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ANO 28 ● N. º 1 ● janeiro-abril 2018 ● : JORGE DE FIGUEIREDO DIAS
Periodicidade quadrimestral • Preço desta edição: Euros 20,00 (IVA incluído)

30 ANOS
DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

SEPARATA
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME
DE RECURSOS EM PROCESSO PENAL ∗

José M. Damião da Cunha


Professor Associado da Universidade Católica Portuguesa
Centro de Estudos e Investigação em Direito
Faculdade de Direito — Escola do Porto

I. Introdução

Em regra, a discussão sobre o sistema de recursos é realiza-


da na perspetiva do direito “subjetivo” de recurso. Ou seja, se há
recursos a mais ou recursos a menos para um determinado sujeito
processual (no caso, o arguido, ou então em consideração mais
geral). Estando seguramente em causa uma temática relevante, tal
perspetiva, quando domina “totalitariamente” a discussão, obnu-
bila uma outra dimensão que deve estar associada aos recursos:
aquela dimensão dita objetiva ou institucional. De facto, os recur-

O presente texto corresponde, nos temas abordados, às nossas intervenções
realizadas nos colóquios “30 Anos do Código de Processo Penal”, organizados
pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto e pela Faculdade de Direito
da Universidade Lusófona de Lisboa, em abril e novembro de 2017. Aproveitou-
-se, no entanto, para aprofundar alguns pontos temáticos que os limites de uma
intervenção oral não permitiriam.

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sos pressupõem a existência de órgãos do Estado que exerçam a


função de julgamento de recursos — ou seja, Tribunais. E estes
Tribunais — os Tribunais de recurso — não deixam de ser órgãos
integrantes de uma função de soberania. Por isso mesmo, os re-
cursos e os tribunais de recurso devem estar submetidos aos prin-
cípios axiológicos e sistemáticos comuns à função jurisdicional,
seja no juízo de recurso (obedecendo, p. ex., ao princípio do justo
processo) seja nas instituições decisórias de recurso (que devem
estar subordinadas aos princípios e fundamentos legitimadores
dos Tribunais). São assim órgãos que devem pautar-se pela mesma
ideia de imparcialidade, independência, transparência, de garantia
do reforço de confiança comunitária na Administração da justiça,
tal qual sucede com os tribunais de 1ª instância. Com efeito, o
recurso é um meio de fazer explicitar a organização judiciária,
concretizado num ato processual, tradutor do exercício do direito
de ação, que coloca em movimento e em atuação órgãos jurisdi-
cionais próprios.
Neste breve apontamento, pretendemos chamar a atenção
para alguns aspetos do atual sistema institucional de recursos que
se nos afiguram estar em contradição com postulados do exercício
da função jurisdicional e em particular da função que cabe ao mais
alto tribunal — o Supremo Tribunal de Justiça.
De uma perspetiva subjetiva, i. e., do ponto de vista dos inte-
ressados, faremos, embora com carácter mais limitado, uma refe-
rência à mais recente evolução em matéria de direito de recurso do
arguido e sobretudo à evolução legislativa sobre direito de recurso
da “vítima-assistente”.

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II. A Instituição “Tribunal de recurso” após a revisão


de 2007

1.1 O acesso ao STJ e a organização judiciária

A primeira coordenada político-legislativa que é afirmada


pelo legislador, nas alterações introduzidas em 2007, encontra-se
na determinação do acesso ao STJ com base em penas concre-
tas — no anteprojeto de Revisão do Código de Processo Penal,
fazia-se referência às penas de prisão superior a cinco anos e oito
anos. Como aí se dizia: “Para restringir o recurso de segundo grau
perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior mere-
cimento penal, substitui-se, no artigo 400.º, a previsão de limites
máximos de penas de prisão superiores a 5 e 8 anos, por uma re-
ferência a penas concretas com essas medidas”. Deixaremos aqui
de lado uma análise da situação legislativa que medeia o lapso
temporal entre 2007 e 2013. Com efeito, apesar da proclamação e
da expressa referência àquelas penas concretas, a verdade é que a
versão definitiva do CPP, na Revisão de 2007, determinava na al.
e) do nº 1 do art. 400º do CPP como limite de acesso ao STJ a pena
não privativa de liberdade. Esta “traição” da lei positiva à procla-
mação constante do Anteprojeto levou o STJ a empreender um
esforço de “reconstrução” do sistema, por via “interpretativa” ou
de aplicação retroativa, que, no entanto, embateu nas decisões (ne-
gativas) do Tribunal Constitucional (1). Só em 2013 e por expressa

(1) 
Acórdão nº 324/2013 que decide “julgar inconstitucional a interpre-
tação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do
artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal,
na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível
o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da
liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha

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alteração legislativa é que o sistema de recursos determinado por


penas concretas ficou devidamente clarificado, com a expressa
indicação de pena superior a cinco anos de prisão na al. e) do nº1
do art. 400.º
Assim, tanto no recurso direto (matéria que iremos analisar em
momento posterior) como no segundo grau de recurso para o STJ
a recorribilidade fica dependente da decisão do tribunal a quo (em
especial, dependente da pena que aplique).
O recurso determinado por pena concreta, aplicada pelo tribunal
do qual se recorre, é solução que se nos afigura de “heterodoxa”, na
perspetiva de transparência e confiança na Administração da Justiça.
Para explicar melhor esta afirmação, vamos, antes de mais,
chamar a atenção para alguns aspetos do regime de recursos vi-
gente no direito processual penal nacional, pela sua “singulari-
dade” dentro do panorama judiciário comparado e do da tradição
nacional, com particular relevo no recurso interposto, em segunda
instância de recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, os sistemas ou organizações judiciários de Estados de
Direito Democrático (de cultura “civil law” — continental) asso-
ciam, em regra, a instituição do regime de recursos ao momento
em que se determina o tribunal de 1.ª instância competente (no-

aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalida-


de em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da Re-
pública Portuguesa)”; e ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 399/2014
que decide “julgar inconstitucional a interpretação  normativa do artigo 400.º,
n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º
20/2013, de 21 de fevereiro, segundo a qual, aquele artigo, com a redação dada
por esta Lei, constitui norma interpretativa do mesmo artigo com a redação ante-
rior - ou seja, a que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto - sendo, por
isso, de aplicação imediata a estatuição da irrecorribilidade de acórdãos proferi-
dos, em recurso, pelas relações que apliquem pena de prisão não superior a cinco
anos, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º,
n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa)”.

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meadamente para efeito de recurso de Apelação e Revista e deter-


minação dos respetivos órgãos competentes). Tal deve-se natural-
mente ao facto de a estrutura organizatória e hierárquica judiciária
estar dependente ou da “qualidade” (da “composição”) do tribunal
de 1ª instância ou da gravidade do processo, ou seja, em função
da gravidade do crime, tal qual se encontra descrito da acusação.
Deste modo, as “partes”, tendo conhecimento de qual o tribunal de
1ª instância competente, podem prever os graus de recurso que se
lhe “abrirão” no horizonte processual (e consequentemente as fun-
ções e competências de cada grau /tribunal de recurso), em função
de possíveis decisões favoráveis ou desfavoráveis, garantindo-se
assim a previsibilidade e a controlabilidade do processo, nas di-
versas instâncias, e assegurando-se, do mesmo modo, a tutela da
confiança da comunidade no exercício da função jurisdicional (2).
O respeito destes princípios foi, durante muito tempo, uma
realidade no Direito Processual Penal Português; pelo menos até à
Revisão de 2007. Assim sucedia na versão originária do CPP, onde
havia apenas um grau de recurso, mas determinado pela “qualida-
de” do tribunal de 1ª instância.
De resto, a doutrina nacional “mais clássica” também acen-
tuava esta ideia; p. ex., Cavaleiro de Ferreira, Curso de Proces-
so Penal, Vol. I, Lisboa, 1955, p. 177, referia: “a determinação
da competência faz-se primeiramente quanto ao julgamento em
primeira instância. A competência dos tribunais de recurso, em
segunda ou última instância, quando haja recurso, ou se verifi-
quem os dois graus de recurso, determina-se em função da fixação

  Com efeito, o princípio da previsão legal do tribunal competente (in-


(2)

cluindo, o de recurso), segundo critérios abstratos (i. e., de acordo com critérios
objetivos, não dependentes de um ato decisório concreto “externo”, ou “interno”
da Administração da Justiça), visa garantir a controlabilidade e a determinabilida-
de do acesso aos graus de jurisdição (aos Tribunais) e também prevenir qualquer
abuso em matéria de acesso ao tribunal.

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da competência em 1ª instância. Do mesmo modo, Figueiredo


Dias refere que o princípio do juiz natural visa estabelecer uma
organização judiciária fixa (Direito Processual Penal, I, Coimbra,
1984 (reimp.), p. 331).
A Revisão de 1998 manteve-se firme nestes princípios, fazendo
distinguir a tramitação do recurso, consoante a “composição” do
tribunal de 1ª Instância — dificuldades interpretativas só se coloca-
ram no âmbito da tramitação dos recursos interpostos de decisão do
tribunal coletivo, em consequência da regra de conformidade.
Observe-se que uma coisa é discutir a legitimidade para re-
correr (tal requisito pressupõe que esteja já à disposição das partes
um “tribunal natural”, instituído previamente para efeito de inter-
posição de recurso); outra coisa é a recorribilidade, pressuposto
prévio da legitimidade para recorrer.
Assim, determinada, previamente, a recorribilidade de uma
decisão, será em função da decisão proferida que se discutirá, em
concreto, a legitimidade ou o interesse para recorrer, relativamente
a cada um dos sujeitos processuais afetados pela decisão.
Na vigente ordenação do processo penal nacional — ou seja,
após a entrada em vigor do regime instituído pela Lei nº 48/2007,
com as alterações introduzidas pela Lei nº 20/2013 –, o sistema de
recursos afasta-se da tipologia “cultural civilizacional judiciária”
mais corrente, pois que, sendo “a ascensão” na hierarquia dos tri-
bunais determinada por decisões concretas — e determinada, não
apenas para efeito de saber para quem a decisão é desfavorável
(ou seja, para averiguar de quem tem legitimidade ou interesse em
recorrer), mas sobretudo para saber se há ainda uma outra (segun-
da) instância de recurso (isto é, para efeito de determinação da
própria recorribilidade da decisão que acabou de ser proferida)
–, os sujeitos processuais só podem saber se há (outro) grau de
recurso, em função do conteúdo da decisão proferida pelo tribunal
(de recurso: no caso, a relação) do qual se recorre (ou, então, pro-

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cedendo ao confronto/conjugação entre o resultado desta última


decisão e o conteúdo da decisão proferida em 1ª instância).
No fundo, no atual sistema de recursos — seja na versão ori-
ginária de 2007, seja com as alterações de 2013 — o Supremo
Tribunal de Justiça, enquanto 2ª instância de recurso, tem uma
competência dependente/derivada da prévia decisão da Relação.
E esta dependência, ao nível da admissibilidade, concretiza-se
em dois níveis. Institucionalmente, no sentido de que o regime
de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça determina, ao mesmo
tempo, a capacidade para a Relação decidir de modo definitivo (e,
portanto, com autoridade indiscutível) e a competência do Supre-
mo Tribunal de Justiça (a admissibilidade) para proceder ao reexa-
me da causa. Assim, a decisão da Relação é que decide da sua
própria autoridade/definitividade ou da competência do Supremo
Tribunal de Justiça. Subjetivamente: a decisão da Relação é que
determina do direito de o arguido recorrer, em segunda instância,
para o Supremo Tribunal de Justiça, no seu “se” e no seu “como”.
Com efeito, em função da decisão da Relação é que se sabe se há
um segundo grau de recurso (pena superior a oito anos) ou se há
“direito do vencido” a recorrer (penas de prisão entre cinco e oito
anos) — e, logo, sobre o que se pode recorrer.
Ora, o sistema ou organização judiciárias devem partir da
ideia reguladora de que assim que se institui o tribunal “natural-
mente competente” as partes devem saber quais os outros tribunais
competentes para todo o processo, isto é, podem assim controlar
antecipadamente e neste sentido antecipar o progresso e o percur-
so processual.
O atual sistema não parece, assim, assegurar todos estes valores.
Julgamos ser muito pouco adequado aos valores da função
jurisdicional um sistema organizatório-judicial, no qual o tribunal
determina da recorribilidade das suas próprias decisões.

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1.2 Acesso ao STJ e coerência do exercício da função juris-


dicional

Não diretamente decorrente da atual solução legislativa, mas


da prática judiciária proveniente do sistema instituído em 1998,
tinha-se criado um certo consenso sobre a interpretação do sentido
“confirmatório”, constante na al. f) do nº 1 do art. 400º, em caso de
concurso de crimes. Sobre essa interpretação colocaram-se dúvi-
das de constitucionalidade. Assim, a questão interpretativa que se
colocou (observe-se que é questão que não se restringe al à al. f)
do nº 1 do art. 400º; tem também interesse para a interpretação da
alínea e) do mesmo preceito, p. ex.) era a de saber como proceder
em caso de concurso de crimes, quando isoladamente considera-
das as penas aplicadas não fossem suscetíveis de recurso e só a
pena conjunta, referente ao concurso, fosse suscetível de recurso.
A interpretação perfilhada pelo STJ não foi declarada inconstitu-
cional (3). Assim, a recorribilidade da decisão — ou seja do acórdão
— depende da concreta estatuição, a averiguar “ponto por ponto”.
Quer-se com isto significar que, para que haja admissibilidade de
recurso em caso de concurso de crimes, a que seja aplicado pena
conjunta de prisão superior a oito anos, é necessário que a pena
aplicada a cada crime seja também superior a oito anos (para que
o recurso sobre “cada estatuição” seja admitido).

  Acórdão nº 186/2013 do Tribunal Constitucional que decidiu “Não


(3)

julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º,


do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única
superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a
8 anos de prisão”.

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a) A primeira observação a fazer é a de que esta interpretação,


acolhida pelo nosso STJ, decorre de uma experiência interpreta-
tiva histórica (ou seja, a decorrente da versão do correspondente
normativo da revisão 1998) que continha um determinado inciso
normativo (“mesmo em caso de concurso de crimes”) que foi in-
terpretado num determinado sentido (a nosso ver, errado). Cre-
mos, em qualquer caso, que um sistema de recursos que considera
como matéria específica e adequada para a competência do seu
mais alto Tribunal a análise e julgamento (de forma exclusiva) da
pena de concurso é sistema fundamentalmente errado. Se há maté-
ria que menos justifica a intervenção do STJ é exatamente esta. E,
no entanto, a realidade judiciária até poderá levar a que seja esta a
matéria que aparentemente mais ocupará o nosso STJ.
b) Uma outra consequência da “atomização/parcelamento” da
sentença/acórdão objeto de recurso é a de que a passagem a julga-
do se faz também por via “parcelar”. Temos dúvidas que tal sig-
nifique uma formação integral ou material do caso julgado quanto
às questões “parcelares”, embora encontremos jurisprudência que
perentoriamente afirme tal (4) . Com efeito, esta solução “atomís-
tica” deverá necessariamente cessar, quando idêntica questão de
direito possa ser resolvida, no âmbito do mesmo ato decisório,
por forma diversa em função da recorribilidade ou irrecorribili-
dade das partes decisória. Além de eventuais contradições ou até

(4)
  Jurisprudência, a nosso ver, errada, desde logo porque só com a de-
terminação da pena conjunta é que ocorre o verdadeiro trânsito em julgado com
efeito executivo (sobre a matéria, cf. Jorge de Figueiredo Dias, Consequências
Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, § 1154: “A prescrição da execução da pena
conta-se a partir do trânsito em julgado da sentença condenatória. Tratando-se
de pena conjunta, em virtude de concurso de crimes, decisivo é o trânsito em
julgado da pena conjunta, não de cada uma das penas parcelares”. De resto, a
execução da sentença e da pena só se dá com o trânsito em julgado.

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“negações internas” (em matéria p. ex., de invalidades), há o risco


de uma mesma questão poder ser resolvida diferentemente (pela
Relação, na parte não suscetível de recurso; pelo STJ na parte que
lhe chegou ao conhecimento).
Ou seja, para que o atual sistema de recursos corresponda a
uma efetiva “conversão” lógico-jurídica, só falta prever-se a pos-
sibilidade de um recurso de fixação de jurisprudência sobre a mes-
ma decisão.
Analisando a jurisprudência do STJ, quanto ao efeito do jul-
gado “para cada pena”, será solução a considerar e por isso a prog-
nosticar como possível.

1.3 O recurso direto para o STJ (Acórdão nº 5/2017)

Mais recentemente, o STJ veio fixar a jurisprudência no sen-


tido de que “a competência para conhecer do recurso interposto
de acórdão do tribunal do júri ou coletivo que, em situação de
concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior
a cinco anos de prisão, visando o reexame da matéria de direito,
pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 432º,
nº 1 alínea c), e nº 2 do CPP, competindo-lhe também, no âmbito
do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parce-
lares englobadas naquela pena, superiores iguais ou inferiores à
aquela medida, se impugnadas”.
Este Acórdão de fixação de jurisprudência merece-nos con-
cordância.
Surpreende, no entanto, o facto de a sua doutrina ter obtido
um “ganho de causa” quase unânime. Compreende-se, porém, que
possa ter havido a tentação de ler a norma do recurso direto para
o STJ (art. 432º, nº 1, al. c)), segundo a mesma racionalidade que
está subjacente à interpretação para efeito de acesso em segunda
instância ao STJ. Ou seja, o recurso direto para o STJ, além de se

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ter de restringir a matéria de direito, deveria estar limitado a penas


concretas superiores a cinco anos de prisão, pelo que, em caso de
concurso de crimes, só seria admissível recurso direto quanto a
crime punido com pena de prisão superior a cinco anos: ou dito
por outra forma, em caso de concurso de crimes, só poderia haver
recurso se, além da restrição à matéria de direito, as penas singu-
larmente consideradas fossem superiores a cinco anos de prisão.
Bastaria, assim, que o recorrente impugnasse estatuição condena-
tória com pena inferior a cinco anos de prisão para o recurso dever
ser interposto na Relação (mesmo que versando exclusivamente
matéria de direito). Não foi, pois, esta a interpretação do presente
Acórdão.
Deste jeito, parece poder concluir-se pela ausência de “racio-
nalidade” no acesso ao STJ. De facto, não há coincidência entre os
recursos (o universo de recursos) que podem ser objeto de recurso
direto para o STJ e aqueles que o podem ser em segunda instân-
cia de recurso. Todavia, deve observar-se que a razão assiste este
Acórdão de fixação de jurisprudência, tendo em conta os pressu-
postos hermenêuticos mas também lógico-processuais do sistema
de recursos (em particular, na conjugação dos conceitos “interpo-
sição”, “motivação” e “âmbito do recurso”). Assim, o facto de as
regras de acesso em segunda instância ao STJ serem diferentes
daquelas do recurso direto para o STJ poderá não ser sintoma de
“patologia”. Com efeito, as regras sobre “dupla conforme” e “li-
mitação de acesso em segundo recurso ao STJ” devem-se sobretu-
do a razões de pragmatismo e de conveniência, de modo a impedir
que dois tribunais superiores com poderes de sindicância idênticos
(em matéria de direito) se pronunciem necessariamente sobre o
mesmo objeto. O facto de a organização judiciária portuguesa co-
nhecer a existência de duas “instâncias de recurso” que incidem
sobre a mesma matéria de direito (embora as Relações também
conheçam de matéria de facto) e detentores da mesma capacidade

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decisória justificou a previsão de mecanismos tendentes a impedir


a repetição (ao menos, em casos não considerados relevantes) de
recursos ou até a limitar subjetivamente a recorribilidade. Não se
pode, pois, confundir razões de pragmatismo (discutíveis, como
todas) com princípios e normas de sistema de organização judi-
ciária. Assim, não pode ser considerada “tão anómala” esta discre-
pância, e se eventualmente se entende que tal diferença de regime
deve ser eliminada ou até atenuada, o remédio não deve ser apli-
cado no primeiro recurso, mas no segundo (grau) recurso (onde aí
se encontram eventuais aporias).

1.4 O modo decisório nos tribunais de recurso

Uma outra novidade decorrente da reforma de 2007 — e até


hoje intocada — é o facto de se terem estabelecido três níveis
no conhecimento dos recursos — aproveitando as expressões do
próprio legislador (5). Com a repartição de competências feita aos
diversos níveis resulta um “racionalizar” do funcionamento dos
tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos
juízes que os compõem a título singular.

  “O tribunal de recurso passa a funcionar em três níveis. Competirá ao


(5)

relator convidar a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas


pelo recorrente, decidir se deve manter-se o efeito atribuído ao recurso e se há
lugar à renovação da prova e apreciar o recurso quando este deva ser rejeita-
do, exista causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade e a questão
a decidir já tenha sido apreciada antes de modo uniforme e reiterado (artigo
417.º-A). Do despacho do relator cabe sempre reclamação para a conferência. A
conferência, por seu turno, passa a ter uma composição mais restrita, engloban-
do apenas o presidente da secção, o relator e um vogal, competindo-lhe julgar o
recurso quando a decisão do tribunal a quo não constituir decisão final e quando
não houver sido requerida a realização de audiência (artigo 419.º). Só nos res-
tantes casos o recurso é julgado em audiência. Com esta repartição de compe-
tências racionaliza-se o funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se
uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular.

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Assim, hoje, temos a perplexa situação de o recurso ser jul-


gado (se o for), quando não tenha sido requerida a audiência, por
apenas dois juízes (bastando a não oposição de um deles (6)), para
se verificar o julgamento definitivo do recurso. Para além da “in-
versão” (mas que se pode dizer ser uma evolução desde a reforma
de 1998) da regra da audiência em favor daquela da conferência,
afigura-se-nos algo debilitadora, e muito pouco adequada, a cir-
cunstância de um recurso ser decidido por um número de juízes
igual ou até inferior àquele dos juízes que compõem o tribunal
na 1ª instância. E tal ainda será mais patente quando, desde 2007,
existe a possibilidade de se interpor recursos em matéria de facto
quanto a Acórdãos do tribunal de júri (7).
Também aqui, o modo como se decide o recurso não se afigu-
ra muito feliz.

1.5 A uniformização ou fixação de jurisprudência

Do atual sistema de recursos resulta que a intervenção “uni-


formizadora indireta” do STJ se afigura nos dias de hoje assaz mi-
tigada. Quando utilizamos a expressão “uniformização indireta”,
queremos naturalmente significar que, sempre que o STJ conhece
integralmente de um caso — de um processo –, a decisão que sobre
ele profere não deixa de ter relevo para a organização judiciária,

(6)
  Assim, o art. 419º, nº 2 do CPP. De facto, o coletivo da conferência é
constituído por três juízes, mas a decisão pode bastar-se nominalmente com os
votos concordantes.
Relembremos que, na versão originária do CPP, a conferência era constituí-
da por 4 juízes e a rejeição do recurso carecia da unanimidade. As audiências no
STJ tinham uma composição também mais alargada.
(7)
  Sobre esta questão, cf., embora com outras vertentes do problema, Ma-
ria João Antunes/Nuno Brandão/Sónia Fidalgo/ Ana Pais, “Garantia cons-
titucional de julgamento pelo júri e recurso de apelação”, RLJ, ano 145, nº 3999,
julho-agosto 2016, p. 316 ss.

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para a jurisprudência, no seu todo. De facto, pela própria função


de um Supremo Tribunal — enquanto tribunal supremo — a jus-
ta decisão do caso concreto pelo STJ nunca poderá deixar de ter
em vista a unidade ou a uniformidade da aplicação do Direito.
Uma vez que, hoje em dia, o acesso ao STJ não significa — as
mais das vezes não significará — qualquer conhecimento integral
do objeto do processo/recurso, podendo antes constituir uma pura
“formalidade”, de acesso limitado ao conhecimento sobre a pena
do concurso ou então restrito à matéria não confirmada na decisão
da anterior instância, verifica-se manifestamente uma mitigação
(que, observe-se não é consequência da solução atual; esta ape-
nas aprofunda uma tendência que provém da revisão de 1998) da
intervenção “nomofilática” do STJ. Assim, os efeitos da ausência
de intervenção indireta (no sentido que atrás referimos) serão os
de se potenciar os recursos (ditos) extraordinários para a fixação
de jurisprudência. Potenciação que resulta não apenas da falta de
intervenção “uniformizadora” do STJ, mas também da maior ca-
pacidade decisória das Relações (como atrás referimos), que do
mesmo modo é potenciadora de decisões contraditórias entre as
diversas Relações ou de secções das mesmas Relações.
Trata-se de tema que merece, em nosso entender, uma mais
detida análise e reflexão. Cremos que tanto os pressupostos como
a tramitação do recurso de fixação de jurisprudência atualmente
consagrados não são compatíveis com a “volatilidade normativa”
dos tempos atuais (a que acresce a perda de qualidade da legisla-
ção). Não é aceitável ou desejável que questões de direito contro-
versas sejam resolvidas/uniformizadas dez anos após a aprovação
da lei que deu causa à controvérsia interpretativa. Observe-se, de
resto, que na análise de jurisprudência fixada — ou seja, nos con-
teúdos doutrinários dos acórdãos de fixação jurisprudência — se
encontram conteúdos de jurisprudência que não terão efeitos para
o futuro; acresce ainda a fixação de jurisprudência sobre ques-

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tões de direito que, em nosso entender, dificilmente teriam sido


originalmente pensadas como temas de “Assentos” (e, portanto,
que caberiam no antigo art. 2º do Código Civil). De facto, discutir
questões de mera organização judiciária, e não questões de fundo
ou de substância, i. e., questões materialmente controvertidas, não
é o que se espera da fixação de jurisprudência de um Supremo Tri-
bunal que visa a uniformização do Direito.
Cremos que, a manter-se a tendência de reservar a compe-
tência do STJ para os processos mais graves, se justifica indagar
se não se deve trilhar outras vias que garantam uma mais céle-
re e eficaz uniformização da jurisprudência; assim, já no âmbito
das Relações (pelo menos em questões de menor gravidade) tal-
vez se justifique prever um qualquer remédio jurídico-processual
“uniformizador”. O recurso de fixação de jurisprudência, pensado
como remédio para situações “patológicas”, é hoje um recurso que
apresenta potencialidade para se vir a reconfigurar como um futu-
ro recurso “ordinário” ou comum.

III. A vertente subjetiva — o direito dos sujeitos processuais

2.1 O direito de recurso do arguido

Não iremos discutir, saliente-se, a questão de saber se o ar-


guido tem direito de recurso face a toda e qualquer decisão conde-
natória, independentemente da instância que tenha proferido, em
primeiro lugar, tal condenação; nem a adequação das soluções do
direito processual positivo português em relação ao estabelecido
na CEDH e em particular aos standards exigidos pela jurisprudên-
cia do TEDH nesta matéria (8).

  Sendo certo que, ao contrário do que se comummente se afirma, o CPP,


(8)

em particular nas estruturas de recursos, não respeita, em nosso entendimento, as

RPCC 28 (2018)
78 José M. Damião da Cunha

Pode dizer-se que o tema mais relevante e que foi objeto de


discussão foi aquele de saber se em recurso interposto de decisão
absolutória, e caso o tribunal de recurso logre a convicção da cul-
pabilidade, o arguido, face à nova decisão, deveria ter direito de
recurso quanto à questão da determinação da pena. Para esse efei-
to, ter-se-ia formado alguma jurisprudência, no âmbito dos Tribu-
nais da Relação, que, para garantir o direito de recurso do arguido
em matéria de determinação da sanção, em caso de pronúncia defi-
nitiva no sentido da culpabilidade do arguido (portanto, sem outro
grau de recurso), reenviava a decisão para 1ª instância em ordem a
proceder-se à determinação da medida da pena, garantindo-se as-
sim o direito de recurso (ou mais corretamente a dupla jurisdição)
nesta matéria (uma vez que estariam em causa penas de prisão não
suscetíveis de legitimar o recurso para o STJ).
Convocado a fixar jurisprudência, o STJ pronunciou-se no
sentido de que “em julgamento de recurso interposto de decisão
absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação
do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da
pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º,
n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c),
primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de
Processo Penal” — Acórdão nº 4/2016.
Todavia, esta interpretação (que naturalmente afasta o direito
de recurso do arguido, quando a pena aplicada não permita outro,
o segundo, grau de recurso) tem de ser atualizada face à decisão do
Tribunal Constitucional que em plenário decidiu: “julgar incons-
titucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão
da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em
1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não

regras do justo processo estabelecidas pelo TEDH em ligação com a CEDH para
esse efeito.

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 79

superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e),


do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de
21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto ga-
rantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º,
n.º 1 da Constituição” (Acórdão nº 429/2016).
No essencial, as razões apresentadas pelo Tribunal Constitu-
cional merecem a nossa concordância: em particular o facto de a
medida da pena ser um quid novum, que é fundamentado pela pri-
meira vez (e só nesse momento os sujeitos processuais, incluindo
o arguido, são confrontados com uma fundamentação da questão
da pena; questão que no âmbito do CPP é questão autónoma, ao
ponto de ser considerada “parte de uma decisão”), como do mes-
mo modo haveria que garantir o duplo grau quanto este ponto de-
cisório. A nosso ver, outras razões se adicionariam: por um lado,
existe um regime de césure informal (que deveria impedir o tri-
bunal de se referir na fundamentação, exceto quando decida pela
culpabilidade do arguido, a aspetos referentes à personalidade do
arguido); por outro, a necessidade de garantir a máxima atualiza-
ção dos elementos imprescindíveis para a determinação da pena (9).
Deste jeito, e face à conjugação do conteúdo dos dois Acór-
dãos, resulta que do Acórdão da Relação que altere a decisão abso-
lutória para condenatória e determine a pena, o arguido (ou outro
sujeito processual) disporá quanto a essa parte decisória (determi-
nação da medida da pena) sempre de direito a recurso. Tendo em
atenção o conteúdo do referido Acórdão de Fixação de Jurispru-
dência, o recurso deverá assim ser interposto no STJ (independen-
temente do quantitativo e da espécie da pena).

(9)
  Necessidade que se afigura imperativa nas penas não privativas de
liberdade, em que o momento da condenação é que é decisivo para determinar a
espécie e medida da pena; maxime, na pena de multa, cujo quantitativo diário se
determina no momento da (última) condenação ( e não no de uma qualquer ab-
solvição), exigindo pois sempre produção de prova no momento da condenação.

RPCC 28 (2018)
80 José M. Damião da Cunha

2.2 Estatuto da vítima — assistente e a reconfiguração da


legitimidade para recorrer (a constituição de assistente
no prazo de interposição de recurso)

a) Breve nota introdutória.

Em 2015 (pela Lei nº 130/2015), entendeu o legislador que,


por força da Diretiva 2012/29/UE de 25 de outubro, se justificaria
a introdução de algumas alterações no Código de Processo Penal
em matéria de vítima do crime. Há que dizer que as alterações
introduzidas foram mínimas e, na maioria dos casos, justificadas
tendo em atenção algumas exigências da Diretiva (10).
Descontando a “estranha” inclusão de uma norma quase pro-
gramática (art. 67º-A), bem como uma definição de vítima que, em
boa técnica legislativa, talvez se prefigurasse melhor integrada no
art. 1º do CPP, as alterações reconduzem-se ao reconhecimento da
audição da vítima em casos, para os quais o juiz a entenda como ne-
cessária ou conveniente para efeito de decisão que tenha de proferir.
A solução mais inovadora — e a nosso ver errada –, é aquela
que permite à vítima (ou não apenas a ela, como veremos) consti-
tuir-se assistente apenas para efeito de interposição de recurso da
decisão. Ou seja, a nova redação incluída no art. 68º, n º 3, al c) ao
determinar “no prazo para interposição do recurso” (11).
Cremos que esta solução legal “inovadora” era desnecessária

(10)
  Para uma leitura das alterações, em geral, introduzidas, cf. Sandra Tava-
res, “A consagração formal da vítima no processo penal português”, Revista da Fa-
culdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona, nº 9, 2017, p. 225 ss.
(11)
  Criticando a solução por contraditória com o pressuposto da “partici-
pação constitutiva do direito do caso”, cf. Maria João Antunes, Direito Proces-
sual Penal, Coimbra, 2017, p. 51-52.

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 81

e é incorreta. Se quisermos, a existir, na Diretiva, uma qualquer


exigência de previsão legal para constituição de assistente para
efeito de interposição de recurso, ela encontrar-se-ia na fase de
instrução. Ou seja, quando após a acusação viesse a ser proferido
despacho de não pronúncia; aqui, sim, talvez a Diretiva imponha a
faculdade de constituição de assistente para efeito de interposição
de recurso da decisão de não pronúncia.

b) A vítima no processo penal português.- Uma figura “es-


quecida” ao longo dos tempos

Lendo a Exposição de Motivos do nosso CPP, encontram-se os


seguintes trechos: No ponto 3, ao referir-se a influência do Conselho
da Europa, relembram-se os temas do processo penal chamando à
colação a “posição jurídico-processual” da vítima. No ponto seguin-
te (4) do mesmo Preâmbulo salienta-se “… paradigmático a este
respeito é o que se passa com o estatuto da “vítima-assistente”, que
nos singulariza claramente no contexto do direito comparado…”.
Relembre-se, de outra banda, a explanação de Jorge de Figuei-
redo Dias (12): “Ao tratar o ofendido como mero participante proces-
sual e ao vincular à sua constituição como assistente para assumir
a veste de sujeito do processo, é ainda da formalização necessária
a uma realização mais consistente e efectiva dos direitos da vítima
que se trata — e assim, a seu modo, de algo paralelo ao que sucede
com a constituição formal do suspeito como arguido” (13).
Dos passos agora descritos, a palavra vítima aparece como
que realçada ou invocada na qualidade de “ofendido-assistente”.

(12)
  “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”,
in: Jornadas de direito processual — o novo Código de Processo Penal, Coimbra,
1988, p. 10 ss.
(13)
  E ainda ”para uma autêntica proteção da vítima, mais decisivo… é o
conferir-lhe voz autónoma logo ao nível de processo penal…”.

RPCC 28 (2018)
82 José M. Damião da Cunha

Perante este quadro, bem se pode perguntar porque quase trinta


anos depois o legislador se sentiu obrigado a consagrar uma de-
finição de vítima para o CPP — como a pessoa individual que
sofreu um prejuízo — quando a vítima sempre foi o centro das
atenções e preocupações no nosso CPP.
Exatamente, porque, no processo penal nacional, os assisten-
tes nem sempre são (as) vítimas. Donde só por puro farisaísmo
se pode confundir “assistente” com “vítima”, face à evolução do
nosso processo penal
Como vimos, em 1988 foi opção legislativa (14) consagrar um
estatuto formal e jurídico-processual de vítima-ofendido, tradu-
zido na concretização da figura do assistente como “parte” (ou,
numa expressão menos adversary, como sujeito processual). Esta
formalização encontra-se traduzida numa forma mais solene atra-
vés da ideia de constituição de assistente ou então na de lesado/
parte civil, segundo os preceitos do art. 68º, nº 3 ss. Com efeito,
há prazos/momentos processuais, que devem ser respeitados (para
efeitos de constituição de assistente ou para dedução do pedido de
indemnização civil); já nos processos menos solenes — processo
sumário ou abreviado e ainda sumaríssimo — o ato de constitui-
ção como assistente ou como parte civil é menos formalizado; p.
ex., no processo sumário tem de ser “formalizado verbalmente”
no início da audiência de julgamento.
Deste jeito, é de particular evidência que a assunção da “qua-
lificação” como assistente ou como lesado/parte civil pressupõe
sempre um ato formal, habilitante à participação no procedimento
penal e em particular no procedimento de julgamento. Habilitação
que significa a possibilidade de participar durante todo o procedi-
mento (embora na parte civil, restrita à questão da indemnização
civil), tanto contribuindo com as suas tomadas de posição (proces-

  Que correspondia a tradição já longínqua do nosso sistema processual penal.


(14)

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 83

suais) como controlando (ou tendo essa possibilidade) a progres-


são do exercício da função jurisdicional. Por essa razão é que, se
a decisão final do procedimento for desfavorável (ao assistente ou
então à parte civil), lhe cabe o direito, a legitimidade e o interesse
em recorrer. Só quem participa na qualidade de sujeito processual
durante o procedimento tem o direito a colocar em causa a legiti-
midade e o mérito da decisão proferida.
Assim é a solução e a trave-mestra do nosso CPP (diríamos
de boa lógica).

c) A Diretiva e o sistema nacional

Nos Considerandos expositivos da citada Diretiva é referido


no seu ponto (20): O papel atribuído às vítimas no sistema de
justiça penal e a possibilidade de as vítimas participarem ativa-
mente no processo penal variam de Estado-Membro para Esta-
do- -Membro em função do respetivo sistema nacional e são de-
terminados por um ou vários dos seguintes critérios: saber se o
sistema nacional prevê um estatuto jurídico de parte no processo
penal, se a vítima tem a obrigação legal de participar ativamente
no processo penal ou é chamada a participar ativamente nele, por
exemplo, como testemunha, e/ou se a vítima tem o direito, segundo
a legislação nacional, de participar ativamente no processo penal
e procura fazê-lo, caso o sistema nacional não confira à vítima o
estatuto jurídico de parte no processo penal. Cabe aos Estados-
-Membros determinar qual ou quais desses critérios se aplicam
para determinar o âmbito dos direitos previstos na presente di-
retiva, caso existam referências ao papel da vítima no sistema de
justiça penal pertinente.
Decorre, com toda a linearidade, que no sistema nacional o
critério estabelecido — expresso e publicitado — é um critério
formal, na medida em que o sistema processual penal nacional

RPCC 28 (2018)
84 José M. Damião da Cunha

prevê um estatuto jurídico de parte (sujeito processual). Como é


evidente, os outros critérios referidos na Diretiva têm a ver com a
ausência de um estatuto jurídico de parte no respetivo sistema pro-
cessual e são critérios materiais que tanto podem dirigir-se a uma
posição análoga à do nosso assistente (vítima) como àquela de
titular de ação civil (uma vez que nem todos os sistemas jurídicos
dispõem de uma figura como o assistente). Observe-se, pois, que
os critérios apresentados não são arbitrários ou da imaginação do
Conselho; resultam seguramente de outras ordens jurídicas terem
soluções diferentes das nossas.
Por outro lado, observe-se ainda que, em caso algum, a Direti-
va impõe a consagração de um qualquer direito de recurso à vítima
(exceto da decisão de não acusação ou equivalente). Na diretiva,
não se encontra imposto qualquer direito de recurso (15). Será cada
ordem jurídica que deve estabelecer as soluções de acordo com os
seus princípios. P. ex. há ordens jurídicas — diríamos a maioria
— que não consagram um sistema de adesão obrigatória; tão só
facultativa ou voluntária. Há ainda sistemas jurídicos — a maioria
— que não concedem direito de recurso a (meros) lesados; mas
deixam em aberto sempre a possibilidade de posterior recurso à
jurisdição civil, depois da resolução da questão penal.
Como se compreende, o legislador, ao ter criado esta estranha
solução de constituição de assistente “no fim do jogo”, consagra
solução que está em contradição com todo o conteúdo apregoado
no CPP, em matéria de assistente e parte civil. Basta ver que “este
assistente” apenas dispõe de parte das atribuições previstas na al.
c) do nº 2 do art. 69º do CPP. Além disso, tanto antes da fase de
julgamento como sobretudo em audiência de julgamento, a assun-
ção da qualidade de assistente ou de parte civil implica alguma
peculiaridade na prestação de declarações (cf., p. ex., arts 346º e

  Deixa-se sempre aberta a possibilidade de o Estado reconhecer tal direito.


(15)

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 85

347º). Pelo menos, esta nova alínea podia ter sido redigida segun-
do um princípio de subsidiariedade (p. ex., quando, sem culpa sua,
não tenha podido constituir-se assistente ou formular pedido de
indemnização civil)…
Estranha-se de resto esta solução legal, quando é o mesmo legis-
lador que consagra que a vítima tem direito à informação, à assistência
e à participação ativa no processo; logo, pressupõe implicitamente a
assunção da qualidade de “parte/sujeito processual”, em virtude de
prévia informação e conhecimento sobre tal faculdade (16).
Em qualquer caso, a solução adotada não deixa naturalmente de
constituir-se como sistematicamente “irritante”, pois não se percebe
como é que uma decisão pode ser entendida como proferida contra
“assistente, parte civil”, não havendo nenhum destinatário constituí-
do nessa qualidade (o assistente pode recorrer de decisões contra ele
proferidas; agora: o interessado pode constituir-se assistente para
que a decisão proferida possa ser considerada proferida contra ele).
Por outro lado, o grau de legitimidade e de interesse em agir/
recorrer (pelo menos no âmbito da invalidade dos atos) está de-
pendente da prévia intervenção processual (ou seja, eventuais nu-
lidades ou irregularidades têm de ser previamente arguidas) — o
que se nos afigura altamente problemático neste caso.
Esta solução torna-se ainda inexplicável, pois parece admitir
uma válida alternativa entre constituir-se atempadamente assisten-
te ou então constituir-se como tal mais tarde. De facto, e uma vez
que nada é dito em abono da introdução desta nova última alínea

  De facto, no art. 11º, da Lei nº 130/2015 sobre estatuto da vítima,


(16)

referem-se os direitos de informação; mas para o direito interno, deveria ter-se


previsto, no quadro dos direitos de informação, o dever de a vítima ser expres-
samente informada da constituição como assistente, para assumir a qualidade de
“parte”. Quanto ao pedido de indemnização civil, não há dúvidas que este dever
de informar sobre as suas condições já se encontra previsto: art. 11º, nº 1, al. g) da
L. 130/2015 (estatuto da vítima); também nos arts. 75º e nº 77º do CPP se encon-
tra previsto este mesmo dever.

RPCC 28 (2018)
86 José M. Damião da Cunha

no nº 3 do art. 68º, parece agora que a constituição de assistente


passa a permitir a “trapaça”. Ou seja, a “vítima” ganha em não se
constituir assistente, porque se o processo/julgamento lhe correr
bem, nada gasta (financeiramente) ou nem se esforça; se eventual-
mente algo correr mal, lá vai a correr constituir-se “assistente”.
Por fim, há, a nosso ver, aqui um outro ponto crítico e insuperável:
o problema da confiança, não só do arguido, mas sobretudo do
próprio exercício da função jurisdicional: tanto as partes (ou os su-
jeitos processuais) como o tribunal devem saber com o que contar
em termos de dialética (e daí o princípio, que deve ser necessaria-
mente garantido, é o de que no início das fases contraditórias se
tenha certeza sobre quem toma parte no contraditório).
Podia — e se calhar devia — o legislador ter abolido o atual
sistema: ou seja, afirmando que a vítima é sempre e necessariamen-
te um sujeito processual interessado, podendo assim sem qualquer
formalidade exercer os seus poderes processuais, desde que mani-
feste que o pretende fazer. Mais ainda, poderia ainda acrescentar,
dizendo que a vítima, que participe ativamente no processo (ou
seja, que colabore com a Administração da Justiça), está dispensa-
da de constituir-se assistente.
Mas não é isso que está na lei, no CPP; sobretudo, o estatuto
de assistente confere sempre algo mais em relação à mera consti-
tuição/intervenção informal — com efeito, admitir que o “interes-
sado” se possa constituir assistente para efeito de interposição de
recurso é apenas conferir-lhe o direito de recurso. Mas ao assis-
tente (formal) é lhe conferido não só o direito de recurso como o
direito a participar na dialética do recurso (através da resposta ao
recurso interposto), incluindo, verificada as condições, o direito a
recorrer em segunda instância de recurso, face a decisão que lhe
tenha sido desfavorável no prévio grau. Isto, esta faculdade, pelo
menos não nos parece que deva ser concedida pela al. c) do nº 3
art. 68º CPP.

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 87

Deve, porém, acrescentar-se que a solução legal, além de se


figurar como mal delineada, é fundamentada em considerações, a
nosso ver, pouco convincentes. De facto na Proposta de Lei nº 343/
XII diz-se: “Todas estas vertentes se podem cumular, em virtude de
serem complementares, mas encerram distintos regimes jurídicos:
aos assistentes e aos demandantes civis, por terem a qualidade de
sujeitos processuais, é facultada a apresentação de peças proces-
suais, a participação na audiência de julgamento através de advo-
gado por si constituído, bem como a interposição de recurso rela-
tivamente às decisões que lhes sejam desfavoráveis; já as demais
vítimas têm tão somente os direitos reconhecidos às testemunhas,
o que significa que apesar de se poderem fazer acompanhar por
um advogado, este não pode intervir na audiência de julgamento
em sua representação (artigo 132.º, n.º 4, a contrario, do Código
de Processo Penal), e, apesar de poderem solicitar verbalmente
o arbitramento de uma indemnização na audiência, não lhes as-
siste legitimidade para interporem recurso da decisão que even-
tualmente não fixe essa indemnização, nem, aliás, da decisão que
eventualmente absolva o acusado (artigo 401.º, n.º 1, alíneas b) e
c), a contrario, do Código de Processo Penal) (17).
Não obstante, introduziu-se na presente proposta de lei uma
alteração que se considera significativa no regime do assistente e
que se prende com a possibilidade de requerer a atribuição desse
estatuto no prazo de interposição de recurso da sentença. Na ver-
dade, o exercício pleno do acesso ao direito e aos tribunais deve
necessariamente compreender o direito à interposição de recurso
das decisões que são desfavoráveis ao interessado, sendo certo
que quando as vítimas que não se constituíram assistentes são

(17)
  Supomos que o legislador pressupõe que este direito de arbitramento
já existiria antes destas alterações de 2015. Ora, tal não é verdade. Além disso,
seria necessário garantir expressamente o princípio do contraditório, incluindo
para o responsável civil (cf. arts. 77º, nº 4, e 78º do CPP).

RPCC 28 (2018)
88 José M. Damião da Cunha

confrontadas com uma sentença de absolvição já nada podem fa-


zer, atentos os limites previstos na lei quanto ao momento para a
constituição de assistente”.
Julgamos que este trecho discursivo é demonstração de que o
legislador não terá entendido o conteúdo da Diretiva e, além disso,
traduz também alguma dificuldade na compreensão da estrutura
do seu (nosso) processo penal. Pois, dá a entender que, além do
estatuto que cabe ao sujeito processual “assistente”, a vítima-tes-
temunha deve ter direito a regime/estatuto idêntico. Não é, porem,
isso o que consta na Diretiva — aí, o que se afirma é que o modelo
de consagração da posição/estatuto de vítima depende do modelo
que o direito de cada Estado defina. O CPP consagra um modelo
formal de vítima/assistente. E é modelo perfeitamente legítimo.
Ora, o legislador confundiu o modelo formal — formalização de
um papel/estatuto processual — e o modelo material — a vítima
com papel ativo no processo — que não carece de formalização.
Ora, o sistema ou bem que é um ou é outro.
De resto, o discurso fundamentador da solução legal suscita
perplexidades.
Com efeito, ao separar assistente e partes civis das demais
vítimas (ficando por explicar porque é que as “demais vítimas”
não se constituíram assistentes tal como as “outras vítimas” o fi-
zeram), dá-se por pressuposto, assim, que há como que um di-
reito de opção na constituição; acrescenta-se porém que a estas
últimas (as vítimas não assistentes) apesar de poderem solicitar
verbalmente o arbitramento de uma indemnização na audiência,
não lhes assiste legitimidade para interporem recurso da decisão
que eventualmente os prejudique.
Independentemente do caso ou da hipótese que o legislador
apresenta e que serve de base para o seu raciocínio, sempre fica
em aberto esta excruciante dúvida: e porque é que não se exige a
constituição de assistente ao momento do pedido do arbitramen-

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 89

to? Com efeito, pressuposto do arbitramento da indemnização é


que haja danos fundados na prática do crime; logo, ao solicitar o
arbitramento, implicitamente há uma manifestação de vontade de
constituição como assistente, então porque não exigir a constitui-
ção nesse momento?
E, com isto, ainda se salvaguardaria alguma lógica na coi-
sa. Mais ainda, sendo esta vítima uma testemunha, porque é que,
quando convocada, não apresenta, p. ex., no início da audiência de
julgamento o seu pedido de indemnização?
Pode dar-se um passo mais: qual será o caso, em que o legisla-
dor estaria a pensar, quando se refere a este pedido de arbitramen-
to? Com efeito, não encontramos caso legalmente regulamentado
que se subsuma no pensamento do legislador. Isto é, não vemos
como é que o arbitramento da indemnização na ou durante a au-
diência seja pensável. No inicio da audiência, sim.
Parece-nos, assim, que o legislador terá eventualmente por
pano de fundo o regime do art. 82º-A do CPP (18).
Todavia, temos fundadas razões para descrer que este singular
preceito seja adequado para fundamentar o raciocínio legislativo,
uma vez que é caso de particular singularidade e apresenta funda-
mentos muito específicos.
Com efeito, o art. 82º-A apenas visa determinadas vítimas (no
estatuto da vítima, apenas se destacam as vitimas especialmen-

(18)
  Fica-se em dúvida sobre se o legislador terá pensado neste caso ou
o terá utilizado para efeito de resolver uma má interpretação do sentido da Di-
retiva. Com efeito, o legislador refere: “A definição de um estatuto homogéneo
para as vítimas de crimes tem enfrentado a dificuldade assente na existência de
vários enquadramentos legais, pois as vítimas podem ser sujeitos processuais se
assumirem as vestes de assistentes ou demandantes civis, em ordem a sustentar
uma acusação ou formular um pedido de indemnização civil, respetivamente, ou
podem ter apenas intervenção no processo, neste caso como denunciantes e teste-
munhas”. Em Portugal, há só um enquadramento legal: o de assistente ou lesado,
mas enquanto parte no procedimento.

RPCC 28 (2018)
90 José M. Damião da Cunha

te vulneráveis — se bem que seja noção bastante ampla). O que


significa que, pelo menos, nem todas as vítimas deveriam mere-
cer este regime de constituição de assistente. Haveria, assim, que
clarificar que só estas vítimas (as demais vitimas) é que disporiam
desta faculdade de se constituir assistente.
Há, porém, outro ponto que nos parece ser devedor de refe-
rência: é que o art. 82º-A, na nossa interpretação, não pressupõe
qualquer requerimento da vítima para arbitramento de indemni-
zação. Com efeito, o regime do art. 82º-A parte do princípio de
que é o tribunal que oficiosamente determina, nos casos especiais,
a reparação dos prejuízos (19). E tal sucede, porque há ou deveria
haver casos especiais legalmente previstos, em que o Estado pode
ter a obrigação de “garantir” a indemnização da vítima, indepen-
dentemente de esta se ter constituído assistente. Com efeito, ao
referir-se a seguir neste preceito que o valor da quantia arbitrada
a título de reparação é tida em conta na ação que venha a ser pro-
posta para efeito de indemnização civil, só há duas hipóteses: ou
legislador consagrou um regime de adesão facultativa (o que não é
compatível com o sistema nacional (20)) ou então está a pensar que

  Cremos que esta solução se impõe face ao disposto no art. 16º, nº2
(19)

do Estatuto da Vítima: “Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação


do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas
especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente
se opuser”. A oposição da vítima só se pode verificar quando estejam verificados
os pressupostos da reparação (máxime, a condenação). O pressuposto da lei é o
da oficiosidade do arbitramento da reparação.
(20)
  Sistema de adesão facultativa que, sendo o regime mais comum no
panorama de direito comparado, não é o vigente em Portugal. Neste regime, o le-
sado tem o direito de opção, entre propor ação civil no processo penal ou aguardar
pelo resultado do mesmo para em seguida propor ação civil; do mesmo modo, o
tribunal goza de amplos poderes para remeter para a jurisdição civil pedidos de
indemnização fundados num crime.
Sobre este tema, cf. Jorge de Figueiredo Dias¸ Sobre a reparação de per-
das e danos arbitrada em processo penal, Coimbra, 1972, p. 10 ss. Do mesmo

RPCC 28 (2018)
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 91

sobre o Estado recai um dever de auxílio às vítimas do crime.


Observe-se, assim, que o art. 82º -A parte do princípio de que
tem de haver uma condenação (pressuposto essencial) e que se
abre o contraditório sobre a quantia a título de reparação (mas
só após a condenação). Nesta nossa interpretação, que talvez não
corresponda ao que tem sido praticado, o que estaria em causa é
a circunstância de o Estado poder ter de assumir em certos casos
a indemnização à vítima, ainda que esta não se tenha constituído
assistente (de certo modo, fazendo alguma ligação com o Regime
de Concessão de Indemnização às vítimas de crimes violentos e
de violência doméstica, diploma que “estranhamente” não faz re-
ferência a esta norma; norma cuja aplicação a esta criminalidade
quase se poderia dizer logicamente imposta) ou, então, porque há
a presunção de que neste tipo de criminalidade a vítima se terá
abstido do exercício das suas faculdades processuais, por qualquer
“causa externa” e, portanto, não livremente (i. e, por livre opção).
Julgamos que a ideia ou princípio que presidiu à consagração desta
norma terá tido em vista aqueles casos especiais, em que a vítima
não se tenha constituído assistente, mas o Estado (MP) deve pro-
mover a reparação dos danos pelo condenado, quando se entenda
que a vítima está numa situação de menor liberdade para exercer
os seus direitos processuais.
Assim, estamos perante um incidente pós-condenação de ca-
ráter sancionatório e “quase penal”.
Em qualquer caso, afigura-se-nos que seria exigível que o le-
gislador tivesse previsto esta faculdade de constituição como as-
sistente (se a entendeu como necessária) apenas para as vítimas
que se encontrem nas especiais circunstâncias, que seriam fonte
de legitimação para a aplicação deste regime. Assim, não existe

modo, o nosso “Sobre a Adesão em processo penal,” Liber amicorum Manuel


Simas Santos, Lisboa, 2016, p. 763 ss.

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um qualquer direito da vítima, e menos do ofendido, que se possa


retirar deste preceito.

d) Um balanço final — o retorno da vítima

Cremos, pois, que a solução legislativa, agora encontrada, no


sentido de admitir a constituição de assistente em “fim de jogo”
ou já “depois do jogo” é uma solução desnecessária e sobretudo
contraditória com o direito processual nacional, não sendo impos-
ta pela Diretiva. Diríamos mesmo: uma contradição com a própria
função jurisdicional. O direito de acesso ao tribunal é um direito
de acesso enquanto “parte” na 1ª instância e consequente orga-
nização judiciária. Não há nenhum direito de acesso à segunda
instância face a processo/procedimento de que não se foi parte na
1ª instância.
Todavia, este novo conceito — “vítima” –, bem como a refe-
rência a uma conceção material de vítima — “a pessoa que par-
ticipa ativamente no processo” — assumem naturalmente relevo,
para efeito de melhor determinação ou definição do papel de assis-
tente e, sobretudo, para revalorizar a posição da vitima/assistente
no processo penal.
Com efeito, tanto na Exposição de Motivos do nosso CPP,
como na Diretiva e ainda na Proposta de Lei que esteve na base das
alterações introduzidas mais recentemente, podem encontrar-se as
noções de “vítima” e, sobretudo, de “vítima com participação ativa
no processo”. No fundo, as duas noções podem ser resumidas numa
definição: a pessoa individual, pessoalmente afetada pela prática do
crime, que intervém forçada ou voluntariamente no processo pe-
nal, em colaboração com o MP, titular da ação penal. A vítima — a
pessoa individual — que participa ativamente é, conclusivamente,
um sujeito processual (quando devida e atempadamente constituído
como tal) cuja legitimidade e interesse em agir têm de ser presumi-

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ATUAL REGIME ... 93

dos (e por isso considerados como existentes ao longo do procedi-


mento, quando atue na qualidade de sujeito processual).
No entanto, o problema maior — ou até, se quisermos, o as-
peto de “cinismo mais agudo” — encontra-se no facto de, sob a
pretensão de se pretender a defesa da vítima, estar-se a abrir as
portas à “fraude” para quem não é vítima.
Com efeito, sob a designação de assistente/ofendido, temos
um outro universo de (pseudo)legitimados a reivindicarem os
mesmos direitos da vítima.
Assim, para se constituírem assistentes temos “quatro varie-
dades” de legitimados:
a) Os ofendidos — ou seja, os titulares do interesse que
a lei quis especialmente proteger. Ora, em função da
evolução — sobretudo doutrinal e jurisprudencial —
estamos hoje obrigados a distinguir entre ofendidos-
-vítimas (aqueles que se enquadram na noção e esta-
tuto da vítima) e aqueles ofendidos que não são vítimas
— porque não são ofendidos ou então porque não são
pessoas individuais; em particular, pessoas coletivas ou
então a “aberração” de entidades públicas legitimadas a
constituírem-se assistentes. De facto, nestes últimos ca-
sos, o que temos é lesados que, para salvaguardar a sua
indemnização civil, querem intervir no processo penal.
b) Os “não ofendidos”, ou seja, entidades cuja legitimida-
de para se constituírem assistente se pode dizer deriva
da tutela de interesses difusos ou coletivos, bem como
outros casos “mais excêntricos”. Pressuposto essencial
é que exista uma lei especial habilitante à constitui-
ção como assistente para tais entidades, sejam pessoas
coletivas sejam indivíduos (art. 68º, nº 1 — além das
pessoas e entidades a quem lei especiais…).

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Ao lado da legitimidade decorrente da tutela dos interesses


coletivos, temos ainda o caso da ação popular prevista no art. 68º,
nº 1, al e) — o “qualquer pessoa” que, em determinados crimes, se
pode constituir assistente.
Assim, existindo “quatro ordens” de legitimados à constitui-
ção de assistente, a pergunta é se são todos assistentes da mesma
categoria ou com o mesmo relevo. Ou dito de outra forma: sabe-
mos que o assistente-vítima é o ofendido pessoalmente afetado
pelo crime e que participa ativamente no processo penal. Mas os
restantes “assistentes” participam processualmente da mesma for-
ma e devem ter a mesma legitimidade ou o mesmo interesse em
agir que a vítima? Eis o que se nos afigura de todo discutível.
Para terminar, faríamos a seguinte observação: o atual art. 68º,
nº 3, al. c) (sem prejuízo da nossa manifesta discordância quanto
ao seu conteúdo e mesmo dúvidas quanto à sua constitucionalida-
de), permite a constituição de assistente no prazo de interposição
de recurso. Assim, em caso de absolvição por crime de corrupção
será que qualquer pessoa pode constituir-se assistente por tal cri-
me? Logo, estando, p. ex., em causa um titular de cargo político,
pode o seu adversário político — só para aborrecer — constituir-
-se assistente para interpor recurso?
Terá sido isto que o legislador colocou em letra de lei ou foi
esse o seu leit motiv? A resposta é seguramente negativa.
Mas…. daqui a algum tempo quem se lembrará da razão ou
fundamento (aliás, pouco inteligível) para a previsão desta norma
tão “excêntrica”?

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