Você está na página 1de 16

Trabalho de Conclusão de Curso

PÓS-GRADUAÇÃO
EM FILOSOFIA E
AUTOCONHECIMENTO: USO
PESSOAL E PROFISSIONAL

ALUNO: Flávio Luiz Seabra Ferrari


ORIENTADOR: Sérgio Augusto Sardi
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

SUMÁRIO

0. Resumo e Abstract _____________________________________________ 02

1. Considerações Iniciais ______________________________________ 03

2. Desenvolvimento I __________________________________________ 05

3. Desenvolvimento II ___________________________________________ 11

4. Conclusão _____________________________________________________ 13

5. Referências Bibliográficas ________________________________________ 15

01
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

UMA HISTÓRIA DA VERDADE

RESUMO: O objetivo deste artigo é o de trabalhar a evolução histórica da concepção de


verdade, detectando aspectos de continuidade e ruptura presentes entre o paradigma
mitológico, o filosófico e o científico de compreensão do mundo, respectivamente. A base
teórica é composta principalmente por Marcel Detienne e J.P Vernant em seus estudos mais
conhecidos sobre a relação entre filosofia e mitologia (assunto do qual trata a maior parte deste
artigo). Ao fim, no entanto, é feita a ponte - por meio da dialética do esclarecimento de Adorno
e Horkheimer - entre ciência e mitologia, como se daquela se retornasse eventualmente para
esta (em termos históricos, pois os dois estão falando mais especificamente do povo alemão
que se esclareceu até o século XIX para mergulhar novamente no pensamento mitológico
durante o século XX) um povo esclarecido tende da mitologia, para a filosofia e então para a
ciência; mas depois volta para o paradigma mitológico de compreensão do mundo, em geral,
porque a ciência avança o suficiente para descobrir inverdades mais práticas e efetivas que a
própria ciência, cujo objetivo em última instância é ser prática e efetiva). Peter Sloterdjke, em
sua Crítica da Razão Cínica, segue a tradição de Adorno e Horkheimer para mostrar como
também os próprios herdeiros da teoria crítica recaíram no mito posteriormente – por razões
práticas.

PALAVRAS-CHAVE: Mitologia, Filosofia, Esclarecimento, Ciência, Dialética do


Esclarecimento.

ABSTRACT: The objective of the article is developing the historical evolution of the conception
of truth, detecting aspects of both continuity and rupture present among, respectively, the
paradigms of mythology, philosophy and science. The theoretical base for this work is mostly
taken from Marcel Detienne and J.P. Vernant and their studies on relationship between
mythology and early philosophy (subject with which this article is most concerned with). In the
end, however, the bridge is made - through the dialectic of enlightenment of Adorno and
Horkheimer - between science and mythology, as if from that one would eventually return to this
one (in historical terms, as both are speaking more specifically of the German people that
enlightened until the 19th century to delve again into mythological thinking during the 20th
century). An enlightened people tend from mythology to philosophy and then to science; but it
goes back to the mythological paradigm of understanding the world in general, because science
goes far enough to discover untruths more practical and effective than science itself, whose
ultimate goal is practical and effective. Peter Sloterdjke, in his Critique of Cynic Reason, follows
the tradition of Adorno and Horkheimer to show how critical theory's own heirs later fell into myth
too - for practical reasons.

KEYWORDS: Mythology, Philosophy, Enlightenment, Science, Dialectics of


Enlightenment.

02
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

“É possível, então, perguntar-se se a verdade como categoria mental não


é solidária a todo um sistema de pensamento, se não é solidária à vida
material e à vida social.” (DETIENNE, 1988. p.13)

MITO, FILOSOFIA E CIÊNCIA

O objetivo deste artigo é o de trabalhar a evolução histórica do conceito de


Verdade que circula entre os homens de cada tempo. Mais precisamente, o texto
descreve e analisa a maneira específica de relação que cada período da humanidade
estabelece com a Verdade, com a realidade em seu mais profundo sentido. Com este
objetivo em mente, o artigo deverá mostrar que esta concepção muda drasticamente
ao longo do tempo no mundo ocidental, embora cada mudança seja ao mesmo tempo
contraponto, mas também complemento e principalmente continuação da concepção
que substitui. Nas palavras de Marcel Detienne, é importante:

“[...] detectar nos aspectos de continuidade que tecem uma trama entre
o pensamento religioso e o pensamento filosófico, as mudanças de
significação e as rupturas lógicas que diferenciam radicalmente as duas
formas de pensamento”. (ibid, p.14)

Depreendemos daí que a mitologia é o primeiro interlocutor da filosofia. Nos


textos platônicos, por exemplo, é sempre com relação à tradição dos poetas, das peças
de teatro, das obras épicas que Sócrates debate. A mitologia é o senso comum contra
o qual, inicialmente, os críticos – dentre os quais se pode inserir não só os filósofos,
mas talvez também os sofistas, que faziam parte do mesmo movimento de
racionalização, de progresso retórico etc. – nesse primeiro momento de racionalização
terão de questionar.

Detienne estabelece a relação entre o pensamento mitológico-religioso e o


pensamento filosófico que surge na Grécia antiga nos tempos de Sócrates e Platão.

03
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

No entanto, é preciso levantar a questão posterior: até que ponto a ciência faz o mesmo
tipo de ruptura e continuidade, simultaneamente, quando se emancipa da filosofia,
Pois:

"[...] entre a Grécia e a Razão ocidental as relações são estreitas, tendo


surgido historicamente do pensamento grego a concepção ocidental de
uma verdade objetiva e racional". (ibid, p.13)

A ciência como a conhecemos é herdeira da filosofia ocidental; esta, por sua


vez, surge da mitologia grega especificamente. O desenvolvimento do artigo busca
evidenciar apresentar o processo de passagem do pensamento mitológico para o
filosófico, e deste para o científico.

04
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

DO POETA AO FILÓSOFO

Na ausência de outras referências, o mito é a memória histórica propagada de


geração para geração. Antes da popularização da linguagem escrita, era o poeta que
detinha o poder e a missão de transmissão da história de um povo. O que ele cantava
era a Verdade por ser o que se diz, o que se canta, em oposição ao que ninguém
canta. As histórias dos poetas eram, acima de tudo, as histórias que existiam.

“A memória não é somente o suporte material da palavra cantada, a


função psicológica que sustenta a técnica de formular; ela institui, por
virtude própria, um mundo simbólico-religioso que é o próprio real.”
(DETIENNE, 1988, p.17)

Daquele que não era declamado e cantado, esquecia-se. Feitos ignorados pelos
poetas, considerados indignos de suas odes épicas, perderam-se no tempo e deixaram
de existir. O poeta era visto como um ser inspirado, pois era ele quem dava Ser às
histórias, à própria realidade imaginária que determina em tão larga parte a vida dos
humanos de cada região. (ibid, p.23)

A Verdade, na Grécia antiga, era representada pela palavra Alétheia, cujo


significado é “desvelado”, “não oculto”. Verdadeiro é o que se manifesta aos sentidos,
que se faz presente. O que está em oposição é a ausência, não a mentira que, ao ser
proferida, manifesta, também existe. Detienne ressalta que Alétheia não se opõe à
mentira, como acontece na atualidade. Não há o “verdadeiro” frente ao “falso” nessa
concepção, como para os filósofos e cientistas. A oposição original da Verdade se dá
com Léthe, que é “o esquecimento dos homens”. As palavras de um poeta inspirado e
bem fundamentado tendem a se identificar com a Verdade (Ibid, p.14-23). Dessa
maneira o verdadeiro é, em primeiro lugar, aquilo que é lembrado, fazendo da memória
uma peça-chave da relação entre as pessoas e as verdades.

05
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

Nesse contexto, o mito não é julgado pela oposição verdadeiro-falso; o mito é


Verdade porque existe. Pode ser contestado em seus detalhes e reinterpretado ou
complementado, no decorrer de sua propagação e de acordo com a época, mas ele
“É”. Ele é conhecido, fala-se dele.

Desse modo,
“Não há, portanto, de um lado Alétheia (+) e do outro Léthe (-), mas, entre
estes dois polos, desenvolve-se uma zona intermediária, na qual Alétheia
se desloca progressivamente em direção a Léthe, e assim
reciprocamente. A “negatividade” não está, pois, isolada, colocada à
parte do Ser; ela é um desdobramento da “Verdade”. (Ibid, p.23)

As duas potências antitéticas não são, contraditórias, pois tendem uma à outra:
o positivo tende ao negativo, que, de certo modo, “o nega”, mas sem o qual não se
sustenta. Trata-se, então de nuançar as afirmações precedentes e de mostrar que nem
o rei de justiça – figura que, como o poeta, detinha no plano político o poder análogo
ao poder do poeta no plano da cultura - nem o poeta são, pura e simplesmente,
“mestres da Verdade”, mas que sua Alétheia está sempre recortada por Léthe.

A razão é o primeiro instrumento de interpretação do mito (Cf. DETIENNE, 1988;


VERNANT, 2002; VEYNE 2014; ADORNO e HORKHEIMER, 2006), e como bem
colocou Paul Veyne em sua obra intitulada “Os gregos acreditavam em seus mitos?”,
a racionalização do mito já estava normalizada nos tempos dos filósofos e sofistas
conhecidos da Grécia antiga (Cf. VEYNE 2014). Segundo suas pesquisas, os homens
já questionavam corriqueiramente que, por exemplo, o Minotauro não fosse meio
homem e meio touro de fato, mas apenas muito grande e forte como um touro; talvez
usasse um brasão de touro no escudo, etc.

Essa racionalização que o povo já fazia era elevada ao máximo no contexto dos
amantes da Alétheia, como vista no prelúdio do poema de Parmênides. Detienne
afirma que é precisamente no ambiente filosófico-religioso que começam as
discussões sobre essa temática:

“[...] todos estes traços, cujo valor religioso não pode ser contestado,
orientam-nos de forma decisiva em direção a alguns meios filosófico-
religiosos onde o filósofo ainda não é mais do que um sábio, digamos,
até mesmo um mago. Mas é nestes meios que se encontra um tipo de
homem e um tipo de pensamento voltados para a Alétheia.” (Ibid, p.23)

É evidente, portanto, que nos tempos da hegemonia mitológica eram sempre


figuras privilegiadas que detinham o poder de ecoar a Verdade, um privilégio de

06
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

poucos, que com o tempo seria perdido num processo de secularização da palavra,
que será apresentado na segunda parte do artigo. É interessante observar que,
historicamente, a “hegemonia” da poesia condiz com a invencibilidade das cavalarias
das nobrezas gregas quando enfrentadas por meros homens quaisquer sem cavalos
ao mesmo tempo em que a laicização da palavra, ou seja, um certo processo de
democratização de quem pode ecoar suas palavras, surge e se consolida
precisamente com a popularização de um novo método de combate que utiliza a força
dos números – vários homens empurrando enquanto empunhavam escudos e lanças
-, conhecida como falange, para vencer não só outras formações como, mais
significativamente, as cavalarias. Essa argumentação é apresentada por Victor Davis
Hanson (Cf. HANSON, 1994) historiador de guerra, ao falar do que denomina
“revolução hoplita” (pois o soldado da falange é um hoplita, um homem de escudo –
hóplon), um fenômeno de implicações políticas severas pra toda a Grécia Antiga e que
teria resultado, em última instância, nas cidades-estado gregas como nós as
conhecemos melhor.

“Palavra-diálogo, de caráter igualitário, o verbo dos guerreiros é também


de tipo laicizado. Inscreve-se no tempo dos homens. Não é uma palavra
mágico-religiosa que coincide com a ação que institui em um mundo de
forças e potências: ao contrário, é uma palavra que precede à ação
humana, que é seu complemento indispensável. Antes de levar a cabo
qualquer empresa, os aqueus reúnem-se para deliberar.” (DETIENNE,
1988, p.51)

J.-P. Vernant (VERNANT, 2002, p.18) pôde mostrar que, nas cosmogonias e
nas teogonias gregas, a ordenação do mundo era inseparável dos mitos de soberania,
e que os mitos de emergência, ao mesmo tempo que contavam a história das gerações
divinas, colocavam em primeiro plano o papel determinante de um rei divino, que, após
numerosas lutas, triunfa frente a seus inimigos e instaura definitivamente a ordem no
Cosmos.

Nesse nível (o primeiro registro), o poeta é, antes de tudo, um “funcionário da


soberania”: recitando o mito de emergência, colabora diretamente com a ordenação
do mundo. (Cf. VERNANT, 2002)

É somente depois do fortalecimento dessa classe de fazendeiros soldados, os


hoplitas, que a ordem das cidade-estado (poleis) começa a se reorganizar. As
assembleias são no início uma cópia do que os homens faziam quando em guerra.
Juntavam-se, discutiam relativamente de igual pra igual, e deliberavam como
equivalentes mesmo quando suas patentes diferiam, como é o famoso caso de Aquiles

07
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

discutindo com Agamenon na guerra de Tróia. Tanto Davis Hanson quanto Mary Beard
(Cf. BEARD, 2017 e HANSON, 1994) contam em seus livros como os homens se
ordenavam em círculo, equidistantes um do outro, e ao meio ficava o homem que
falava (no lugar do prêmio de guerra, diga-se de passagem). Esse costume de discutir
o que fazer na guerra que surge com os soldados acaba se tornando formalmente a
instituição da assembleia dos atenienses. É com os soldados que a mitologia perde
sua primazia para a palavra de ‘’homem para homem’’ dos filósofos e sofistas.

“Um dos privilégios do homem de guerra é o seu direito de palavra. A


palavra não é mais, nesse momento, o privilégio de um homem
excepcional, dotado de poderes religiosos. As assembleias são abertas
aos guerreiros, a todos aqueles que exercem plenamente o ofício das
armas. Esta solidariedade entre a função guerreira e o direito de palavra,
atestada pela Epopéia, encontra-se igualmente confirmada nos
costumes das cidades gregas arcaicas, onde a assembléia do exército é
o substituto permanente do povo, como, por exemplo, nos costumes
conservadores da assembleia macedônica [...]” (DETIENNE, 1988, p.50)

Assim, é nos exércitos que acontece boa parte dessa secularização da palavra,
no sentido de uma “dessacralização”, racionalização dela, que engendrou – segundo
os autores mencionados – a nova forma de pensar e as novas formas políticas do
século VI e VII a.C, à maneira de uma estrutura determinando a superfície.

“[...] a palavra-diálogo é laicizada, complementar à ação, inscrita no


tempo, provida de uma autonomia própria e ampliada às dimensões de
um grupo social. Este grupo social é formado pelos homens
especializados na função guerreira, cujo estatuto particular parece
prolongar-se desde a época micênica até a reforma hoplita, que marca o
fim do guerreiro como indivíduo particular e a extensão de seus
privilégios ao cidadão da Cidade.” (Ibid, p.45)

Parece claro, portanto, que a própria estrutura das cidades gregas está ligada a
esses costumes militares que emprestam o modelo de isonomia à relação dos homens
com a palavra; de forma que, ao que nos parece, há espaço sistemático para diálogo.
Mas Detienne é mais modesto em suas considerações, e afirma mais precisamente o
seguinte:

“Neste quadro geral, onde o social e o mental interferem constantemente,


opera-se a laicização da palavra, que se efetua em diferentes níveis:
através da elaboração da retórica e da filosofia, e, também através da
elaboração do direito e da história.” (p.54); “A eficácia mágico-religiosa
converteu-se em ratificação do grupo social. É o ato de óbito da palavra
mágico-religiosa” (Ibid, 1988, p.54)

Essa ratificação do grupo é justamente o que a ordem social e política herdou


da ordem militar, da mesma forma que as duas grandes direções que a elaboração da

08
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

linguagem tomou surgem dela: logos como instrumento das relações sociais – o foco
do sofista, e logos como meio de reconhecimento do real: o caminho do filósofo.

Detienne reitera que apesar da nítida mudança do pensamento mítico ao


pensamento racional, há uma certa continuidade evidenciada por determinadas
afinidades:

“Do rei de justiça ao filósofo mais abstrato, a “verdade” continua a ser o


privilégio de determinados tipos de homem.” (Ibid, 1988, p.73)

Alétheia, ainda que no centro do pensamento racional, marca claramente uma


certa linha de continuidade entre a religião e a filosofia, mas é também, no seio do
mesmo pensamento, o signo mais específico da ruptura que o separa do religioso.
(DETIENNE, 1988, p. 73)

Detienne aponta que para que a Alétheia religiosa se tornasse conceito racional,
foi preciso que se produzisse um fenômeno maior, o da secularização da palavra, cujas
relações com o advento de novas relações sociais e de estruturas políticas inéditas
são inegáveis, assim como a instituição, na prática jurídica e política, de duas teses,
de dois partidos, entre os quais a escolha era inevitável (Ibid, p.74, 1988)

A filosofia convive, então, com o mito esclarecido, embasado por argumentos


racionais e pela mesma retórica dos sofistas.

É interessante observar que, nesse novo contexto mais democrático, o que se


opõe à Verdade já não é o esquecimento (Léthe), mas a irracionalidade.

A Verdade, mais democraticamente confrontada, passa a estar subordinada a


um segundo critério além da existência: sua racionalidade. O que se manifesta, mas
não resiste ao crivo da razão, não pode ser considerado como Verdade.

09
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

A DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO

Do pensamento filosófico deriva a ideia de esclarecimento e, como consequência, o conceito


de ciência como nova representante da Verdade.

O Esclarecimento (Aufklärung) de Kant é “a saída do homem de sua menoridade [...]”. A


menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem” (Cf.
KANT, 1984). Essa “direção de outrem” representa a tradição, as opiniões de autoridade etc.
Amadurecer, aqui, é aprender a usar racionalmente o entendimento, desmistificado das ilusões da
infância intelectual.

Adorno e Horkheimer, no entanto, enxergam no esclarecimento o processo pelo qual o


homem vai da interpretação mitológica e supersticiosa do mundo à compreensão racional e
desencantada dele. Ele é “a forma que lida melhor com os fatos e mais eficazmente apoia o sujeito
na dominação da natureza” (Cf. ADORNO; HORKHEIMER, 2006). Mas essa função já era
desempenhada pela mitologia, e é dela, mitologia, que nasce o esclarecimento.

O gérmen de toda ciência, a alma da tábua das categorias, é a autoconservação do sujeito


esclarecido, a mesma força por trás da mitologia. O esclarecimento promove a autoconservação
por meio do desmascaramento sucessivo de todas as ilusões, superstições e tradições; tudo o que
já estava pré-estabelecido nas mentes dos homens, ele chama de preconceitos e vê como entraves
a sua independência, empecilhos ao aumento de seu poder. Assim, ele vai destruindo uma a uma
toda a superstição que a tradição consolidou e revelando toda a Verdade que ela suprimiu, tendo
em vista a dominação da natureza (a sua natureza e a natureza externa, os maiores inimigos do
homem primitivo). Mas o esclarecimento só pôde existir graças ao que havia antes dele: o mito, a
superstição etc.; e no processo de desmascarar e compreender tudo racionalmente, ele acaba
derrubando até suas próprias condições de existência – já que pouco sobrevive à força destruidora
da razão.
O esclarecimento começa a amedrontar os próprios esclarecedores: “As doutrinas morais
do esclarecimento dão testemunho da tentativa desesperada de colocar no lugar da religião
enfraquecida um motivo intelectual para perseverar na sociedade quando o interesse falha”
(ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 12). Para Adorno e Horkheimer, Nietzsche e o Marquês de

010
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

Sade encarnam o esclarecimento em seu auge e representam justamente o que temem os


esclarecedores. A partir da morte de Deus (a mais ilustre vítima do esclarecimento na
epistemologia), não se pôde mais negar a afinidade entre a razão e o crime. A famosa “lógica do
roubo”. Não há mais motivo de princípio contra o assassinato que não seja revelado como uma
ilusão ingênua ou uma mentira para ludibriar os tolos. Sade desmascara tudo até chegar ao tabu
do incesto, o marco zero: denuncia seus adeptos como “menores” incapazes de dirigir seu
entendimento sem apelar para dogmas irracionais. Nietzsche faz isso ao condenar a compaixão,
que se revela à inspeção desencantada, não só uma ilusão, mas uma abominação: “Os fracos e os
malformados devem perecer: primeira proposição de nossa filantropia” (NIETZSCHE apud
ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 213).

Os autores acreditam que o próprio conceito desse pensamento [esclarecedor], tanto quanto
as formas históricas concretas e as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado,
contém o germe de sua regressão. Se o esclarecimento não acolhe a reflexão sobre esse elemento
regressivo, ele está selando seu próprio destino. Consideram que deixando a reflexão sobre o
elemento destrutivo do progresso para seus inimigos, o pensamento cegamente pragmatizado
perde seu caráter de superação e sua relação com a Verdade (ADORNO; HORKHEIMER, 2006,
p.13).

Em sua concepção, o mito já é esclarecimento e o esclarecimento corre o risco de reverter


à mitologia. (ibid, p.14 e p.15)

O que se observa hoje, sob essa ótica, pode ser visto como tentativas apressadas do
progressismo e do novo conservadorismo de conter as inconveniências que se podia resolver com
facilidade, antes, com apelo à tradição, vítima da filosofia e da ciência. Essa é a ingenuidade do
“imperialismo secularista”, que ao desejar ser mais prático e objetivo destrói ilusões irracionais que
eram muito mais práticas e objetivas do que as alternativas científicas disponíveis no momento.
Tudo o que repousava sobre as pequenas mentiras e grandes absurdos criados para a manutenção
de certo modelo de relações pode desabar, e a sociedade fica cada vez mais exposta ao que há de
menos civilizado no homem (coisa que a mitologia anterior, ou mais precisamente aqui a tradição e
a religião, evitavam). É assim que, como Adorno e Horkheimer demonstram, o homem retorna à
barbárie.
As funções que se mostrarem necessárias para a sobrevivência da sociedade, as funções
primordiais de autoconservação, podem depender das ilusões desmascaradas, e precisariam agora
ser reinstauradas mitologicamente, por pensamento mitológico-religioso, se a eficiência é almejada.
A própria ciência e filosofia irão apontar para o caminho da mitologia como o mais prático, mais
eficiente, o melhor. É só uma questão de tempo. Ou, pelo menos, é uma possibilidade.
O modo mais fácil de cumprir essas funções necessárias que reemergem, o caminho de menor

011
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

resistência nessa direção, é o simples o rebranding (renomeação) de convenções e ilusões já bem


estabelecidas no imaginário da população. As pessoas, ocupadas demais com suas atribuições
diárias para se importar com trivialidades filosóficas desse tipo, estão prontas para se readequarem
a qualquer solução rápida e fácil que cumpra essas funções necessárias de autoconservação. E a
partir daí, o progresso racional procede tentando mudar apenas o que as condições o forçam a
modificar, enquanto garante que as ilusões necessárias sobrevivam na forma de novas utopias que
façam a mesma coisa. Nas palavras de Peter Sloterdijk, “todo conhecimento tem de escolher seu
lugar na estrutura de poderes hegemônicos e de contra potências” e, por isso, esse esclarecimento
vai se “entrincheirando em suas posições firmemente esclarecidas” e se tornando parte do
establishment para se auto conservar: [...] com um salário líquido de dois mil marcos por mês,
começa silencioso o Contra Esclarecimento”; ele aposta que cada um que tenha algo a perder
arranje-se por conta própria com sua consciência infeliz ou a encubra com “atividades engajadas”
(SLOTERDIJK, 2012, p. 35-36). Em outras palavras, é assim que o “progresso converte-se em
regressão”, e “os próprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortúnio” (ADORNO;
HORKHEIMER, 2006, p. 14).
E, deste modo, o esclarecimento se converte, a serviço do presente, na total mistificação
das massas, tendo a razão como instrumento (ibid, p.46).

Observamos um terceiro momento da evolução da Verdade, partindo do mito, transitando


pela racionalidade (filosofia) e chegando ao pensamento científico que, embora pretenda ser
independente e isento em sua tarefa validadora e definitiva, destruindo as ilusões, enfrenta suas
próprias limitações.

Por um lado, precisa garantir a autoconservação do sujeito esclarecido, que é o objetivo


primário do esclarecimento, e apesar do sua proposta prática e objetiva, pode tornar mais complexa
sua missão. Por outro, no processo de desmascarar ilusões ou ao esbarrar na impossibilidade de
encontrar respostas, pode comprometer a sobrevivência da sociedade.

De todo modo, chegamos a um terceiro estágio na evolução da Verdade para a qual já não
basta ser manifesta e passar pelo crivo da razão. Precisa ser validada pela experiência, através do
método científico que, vale ressaltar, mantém a restrição dos arautos autorizados a proferi-la.

012
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

Percorremos o caminho das faces históricas da Verdade, tendo o pensamento filosófico


como pivô de suas transformações.

Vimos, com Detienne e Vernant que, na Grécia antiga, verdadeiro é o que se manifesta aos
sentidos tendo a ausência como oposição, e que não há o “verdadeiro” frente ao “falso” nessa
concepção. Ao contrário, no contexto, o mito é Verdade porque existe, mesmo quando cunhado a
serviço de soberanos como mitos de emergência.

Ainda com esses autores, entendemos que a evolução da organização social humana
contribuiu para a laicização da palavra, de onde surge a possibilidade de diálogo e do uso da razão
para arguição das verdades mítico-religiosas. O desvelamento (Alétheia) precisa ser racionalizado
para manter sua posição de Verdade.

Adorno e Horkheimer caracterizam, então, o surgimento do pensamento filosófico, que se


contrapõe e complementa seu antecessor (mitológico), condicionando a Verdade não apenas à
existência, mas ao crivo da razão. Alertam, entretanto, que o pensamento cegamente pragmatizado
perde seu caráter de superação e sua relação com a Verdade.

Mas é Detienne quem afirma que “Do rei de justiça ao filósofo mais abstrato, a Verdade
continua a ser o privilégio de determinados tipos de homem.” (DETIENNE, 1988, p.73)

Do desvelamento racionalizado, com Adorno e Horkheimer e Peter Sloterdjke, caminhamos


para o Esclarecimento, de onde nasce o pensamento científico, para o qual qualquer Verdade
precisa ser experimentalmente e comprovada para ser aceita, seja ela advinda do mito ou da razão.
É o método científico que determinará se uma proposição é verdadeira ou falsa.

Adorno e Horkheimer apontam que “As doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho
da tentativa desesperada de colocar, no lugar da religião enfraquecida, um motivo intelectual para

013
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

perseverar na sociedade quando o interesse falha” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 12).

A função primária do esclarecimento, seja através do mito, da filosofia ou da ciência, é a


auto preservação do esclarecido, e esse é um princípio condicionante da Verdade.

A ciência, em sua sanha de controle da Verdade, pode sucumbir à necessidade de criação


de novos mitos para validar e aprimorar seu controle e autoconservação, em busca de praticidade
e eficiência social.

Nas palavras de Peter Sloterdijk, “todo conhecimento tem de escolher seu lugar na estrutura
de poderes hegemônicos e de contra potências” e, por isso, esse esclarecimento vai se
“entrincheirando em suas posições firmemente esclarecidas” e se tornando parte do establishment
para se auto conservar”. (SLOTERDIJK, 2012, p. 35-36).

Abarcamos aqui, nessa breve ilação histórica, a dinâmica da evolução da busca da Verdade
desveladora do mundo através de seus contrapontos: o esquecimento (Léthe), a irracionalidade e
a comprovação (científica) da falsidade. As transições entre os contrapontos representam rupturas.

Encontramos, também, duas características que prevalecem durante seu processo


evolutivo, que se interrelacionam: a subordinação ao contexto e às necessidades sociais de
esclarecimento (e preservação do esclarecido) e a determinação (limitação) dos arautos
“autorizados” a proferi-la. Esses pontos comuns representam a continuidade.

014
Pós-graduação em Filosofia e Autoconhecimento: Uso Pessoal e Profissional

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. e HORKHEIMER, M.. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de


Almeida. Rio de Janeiro: Zahar , 2006

ALMEIDA, Guido de Antonio de. Nota Preliminar do Tradutor. In ADORNO, T. e HORKHEIMER,


M. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar,
2006

BEARD, MARY. Mulheres e poder: um manifesto. Tradução de Celina Portocarrero. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2018.

DETIENNE, Marcel: Os Mestres da Verdade na Grécia . Ttradução Andréa Daher. RJ: Zahar,
1988.

HANSON, Victor Davis. The Western way of war. University of California Press, 1994.

HESÍODO. Teogonia. Tradução Jaa Torrano. São Paulo, Iluminuras, 2007.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta “o que é esclarecimento”. Textos Selecionados. Trad.


Tania Maria Bernkopf, Paulo Quintela e Rubens Rodrigues Torres Filho. 2. ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1984. (Coleção Os Pensadores).

PLATÃO. República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9. Ed

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Editora Estação Liberdade, 2012.

VERNANT, Jean Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca Rio
de Janeiro: Difel, 2002.

VEYNE, Paul. Os gregos acreditavam em seus mitos? São Paulo, Editora Unesp, 2014.

015

Você também pode gostar