos
hera nça de Abraão na base da fé (Gl 3,8); a morte de Cristo visava tor- mantivemos no terreno da explicação exegética. O duplo motivo que
nar a inclusão dos gentios nesta mesma base (GJ 3,13s, hinn); a própria vim os para Paulo rejeitar a justificação pela lei pode também deriva r
lei foi dada com o intuito de que a salvação fosse pela fé sem depender
da lei (Gl 3,22.24, lzinn). 146 147 N. 142, acima. a. também JoH~ TOW'-'SEND, UThe Gosp el of john and the Jews", in
Isso nos fornece outro modo de definir o "ataque" de Paulo contra Anti-Semifism n11d lhe Fo1111datio11 of Cliristianity ( ova Iorque: Paulist Press, 1979),
a lei - ou mais precisamente, contra o que ele achava inadequado nela. pp. 72-97, aqui p. 75: Rm 4, GI 3-4 e F13,2-11 são demonstrações de que "a eleição
Acabei de dizer acima que é a noção do privilégio judaico e a idéia de judaica perdeu o sentido".
HS Creio que o p rof. CAIRO e eu basica men te concordamos: ver sua recensão de
PP/ em ]TS 29 (1978): 538-43, esp. p . 542. A sua formulação é esta: "Se Pa ulo
l4-I Assim, o uso que P;iu lo fa7 da Escritura é mais que engenhosa oferta de textos- foi d e fato educado no judaísmo como SANDERS entende, acreditando que Deus
prova, o que eu por inadvertência posso ter sugerido em PP/. Ver a critica de trata os eleitos com misericórd ia e os estranhos com estrita justiça, não admira
DtWIES em Paul n11d Rabbi11ic f11dnism, p. xxv. Paulo continuou ver a Escritu ra como qu e sua conversão lhe tenha aberto os olhos para a enormid ade dessa impug-
revelação da vontade de Deus, mas ele chegou a uma renovada compreensão de nação da imparcialidade de Deus", Acredito q ue CACRo não percebe u a delibe-
uma e, conseqüentemente, a uma nova leitura da ou tra. Voltaremos à questão da rada força da minha colocação de que Paulo questionava a lei (e o judaísmo)
"lei" e da "Escritura" na conclusão desse ensaio. com fu ndamento na questão dos gentios e o modo tradicional de entender a
145
Ver, acima, n. 21. aliança.
i.w. Sobre as cláusulas fi nais em GJ 3,22.24 ver mais adiante, p. 84. 1
~" PP/, p. 497.
82 CAPÍTULO 1

de fatores que ainda não vieram à tona. Quer dizer, pode haver mais
de um nível de explicação para a atitude paulina perante a lei.
A despeito dessas limitações, alguma coisa foi feita. Encontramos,
pelo menos até aqui, limitada rejeição da Lei. O ataque à justificação
pela lei é contra fazer da aceitação da lei condição para pertencer ao CAPITULO 2
grupo dos que serão salvos. As razões até agora encontradas para essa
posição podem ser imediatamente vinculadas a uma das suas convic- O OBJETIVO DA LEI
ções primárias: a salvação é acessível a todos na mesma base, a fé.

Tanto em Gl quanto em Rm, depois de afirmar que ninguém é jus-


tificado pela lei, Paulo indaga por que foi dada a lei. É essa a pergunta
de Gl 3,19 e a mesma pergunta está implicada em Rm 3,20; 4,15; 5,20;
7,7.13. Essa seqüência (ning uém é justificado pelas obras da lei; por que
então a lei foi dada? ou: qual a sua função?) mostra o caráter inteira-
mente judaico das suposições de Paulo: Deus deu a lei; deve ter feito
isso com alguma finalidade.1 A nossa seleção dessas passagens, en-
quanto tratam da função da lei, ou do seu papel na Heilsgesc/1icl1te, não
parece ser polêmica.2 Permanece problema difícil, porém, entendê-las
é descobrir sua relação com outras coisas que Paulo diz sobre a lei. Na
análise seguinte, enfoca remos dois problemas relacionados na refle-
xão que Paulo faz sobre a função da lei no plano divino de salvação:
ele lhe atribui ou não o mesmo papel e como ele relaciona estar sob a
lei com outras condições humanas antes de Cristo. Veremos também
que Rm 7,7-8,8 levanta a questão se o pensamento de Paulo sobre a lei

1 R l..OOLF B l..LTMA.'1111:,
Tlreology of the New Testament, vol. 1 (Nova Iorque: Charles
Scribner's Sons, 1951-1955), p. 263: con forme o conceito paulino de Deus, "tudo
quanto realmente é ou acontece, é ou acontece de acordo com o plano divino". Cf.
H . J. ScHOEPS, Pnul The T11eology of tlze Apostle í11 lhe Ugllt of }e-cllis/1 Religious History
(Filadélfia: Westminster Press, 1961), p. 231: "Para Paulo, todos os acontecimen-
tos do mundo são coerentes com a continuid ade de um plano divino concreto d e
ação".
2 a. ULR.Jat Luz, Dns Gescl1ic/1tsverstiind11is des PnulttS (Munique: Chr. Kaiser, 1968),
pp. 186-93. Luz nota que a questAo do significad o da lei surge apenas em contextos
históricos, citando Gl 3,19; Rm 3,20; 4,15; 5,20; 9,30-33. Ele analisa também os d i-
ferentes matizes dessas passagens. j. CltRISTIAAI\ BEKER, Paul lhe Apostle (Filad élfia:
Fortress Press, 1980), p. 243, afirma que a função da lei na história da salvação é
estudada em Rm 7,13; 5,20; 11,32; Gl 3,19-4,24. Temos de notar que Rm 11,32 não
men ciona a lei, embora ela esteja indiretamente relacionada com as afirmações d e
Paulo sobre a função da lei por meio da afirmação feita com o pronome " todos". •
84 CAPÍTULO 2 OBJETIVO DA LEI 85

está sujeito a uma explicação fundamentalmente diversa daquela dada pergunta "por que Deus co~cedeu a lei" trazem as marcas da dificul-
até aqui dade e até da tortuosidade. E bastante óbvia a razão para a dificuldade
da resposta à pergunta: como dissemos acima, ele era ju deu; pensava
Gálatas 3,19-4,7 que tudo quanto acontecia estava de acordo com a providência divina;
portanto, a lei não podia estar em oposição à vontade de Deus; mas a
A pergunta de Paulo em 3,19, ti omt ho no111os, é provocada pela afir- lei não concede a salvação.
mação de 3,18, de que a herança (n esse contexto, a h erança que promete Em termos gerais, o modo de Paulo se safar desse dilema era ligar
a salvação) não vem pela lei. A pergunta é, literalmente: "que, então, é a a lei com o pecado e atribuir-lhe lugar negativo no plano divino de
lei?", mas o contexto mostra que a frase visa primariamente pergun tar: salvação.~ Esse ponto sobressai com mais nítido con traste qu ando ob-
"por que, então, a lei foi dada?"3 Depois da negação da função positiva servamos as afirmações da vontade positiva de Deus. A Escritura en-
da lei na história da salvação (3,15-18), a pergunta natural é "qual era a tregou todas as coisas ao pecado, a fim de que a "promessa" fosse dada
fun ção da lei, já que ela não salva?" Que a pergunta p rincipal na mente com base na fé de Cristo (Gl 3,22); a lei era nosso pedagogo até Cristo,
d e Paulo seja esta, é também evidente pela resp osta que se segue. A para que fôssemos justificados pela fé (3,24).5 Daí deriva que o modo
lei foi dada por causa das transgressões e temporar iamente (3,19); ela como alguém se torna descendente de Abraão, e por tanto herdeiro da
entregou todas as coisas ao pecado (3,22); ela "nos" guardou sob tutela promessa feita a ele, é pertencer a Cristo (3,29). Nessas frases Paulo
(3,23); ela era nosso pedagogo (3,24); pode ser compa rada ao tutor de coloca o que ele pensa ser a intenção de Deus, como bem o mostram
menor (4,2.5). Essas afirmações mostram muito claramente que Paulo as cláusulas finais. A Escritura (ou lei),6 "encerrando" "todas as coisas"
está debatendo a função da lei na Het1sgeschichte e, assim, demonstram (ou "nos"), fun cionou corno parte do projeto djvino, de modo que fosse
que ao perguntar ti oun Jw nomos Paulo quer perguntar, sejam quais cumprido o plano de Deus de conceder a promessa (ou a justificação)
forem os p roblemas que os futuros gramáticos vão lhe criar, "que fina- com base na fé em Cristo.
lidade estava por detrás da doação da lei?" O modo como a lei faz isso é menos claro. A lei, diz Paulo, foi
Porém, embora seja clara a pergunta, são diliceis certos aspectos da acrescentada (depois que foi dada a promessa da herança) "por causa
resposta. As principais passagens nas quais Paulo responde à implícita das transgressões" (tõn parabaseõ11 charin, 3,19). Em 3,22 diz ele que a
lei aprisionou todas as coisas debaixo do pecado", em 3,23 que éramos
11

3
guardados sob a lei antes que viesse a fé, aprisionados até a, revela-
Quanto à gramática e ao significado de ti 01111, ver E. oi::Wrrr BLRTOI\, Tiie Epistle to
tlw Ga/atin11s (Edinburgh: T. & T. Clark, 1921), p. 187. Notar especialmente ANDREA
ção da fé vindoura, e em 3,24 que a lei era nosso pedagogo. E dilicil
VA. Dút..MEN, Die Theologie des Gesetzes hei Pn11/11s (Stuttgart Verlag Katholisches
Bibelwerk, 1968). p. 39: "o que é a lei? para que fim foi dada? que função ela tem 4 Cf. EcKERT, Verkii11dig1111g, pp. 109s.
( no plano salvífico de Deus?"; d. Frtru'z MUSSNER, Der Galaterbrief (Freiburg: Herder,
1974), p. 245; HBNRJCH Sc:HuER, Der Briefnn die Gnlater, 54 ed. (Gõttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht, 1971 ), p. 151; H. D. BETZ, Gnlntinns (Filadélfia: Fortress Press, 1979),
~ "Fosse dada" e " fôssemos justificados" são traduções melhores que " pudesse (pu-
déssemos) ser", que normalmente implica dúvida ou incerteza. Os verbos estão no
subjuntivo em grego porque a conjunção hina (para que) rege o subjuntivo. PauJo
p. 162, para q u em a pergunta é: "o que é a lei?" As passagens que BETZ cita na não tenciona exprimir dúvida alguma sobre se a promessa e a justificação vêm ou
n. 10, p. 162, como se também colocassem esta pergunta, não parecem ser verdadei- não pela fé.
ros paralelos. Trata-se de outras perguntas, como: por que a lei foi dada no deserto " Estudaremos a " lei" e a "Escritura" na conclusão da 1Parte. Aqui apenas observa-
e por que Deus deu a lei referente ao puro e ao impuro. Ver também Jost EcKERr, mos que os termos em 3,22 e 3,24 parecem sinônimos. David Lull, em sua recensào
Die urchristliche Verkiindig1111g im Streit Zwisclre11 Pnulus 1111d sei11e11 Gegnem 11ncl1 dem do comentário de BETZ sobre Gl, diz que ele gostaria de fazer uma distinção em G1
Galaterbrief (Regensburg: F. Pustet, 1971), p . 81. EcKERT afirma que PauJo indaga so- entre ''a lei judaica" e "a Escritura" (Perkins /011mnl 34 [1981]: 44-6). Não vejo ne-
bre a qualidade da lei e também sobre seu significado histórico-salvífico. Se a pergun- nhuma base para as asserções de que o livro da lei (GI 3, 10) e "a Escritura" (3,22) se
ta é "o que é a lei?", a resposta é: é algo dado por anjos. Esta mesma resposta, porém, referem, na mente de Paulo, a duas realidades diversas. Voltaremos a falar da "lei"
se funde na réplica à resposta implícita sobre sua função no plano de Deus. e da " Escritu ra " na conclusão.
86 CAPtruLO 2 O BJETIVO DA LEI 87

determinar se essas quatro afirmações sobre a função da lei são ou roostra a intenção dos anjos que deram a lei: provocar o pecado (é as-
não sinônimas. Como tal, a expressão "por causa das transgressões" sim que ele entende tõn parabaseõn charin). A intenção de Deu s é apre-
pode significar, seja "para causar transgressões': seja "para lidar com sentada em 3,22; eJe usa a má ação dos anjos e faz com que ela sirva ao
as transgressões". A leitura mais simples de 3,19a é que a lei lida com seu objetivo. A vantagem da posição d e H OBNER é dupla. Por um lado,
as transgressões até a vinda de Cristo ("a descendênda" 7. Seria tam- dá a devida importância a Gl 3,19, onde Paulo atribui o dom da lei aos
bém possível entender a lei como pedagogo em 3,24, como um mestre- anjos, por meio de um mediador, negando com isso que Deus a tenha
escola provisório que constrange.8 A imagem do tutor é elaborada em dado. Por outro, elimina a contradição interna da carta paulina, pois
4,1-7 e aí o significado da imagem se tom a mais claro. Os que estão em outros textos Paulo diz como a lei realiza a intenção de Deus. O
sob o tutor "não são melhores que os escravos". A lei como pedagogo, raciocínio de Paulo, segundo a reconstrução de H OBNER, seria este: a
então, é mais escravizadora que protetora. Assim, é compreensíveJ que própria lei visa salvar os que a cumprem (embora isso seja impossíveJ),
muitos autores entendam a frase "por causa das transgressões" em contudo os anjos que de fato deram a lei queriam provocar o pecado e
3,19 como "com o fim de causar transgressões". Essa leitura não depen- assim triunfar da humanidade; Deus remediou a situação, providen-
de inteiramente da interpretação de Gl 3,19 à luz de Rm 5,20,9 m as pode ciando a salvação de todos os que a lei condenava.
ser derivada do caráter escravizador do pedagogo (conforme interpre- Todavia, não acho convincente a posição d e HOBNER. Já observei
tado por Gl 4,2) e da frase "encerrou debaixo do pecado", em 3,22. que em Gl 3,12 Paulo cita Lv 18,5 não para concordar que a lei dá
Para o nosso objetivo, porém, não parece necessário decidir se es- a vida em teoria, mas antes para provar que a lei não se funda na
tão ou não em exata concordância entre si as afirmações de que a lei foi fé. 13 Há fortes razões a priori para não ler Gl 3,19 como se represen-
dada "por causa das transgressões': que ela "encerrou todas as coisas tasse uma posição que Paulo elaborou conscientemente e defendeu
debaixo do pecado", que "nós éramos guard ados sob a tutela da lei': sistematicamente. Teríamos de supor que, quando escreveu Gl, Paulo
que "a lei era nosso pedagogo". A linha geral do raciocínio é clara em estava preparado para negar o que aprendera e em que acreditara
cad a caso. A força constritora ou escravizadora d a lei durou até a che- por toda a vida (que Deus dera a lei), que ele estruturou o raciocínio
gada da fé (3,19; d. 4,4s) e de fato a lei foi d ada com o fim de Jevar à de Gl 3 em torno da premissa de que Deus n ão deu a lei, mas antes
justificação pela fé, nem que fosse negativamente (3,22.24). 1º "salvou" a situação depois que esta foi dada, que eJe voltou à idéia de
Hans H OBNER tentou abrandar a linha do raciocínio de Paulo, dis- que Deus dera a lei quando escreveu Rm, que ele até mudou de idéia
tinguindo entre a "intenção imanente" da lei, a intenção dos anjos que sobre quem deu a lei quando escreveu aos coríntios - que mwtos
a deram, e a intenção de Deus. 11 A intenção da própria lei, diz ele, é autores situam quase na mesma época que Gl.14 Tudo isso, ao que pa-
afirmada em Gl 3,12: os que cumprem a lei viverão por ela.12 Gl 3,19-21a rece, torna improvável a posição de H OBNER. Há outra consideração,
porém, e ainda mais signüicativa. O debate sobre Abraão é condu-
( 7
Assim, p . ex., LEA.''DER KECK, Paul a11d his Letters (Filad élfia: Fortress Press, 1979),
zido na suposição de que a lei revela o verdadeiro caminho para a
justificação e, portanto, a intenção do próprio Deus.15 Essa suposição
p. 74.
li Luu, p. ex. (n. 6, acima), acredita q ue o pedagogo "ensina o que fazer ou não
13
fazer ... recompensand o a obediência e p unindo as trans gressões". Acima, cap. 1, n . 30.
9 Cf. ECKERT, Verki111digimg, p. 82: " po r causa das transgressões" significa " para au- 14
Em toda a correspondência com Corinto, a Escritura é átada d a maneira habitual
men tar o pecado", citand o Rm 5,20; 7,7; ver também BETZ, Gnlatians, p . 165. de Paulo, como um texto que transmite a vontade ou a palavra de Deus. Ver, p . ex.,
10
Assim, p. ex., BuRToi-, Gafatia11s, pp. 196s, 201. 1Cor t,19.31; 14,21; 2Cor 6,2; 6,16-18 (supondo que o trecho é autêntico, embora
11
HANs Hoe ER, Das Gesetz bei Paulus, 2~ ed . (Gõttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, não que seja original a posição o nde se acha); 8, 15; 9,9; 10,17. Quanto à datação
1980), pp. 27-33. relativa d e Gl e das cartas aos coríntios, ver H OBNER, Gesetz, pp. 91, 157 n. 47.
12
Cf. ibid., p . 40: a lei em Gl 3,12 não é considerada como enganadora. Realmente 15 Contra a opinião de H OBNER d e q ue a lei tem uma in tenção imanen te diversa da de
podia dar a vida se alguém pudesse cumpri-la completamente. Deus, ver HElloo ~ISANEN, Paul and tl1e l.Aw. Notar também Luz, Geschiddsverstãndnis,
88 CAPÍTULO 2 OBJETIVO DA LEI 89

caracteriza não só Gl 3,6-18, mas também 4,21-31, onde Paulo cita "a Paulo não está lidando com messianismo tradicional, segundo o qual
lei" para provar sua posição.111 os judeus "justos" já são membros do povo de Deus."1 Mostra também
E muito melhor ler Gl como demonstração da profundeza do di- que ele sabe muito bem que os judeus observantes efetivamente não
lema de Paulo, dilema que reaparece em Rm, embora aí seja tratado são pecadores segundo o modelo bíblico. Em terceiro lugar, indica o
de modo um tanto diverso. Já caracterizamos esse dilema: ele acredi- motivo pelo qual a situação dos judeus se equipara à dos gentios: todos
tava que Deus dera a lei, mas ele também acreditava que a salvação é necessitam da fé em Cristo.
pela fé em Cristo e que a lei servia apenas para condenar. A negação Quando Paulo passa a falar da situação, porém, suas colocações
de que Deus ten ha dado a lei é desabafo contra a lei no calor do de- desconcertam os amantes da lógica. Cristo, diz ele, "nos" remiu - tanto
bate. Não representa real mudança de mentalidade, a qual é sistema- judeus como gentios, é claro - da maldição da lei (Gl 3,13).20 O pensa-
ticamente mantida. 1 ~ Assim, a linha principal do raciocínio de Paulo mento continua em 3,19-4,10. A Escritura encerrou "todas as coisas"
é que Deus sempre pretendeu salvar pela fé, independentemente da debaixo do pecado (3,22). "Nós" éramos guardados sob a tutela da lei
lei. Deus deu a lei, mas deu-a a fim de que ela condenasse a todos e (3,23); a lei era "nosso" pedagogo (3,24), do qual "nós" fomos libertados
assim preparasse negativamente à redenção com base na fé (3,22.24, (3,25). Depois, de modo ainda mais surpreendente, escreve: "Assim,
a cláusula final demonstra a intenção divina). A lei não foi dada para também nós, quando éramos menores, estávamos reduzidos à condi-
comunicar a vida (3,21). ção de escravos, debaixo dos stoicl1eia tou kosmml' (4,3). 21 O Filho de
Uma das mais surpreendentes características do raciocínio de Deus remiu os que estavam "sob a lei': de modo que "nós" também
Paulo é que ele coloca todos, quer judeus, quer gentios, na mesma situa- pudéssemos ser filhos (4,4s). De modo "que "tu" és herdeiro (4,7). "Vós"
ção. Isto se explica melhor, supondo que ele pensava de modo retroa- éreis escravos de deuses, que na realidade não o são (4,8). Se aceitais a
tivo, da solução à situação, e que seu pensamento quanto a esse ponto, lei, voltais à escravidão debaixo dos stoicheia (4,9). O fato é comprovado
como em muitos outros, era comandado pela convicção dominante de pela observância de tempos especiais (4,10).
que a salvação é por Cristo. Já que Cristo veio para salvar a todos, to- A condição real, evidentemente, é que os judeus estavam debaixo
dos precisam de salvação. 18 O fato de Paulo poder igualar a condição da lei, enquanto os gentios estavam sujeitos a "seres" que realmente de
do judeu com a do gentio é explicável nessa hipótese e é ao mesmo fato não são deuses. Como, então, Paulo pode dizer que "nós" estávamos
tempo a melhor prova de que Paulo não começou por analisar a condi- debaixo da lei e-com ênfase no pronome liemeis-que "n6s" éramoses-
ção humana. Este é ponto decisivo para a nossa compreensão final do cravos dos stoichein? Para dar sentido a essa extraordinária seqüência de
papel da lei no pensamento paulino. Voltaremos ao assunto. afirmações, aJguns autores têm proposto que Paulo considera a lei como
A equiparação da condição do gentio com a do judeu aparece pela um dos stoicl1ein ou que ele contava os anjos de 3,19 entre os "seres" de
primeira vez em Gl 2,15s, onde Paulo afirma que até os judeus, que -l,8.22 Mas o paralelo não resiste em nível de conceitualização explícita.
( niio são gentios pecadores, são justificados apenas (ean me) pela fé em
Jesus Cristo. Essa é afirmação extremamente reveladora. Mostra que 1
" Acima, cap. I, n. 63.
31 " os" em Gl 3,13 significa todos, judeus e gentios igualmente: FRA."2 Mu :-..lR,
''Theologische 'Wiedergutmachung'. Am Beispiel der Auslegung des Galaterbriefs",
p. 224: Paulo acreditava que a lei é de Deus e portanto tinha de perguntar por seu in Freib11rgcr Rw1dbrief26(1974): 11; Luz, Gcsd1id1t~rstã1ul11is, p. 152 (inclui os gentio-
significado. A pergunta lhe vinha da Heilsgeschid rte tradicional. cristãos); PErER vo-.: DER ÜSTE'\-SACKEN, " Das paulinische Verstãndnis des Geset7,es im
10 Em ambas as secções Paulo "prova" pela lei que a obediência à lei não é necessária. Spannungsfeld von Eschatologie und Geschichtc", in EvT113709m: 561.
17 Sobre o modo como GI 3,19s situa a lei com relação a Deus, ver o artigo rece nte d e 21 , ão é necessário entrar na discussão sobre o que eram esses sfoicl1cia. A meu ver,

T ERRA'-CE U ll..AJ\, " Pauline Midrash: The E egetical Background o f Gal. 3:19b", in GI 4,8s mostra que Paulo pensava em divindades pagãs.
/BL 99 (1980): 549-67. 22 P. ex., Bo RBc:KE, "The Law and This World according to Paul", JBL 70 (1951): 259-76:
18
PP/, pp. 442-7, esp. pp. 4745. há identidade entre os anjos de 3,19 e o sloicl1cia do cap. 4. É correta, porém, s ua

'.
90 CAPíruLo2 OBJETIVO DA LEI 91

Os stoichein de 4,3.9 são os mesm os que os seres de 4,8 (assim 4,8s: éreis a identidade da "lei" nem com "pecado" nem com "carne", assim como
escravos dos seres, como podeis agora voltar aos stoichein?) Em 4,3-5, en- 0 paralelo entre a lei e os stoic/1ein em 4,3-5 não significa que os dois se-
tretanto, stoic/1ein está em paralelismo com o a lei (éramos escravos dos jam idênticos. Vemos, no entanto, uma tendência do seu pensamento: a
stoichein, mas por seu Filho Deus remiu os que estavam sob a lei, de tendência de imaginar as coisas em termos de "ou tudo ou nada".24
modo que pudéssemos receber a adoção filial). Aí Paulo não pode estar Já que a lei não garante a herança prometida a Abraão, é compara-
pensando em termos de explícita identificação. Embora paralelo a am- da, embora não identificada, com o pecado, o poder do mal e as divin-
bos, stoicheia não pode ser ao mesmo tempo a lei e os seres (= os anjos) dades gentílicas.
que a deram. O ponto essencial do paralelismo entre os stoichein e a lei se
percebe enfocando a convicção de Paulo de que a condição do judeu e a Romanos: o objetivo da lei e sua relação com a carne, o pecado e a morte
do gentio deve ser a mesma, p ois Cristo salva a todos na mesma base. O
denominador comum é a serv idão e a equiparação da lei com os stoichein No começo desse capítulo, observamos qu e tanto em Gl quanto em
é material.23 Assim, Paulo pode passar do "nós" ao "vós" e também das Rm, depois de afirmar que a justificação não vem pela obediência à lei,
divindades gentilicas à lei. Todos precisam ser libertados por Cristo da Paulo lhe atribui outro papel no plano divino. Em Rm não faz explici-
escravidão. O argumento de que estar sob a lei é o mesmo que estar sob tamente a pergunta "por que Deus deu a lei?", mas ele dá a resposta.
os stoicheia é enfatizado pela afirmação de que ambos exigem a obser- Com efeito, ele agora considera o fato de que a lei tem função negativa,
vância de tempos especiais: aceitar a lei é materialmente o mesmo que ao mesmo tempo que fundamenta a afirmação de que a justificação
recomeçar a adorar seres que não são deuses (4,10). não é pela lei. Então, escreve que pelas obras da lei ninguém será justi-
Antes de deixar essa secção de Gl, temos de notar outro modo d e ficado perante Deus, pois (gar) pela lei vem o conhecimento do pecado
Paulo ligar a sujeição à lei com outras afirmações da condição huma- (Rm 3,20). Rm 4,15 é semelhante, embora a terminologia da justificação
na a nte rior a Cristo, modo que se toma importante tema em Rm. Ao ceda o lugar ao termo "herança": os que são "da lei" não são herdeiros,
atribuir à lei papel negativo no plano divino de salvação, ele pode in- pois (gar) a lei produz a ira. Em Rm 5,20 a afirmação de que "a lei inter-
dicar a condição humana anterior à vinda de Cristo com a expressão veio para que avultasse a falta" vem depois da frase "pela obediência
"sob o pecado" (Gl 3,22) e també m com a expressão "sob a lei" (3,23). de um só, todos se tomarão justos". A continuação em 5,21 torna ainda
Em Gl 4,21-31 há um paralelo entre estar sob a lei e "nascer sob a lei" mais claro que Paulo está falando do plano divino de salvação, pois
e o paralelo se repete com outros termos em 5,16-18 (notar Espírito/ se afirma o desígnio final de Deus: "para que (hina), como imperou o
carne em 5,16s e Espírito/ lei em 5,18). Esses paralelos não estabelecem pecado na morte, assim també m imperasse a graça por meio da justiça,
para a vida eterna ..." Como em Gl 3,22.24, as cláusulas finais em Rm

( 23
observação d e que há identidade essencial entre o ''nós" e o "vós" "nessa secção.
Esses pronomes não se referem a grupos diferentes.
Assim J. A. FrrzMYER, "Saint Paul and the Law'', in The /urist 27 (1967): 27: "equiva-
5,20s são significativas: o desígnio último da ação de Deus era prepa-
rar para a salvação; a lei foi dada para aumentar a transgressão, com a
finalidade de que por fim reinasse a graça.
lente a um retorno à (mesma! escravidão"; Ec!<ERT, Verkii11dig11ng, pp. 93, 110, 128,
232. RÃISÃNEN (Paul a11d lhe Law) observa que os anjos doadores da lei não estão Temos de observar que essas três afirmações não são sinônimas,
em exato paralelismo com os stoicheia. Paulo, diz RÃISÃNE.'I, não refletiu através da embora possam ser complementárias. 25 Para o nosso presente objetivo,
lógica de seu argumento, pois a solução é mais clara que o problema. E conclui:
"A idéia de Paulo em Gl é a colocação polêmica de sugerir que a condição hu-
mana sob a lei é idêntica à s ua condição sob os eJementos". Cf. também o estudo 2
~ a. Ec!<ERT, Verkii11dig11ng, pp. 25s: o pensamento de Paulo se caracteriza como um
sobre lei e stoicheia em GEORGE H OWARD, Crisis in Gnlatia (Nova Iorque: Cambridge Kontrastde11ke11; raramente há uma posição intermediária. Assim também RA1sAsD.,
University Press, 1979), pp. 66-78. Ele nota que seria incorreto isolar uma suposta Paul a11d tire Law.
característica de cada uma, tal como o legalismo ou o ritualismo, como se fosse o 25
As diferentes respostas em Rm à pergunta sobre a função da lei são habilmente tra-
objeto da oposição de Paulo e como se fornecesse um denominador comum. tadas por FERDINA''D H Aii,, " Das Gesetzverstãndnis im Rõmer- und Galaterbrief',
1 •
92 CAPÍTUL02 OBJETIVO DA LEJ 93

porém, é menos útil tentar achar conexão precisa entre dar a conhecer Rin 7,7-8,8 demonstra diferença tão marcante das outras passagens em
o pecado e "aumentar a transgressão'~ do que repetir a observação que Paulo tenta formular a relação entre a lei e o plano divino de sal-
básica de que em todas as três passagens a lei exerce função negativa vação, que nos obriga a repensar o que até agora estabelecemos como
na história da salvação. a teoria de Paulo. Para uma visão do problema, ternos de considerar o
As afirmações sobre a lei em Rm 3,20; 4,25 e 5,20s provavelmente que Paulo diz sobre a lei e o pecado, após afirmar que a lei "aumenta
espantaram os primeiros leitores de Rm por serem ao menos um pouco 0 pecado" (5,20) e antes de afirmar que o pecado, não Deus, se serviu
surpreendentes. J. A. T. ROBINSON observou que não há logo em seguida da lei (7,7-13).
um raciocínio ou uma explicação. Rm 3,20 é "dogmático (quase axio- Em Rm 6 Paulo descreve o estado humano pré-cristão como escra-
mático)". "É a primeira de uma série de afirmações não questionadas vidão ao pecado, do qual se pode escapar participando da morte de
sobre o tema da lei, que Paulo não aprofunda nem justifica até o cap. Cristo (esp. 6,5-11). Em 6,14 ele escreve que "o pecado não terá sobre vós
7". Roa1NsoN caracteriza Rm 5,20 como "outro obiter dictum".11> Dir-se-ia nenhum domínio, porque não estais debaixo da lei, mas sob a graça".
que a conexão entre lei e pecado que vimos em Gl tornara-se, quando Neste ponto, PauJo não explica por que não estar sob a lei significa não
Paulo escreveu Rm, tão familia r a ele, que lhe foi possível, ao menos estar sob o pecado, mas é antes estar sob a graça. Esse versículo parece
nos primeiros capítulos, simplesmente afirmá-la sem mais. Temos uma aludir a 5,20s, onde a graça também é descrita como o contrário do
vantagem sobre os primeiros leitores de Rm: nós temos Gl e, se lermos pecado, que é aumentado pela lei. Em 6,14, contudo, o pecado aparece
primeiro Gl, não parecem tão surpreendentes as três breves passagens mais como poder do que como "falta" (5,20), o que se harmoniza bem
em Rm onde se relaciona o pecado com a lei. Resta então, porém, ver com o tema global de Rm 6: o pecado é poder ao qual se morre (6,10s)
como Paulo analisa em Rm a relação entre lei e pecado. e, mais importante, é poder ao qual se pode entregar os próprios mem-
A função atribuída à lei em Rm 5,20 ("para que avultasse a falta") bros e como ta] está situado em direta oposição a Deus, quase como
encontra eco numa cláusula em 7,13 ("para que o pecado, através do um poder equivalente (6,13: "não entregueis vossos membros ao peca-
preceito, aparecesse em toda a sua virulência"), ao passo que 3,20 ("pela do ... mas oferecei-vos a Deus"). Estar sob a lei é então posto em parale-
lei vem o conhecimento do pecado") encontra certa contrapartida em lo com estar sob o pecado: o pecado não domina os que não estão sob
outra cláusula de 7,13 ("para o pecado se revelar [como tal]"). Também a lei (6,10), mas "nós" não estamos sob a lei, mas sob a graça (6,15). Nos
em Rm 7,7 se faz uma relação entre a lei e o conhecimento do pecado versículos seguintes, o pecado aparece como o poder escravizador que
("eu não conheci o pecado senão através da lei"). Não obstante essas é o oposto da justiça, mais que de Deus diretamente (6,16-18).
semelhanças com o que veio antes, os textos de Rm 7 são bem diferen- De novo se fala da lei em 7,1-6. A analogia que Paulo emprega em
tes. As cláusulas finais de 7,13 não dizem que Deus fez produzir bom 7,2s é, como bem se sabe, imperfeita. Mas a idéia é diretamente expres-
resultado o conhecimento ou o aumento do pecado; nesse ponto, Rm sa em 7,4-6: vós morrestes para a lei por meio de Cristo; pertenceis a
[ 7,13 se distingue de Gl 3,22.24 e de Rm 5,20s. Com efeito, o agente ativo
que produz o pecado não é Deus, nem a lei, mas sim o próprio pecado.
outro, a C risto. Ai se fala da lei como se fosse o poder oposto a Cristo.
Paulo continua a falar, comparando-a com "a carne": "quando estáva-
mos na carne... Agora, porém, estamos livres da lei, tendo morrido para
in ZNW 67 (1976-77): 41-7: A lei traz o conhecimento do pecado em 3,20; em o que nos mantinha cativos".
5,l2.20s a conexão entre a lei e o pecado é expressa em termos de Heilsgescl1icl1te; a Do começo ao fim, Paulo descreve a condição humana anterior a
mesma conexão é colocada existencialmente em 7,7-24. Mais adiante vou propor Cristo como servidão, escravidão a um poder que se opõe a Deus. A
que essa distinção não dá explicação adequada de toda a pericope de 7,7-24. Cf. condição pré-cristã é descrita como escravidão ao pecado (6,6.17.20),
RAISANEN, Paul and the lmo: "Parece que Paulo entende a relação entre lei e pecado
de modos diferentes nas diversas passagens". como estar na carne (7,5) e como estar sob a Lei (6,14s; 7,6). Paulo, é cla-
u, J. A. T. RoBl!\SON, Wrestling with Romans (Filadélfia: Westminster Press, 1979), ro, não diz que a Lei é pecado ou é a carne. Também em Rm 7,5 existe
pp. 37, 66. distinção: são atiçadas pela lei as paixões daqueles que estão na carne.
t •


94 CAPfTUL0 2 OBJETIV O DA LEI 95

Não obstante, os que estão sob o pecado também estão sob a lei; os Dissemos antes que Paulo estava num dilema, pois pensava, como
que estão na carne estão sob a lei; e a libertação do pecado e da carne bom judeu, que Deus dera a lei, enquanto estava convencido, com base
implica a libertação da lei. na revelação de Cristo a ele, que a lei não podia produzir a justificação.
Isso se assemelha ao paralelo em Gl, entre estar sob a lei e estar Vimos que ele respondeu ao dilema atribuindo à lei papel negativo no
sob os stoidieia. Assim como em Gl, a lei é parte e elemento da uni- plano divino de salvação. A lei produz o pecado, a fim de que a salvação
versal condição humana sem Cristo. Assim, nota-se também em Rm seja na base da fé. Com outras palavras, o dilema permanecia difícil,
6,1-7,6 oscilação entre o "vós" e o "nós". "Vós" não estais sob a lei (6,14); mas manejável enquanto se dava ao pecado um lugar dentro do plano
"nós" não estamos sob a lei (6,15); "vós" fostes escravos do pecado divino de salvação. Mas quando, como acontece em Rm 6, o pecado é
(6,20); "vós" morrestes para a lei (7,4); "nós" estávamos na carne (7,5); descrito como um poder ao qual os homens podem se submeter, do
"nós" estamos livres da lei (7,6). Não é possível separar os pronomes, qual se pode escapar só pela morte, e que assim não está inteiramente
referindo "vós" aos gentios e "nós" aos judeus; estavam todos anterior- subordinado ao desígnio divino - não pode ser utilizado, mas dele se
mente sob o pecado, todos estavam na carne, todos estavam sob a lei deve escapar morrendo -, o dilema exige solução diferente. Já não se
Embora Paulo tenha mostrado em Gl 2,15 que ele conhecia a distinção pode dizer que a lei produz o pecado ou que multiplica as transgressões como
tradicional entre ser gentio "pecador" e ser judeu justo, sua tendência parte do plano global de Deus, pois o reino do pecado é agora considerado
geral, demonstrada em Rm 6,1-7,4 como também em Gl 3,19-4,10, era i11teirame11te fora desse plnno. A vontade de Deus, na m ente de Paulo,
universalizar a condição humana. Todos estavam sob o pecado e ne- derrota o pecado, mas isto exige que ele envie o Filho (8,3). Pode-se
cessitando de redenção; todos estavam sob a lei. e capar do pecado, mas só pela morte (6,11). Todavia, não é Deus quem
Ao ligar a lei com a condição humana universal, Paulo diz da lei "comanda" dentro da esfera do pecado.
coisas bem piores do que dizer que ela não justifica: ela surge, antes, Paulo respondeu a esta versão do seu dilema de modo um tanto
do lado negativo da linha divisória ~tre os que estão sob o pecado e surpreendente. Primeiramente, não desfez a ligação anterior entre lei e
os que estão sob o poder de Cristo. E este o caso em Gl 3 e 4. Mas em pecado, mas teve de obter outra explicação do modo como se relacio-
Rm 6 e nos primeiros versículos de Rm 7, a lei é apresentada de modo nam, que não fosse a da sua comum subordinação à vontade salvüica
mais negativo ainda. O pecado é virtualmente personificado como o de Deus. Assim, em Rm 7,7-13 Paulo ainda afirma (a) que Deus deu a
adversário de Deus, e todos os que estão escravizados pelo pecado lei, (b) que a lei e o pecado estão relacionados. Mas aí muda a relação
estão sob a lei. Em Rm 6 o pecado não é o instrumento que Deus usa entre a lei, a vontade de Deus e o pecado: a lei é boa, foi dada "para a
para manter todos no cativeiro, a fim de que ele possa salvar a todos na vida" (7,10), mas foi usada pelo poder estranho a Deus - não pelo pró-
base da fé. Tem stahlS independente e não está sujeito ao controle de prio Deus, mas pelo pecado (7,8.11.13). lsso gerou situação contrária à
r Deus. Em Rm 6 e na primeira parte de Rm 7, Paulo mantém a ligação vontade de Deus. Há, pois, alteração na visão paulina da relação entre
.. que fazia anteriormente entre pecado e lei. Chega quase a equiparar lei
e pecado; mas já que o pecado é agora poder estranho não submetido à
o pecado e a intenção de Deus (Deus não tenciona, como em Gl 3,22.24,
a escravidão ao pecado), e entre a vontade de Deus e a lei (ele deu a
vontade de Deus, ele tem de negar a equação implícita.27 Penso que é o
virtual dualismo de Rm 6 e 7,1-6 que leva à análise da lei e do pecado
em 7,7-25. Passamos agora diretamente a essa análise.28 Ro w, 1964), pp. 86-97, 109-16; J. A. T. R OBINSON, Wreslling witlt Ronums (Filadélfia:
WestminsterPress, 1979), pp.82-8; jAMES 0 . G. ÜUN ·, " Rom. 7,14-25 in the Theology
of Paul", in TZ 31 (1975): 257-73. Como DuNN esclarece de modo especial, tem ha-
27
Cf. C. E. B. CRANFIELO, The Epistle to t/1e Ronums, vol. l (Edinburg h: T. & T. Clark, vido basicamente três interpretações de Rm 7: (a) a antropológica (Rm 7 descreve
1979), pp. 340s. a s ituação da humanidade antes de Cristo e sem ele); (b) descreve a experiência do
28
Há bons sumários de vários estudos sobre Rm 7 em Luz, Gescl1ic/1tsversfii11dnis, próprio Paulo antes de Cristo, mas vista da sua perspectiva presente; (c) descreve
pp. 158-68; RICHARD. LoNGENECl<ER, Paul: Apostle of Líberty (Nova Iorque: Harper & a sua experiência autobiográfica em continuação.
••

96 CAPrn.:Lo 2 ÜBJETIVO DA LEJ 97

lei para salvar, intenção essa que foi frustrada, e não para condenar). que é preparada por 7,10, Deus quer o bem, que é representado pela
Essas mudanças parecem ser requeridas pela nova função atribuída lei. O homem sabe o que é bom e tenta executá-lo, mas é impedido por
ao pecado; agora ele é agente ativo que se serve da lei contra o proje to "outra lei". lsto é um pouco diferente de dizer que o pecado usa a pró-
de Deus. E quase (mas não de tod o) d esnecessá rio dizer que o pecado pria lei para provocar a tra nsgr essão. Antes, existe outra lei, uma lei do
não perverte a intenção da lei fazendo com que os homens a cumpram pecado (7,23), que é de fato simples mente o p róprio pecado (7,17.20), que
de modo errado, gerando, assim, o legalismo. A lei, a ntes, é o agente impede a pessoa de cumprir a lei de Deus. Aí Paulo rompe a ligação
do pecado porque condena e, assim, provoca a transgressão. O peca- positiva entre lei e pecado.
do, mediante o mandamento, ensina o que é cobiçar; a lei condena a Rm 7,7-13 está ligado com as discussões sobre lei e pecado em Gl
concupiscência e conseqüentemente quem cobiça (7,7-11); assim, a lei é e antes em Rm porque se diz que a lei leva à transgressão. Essa linha,
o agente do pecado. porém, n ão é desenvolvida em 7,14-23, onde a lei simplesmente exige o
. Em 7,7-13, pois, Deus não deu de propós ito a lei para condenar, a que é bom, mas se descrevem os ~omens como incapazes de cumpri-la
/1111 de que ele pudesse em seguida sa lva r com base na fé; antes, ele deu por causa do pecado e da carne. E sobretudo para a segunda descrição
a lei pa ra que fosse executada.29 Mas o pecado aproveita-se da lei longe da condição huma na que Paulo apresenta "solução" em 8,1-8. Os que
de Deus. Usa-o para promover a transgressão (7,8.11.13) e o resultado é estão em Cristo são libertados de toda essa situação. A lei não tra z
que a lei mata (7,lOs). Em 7,7-13 a lei é a inda relacionada com o pecado, consigo o poder de capacitar o homem para a sua observância (8,3,
mas o pecado não é a tribuído à vontade de Deus. presumivelmente por ser ele carna l, 7,14). Essa falha, porém, foi agora
Essa é, pelo menos, uma linha de pensamento. É importante notar corrigida por Deu s, que fez o que a lei (dada por ele próprio) não podia
que existe outra.10 O problema é a carne no sentido de natureza hu- fazer. De us enviou seu Filho, e por sua morte condenou "o pecado na
mana.11 Os homens são carnais (7,14), comandados por princípio que ca rne". O objetivo foi possibilitar o que para sua observância a lei exige
os leva a agir contra o bem que a lei prescreve (7,15-23). 12 essa secção, dos que vivem segundo o Espírito (8,3s). O s que vivem pelo Espírito
cumprem a lei; os que permanecem na carne são incapazes d e cumpri-
'?"Sobre a questão se há o u não em 7,13 uma distinção entre a intenção origina l ao la (8,7s).
se dar a lei e a função real da lei, ver H t.;BNER, Gesetz, p. 64, e a literatura aí citada. Conforme o que cha mei d e segunda linha de pensamento - que
Penso que aí há ao menos uma distinção entre a intenção de Deus e o uso q ue o comanda o que se diz da lei em Rm 7,14-8,8 - , a lei sequer provoca o
pecado faz da lei; a lei já não é simplesmente o in trumento da vontade de Deus. pecado. Sua "falha", porém, reside no fato de não levar consigo o poder
10
Muitas vezes se diz que Rm 7,14 determina uma mudança no tema, masco-
de capacitar o homem para cumpri-la. Só pod em fazê-lo os que estão
mume~te e. coloca a ênfase na mudança para o tempo presente. ROBl\.SO\.
(Wresll111g t1•11/1 RoT1w11s. p. 88) ob erva com razão que não é esta a ê nfase cer ta. em Cristo, os que têm o Espírito. Mas se trata de falha da lei. A con-
?
( 11
tempo pre ente é exigido peJa afirmação gera l de que "a lei é espiritual", e a
enfa.se está no contraste entre a lei espiritual e a natureza humana, o ego que é
snrk111os (7, 14b).
dição humana, sem Cristo, é apresentada nessa seção com o sendo tão
sem esperança, que se pergunta o que foi feito da doutrina d e que a
criação era boa. Os que aí vêem profunda análise da razão por que a
Snrki~ros e~ !,1-t enfatiza "o estado da natureza humana na sua própria força"
(Robinson, 1l11d., p. 90). lsto é especialmente claro em 7,18, " na minha carne". Antes lei não é uma resposta à condição da humanidade podem não enten-
de terminar o assunto, porém, Paulo vai reJacionar a fraque:z.1 da carne humana com der a crítica à doutrina do Deus criador e doador da lei que facilmente
a Carne concebida como um poder que se opõe ao espírito de Deus; ver esp. 8,8. se pode deduzir de Rm 7,10 e de Rm 7,14-25. Paulo, certamente, não
32
Bl:LTMM\/ explicou o objeto do "quer er" em Rm 7,14-25 como sendo mais a deduz esta critica. Sua intenção é concluir louvando a Deus por ofe-
"vida" do que os mandamentos. Ver " Ro nlanS 7 and the Anthropology of Paul" recer a possibilidade da redenção por Cristo, e não criticá-lo por criar
in [xislenct nnd Fai/11 (Oeveland e ova Io rque: World Publishing Co., Meridia~
Books, 1960), p. 152. Mas a questão é o que a pessoa faz. 'otc-se prnssõ e poiõ em
7, 15. A interpretação forçada de BtLT\fAX'-lCOntinua a ter influência. Assim, LEA\. DER Spirit and Elhics in PauJ", in Tl1e Diviilt Hel111sma11 (Nova Io rque: KTAV, 19801.
KECK (''The l...aw and The l...aw ofSin and Death' fRom. 8:1-41: Reflections o n the p. 53) interpreta "a exigênáa da lei" em Rm 8,4 como "a reta intenção da lei-vida".


98 CAPÍTUL02 OBJETIVO DA LEI 99

os homens que, sendo carnais, estão entregues ao domínio do pecado, problemas de Paulo com a lei não começam com Rm Z É o contínuo pro-
e tampouco criticá-lo por não enviar uma lei bastante forte para, em blema teológico d e como combinar su a crença nativa de que Deus d eu
primeiro lugar, re o lver esse problema. a lei com sua nova convicção d e que a salvação é só pela fé em Cristo
Acabamos d e ver três modos diferentes de Paulo apresentar a in- (que o leva a atribuir à lei função negativa) que explica amplamente o
terconexão entre a vontade de Deus, a lei e o pecad o. A afirmação mais tormento e a paixão tão ma rcantes em Rm 7.
freqüente, a de Gl 3,22-24 e d e Rm 5,20s (cla ramente ecoad a também Muitos farão objeção a esta proposta e vão querer ainda encontrar
em Rm 3,20 e 4,15), ubordina a lei e o pecado, com o qual está positi- em Rm a explicação da rejeição da lei por Paulo. Darei primeiro algu-
vamente ligada, à vontade de Deus. Essa idéia pode ser representada ma indicação de possíveis objeções e depois passo a mostrar por que
assim: motivo penso não serem satisfatór ias as teorias alternativas e por que
a proposta feita aqui oferece explicação melhor de capítulo difíd l.
vontade d e Deus O caráter angustiante de Rm 7 naturalmente nos leva a buscar sua
J, explicação o mais perto possível d a experiência. Alguns querem ach_a r
lei a explicação na biografia do próprio Paulo: sua frustração d e sentrr-
J, se incapaz de observar o q ue a lei manda. Assim, p. ex., J. 0 -IRJSTIAAN
pecado como transgressão e servidão BEKER acredita que o capítulo é ao menos em parte autobiográfico e
reflete secreta insatisfação com a lei, desconhecida talvez dele próprio,
O modo d e ver d e Rm 7,7-13, a saber, que a lei é utilizad a pelo peca- anterior à sua conversão.33 Outros, persuadidos pelos óbvios e signifi-
do para produzir a transgressão à vontade de Deus, pode ser fig urado cativos argumentos exegéticos contrários à explicação autobiográfica,
desta forma: acreditam que o tormento s urge quando Paulo contempla o cenário
humano do ponto de vista de a lguém que está em Cristo - isto é, da
vontade de Deu
v pecad o
lei ~
~
11
BEXER, Paul tire Apostle, pp. 236-43. essa secção ele critica a teoria que expus em
PP}, dizendo que é puramente teológica, e ignora a dimensão da experiência d e
tran gressão Paulo (pp. 237, 242 n. 22). Bl:.KER não percebe a função que eu realmente atribuí à
experiência de PauJo: "O que é distintivo na visão paulina da lei... [é] que Cristo
salva tanto os gentios como os judeus. ão se tratava apenas de posição teológica,
Finalmente, a posição d e Rm 7,14-25, que rompe a ligação positiva mas isso se prendia à mais profunda convicção de PauJo sobre si mesmo, convic-
entre lei e transgressão, leva a esta imagem: ção na qual empenhava sua carreira e sua vida: ele era o apóstolo d os gentios ...
Além disso, fazia parte da comum experiência cristã que o Espírito e a fé vêm pela
vontade de Deus "outra lei" = pecado escuta do evangelho, não pelai obediência à Lei" (PP}, p. 496). Assim, BEKER e eu não
J, J, discordamos em que haja conexão na mente de PauJo entre teologia e experiência.
Discordamos é quanto ao modo de especificar a experiência. Em PP/ identifiquei a
lei transgressão experiência como send o o cha mado de Paulo a ser apóstolo dos gentios e a expe-
riência comum do Espírito. Ver mais adfa ntc, pp. 165-168.
Penso que as mudanças indicadas por esses diagramas e algumas ROBERT H. Gu~RY faz uma tentativa global de explicar Rm 7 como texto autobio-
d as outras complexidades d as várias afirmações paulinas sobre a lei gráfico e ele observa que esse tipo de interpretação tende a reaparecer. ROBERT
podem ser entendidas se as vemos com o que s urgindo d e evolução H. Gu :ORY, "The Moral Frustration of Paul before His Conversion: Sexual Lust
orgânica como ímpe to em direção a afirmações cada vez mais negati- in Romans 7:7-25", in Pn111i11e St11dies (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1980),
pp. 228-45. Ver também DLi:'>.,, " Rom. 7,14-25 in the Theology of Paul" (a experiên-
vas, até chegar a recuo em Rm 7, recuo que cria o utros problemas. Os cia autobiográfica de Paulo no presente).
100 CArtruLo 2 OBJETIVO DA LEI 101

sua antropologia.lo& PAUL MEYER, p. ex., pensa que Rm 7 revela a ra- resumi-los em dois itens: (a) o enfoque e o tema do capítulo; (b) a con-
zão principal subjacente à rejeição da justificação pela lei por parte de sistência e a cronologia do pensamento de Paulo.
Paulo, e tenta encontrar um modo de explicar o caráter existencial do O tema preciso não é "por que a lei não justifica?" nem "qual é a
capítulo, sem contudo descrevê-lo como autobiográfico: condição humana à quaJ Deus atendeu enviando seu Filho?" (embora
a segunda pergunta apareça, como observaremos em_ breve). O tema é
Foi, afinal, não só o fato de Paulo ter descoberto a j11stificatio impii, precisamente "qual a relação entre a lei e o pecado?" E essa a pergunta
a justificação do pecador por Deus (e por isso a irreconciliável contra-
dição entre aquela morte e a justificação pela Jei, GJ 2,21), mas também,
que o debate em Rm 6,5-7,6 tomou insistente, pergunta intimamente
e também para ele pessoalmente acima de tudo, esta experiência, in- ligada com esta outra também implicada: "por que, então, Deus deu a
terpretada à luz da cruz, do poder do pecado para transformar em lei, se ela está ligada de um modo ou de outro com o pecado?" A van-
escravidão até a sua complacência na lei (7,22-23) que elevou ao nível tagem de fazer essa distinção é que ela nos possibilita ver mais clara-
de axioma na mente de Paulo a convicção de que ninguém diante de mente que, em Rm 7, o debate está centrado em Deus (particularmente,
Deus poderia sentir-se garantido pela observância da lei... 35 no plano divino), na lei, no pecado e na relação entre eles, e não pri-
mariamente na condição humana por causa dela mesma. Entretanto,
Antes de mais nada, permitam-me dizer que há certas coisas na é claro, PauJo diz muito nesse capítulo sobre a condição humana en-
história da atitude de Paulo para com a lei que nós simplesmente igno- quanto atingida pela lei de Deus ou enquanto corresponde a el~, como
ramos. Não podemos descobrir se Paulo nutria latente ressentimento também sobre a conexão entre o pecado e o ser humano. Mas a1 temos
da lei, que ele camuflou e que talvez estava escondido dele próprio de notar que o que Paulo diz sobre esses pontos não é coerente com o
(BEK.ER); nem podemos excluir a possibilidade de que, num retrospecto, que diz em outras partes, e seus comentários sobre a condição humana
à luz do evento Cristo, Paulo viu seus esforços anteriores para obedecer em Rm 7 não parecem ser a fonte das outras afirmações suas sobre a
à lei como deturpados pelo pecado CMEYER). Acredito que se pode di- lei, o pecado e a humanidade. Isso nos leva às questões da coerência e
zer que Rm 7,14-25 quase não revela o pensamento completo de Paulo da cronologia.
sobre a "triste condição dos judeus".36 Em outros lugares Paulo mostra A maioria dos leitores de Paulo parece entender que em Rm 7 ele
que sabe muito bem que os judeus eram capazes de fazer o que a lei finalmente nos disse o que realmente pensava e por que ele assim pen-
exigia, e ele próprio é excelente exemplo. Assim, a nossa compreensão sava. Tendo camuflado sua verdadeira teoria sobre a lei, a condição
de Rm 7 é em parte determinada por nossa compreensão de outras humana e a vontade de Deus em Gl e nos primeiros capítulos de Rm,
passagens, como Gl 2,lSs e F1 3. Mas agora permitam que eu passe a Paulo teria finalmente dado a conhecer "o que de fato pensava" em Rrn
faJar dos argumentos contrários a que se veja Rm 7 como derivante de 7, e acontece que sua idéia tem núcleo antropológico-existencial que
análise antropológico/ existencial do estado desesperador da humani- felizmen te corresponde ao antropocentrismo moderno - assim, Paulo
dade enquanto luta para obedecer a Deus sem aceitar Cristo. Podemos se toma plenamente compreensível. Ele volta a seu modo camuflado
de falar em Rm 9-11, onde mais uma vez (como em Gl 3, p. ex., e Rm
J.I Esta é a posição que BuLTMA.~ tomou famosa em "Romans 7 and the Anthropology 4) assume o ponto de vista das relações de Deus com o mundo - isto
of Paul". Colocação recente e extremista encontra-se em W ALntER Sei L\tm tALS, Die tro- é, uma visão teocêntrica que pergunta o que fizera Deus na história
logisclzc A11t/1ropologicdes Pnu/11s. A11slegu11gvcm Riim. 7, 17-8,39 (Stuttgart: Kolhammer de Israel e qual será o resultado final do seu relacionamento com os
Verlag, 1980), p. 7: "Característica essenàal desse texto é o seu endereçamento teoló- homens, tanto judeus como cristãos.
gico para a humanidade. Paulo não expõe um ensinamento sobre Deus, mas antes
descreve o homem, que está perante Deus como pecador e crente". Parece-me improvável que Paulo tenha ocultado por tanto tempo
l'i PALL M EYER, "Romans 10:4 and the End of the Law", in Tltt! Divine Helmsmnn ( 'ova e tão bem a verdadeira fonte do seu pensamento sobre a lei, enquan-
Iorque: KTA V, 1980), p. 67. to escrevia sobre ela e tentava de vários modos explicar como Deus
lt> Expressão de BEKFR, Pn11/ the Apostle, p. 240. pretendia usá-la. Se a análise antropológica e existencial que muitos
102 CAPiTuLO 2 OBJETIVO DA LEI 103

en contram em Rm 7 fosse a base sobre a qual ele pensava a respeito da tei. Que ele tinha tentado desesperadamente achar luga~ pa ra :tas, se
lei, do pecado e da humanidade, ela teria vindo à tona em Gl. Ademais, vê, p. ex., em Rm 9,4-6; mas é igua lmente claro q_ue ele _ainda nao con-
poder-se-ia esperar que ela aflorasse em mais algum lugar: se não em seguiu fazê-las valer para a salvação. Estava criado ai um probl~ma
Rm 3, então em Rm 4; se não em Rm 4, então em 9-10; se também não te0lógico de primeira gra ndeza: qual o plano de_Deus ~nt:S_de Cnsto?
aí, então em F1 3. qual era o objetivo da lei? como se pode harmonizar a histon a de ~srael
Naturalmente, os que vêem Rm 7 como o texto central e definitivo (incluindo a lei) com a intenção de Deus de salv~ a todos_p~r Cristo?
para entender a teoria de Paulo sobre a lei vêem a tese aflorar alhures, Eram problemas reais, e parece-me muito mais verossim il que eles
esp ecialmente em Rm 1,18-2,29 e Rm 9,30-10,13,37 Sobre essas passa- é que levavam Paulo a u a r modo apaixonado de ~r; ~ men~s p~o­
gens dizem que elas apresentam, do ponto de vista da humanidade vável que a causa do seu tormento tenha sido a angustia no ~tenor
ou do ponto de vista judaico, a incapacidade humana para obedecer da sua alma ou sua análise da condição existencial da humarudade.
à lei, que é existencialmente descrita em Rm 7,14-25. Mas na realida- Podem ser esses os problemas reais pa ra os modernos, mas duvido
de as três passagens apresentam afirmações bem djferentes. Rm 9,30- que o fossem para Paulo. , .
10,13 afirma que os judeus, enquanto buscavam a justificação p ela lei, Sintetizando cssn objeção à interpretação antropolog1ca: Rm 7 ve~
não encontraram a justiça de Deus, cujas características definidoras no fi m de repetidas tentativas de explicar o obje~vo da lei no ~lano ~t­
são que ela vem pela fé e é para todos igualmente. Rm 1,18-2,29, como vino; seu enfoque e tá na interconexão entre a le1, o pecado e a .mtençao
veremos adiante, afirma que todos têm sido culpados de pecados he- divina; representa uma explanação do que Paulo diz sobre tais assun-
diondos, enquanto apresenta ao mesmo tempo a possibilidade de que tos, explanação que parece ser o resultado do virtual duali~mo de~
alguns possam ser justificados pela lei. O tema de Rm 7,14-25 é diverso: 6; a incoerência da explicação da finalidade da lei torna rmprovavel
diz que a humanidade sem Cristo não pode absolutamente cumprir a que se deva pôr Rm 7 no centro de uma tentativa de entender Paulo e
lei Vale a pena observar que em nenhum desses textos Paulo diz que a a lei; é mais verossímil explicar a paixão da expressão como resultante
lei é demasiado difícil para ser observada adequadamente. de problema teológico agudo do que de análise da condição humana.
Então Rm 7,14-25 não exprime existencialmente uma idéia que Eu acrescentaria que não é de modo a lgum surpreendent~ q~~ um
Paulo mantém coerentemente em outros lugares. Sua apresentação ex- judeu do mundo antigo fosse levado à paixão quando a histon a ou
tremista da incapacidade humana é única no corpus pa11li1111m. O pon- a fé lança desafio à tese da fidelidade e da justiça de Deus. Quanto a
to mais intimamente coerente em todos os debates paulinos sobre a este último ponto, podem-se recordar Jó e 4Esd; em ambas estas obras
lei, como também cronologicamente anterior, é que sempre aprouve a teologia e a experiência se unem para questionar precisamente os
a Deus salvar com base na fé e não com base na lei, e assim salvar a mesmos aspectos do relacionamento de Deus com os homens.
todos na mesma base.38 lsso criava um problema teológico (que é em Assim como o problema esboçado em Rm 7 é diretamente expr es-
certo sentido autobiográfico, pois Paulo era judeu) de consideráveis so na pergunta retór ica de 7,7, "será que a lei é peca~o?" (a saber, ~ua i
proporções. Paulo estava em situação que exigia dele repelir, negar a relação entre os dois?), assim a preocupação lancm ante do capitulo
as principais atividades redentoras de Deus no passado: a eleição e a se exprime na perg unta de 7,13: "Será então que o que é bom t:~u xe
a morte para mim?" Por detrás desta pergunta se esconde a cnttca a
Deus, à qual aludimos a ntes. Como pôde Deus, que sempre pre~end.eu
;r;VeT, p . ex., M EYER, " Romans 10:4 and the End of the Law". salvar com base na fé, ter dado uma lei que não salva, que pnmerro
provoca o pecado e depois o condena, ou que no ~imo nã? ajuda?
3
s Cf. SDoo. K1,1, The Origi11 of Pa11rs Gospel (Túbingen: j . C. B. M ohr 1Paul Siebeckl,
1981), p. 308: "já que Deus justifica o homem sem as obras da lei, por sua graça em
Pior ainda, como vimos, quando chega a Rm 7, Paulo situa a le1 a~ lado
Cristo e com base na ~ua fé, os gentios tanto quanto os judeus podem ser justifica-
dos somente pela fé. E isso que PauJo defende sempre que ele expõe sua doutrina da morte, do pecado e da carne. Aí ele recua da negação poten~ial de
sobre a justificação". que Deus agiu para o bem: a falha não está em Deus, nem na lei, mas
104 CAPfTuLO 2 OBJETIVO DA LEI 105

no pecado. Quando ele retira da lei boa dada por Deus a responsabiU- na fé), Paulo coloca a relação entre Deus, lei e pecado de modo que cria
dade pela transgressão, atribui-a primeiro ao uso que o pecado faz da outro problema: Deus deu a lei para ser obedecida, mas o homem é
lei e depois ao pecado que invade o que é carnal e impede-o de obede- totalmente incapaz de cumpri-la, por isso teve de lançar um segundo
cer à lei de Deus. Nessa segunda alteração entra de fato um elemento plano. .
"existencial" ("não faço o que quero" etc.). Depois que ele transfere a Assim, vemos a profundeza do dilema de Paulo quando tentou
respons~bilidade de Deus para o poder do pecado que invade os que manter que Deus deu a lei e também que a salvação é só pela fé em
Deus cn ou, ele mostra que essa nova descrição da situação humana Cristo. Penso que o próprio dilema é em parte responsável pela paixão
pode movê-lo à compassiva simpatia. O que começou como problema e pela angústia de Rm Z
teológico angustiante (a intenção de Deus ao dar a lei, que leva à con- Parece prudente não procurar o "verdadeiro" ponto de vista pau-
denação) bem depressa se transforma no problema humano de como lino dentro das tortuosas explicações da relação entre lei e pecado.39
escapar da escravidão ao pecado que se serve da própria lei ou impede Temos de regressar da estrita exegese de Rm 7 para compreender o
os homens de obedecer-lhe ("quem vai me libertar?", 7,24). pensamento de Pau lo. Ele estava absolutamente convencido de que
Temos de notar (e aqui levamos adia nte as questões da coerência Deus enviara Cristo para salvar a humanidade na mesma base, e por-
e do rigor da análise teológica de Paulo) que, ao se recusar a atribuir à tanto abstraindo da lei. Ele já mostrara longamente, quando atingimos
lei a transgressão e assim a condenação (a questão é colocada em 7,13), os textos ora analisados, que a justificação não vem pela observância
ele parte pa ra o outro extremo. Retira a positiva conexão entre pecado, da lei. No entanto, ele pensava que Deus é quem dera a lei. Procurou
von_tade de Deus e lei, conexão que é feita de outra forma sempre que harmonizar essas convicções de vários modos. Cada tentativa provém
ele mdaga sobre a função da lei. Isso finalmente situa a lei do lado do das mesmas convicções centrais e é, nesse sentido, parte de coerente
bem (ao qual ela pertence naturalmente, já que foi Deus quem a deu) linha de pensamento. Mas em e por si mesmas essas tentativas não se
e desculpa Deus. Mas Paulo se envolve em outras dificuldades. Pensa harmonizam. Delas podemos aprender algo: que o problema continua-
em _termos de htdo ou nada, como já dissemos, e agora exagera a inca- va real para ele, já que continuava buscando uma formulação que fosse
pacidade humana de cumprir a lei, como também o êxito cristão em satisfatória. Aprendemos mais sobre o que eram suas convicções sub-
cumpri r o que ela manda. O homem carnal é incapaz de fazer coisa jacentes. Talvez mais importante, aprendemos que sua reflexão sobre o
alguma que a lei ordena (7,15-23). Somente os cristãos são capazes de pecado e a redenção não partiu da análise da condição humana, nem
observar as exigências da lei, e o fazem com perfeição, ao passo que da análise do efeito da lei sobre os que procuravam segui-La. Se tivesse
os que estão na carne "não podem agradar a Deus" submetendo-se à agido assim, teria sem dúvida encontrado mais coerência. O que é co-
sua lei (8,3-8). Essa posição extrema contradiz sua própria experiência, erente na descrição paulina da condição humana, como escrevi em ou-
tanto a de fariseu como a de apóstolo (GI 2,lSs; Fl 3,1; 1Cor passim). tro lugar, é a afirmação da sua universalidade.40 Assim também, o que
( Há outra dificuldade. Ele é levado a fazer um contraste entre Deus
e a lei em Rm 8,3. A lei é a Jei de Deus (7,25), foi dada para a vida (7,10),
é coerente na sua análise da lei é a asserção de que ela não justifica e de
que Deus salva de outro modo. Paulo pode dizer que assim é porque
entretanto Deus deve lançar uma operação de resgate abstraindo da Deus sempre pretendeu que assim fosse - afirmação mais freqüente
lei. Dir-se-i~ q~e a primeira tentativa de Deus fora um malogro e ele - ou porque a natureza carnal da humanidade toma impossível a obe-
teve de redumr sua falha mandando o Filho. Paulo, é claro, não diz diência à lei (Rm 7,14-25), ou porque o pecado usa a lei para provocar
que a falha foi de Deus: "a lei" não pôde fazer o que era preciso. Mas a transgressão, que leva à morte (7,7-13). É a conclusão que é coerente,
Deus deu a lei.
Ao fugir de um modo de explicar a ação divina, modo que obvia- ,.. Ver outro exemplo em B'rR'llE, "Sons of God - Seed of Abraham" (Roma: Biblical
mente não era de todo satisfatório (a lei foi dada por Deus com o pro- Institute Press, 1979), pp. 92s, 231 .
pósito de provocar o pecado, de modo que ele pudesse salvar com base ..., PP/, p. 474.
OBJETIVO DA LEI 107
106 CAPÍTULO 2

não o modo de considerar a lei: todos estão condenados; todos podem Isso transparece não só em Rm 2,12, mas ta_mbém em lCor 6,9-11, o~de
ser salvos por Deus através de Cristo. diz que ao menos alguns dos seus convertidos eram culpados d~ id~­
Latria. Entretanto, geralmente escreve com base em press~postos JUda1-
Todos estão sob a lei. Os cristãos morrem para a lei Ao escrever a uma igreja que era provavelmente mista, mas que
~~:·chama de gentia (p. ex., Rm 1,13s), não obstante ele _fala ~e A~raão
Tocamos num conjunto de afirmações sobre a lei que parecem pro- ''nosso progenitor" (Rm 4,1; cf. 1Cor 10,1; serve-se dos ISraeh.t as, n?s-
vir da tentativa que Paulo faz de responder à pergunta "por que Deus 505 pais", para provar que os ex-gentios não devei:n cometer idolatna).
deu a lei?", mas que, por outro lado, extrapolam essa categoria. Ao expli- Mais adia nte, notaremos o caráter judaico de muitos dos ar~ume~tos
car por que Deus deu a lei, Paulo liga-a de vários modos com o pecado, paulinos (pp. 197s). A respeito da condição h~ana, ~ode-se imaginar
e coloca toda a humanidade sob o pecado e, assim, também sob a lei. ue ele poderia ter oferecido outra formulaçao. Assim, por exemplo,
Alguns, é certo, vêem ou em Gl ou em Rm ou em ambas, a afirma- ~le poderia ter assemelhado a situação judaica à gentfüca, d~~do q_ue
ção de que só os judeus estão sob a lei. Assim, FERDINAND HAHN, cujas os judeus fizeram da lei um ídolo. Ele conserva a perspec~va Juda ica
e faz o problema dos gentios se enq~a~ar nela, sem d ~ vu.tualmen.t,;
análises sobre a lei em Rm são penetrantes e cuidadosamente matiza-
das, parece ignorar até que ponto também Gl coloca todos debaixo da
1
nenhuma explicação do como os ex-idolatras estavam deba 1xo da lei ·
lei. Diz ele que GI 2,16a.c e 3,22 aludem ao tema como ele é elaborado A explicação com base na lei natural em Rm 2 ~ s~reendente porque
em Rm, mas acredita que Paulo não inclui todos debaixo da lei em Gl.41 em outros lugares não é utilizada. A plena amb1gwdade do modo pau-
Com isso, parece minimizar o significado do uso de "nós" e "vós" em lino de descrever a condição humana se mostra em Rm 3,19: "Sabemos
Gl 3,23-4,9, que vimos acima (pp. 79s). Como observamos, a maioria que tudo 0 que a lei diz é para os que estão sob a lei, a fim de que toda
dos autores diz com razão que o "nos" d e Gl 3,13 inclui tanto os judeus boca se cale e o 111u11do inteiro se reconheça réu em face de Deus. Porque
como os gentios ... 2 diante dele ninguém será justificado pelas obras da lei ..." Paulo. não ex-
FRJEDRICtt-WILHEL..\1 MARouARDT e MARKus BARTH também afirmaram plica de modo algum como o que a lei diz aos qu~ estão debaixo dela
45
que Paulo situa apenas os judeus debaixo da lei. MARQUARDT observa (os judeus) também se aplica ao "mundo inteiro".
que em Rm 7,1 Paulo fala "aos versados em lei" e conclui que o "vós" Isso nos abre outra janela para vermos até que ponto o pensamento
de 7,4 e o "nós" de 7,6 referem-se apenas aos judeu-cristãos...3 BARTH paulino sobre pecado e redenção não se ~aseia em co~sideração s~~te­
parece tornar sistemática a distinção de Rm 2,12 (alguns pecam com a mática, empírica, da condição humana. As vezes sele ~e ~~ulo de-
lei; outros pecam sem a lei), que ele aplica a Gl 2,15 (que ele assim en- monstra" que todos estão sob o pecado. Contudo, ele nao o demons-
tende: "nós [somos] pecadores de origem judaica, não de descendência tra" - sequer em Rm 1,18-2,29, como vere~os -, ele o afir~a. Já que
gentfüca"); 2Cor 3,6; Rm 5,12-14; 4,15; 7,lOs.44 Deus enviou Cristo para sa lva r a humarudade, e para faze-lo numa
Não há dúvida alguma de que, em certo nível, Paulo tinha plena base comum todos estão na mesma condição, sob o pecado (p. ex., Rm
consciência do fato de que os judeus e não os gentios estavam sob a lei. 3,9). Deus d~ a lei antes da vinda de Cristo. Ela não salva, por isso

41
H AH!I., "Gesetzesverstandnis", p . 59. Concorda com isso o fato de H AHN dizer que
GI trata quase exclusivamente do judaísmo (p. 51). 45 Alguns comentadores (p. ex., Roei"~ , Wrestling witl1 Ro111J11t5, p . 36) evitam a di-
42 Acima, n. 20. Ver também H OWARD, Crisis, pp. 58s, e a crítica que H OBNER faz a ficuldade que 3,19 coloca, inserindo entre os textos-prova de 3, 11-18 e a concl~sã,?
HAHN, Gesetz, pp. 134s. que Paulo tira em 3,19 uma objeção judaica: "esses t~tos se referem aos genllos ·
4J FRIEDRIO l- WCLH EL\1 M ARQli AROT, Die /uden ;,,, Rómerbrief (Zurique: Theologischer Paulo responde que a Escritura também condena os .JUdeus (3,19) .. Mas essa i:nu-
Verlag, 1971), p. 19 e passim. dança simplesmente não é evidente no texto. Paulo 1ulga que a~ º,~ç~ bíblicas
-« MARKL'S BARTH, " Die Stellung des Paulus zu Gesetz und Ordnung", EvTlr 33 (1973): cobrem a humanidade toda: notar 3,9s: "todos... como está escnto · Aí como em
esp. pp. 508, 511. outros lugares Paulo, sem nenhuma explicação, situa todos debaixo da lei.

- - - -- - - ~- - --
108 CAPITuL02 OBJETIVO DA LEI 109

está ligada ao p ecad o, a condição comum de cada um; e assim todos, idéia de Paulo dizer que se morre a apenas uma função da lei. Muitos
antes de Cristo, estavam debaixo da lei. autores entenderam o "fim d a lei" (indicado em Rm 10,4 e també m nas
Para Paulo, tod os os cristãos, quer judeus quer gentios, morreram afirmações d e que os cristãos morre m para a lei) como se significasse
para a lei. Ela faz parte da ordem do velho mundo, como ta mbém fa- que se morre para a lei enquanto sistem~ de salvação. Só esse aspecto
zem parte o pecado e a carne e dela se deve escapar (morrer ao pecado, da lei é que chegou ao fim desde Cristo.=>1
esp. Rm 6,5-11; os cristãos já não estão na carne, Rm 7,5.9; os cr istãos Temos de notar, por ém , a força d essa explicação. Leva em conta
m orrem para a le i ou estão livres dela, Rm 6,14s; 7,4.6). Mas a lei é dife- tanto as colocações positivas como as n egativas de Paulo sobre a lei.
rente d o pecado e da carne, porque é agente de morte, provavelmente Eis como a exprime RuOOLF ButTMANN:
~evido a seu pode r de condenar: eJa mata (2Cor 3,6; cf. Rm 7,9-13).46
E por essa razão provavelmente que Paulo pode dizer não só que e le Cristo é o fim da lei enquanto ela pretendia ser o caminho para a salva-
~o;~eu para a lei, mas que ele morreu pela lei (Gl 2,19), embora seja ção ou era entendida pelo homem como o meio de estabelecer "sua própria
~ifíciJ a_formulação. Parece concordar mais com a sua v isão geral da justiça': pois à medida que co11tém n vontade de Deus, co11serua sua validade.~
libertaçao dos p od eres hostis a Deus dizer que os cristãos morrem por
meio d e Cristo (Rm 7,4). ERNsr l<ÃSEMANN diz assim :
Esses textos mos tram que, quer a palavra te/os e m Rm 10,4 signifi-
que "fim'~ quer não, Paulo podia pensar que a le i estava no fim, p elo A obediência d a fé ab-roga a lei enquanto medianeira de salvação,
menos para os cristãos.47 Enquanto estudamos esse ponto, e mesmo percebe a perversão de tom á-la como princípio de realização, e na re-
~tes de apresentar a ná lise mais pormenorizada das afirmações posi- trospectiva escatológica restitui ao d om divino o caráter da vontade
original de Deus."1
h~as de Paulo s?bre a lei, tem os de considerar como é que Paulo pode
dizer que os cris tãos morrem para a lei, enquanto sus tenta que a lei
HERMAN RmoERBOS formula muito suàntamente a mesm a idéia: as
d eve ser ma ntida (Rm 3,21) e cumprida (Rm 8,4; 13,8-10). Enfoquemos
a colocação negativa. obras da lei são boas "onde o ser meritório não está em jogo".,...
A explicação aqui proposta tem, como é natural, semelhança supe r-
Quando Paulo diz que a lei mata ou que os cristãos morrem para a
fiàal com a d e ButTMAN'l. A semelha nça é natural, já que todo leitor d e
lei, a afirmação inclui a lei toda.48 Ele não faz distinção e ntre a lei ritual
(à. qual se morre) e a le i m oral (que permanece).~ Nem distingue entre a
lei enquanto d eturpada pela autojustificação e a lei enqua nto cumprida "sob a lei" em Rm 6, 14 como ''sob o domínio da lei deturpada" (p. 115). A palavra
"deturpada" é freqüente nessa secção do livro de H OBN'ER. Embora não tenha tido
segundo o verdadeiro espírito.50 Não seria interpre tar correta me nte a
HCB'ER em mente, a observação de K ECK vem a propósito: "Onde é que Paulo
jamais falou de algo mau que aconteceu com a lei de tal modo que a tenha detur-
pado?" ("The Law and 'The Law of Sin and Death' ", p. 47).
4ll ":s duas afirm~ções são ligeiramente diferentes. Em 2Cor 3 o " pecado" não é men- ;i Já observamos acima, cap. r, n. 114, que esta opinião não pode ser deduzida de Rm
cionado e se diz que a lei ("o código escrito") mata. Em Rm 7,9-13 Paulo atribu i a 10,4. O assunto aí é mais genérico.
morte ao pecado, que se serve da lei. 52 B tJLTMA"IN, Tlreology, vol. I, p. 341.
47
R A1 ANB\, "Paul's Theological Difficulties with the l..aw", in Studin Biblicn 1978, vol. 'i3 ERNST KAsEMAN"l, Commmtnry 011 Romnus (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1980),
3 (Sheffield, JSOT Press, 1980), p. 306. p. 94. Cf. PAUL W ERNlE, Der êJirist rmd die Sii11de bei Pa11/us (Freiburg: J. C. B. Mohr
-lb "'esse ponto devo muito a RAtsAxo., ibid., pp. 305s; Pn11/ mtd tlie LAw. [PauJ Siebeckl, 1897), pp. 96-9; W OLFGANG 5ct tRAGE, Die ko11krete11 Einzelgebote i11 der
~" Contra a distinção, ver ~· LYON"l\U, "St Paul: Liberty and Law", in The Bridge paulinisclren Pnriiuese (Giltersloh: Gerd Mohn, 1961), pp. 94, 232, 238.
( ewark, N. J.: The fnstitute of Judeo-Christian Studies, Seton HalJ Univcrsity, ~ Hatw.: RtoDERBOS, Pnul: A11 011tti11e of His Tl1eology (Grand Rapids: Wm. B.
1962), p. 232
Eerdmans. 1975), p. 179. Essa visão geral é muito comum. Assim ROBIJ\SOI\,
'""' Essa última posição é a interpretação que H CBNER apresenta de Rm, que ele assim Wrestling wit/1 Romn11s. p. 51: a lei é constantemente vista a partir de dois pontos de
resume: "Cri to é o fim do abuso carnal da lei" (Geset::, p. 129). Hue'ER entende vista: como vontade de Deus e como caminho para a salvação.
110 CAPÍTULO 2 OBJETIVO DA LE1 111

Paulo deve ver que às vezes ele diz que a lei, ao menos para os cristãos, e não pela lei. A seqüência não é de necessidade lógica, mas é "orgâni-
chegou ao fim, ao passo que em outros lugares ele urge sua observân- ca'~ porque cada degrau surge do anterior. Digno de nota é que cada
cia. Eu proponho que as colocações negativas provêm do debate sobre degrau da série é progressivamente mais negativo: da '1ei que não jus-
as exigências para pertencer ao grupo cristão, primeiro para os gentios tifica" à "lei que produz transgressão", até "a lei que vem a ser um dos
e depois também para os judeus. As colocações positivas provêm de poderes aos quais os cristãos devem morrer, junt? com o pecado e a
questões de comportamento dentro da comunidade cristã. Como isto carne". Finalmente, em Rm 7, Paulo tenta voltar atrás, mas a1, como no-
difere de distinguir entre a lei como caminho de salvação e a lei como tamos, ele encontra outros problemas: ou o de fazer a lei ser usada por
exigência de Deus? De dois modos: (a) A aceitação da lei como requisito outro poder diferente de Deus, ou o de ter de separar de Deus a lei.
da pertença ao grupo não era urgida pelos adversários de Paulo, porque A questão ficará talvez mais clara se considerarmos a visão pau-
eram a favor da auto-salvação, e tampouco Paulo a recusa porque daí lina do plano de Deus. Paulo não pensou que quando Deus deu a lei
resultaria o vangloriar-se dos próprios atos. A formulação tradicional também permitiu o "abuso" dela e que só estava errado usá-la para
confunde o ponto em questão. (b) A formulação tradicional implica que fins de autojustificação. A meu ver, Paulo acreditava que Deus era
Paulo tinha conscientemente em vista duas diferentes funções ou dois mais soberano que isso. Ele deve ter planejado o que de fato aconte-
diferentes "usos" da lei. lsso não parece correto. Não é que ele tenha ceu.56 Se a lei condena, Deus a deu pnrn que, a seguir, ele salvasse com
pensado que a lei, se observada para obter vantagem, mataria, mas se base na fé. É paradoxal, talvez irônico, que tenha sido o esforço de
observada com fé leva ria ao cumprimento da vontade de Deus. Antes, Paulo para harmonizar a vontade de Deus com a função negativa que
quando lhe indagavam, como foi o caso, qual era a condição necessá- sua cristologia exclusivista o levou a atribuir à lei, que finalmente o
ria e s uficiente para pertencer ao corpo de Cristo, ele dizia "não a lei". impeliu a desligar da vontade de Deus o resultado da doação da lei por
Quando ele refletia sobre a função da lei, que ela tinha de ter, pois fora Deus. Esse desligamento tem lugar de dois diferentes modos em Rm 7:
Deus quem a dera, ele era levado por árduos caminhos a relacioná-la Deus queria que a lei fosse cumprida para levar à vida, mas o pecado
com o pecado e com a morte e fazer dela um dos elementos escraviza- usou o mandamento para provocar transgressões; Deus queria que a
dores aos quais os cristãos morrem. Quando, porém, ele ensinava sobre lei fosse cumprida - a mesma premissa -, mas a humanidade, sendo
o comportamento, respondia "cumpri a lei". carnal, se mostrou completamente incapaz de fazê-lo. Num caso o pe-
A virtual equiparação da lei com o pecado e a carne em alguns cado usa a lei contra a vontade de Deus, no outro a vontade de Deus
lugares (p. ex., Rm 6,14; 7,4-6; Gl 5,16-18) não faz parte de vi ão harmo- fica sem efeito por causa da fraqueza da ordem criada. Isto "salva"
niosa da lei que mantém em equiHbrio seus poderes destrutivo e cons- Deus, colocando sua vontade do lado do bem, em vez de imaginá-lo
trutivo, dependendo da resposta humana. 55 Ela se origina, antes, mais pretendendo produzir o pecado ao dar a lei.57 Aí Paulo separa "a von-
imediatamente do fato de Paulo atrfüuir à lei papel negativo no plano tade de Deus" de "o que realmente aconteceu". No mundo de Paulo,
divino de salvação. Essa atribuição provém da sua teoria de que a jus- esta última posição é a mais surpreendente: que Deus tenha falhado;
tificação é só pela fé em Cristo e de que Deus deve ter dado a lei com que sua intenção original ao dar a lei não se tenha realizado. É digno
esta justiça, e não outra, em estudo ultimamente. Em outras palavras, de nota que ''a vontade de Deus" e "o que aconteceu" estão reunidos
as colocações extremamente negativas de Paulo podem ser entendidas de novo em Rm 11,32: "Deus encerrou todos na desobediência, para a
se as imaginamos surgindo organicamente no final de uma cadeia de todos fazer misericórdia".
pensamento que começa com a asserção de que a justificação é pela fé
56
5
Nota 1, acima.
" ote-se a formulação de C. K BARR.ETT: "a lei estava aberta a dois tipos de resposta: "il O motivo da distinção de H OB"fER entre a intenção de Deus ao dar a lei e a dos anjos
uma resposta de fé e uma resposta de obras" (''Romans 9:30-10:21 ", in Essnys º" (aàma) é que atribuir a Deus a intenção de provocar o pecado seria ónko (Gesetz.
Paul (Londres: SPCK, 1982), p. 144). pp. 28s).
112 CAPÍTULO 2 OBJETIVO DA LEI 113

Ai vemos com quanta persistência Paulo atr ibuía a Deus um plano sob coação. 'esse texto, e efetiva mente em toda a carta aos Gálatas,_ a
imutável. o final de uma série de tentativas não inteiramente bem ·déia de Pau lo é que a lei mmca esteve nos planos de Deus como meio
sucedidas de combinar suas convicções a respeito da vontade de Deus, ~e justificação. ão foi ó mais tarde que ela chegou ao fim como tal.
da salvação por Cristo e não pela lei, e d a origem da lei, Paulo virtual- Assim também, em Rm 6 e 7 não se diz que os cristãos morrem para
m ente nega a última em favor das d uas primeiras. É imutável a vonta- a lei enquanto meio de salvação, mas para a lei, para toda a lei; e ela
de de Deus de salvar p or Cristo, e isto é afirmado no fim de numerosas é imaginada como poder escravizador, não como meio potencial de
tentativas de harmoniza r todos os três pontos, embora isso exija qu e se justificação.
d istinga entre o que Deus faz e o que a lei não pôde fazer (Rm 8,3). Em todas essas passagen s se descreve a lei como bloco inteiriço.
Assim, a complexidade das posições de Paulo sobre a lei se deve Ela não ou torga a ju stificação, foi dada por Deu s, está ligada ao pecado,
explicar em parte como reflexo de seqüência de idéias que ava nça em 0 homem morre para ela - em nenhum caso existe di~tinção den tro da
direção a colocações cada vez mais negativas. Paulo procura reverter lei, nem há disti nções entre d iferentes funções da lei. E este o caso ta m-
esse avanço em Rm 7, mas surgem ou tros problemas. Ma is adiante, a bém em Rm 7,14-25. A "lei de Deus" é a lei toda: tod a ela é boa, nada
\risão negativa, que liga o pecado com a vontade de Deus, reaparece dela pode ser cumprido pelos homens carnais.
em Rm 11,32.
Há outro modo pelo qual se pode explicar como Paulo pôde d izer
tantas coisas d iferentes sobre a lei - incluindo, desta vez, as afirma-
ções m ais positivas. Não se p odem harmonizar todas as afi rmações de
Paulo dentro de conjunto lógico,sx mas cada uma pode ser enten did a
como resultante da aplicação de convicções diferentes das suas con-
vicções centrais a problemas diferentes. Quando a sua virtual equ ipa-
ração da lei ao pecado obriga-o a perguntar se eles são idênticos (Rm
7,7), a resposta é inevitável, por causa das suas convicções inatas sobre
a lei, sobre Deus e sobre a imutabilidade d a vontade de Deus. A mes-
ma observação pode ser feita a respeito de cada uma das a firmações
sobre a lei ind ividualmente, mas as várias a firmações não podem ser
man tid as juntas pelas formulações de 8Ul.Th1A\/~ e de KAsEMA -XN, por
m ais incisivas que sejam.
A impropriedade da explicação de B ULTMAN pode ser demons-
trada de outra forma. Quando Paulo fala claramente que a lei d 1egou
ao fim, não diz que se trata de um fim só sob um aspecto, e espe-
cialmente não como caminho de salvação. Ao usar a palavra "até" em
Gl 3,23s, tem em mente a lei como um p edagogo que ma ntém tudo

58
RAlsA..,r., , " Paul's Theologjcal Difficulties", p. 307: "Sou incapaz de harmonizar os
dois blocos de asserções [a saber, as positivas e as negativas]. A explicaçao comum
de que Paulo rejeita a lei como cantinho de salvaçao mas a conserva enquanto
expressão da vontade de Deus em nível ético apenas recoloca o problema com
palavras diferentes" .

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