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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591
ISSN: 1981-1411
Universidade Federal da Bahia

Oliveira, Lucas Amaral de


A CRÍTICA DO CÂNONE E AS SOCIOLOGIAS ALTERNATIVAS
Afro-Ásia, núm. 61, 2020, Janeiro-Junho, pp. 424-437
Universidade Federal da Bahia

DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i61.39209

Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77065180015

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A crítica do cânone
e as sociologias alternativas

ALATAS, Syed Farid e SINHA, Vineeta. Sociological Theory Beyond the Canon.
London: Palgrave Macmillan, 2017. 391p.

Há, entre docentes de Ciências ensino da disciplina em diferentes


Sociais no Brasil, certo estranha- escolas e universidades.
mento em relação aos autores Ainda não traduzido para o
que, comumente, são tratados nos português, o livro de Syed Farid
cursos introdutórios, em especial Alatas e Vineeta Sinha é uma
na Sociologia. Cada vez mais obra que instiga a repensar tanto a
perceptível em virtude do momento docência quanto o próprio cânone
histórico de releituras críticas das da Sociologia. O livro consolida um
tradições, esse estranhamento movimento epistemológico que vem
resulta de uma uniformidade em ganhando forma e força em espaços
relação ao conjunto de sociólogos acadêmicos não hegemônicos – isto é,
que desponta em nossos currículos, fora do eixo “euro-norte-americano”.
que espelha um padrão obsoleto: são Trata-se de reler a tradição sociológica
homens, brancos e do Norte Global. clássica de modo a atentar para os
Isso indica que o eurocentrismo e o perigos das narrativas unívocas, que
androcentrismo seguem sendo colo- fizeram da experiência da “moder-
nialidades persistentes no ensino da nidade europeia” o único pano de
Sociologia em nível global. Basta fundo possível para o surgimento
olhar para as ementas e para os da disciplina. Paralelamente, os/as
manuais e livros didáticos usados no autores/as denunciam os traços de

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dependência acadêmica nos cursos sociais do Sul Global; de outro, a
de Ciências Sociais, posicionando-se defesa de diálogos inter-religiosos,
em defesa de currículos e ementas particularmente no contexto das socie-
que compreendam métodos, funda- dades do Sudeste Asiático, a partir
mentos, categorias e conceitos não de uma perspectiva islâmica crítica.
euro e androcêntricos. Cada autor/a Vineeta Sinha é professora do mesmo
é responsável por cinco capítulos da departamento de Sociologia, onde
obra, sendo a introdução e a conclusão tem se debruçado sobre temas ligados
assinadas em coautoria. Os capítulos à renovação crítica da teoria social,
apresentam biografias sociológicas de à religiosidade hindu na diáspora e
pensadores/as, analisados/as a partir à economia política da assistência
de suas trajetórias intelectuais, suas médica. Sinha trabalha, de um lado,
interfaces com tradições outras e suas com a prática do hinduísmo em
contribuições para o estudo de reali- Singapura, a partir da intersecção entre
dades históricas nas quais estavam religião e mercantilização, e, de outro,
inseridos/as. com o campo da assistência médica de
Syed Farid Alatas é um sociólogo uma Singapura culturalmente plural.
malaio, professor da Universidade O projeto do livro surgiu no final
Nacional de Singapura. Oriundo da década de 1990, durante um curso
de uma família de intelectuais de graduação sobre teoria socio-
renomados,1 Alatas tem se mostrado, lógica clássica que os/as autores/as
nas últimas duas décadas, um teórico ensinaram juntos/as. Como informam
engajado em duas frentes: de um lado, na introdução do livro, “Eurocentrism,
a denúncia do “eurocentrismo latente” Androcentrism and Sociological
nas Ciências Sociais, identificando Theory”,2 os textos-bases dos cursos de
“sociologias alternativas” (p. 337) introdução à Sociologia, em diferentes
como forma de fortalecer as teorias regiões do mundo, refletem dois vieses
que espelham o campo globalmente:
1 Ele é sobrinho do filósofo muçulmano
Syed Muhammad Naquib Alatas e filho 2 Vale indicar uma tradução dessa parte
do historiador e cientista social Syed introdutória da obra, feita por Bárbara
Hussein Alatas. Sua obra reflete uma Vítor e publicada no blog do Laboratório
interlocução crítica com essa tradição de Estudos de Teoria e Mudança Social
intelectual da qual é herdeiro. (LABEMUS) .

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o eurocentrismo e o androcentrismo. Karl Marx, Max Weber e Émile
Em termos gerais, trata-se da negli- Durkheim –, mas oferecendo “corre-
gência de fontes não ocidentais e tivos necessários” (p. 2) aos
de vozes femininas na composição currículos e às ementas, de modo a
do repertório teórico-metodológico destacar intelectuais não ocidentais
clássico, sobretudo no que tange ao e teóricas/pensadoras negligenciadas
período inicial de desenvolvimento da pela tradição. Segundo, compor um
disciplina. Mas, apesar da denúncia, repertório conceitual que vá além
os/as autores/as não advogam pela da experiência da “modernidade
retirada da teoria sociológica ocidental europeia” (Iluminismo, Revolução
dos currículos de instituições não Industrial e Revolução Francesa),
ocidentais. Em vez disso, reivindicam, pano de fundo para a emergência
a partir de suas próprias experiências da disciplina no Ocidente, pautando
de ensino, outro tipo de abordagem forças sociais, políticas, históricas e
pedagógica, mais inclusiva, pautada intelectuais que acarretaram reflexões
no compromisso de sintonizar os/as sistematizadas em outros locais do
estudantes com demais representantes mundo, com atenção para processos
possíveis da teoria sociológica. Aliás, ausentes na teoria clássica dominante,
esse tensionamento epistemológico como o próprio colonialismo (p. 4).3
é um modo de legitimar os clássicos
ocidentais, na medida em que revela 3 Com influência de Edward Said, o livro
suas qualidades atemporais, ao mesmo pensa os “territórios sobrepostos” e as
“histórias entrelaçadas”, na medida em
tempo em que acusa seus limites que procura preencher as lacunas das
narrativas sociológicas dominantes,
conceituais, metodológicos, políticos
sobretudo quando analisa as conexões entre
e ideológicos. a revolução industrial na Grã-Bretanha e o
colonialismo em territórios não europeus.
O livro possui dois desígnios. Com o exame da constituição dupla da
Primeiro, fazer as vezes de um “manual modernização europeia e da manufatura
na Índia, Alatas e Sinha se aproximam,
alternativo” de introdução à Sociologia, também, das análises de Gurminder K.
recurso para o ensino crítico da teoria Bhambra e Julian Go, afirmando que
qualquer discussão sobre o capitalismo que
clássica, abordando, a partir de uma não leve em conta a experiência colonial,
e o racismo embutido em sua lógica,
perspectiva pós-colonial, autores é incompleta. Cf. Edward Said, Cultura
pioneiros no contexto europeu – como e Imperialismo, São Paulo: Companhia

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Em conformidade com esses integrados aos marcos das Ciências
dois objetivos, o primeiro capítulo, Sociais modernas. A ausência de uma
de Alatas, aborda Ibn Khaldun (1332- Sociologia khalduniana, por exemplo,
1406), um dos mais célebres filósofos é mais surpreendente quando se
muçulmanos. O texto Muqaddimah, ou percebe que ele desenvolveu reper-
Prolegomenon, de 1377, de Khaldun – tórios teórico-metodológicos que se
trabalho que serviu de introdução ao enquadram nos programas de uma
Kitāb al-ʿibar (O Livro das Lições), Sociologia positiva – em oposição ao
em que o filósofo delineia sua hipótese estudo normativo do social –, o que o
sobre a “história cíclica” –, é erigido aproxima de Comte, Spencer, Saint-
por Alatas à condição de preâmbulo Simon e outros precursores europeus.
da Sociologia (p. 20), uma vez que Outro sinal da marginalização de
ele se propôs a examinar as causas Khaldun é o fato de que, mesmo
primeiras, a estrutura constituinte e o celebrado no mundo árabe, é raro vê-lo
sentido da história universal, objetivos em cursos de Ciências Sociais ao lado
que Khaldun atribuiu à nova “ciência dos “pioneiros” europeus. Ao tratar
da sociedade humana” (p. 21). desse processo de marginalização
Alatas nota a originalidade dessa disciplinar pela qual passam figuras
proposta científica para pensar os como Ibn Khaldun, Alatas (pp. 42-43)
processos de mudança histórica de se aproxima de Raewyn Connell,
maneira sistemática, positiva e não mostrando como intelectuais fora do
normativa. No entanto, mesmo que eixo hegemônico são vistos como
se reconheça a importância de Ibn fontes de dados históricos brutos,
Khaldun na história das ideias, o grau mas quase nunca como propositores
desse reconhecimento não respeita principais de ferramentas relevantes
sua grandeza teórica, pois seus para o estudo da contemporaneidade;
diagnósticos e conceitos não foram ou seja, sempre como objetos, e não
sujeitos do conhecimento científico.4
das Letras, 2011; Gurminder K. Bhambra,
Rethinking Modernity: Postcolonialism and 4 Ver Raewyn Connell, Southern Theory:
the Sociological Imaginatio, Basingstoke: The Global Dynamics of Knowledge
Palgrave Macmillan, 2009; e Julian Go, in Social Science, Cambridge: Polity
Postcolonial Thought and Social Theory, Press,  2007; e Raewyn Connell,
Nova York: Oxford University Press, 2016. “Cânones e colônias: a trajetória global da

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O segundo capítulo, também de ao longo de sua trajetória: enquanto
Alatas, é dedicado a Karl Marx (1818- em 1853 ele manifesta otimismo
1883). Trata-se de um panorama de quanto à “dupla missão do colonia-
sua obra e de suas principais contri- lismo” na Índia,6 em 1881 ele passa
buições, seguido de uma interessante a denunciar o “vandalismo” inglês
crítica pós-colonial aos seus pressu- na extinção da propriedade comuni-
postos – assim como já fizeram Crystal tária da terra, política que acabou
Bartolovich, Neil Lazarus e Kevin empurrando o povo autóctone não
Anderson.5 Ao questionar em que para a dianteira da história, mas para
medida a perspectiva marxiana pode trás (p. 60). Para Alatas, embora seja
ser considerada eurocêntrica, Alatas problemático o entendimento de Marx
localiza duas brechas no arcabouço sobre a natureza e o funcionamento
analítico de Marx. A primeira é a das “sociedades asiáticas”, informada
“crença” do autor alemão na ideia por alguns preconceitos históricos,
de uma singularidade do feudalismo uma perspectiva crítica sobre sua
europeu para o desenvolvimento do obra nos conduz não a “cancelá-lo”,
modo de produção capitalista, reflexão mas a resgatá-lo de si mesmo, de suas
presente, sobretudo, nos Grundrisse, pré-suposições eurocentradas, e apurar
de 1858. O efeito disso é que as o que segue útil e atemporal de seu
sociedades não ocidentais, às vezes, pensamento.
são representadas como entraves ao O terceiro capítulo, dedicado
desenvolvimento do capitalismo. a Harriet Martineau (1802–1876),
A segunda trata das diferentes posições escrito por Vineeta Sinha, apresenta e
de Marx sobre a experiência colonial analisa a vida e a obra dessa intelectual
da Inglaterra vitoriana que, a despeito
Sociologia”, Revista Estudos Históricos, v. dos constrangimentos de sua época,
32, n. 67 (2019), pp. 349-367.
5 Leituras pós-coloniais de Marx já foram logrou sucesso na escrita profissional.
feitas em outras ocasiões. Ver Crystal Contudo, mesmo fazendo parte de
Bartolovich e Neil Lazarus (orgs.),
Marxism, Modernity, and Postcolonial
Studies, Cambridge: Cambridge University
Press, 2002; e Kevin Anderson, Marx 6 De um lado, a aniquilação da velha
nas margens: nacionalismos, etnias e sociedade asiática e, de outro, o lançamento
sociedades não ocidentais, São Paulo: das bases materiais para a emergência da
Boitempo, 2019. “sociedade ocidental na Ásia” (p. 59).

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um círculo intelectual vibrante e Comte e Durkheim, Sinha salienta
tendo publicado, ainda em vida, suas contribuições metodológicas para
uma obra vasta, ela ficou à margem delinear e sistematizar as “ciências
das principais teorias sociais de seu sociais e morais” (p. 85), que deveriam
tempo, padecendo de um esqueci- basear-se no modelo das ciências
mento acadêmico que é a base do naturais. Martineau foi uma entusiasta
androcentrismo (p. 108). O capítulo do positivismo, escreveu sobre os
constitui o esforço de reconhecer fundamentos metodológicos da ciência
o valor sociológico de Martineau, e foi a tradutora do Curso de Filosofia
aproximando suas contribuições às de Positiva, de Comte, para o inglês,
Marx, Tocqueville, Comte e Durkheim. em 1853 (p. 82). Sua obra How to
Com Marx, a justaposição é feita com Observe Morals and Manners, de 1838,
os escritos de Martineau de 1832, é comparada com um dos clássicos
1833 e 1834, Illustrations of Political do cânone sociológico, As regras do
Economy, obra de sucesso popular na método sociológico, de Durkheim,
qual ela usa da ficção para explicar a de 1895. O texto da teórica britânica
um público leigo o funcionamento antecede a obra do sociólogo francês
dos processos estruturais de produção, em cerca de seis décadas, no qual ela
distribuição, troca e consumo de elabora os princípios do empirismo,
mercadorias. A aproximação com do positivismo e da objetividade das
Alexis de Tocqueville é feita a partir das ciências sociais e morais, propondo
reflexões etnográficas de Martineau, métodos (como a observação parti-
reunidas em Society in America, cipante) para um conhecimento
de 1837. Resultado de uma estadia de mais devido dos problemas sociais.
dois anos nos EUA, a autora abordou Porém, o reconhecimento das contri-
a sociedade estadunidense da primeira buições de Martineau não a exime de
metade do século XIX, questionando críticas quanto ao seu eurocentrismo.
os limites da democracia no país e Ela admirava a indústria britânica e
mostrando como mulheres, escravi- percebia o capitalismo como motor
zados/as e pobres ficavam de fora do de progresso para todas as socie-
campo da política formal (p. 100). dades, caracterizando a economia do
Para trazer Martineau ao debate com livre mercado como os únicos vetores

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possíveis dos processos de moder- qual o Ocidente aparece sempre à
nização. Soma-se ao seu entusiasmo frente na linha da história, repre-
pelo capitalismo industrial britânico sentando o progresso, ao passo
sua defesa da colonização na Índia. que ao Oriente resta o espólio do
Assim, o eurocentrismo de Martineau atraso. Porém, Alatas argumenta
pode ser problematizado a partir de sua que o orientalismo weberiano deve
perspectiva acerca do capitalismo como ser interpretado em dois vetores.
um fenômeno universal, inevitável Um deles se refere ao orientalismo
e progressivo, sendo o colonialismo nas obras do próprio Weber; o outro,
visto como um dos braços da missão a como o orientalismo foi atribuído
civilizadora da Grã-Bretanha em seus a ele por seus intérpretes (p. 126).
territórios ultramarinos. Alatas diz que é preciso cuidado
O quarto capítulo, dedicado a com acusações anacrônicas. Weber
Max Weber (1864-1920), de Alatas, não afirmou categoricamente que o
também traz uma releitura do clássico capitalismo não poderia existir para
alemão. Tal como Marx é lido através além do Ocidente; sua tese é que a
da crítica ao eurocentrismo, Weber atitude de ganho e lucro comercial,
é lido tendo em conta o seu orienta- baseada no cálculo racional (“espírito
lismo. Para tanto, Alatas parte de três capitalista”), pôde emergir no
hipóteses weberianas: foi no Ocidente Ocidente em razão dos atributos do
que o capitalismo moderno pôde ascetismo mundano de doutrinas
se desenvolver em sua forma mais protestantes dos séculos XVI e XVII,
elaborada; apenas no Ocidente havia como o calvinismo.
os pré-requisitos para a ascensão do O quinto capítulo, também
capitalismo; e uma religião ocidental de autoria de Alatas, é dedicado a
(o protestantismo) desempenhou José Rizal (1861-1896), importante
papel único e inigualável no desen- pensador e nacionalista filipino do final
volvimento de uma mentalidade do período colonial. Oftalmologista de
capitalista. Alatas mostra, com isso, profissão, Rizal foi um escritor que
como Weber não conseguiu fugir dedicou a vida a denunciar as bases
de uma posição orientalista, que e os efeitos do domínio colonial sobre
atravessou a sua época, segundo a as populações nativas. Intelectual e

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militante comparável a Simón Bolívar O sexto capítulo, dedicado a
(1783-1830) e José Martí (1853-1895) Émile Durkheim (1858-1917), é de
na América Latina, a teoria social de autoria de Vineeta Sinha, que utiliza
Rizal nasce da experiência colonial e como prisma de leitura um hiato
bifurca-se em quatro frentes: análises na obra do sociólogo francês: sua
a respeito dos problemas de uma negligência com a questão colonial.
sociedade sob julgo colonial (p. 144); Uma das causas desse desinteresse
críticas à edificação colonial espanhola se deve à forma normativa como
da história filipina, assim como Durkheim abordou a transição
da imagem orientalista do filipino da “sociedade tradicional” para a
construída por narrativas metropoli- “sociedade moderna”, processo
tanas, que retratam um ser tipicamente avaliado como benéfico, necessário
indolente e preguiçoso (p. 162);7 e desejável. A pergunta que fica em
a preocupação política com as possi- relação à obra de Durkheim gira em
bilidades de independência (p. 163); torno dos desafios de uma leitura
e o cuidado metodológico com a crítica alternativa, e não anacrônica,
análise do colonialismo (p. 167). de suas contribuições. Talvez mais
importante do que nos perguntar se
7 Este ponto me parece interessante, e por quê Durkheim deve ser traba-
sobretudo em um contexto de críticas
pós e decoloniais que tensionam a forma
lhado, hoje, nos cursos de Ciências
orientalista que as metrópoles usaram para Sociais, é como ele deve ser lido, haja
representar “o colonizado”, imaginado
como “avesso ao trabalho”. Trata-se do vista que seus escritos, conceitos e
“mito da preguiça do subalterno”, discussão propostas metodológicas continuam
presente em diversas tradições intelectuais,
seja na América Latina e no Caribe, na a influenciar gerações de estudantes
África ou na Ásia. Cf. Syed Hussein Alatas,
de Ciências Sociais. Como a
The Myth of the Lazy Native: A Study of
the Image of the Malays, Filipinos, and Sociologia contemporânea pode se
Javanese from the 16th to the 20th Century
and its Function in the Ideology of Colonial debruçar sobre a obra durkheimiana?
Capitalism, Londres: Frank Cass, 1977; É possível uma análise não conven-
Frederick Cooper, Rebeca Scott e Thomas
Holt, Além da escravidão: investigações cional de seus aportes analíticos?
sobre raça, trabalho e cidadania em socie- O sétimo capítulo, sob respon-
dades pós-emancipação, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005; e Elisete sabilidade de Alatas, trata de
Zanlorenzi, “O mito da preguiça baiana”
(Tese de Doutorado, USP, São Paulo, 1998).
Said Nursi (1877-1960), teólogo

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muçulmano que advogava em prol escrito por Sinha, que pontua duas
de um diálogo entre ciência, lógica, contribuições da teórica indiana. Em
história e religião. Embora lido primeiro lugar, a partir de uma análise
como reformador do Islamismo, de trajetória, Sinha revela uma obra
Alatas argumenta que falta às centrada na preocupação com o status
tradições intelectuais ocidentais e das mulheres em uma sociedade
orientais, de um lado, uma atenção patriarcal submetida, por um lado,
às suas contribuições conceituais ao rígido sistema de castas hindu e,
e analíticas e, de outro, ao seu por outro, ao violento colonialismo
projeto de desenvolvimento de britânico. A socióloga singapurense
uma teologia social. Em relação à propõe uma leitura pós-colonial da
primeira, Alatas sugere uma análise pensadora indiana, abordando os
contemporânea do modo como o diferentes tipos de engajamento de
pensador turco tratou questões de Ramabai com relação à opressão
classe, etnia e religião. Em relação enfrentada pelas mulheres hindus na
à segunda, Alatas diz ser necessário transição do século XIX para o XX.
comparar e contrastar Nursi com Embora Ramabai tenha estabelecido
outros pensadores muçulmanos, bases para o movimento de libertação
como Jamal al-Din al-Afghani, das mulheres em seu país, ela adotou
Syed Shaykh al-Hady e Ali Shariati, uma agenda reformista/liberal que
e ao mesmo tempo estender essas acabou corroborando projetos “civili-
aproximações à tradição católica da zadores” e missionários do discurso
Teologia da Libertação na América colonial. Em segundo lugar, Sinha
Latina, tendo em vista as afinidades aproxima Ramabai de Martineau
de ambas as propostas para pensar e Tocqueville, trazendo à tona
a relação entre religiosidade e The Peoples of the United States, obra
laicidade, bem como as importâncias na qual a teórica constrói um relato
dadas às virtudes terrenas – amor, para o público indiano sobre o sistema
respeito, compaixão, cooperação e de governo, as condições sociais e
solidariedade entre povos. econômicas, as esferas da educação,
Pandita Ramabai (1858-1922) do comércio e da indústria, a relação
é analisada no oitavo capítulo, entre política e religião e o status das

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mulheres nos EUA. Trata-se de uma e a dinâmica da sociedade britânica
narrativa vanguardista, que reflete do século XIX – como em sua análise
uma perspectiva pós-orientalista sobre causal da fome e pobreza no período
a sociedade estadunidense (p. 259), vitoriano, ou em seu uso da estatística
a partir da qual a paisagem sociopo- e de outros procedimentos científico
lítica, cultural, econômica e religiosa para diagnosticar problemas sociais e
é lida através de um olhar feminino, propor reformas apropriadas.
feminista, indiano e anticolonial. A trajetória de Benoy Kumar
O nono capítulo trata da intelectual Sarkar (1887-1949) é tratada no
britânica Florence Nightingale (1820- último capítulo, escrito por Sinha.
1910). Aqui, Sinha explora as três Professor do Departamento de
formas pelas quais o androcentrismo Economia da Universidade de
se faz presente na historiografia Calcutá, Sarkar é autor de uma vasta
das Ciências Sociais ocidentais: na produção intelectual, que abrangeu
negação ou oclusão da presença Ciências Sociais, Economia, História,
das mulheres como pensadoras e Filosofia Política e Teoria Literária.
teóricas; no reconhecimento errático Sinha mostra como Sarkar estabe-
ou problemático de suas contribuições leceu interfaces importantes com
para a disciplina; e na sub-represen- intelectuais ocidentais em Villages
tação de suas atuações, diminuindo and Towns, de 1941, no qual o
seus papeis enquanto produtoras teórico indiano acusa Marx, Weber,
de conhecimento válido sobre seus Durkheim e Freud de adotarem um
respectivos momentos históricos. “determinismo monístico” em seus
Apesar de sua importância na história aportes sobre a mudança social.8
da enfermagem e da saúde pública, Outro ponto levantado pela socióloga
Nightingale foi vítima desse processo, se refere ao apelo constante que Sarkar
ficando de fora de manuais, livros fazia para que a “Eur-America” fosse
didáticos, currículos e cursos. Mesmo
assim, suas contribuições foram 8 Marx é acusado, por Sarkar, de “deter-
minismo econômico”; Durkheim, por
sub-repticiamente incorporadas, sem sua vez, de um “societarianismo”;
o devido reconhecimento, ao saber Weber, de um “tipologismo falacioso”;
ao passo que Freud, de um “determi-
científico acumulado sobre a estrutura nismo sexológico” (p. 310).

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um tema de estudo das Ciências com o salazarismo e a ditadura militar
Sociais indianas, e não só espaço de no Brasil, é preciso averiguar em que
produção de análises sobre o Oriente. medida as ambivalências de Sarkar
O teórico operava com um quadro de estão comprometidas em razão de seu
referências cosmopolita e “transa- apoio às ideias de engenharia social
siático” (p. 332), reconhecendo colocadas em prática por Hitler, a
características unificadoras no espaço despeito de sua verve independentista
rotulado, hoje, como “Ásia” – apesar e de sua defesa pelo fim da subju-
de sua diversidade interna. gação colonial.
No entanto, ainda que seja Há outro deslize na obra que
importante ampliar o cânone das deve ser observado, o mesmo que,
Ciências Sociais, é preciso cuidado usualmente, aparece em parte da
com essa ampliação, como já alertado Sociologia eurocêntrica criticada
por Raewyn Connell e Boaventura por Alatas e Sinha: a tendência para
de Sousa Santos et al.9 Sinha lembra dividir a “boa” teoria do pensamento
que, em 1934, Sarkar declarou social. Para os/as autores, o pensa-
apoio ao hitlerismo, afirmando que mento difere da teoria no sentido
o “movimento” alemão pregaria de que não está sistematicamente
um “autoempoderamento nacional” articulado, contendo reflexões sobre
(p. 323), algo ausente na Índia moderna. experiências, opiniões e juízos,
Como Martin Heidegger foi relido mas não as elaborando por meio
em vista de sua proximidade com o de definições formais, conceitos
nazismo, Evans-Pritchard de trabalho e abstrações teóricas. Ainda que
prestado a missões coloniais inglesas, asseverem que essa divisão não torna
ou Gilberto Freyre de sua simpatia o pensamento social menos impor-
tante que a teoria, acabam colocando
em uma escala assimétrica de impor-
9 Cf. Boaventura de Sousa Santos, João
Arriscado Nunes e Maria Paula Meneses, tância os dois tipos de contribuições.
“Introdução: para ampliar o cânone da Isso tem uma consequência: ratifica
ciência”, in Boaventura de Sousa Santos
(org.), Semear outras soluções: os uma geopolítica científica historica-
caminhos da biodiversidade e dos conhe- mente desigual, que apregoa que o
cimentos rivais (Porto: Afrontamento,
2004), pp. 19-101. Norte Global (ou Ocidente) produz

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teorias sociológicas com pretensões ementas, que a Sociologia seria uma
explicativas universalistas, ao passo disciplina exclusivamente ocidental.
que ao resto do mundo concede-se A maior evidência desse colonialismo
o epíteto de teorias locais semiau- é que os cursos são ministrados da
tônomas, inscritas sob a égide mesma maneira em universidades
de um “pensamento social” cujo europeias, asiáticas, africanas e latino-
alcance analítico não ultrapassa suas -americanas, gerando dois problemas:
respectivas fronteiras regionais. precursores/as não ocidentais, não
O maior indício dessa divisão brancos/as e não homens são deixados/
aparece, na obra, na própria seleção as de lado do cânone e, consequente-
e disposição de pensadores/as: Ibn mente, dos currículos e das ementas; e
Khaldun, Marx, Weber e Durkheim a teoria sociológica clássica dominante
são claramente teóricos e tratados não é contextualizada, e sim genera-
enquanto tais, mas não fica claro se lizada arbitrariamente, desprendida da
o mesmo pode ser dito a respeito de realidade empírica dos/as estudantes
Martineau, Ramabai, Nightingale, de diferentes partes do mundo e,
Rizal e Sarkar. logo, falhando em oferecer pontos de
Apesar do deslize, Sociological referência “locais” para as teorizações.
Theory Beyond the Canon é um Em segundo lugar, Alatas e Sinha
acontecimento na seara de discussões logram ressignificar e problematizar
sobre dependência acadêmica, as noções de eurocentrismo e andro-
colonialidades do saber e geopo- centrismo. Para eles/as, eurocentrismo
lítica do conhecimento nas Ciências é um termo que precisa ser entendido
Sociais, sobretudo porque extrapola para além de seu sentido literal,
os próprios objetivos a que se propõe, conotando também uma posição
oferecendo três grandes contribuições epistemológica, uma maneira de ver
para o debate. e não ver que se encontra histori-
Primeiro, o livro desnuda a forma camente enraizada. Nesses termos,
como disciplinas introdutórias de a descolonização de um curso de teoria
Sociologia ainda estão submetidas a sociológica clássica ou de introdução
um tipo de colonialismo epistemo- à Sociologia, por exemplo, deveria
lógico que sugere, nas entrelinhas das “corrigir” o viés eurocentrado dos

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currículos, lidando com pensadores/ Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha
as não ocidentais ao lado dos autores em construir uma outra narrativa da
“consolidados”. Mas, para além dessa Sociologia clássica, buscando “socio-
correção histórica, também é neces- logias alternativas” em diferentes
sário estabelecer críticas sistemáticas tradições intelectuais, informadas
ao androcentrismo no interior da por experiências históricas e práticas
disciplina, de maneira a apresentar as situadas, tomadas como fontes poten-
fundadoras da Sociologia a estudantes. ciais de teorias, conceitos e métodos.
Androcentrismo, portanto, se refere Essas narrativas contra-hegemônicas,
à forma como a tradição ocidental ou heterotópicas, podem ser um
reproduziu exclusivamente aportes de caminho para diminuir a dependência
estudiosos homens. Harriet Martineau, acadêmica no contexto da geopolítica
Florence Nightingale, Pandita Ramabai do conhecimento sociológico e, com
– às quais podemos somar Harriet efeito, impulsionar uma efetiva inter-
Taylor Mill, Olympe de Gouges, Zora nacionalização da Sociologia global.
Hurstonm Clara Zetkin, Flora Tristan, Trata-se de pensar a teoria sociológica
Mary Wollstonecraft, Alessandra de forma mais aberta, inclusiva,
Kollontai, Nísia Floresta, Charlotte criativa, autônoma, evitando toda
Perkins Gilman, Rosa Luxemburgo sorte de essencialismo, orientalismo,
e tantas outras – são só alguns nomes eurocentrismo e androcentrismo. Isso
ausentes de uma longa lista de pensa- não significa que os cursos de intro-
doras/teóricas sociais pioneiras, porém dução à Sociologia devam, a partir de
ocultadas da tradição. O não reconheci- agora, incluir Rizal ou Martineau em
mento de contribuições e perspectivas seus currículos e ementas. Isso seria
femininas nos arquivos da disciplina tão arbitrário e dogmático quanto
sinaliza a marginalização das mulheres a própria omissão da qual esses/as
na historiografia das Ciências Sociais. autores/as sofrem. O que Alatas e
Por último, além de promover Sinha fazem é mostrar como é possível
pensadores/as e teóricos/as negligen- construir, a partir de tradições locais,
ciados/as, a partir de uma experiência um curso e uma ementa de Sociologia
de ensino de teoria sociológica em que levem em conta uma seleção
Singapura, é notável o esforço de mais heterogênea e descentrada de

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teóricos/as. O efeito dessa abertura é, disciplina, decolonizá-la, tornando-a
muito mais que ampliar o cânone da cada vez menos euro e androcêntrica.

Lucas Amaral de Oliveira


Universidade Federal da Bahia

doi: 10.9771/aa.v0i61.39209

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