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Desejo Razão e Método CST - MEDEIROS
Desejo Razão e Método CST - MEDEIROS
RESUMO
Ao discutir a Clínica no campo da saúde este artigo tem por objetivo manifestar a possibilidade
de uma clínica de território em campos que desejam sustentar práticas e investigações que
incluam as formas de vida e os discursos que organizam o laço social no processo de saúde,
adoecimento e cura. A parte dedicada ao Desejo apresenta a motivação para a proposta, seguida
da Razão, onde ela se justifica. O trecho mais longo, intitulado Método, introduz os avanços
obtidos por meio de atividades de investigação acadêmica no sentido do estabelecimento de
uma estrutura elementar que define o conceito de clinicas de território. A parte final situa e
explica o caráter dos elementos fundamentais desta clínica, a saber, derivar, escutar e escrever,
advertindo que é preciso que se coloque algo da singularidade individual ou coletiva para que
ela se materialize em práticas de investigação, cuidado e promoção de saúde para incrementar
qualidade de vida.
ABSTRACT
When discussing the Clinic in the field of health, this article aims to demonstrate the possibility
of a territory clinic in fields that wish to sustain practices and investigations that include the
forms of life and the discourses that organize the social bond in the process of health, illness
and cure. The section dedicated to Desire presents the motivation for the proposal, followed by
Reason, where it is justified. The longest section, entitled Method, introduces the advances
obtained through academic research activities towards the establishment of an elementary
structure that defines the concept of territory clinics. The final part situates and explains the
character of the fundamental elements of this clinic, namely, to derive, listen and write, warning
that it is necessary to place something of the individual or collective singularity so that it
materializes in research, care and promotion health practices to improve quality of life.
RESUMEN
Al hablar de la Clínica en el campo de la salud, este artículo tiene como objetivo demostrar la
posibilidad de una clínica territorial en campos que deseen sustentar prácticas e investigaciones
que incluyan las formas de vida y los discursos que organizan el vínculo social en el proceso
de salud, enfermedad y cura. La sección dedicada a Deseo presenta la motivación de la
propuesta, seguida de Razón, donde se justifica. La sección más extensa, titulada Método,
presenta los avances obtenidos a través de las actividades de investigación académica hacia el
establecimiento de una estructura elemental que define el concepto de clínicas de territorio. La
parte final sitúa y explica el carácter de los elementos fundamentales de esta clínica, a saber,
derivar, escuchar y escribir, advirtiendo que es necesario colocar algo de la singularidad
individual o colectiva para que se materialice prácticas de investigación, cuidado y promoción
de la salud para mejorar la calidad de vida.
ABSTRAIT
En discutant de la Clinique dans le domaine de la santé, cet article vise à démontrer la possibilité
d'une clinique de territoire dans des domaines qui souhaitent soutenir des pratiques et des
recherches qui intègrent les formes de vie et les discours qui organisent le lien social dans le
processus de santé, maladie et guérison. La section consacrée au désir présente la motivation
de la proposition, suivie de la raison, lorsqu'elle est justifiée. La section la plus longue, intitulée
Méthode, présente les avancées obtenues grâce aux activités de recherche académique vers la
mise en place d'une structure élémentaire qui définit le concept de cliniques de territoire. La
dernière partie situe et explique le caractère des éléments fondamentaux de cette clinique, à
savoir, dériver, écouter et écrire, en avertissant qu'il faut placer quelque chose de la singularité
individuelle ou collective pour qu'il se matérialise dans les pratiques de recherche, de soins et
de promotion de la santé pour améliorer la qualité de vie.
1. Desejo
Augusto, que também atende por Epifânio, sai à deriva pelas ruas. Só sai, assim, à
experimento que procura. Para ele, entretanto, sair à deriva pela cidade não implica a
inexistência de um augusto propósito: escrever um livro. Porém, um tipo de livro que lhe
demanda algo da ordem de uma epifania, pois deseja que seu intento não seja capturado pelo
lugar-comum. Quer escrever um livro que escape da forma guia turístico ou manual das ruas.
Itinerários e olhares acerca da cidade precisam ser singulares. Para tanto, utiliza um método:
alugou uma peça para morar no território que deseja investigar, transita somente a pé e leva
um relógio que o avisa das três horas da madrugada, quando deve retornar a seu aposento e
modo e uma filosofia que o ajude a estabelecer uma melhor comunhão com a sua cidade. Um
elemento que aparentemente o desvia de seu objetivo literário, embora tenha proximidade
evidente. Augusto tem uma espécie de fetiche, de compulsão, por ensinar prostitutas a ler.
Assim que diagnostica o analfabetismo numa garota de programa, faz o contrato padrão. Mas
como, por exemplo, o daquela pessoa que lhe pede para auxiliar a colar manifestos ecológicos
em automóveis de uma garagem pública, pouco antes das três da manhã. Coisas que Epifânio
vida em coletividade, mas, ao mesmo tempo, desvelou seus impossíveis. Constituiu-se a partir
do caráter sedentário dos povos. Estruturou-se perto das fontes, dos rios, do mar, a partir da
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organização racional das atividades econômicas e, mais adiante, estabeleceu seus fluxos de
vida em torno da fábrica. Sua população, a medida que cresce, vai segregando os indesejáveis
desconfortável da vida em comum. Os centros das grandes cidades são como documentos
históricos a céu aberto onde se pode ler, com algum letramento fino, as origens dos
medida em que não sejam desarticulados os elementos complexos que explicam seus
principais problemas.
A narrativa de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro (Fonseca, 1992) constrói um
personagem comum, urbano, idealista, sensível, solidário, que se entrega à tarefa de conhecer
um território a partir de seu terreno, mas também de sua vida pulsante. O faz a pé, observando
Epifânio, inclusive para aqueles cuja implicação pelo trabalho esteja situada na compreensão
antropólogo. No campo prático, pode haver o psicólogo e o assistente social, bem como o
gestor público tecnocrático. Contudo, se o foco estiver colocado sobre a questão do respeito
aos modos de vida e das condições dignas de reproduzi-la, existem outros tantos, mesmo fora
Como responder sem alguma noção sobre o que é considerado viver em nosso tempo?
A resposta sintética e de aparência pessimista é: tudo aquilo que sustente minimamente uma
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sobrevivência. Decerto que alguns poucos gozam de uma vida além da sobrevivência.
Contudo, mesmo a pequena massa de remediados da classe média brasileira, com os novos
viverão apenas para reproduzir serviços e mercadorias para comprar dinheiro durante todo o
tempo que durar sua vida. Apenas sobreviverão, também. Os demais, cerca de 80% da
população brasileira já viviam um dia após o outro, sem muitos planos futuros ou aspirações
que não seja a sobrevivência, mesmo antes da pandemia que iniciara em 2020.
Parece coerente que ter saúde para produzir meios de sobrevivência passe a ser a busca
e o bem mais importante para manter a vida. E aí, chegamos à clássica querela: o que se
entende por ter saúde? O processo da Reforma Sanitária dos anos 70-80 inaugurou um novo
partir desse movimento, é constituída fundamentalmente por oferecer uma noção segundo a
qual há também uma determinação social da saúde, além da biológica e psíquica. Os modos
tradições e experiências coletivas produzem a vida. Dessa forma, a vida de relação com as
coletividade, importa para a harmonia entre a vida e a saúde. Todos concordam com isso.
como um suplemento para sua formação, não deixam de lado, necessariamente, suas práticas
atravessamento, muitas vezes já latente em sua formação pregressa, do modo de agir e pensar
demais profissionais da área da saúde, em torno de 15 profissões, seguem sendo formados sob
Que o discurso da ordem médica indique como devo viver e o que deve ser o normal,
quais os caminhos para me manter nessa normalidade e qual o remédio, caso me afaste do que
sociedade. Que esse discurso seja capturado pelo do capitalismo, nada mais natural, visto que
a sociedade pode ser traduzida e pensada como mercado consumidor. Eis um dos elementos
1.1.1 A Clínica
história da Clínica moderna inicia efetivamente com a ocupação dos hospitais por parte da
medicina na Europa do séc. XVIII. Seu fundamento fora a escuta e a observação intensiva do
pode ser representado como uma espiral que engloba em sua trajetória os eixos da evolução
microbiológicas, das políticas estatais de saúde pública e do trabalho, bem como do processo
grande reforço por meio do avanço tecnológico dos exames de imagem e da indústria
farmacêutica. Hoje, reconhece-se a Clínica mais pelo uso do diagnóstico por imagem, exames
laboratoriais e terapêuticas pela via farmacológica, do que por qualquer outro de seus
ao longo do tempo.
seu objeto já sabendo o que vai encontrar. Sua procura é invertida. Na narrativa do paciente
ou na observação de seu corpo não interessa tanto aquilo que não sabe, mas aquilo que já
sabe. É assim que pode pintar o quadro clínico que lhe corresponde e operar sobre ele. O
lugar onde está exposta a tela, a moldura, a origem das tintas, o processo que a produziu e
processo.
pela estatística. Uma clínica não mais baseada nas singularidades da narrativa de sofrimento
do paciente e dos sentidos múltiplos que isso pode representar, mas baseada em evidências
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lógica indutiva. Um perfeito paradoxo, pois se trataria de uma Clínica especializada, mas
determinado campo operatório: uma anedota apócrifa afirma que o especialista é aquele que
que acreditaríamos que a Clínica, representada pelo conjunto de práticas orientadas pela
O valor do ser humano não é constante. Estruturalmente, podemos dizer que sua
singularidade depende do lugar onde ele está. O lugar é o conjunto de objetos e determinações
conjunto das determinações, inclusive as minoritárias, o que organiza o lugar. Milton Santos
da verdade do discurso da área é uma pessoa geralmente externa às coletividades as quais vem
de Santos pode ser aplicada a praticamente todas as áreas afins, que se refiram ao estudo e
Uma proposta de atenuação desse problema no campo da saúde onde reina a Clínica
tem sido proposta no âmbito da Saúde Coletiva como clínica ampliada. Uma tentativa de
dialogue com outros saberes e práticas convidadas a participar de uma discussão de caso e
caso, mesmo no contexto de uma tentativa de clínica ampliada, costumam operar segundo a
multiprofissional.
como disparador de processos de mudança, cura ou experiência? Além das clínicas curativas
outras. Pergunta-se: é o melhor caminho para o campo da saúde, compreendido como tudo
com o outro, prescindir da Clínica? Como operar no campo da saúde sem dialogar com a
1.1.2 A clínica
Franz Kafka em 1915. No entanto, nem a barata ou qualquer outro animal a que Kafka
concede voz e pensamento, em sua literatura, o faz a exemplo de um ser humano. O lugar
enunciativo é deslocado daquilo que esperamos e esse efeito é desconcertante e belo. Deleuze
e Guattari (1975) analisam esse fato estilístico na obra de Kafka como produto de potência
criativa tributária de sua posição estrangeira no contexto da grande língua alemã. Kafka cria-
não o fazem, decerto, na forma culta. Ao optar por escrever em alemão, insere-se e serve-se
da língua de um modo que escapa aos cânones da literatura de Goethe. Contudo, não pode
recuar do desejo de escrever e nem de fazê-lo em alemão, mesmo não o dominando como um
herdeiro genuíno daquela cultura. Porém, ao não recuar, recria estilos, palavras e produz
novos lugares enunciativos com sua literatura menor (Deleuze & Guattari, 1975).
instituídos é o fator decisivo para o conceito. A impossibilidade de não poder deixar de fazê-
produto de condicionantes os mais diversos, além dos biológicos, recue de pensar e agir no
sentido de uma prática e uma lógica que contemple essas condições. Entretanto, é impossível
que queira fazê-lo sem o diálogo com a estrutura da Clínica tradicional. Em compensação,
2. Razão
práticas populares e científicas para o cuidado da saúde - o que acabou compondo o campo da
os planos de saúde, a seu turno, inovaram as formas de capitalização dos processos da Clínica
A crise econômica mundial que inicia em meados dos anos 70, após as duas grandes
1945 - impõe aos governos dos países economicamente mais desenvolvidos a necessidade de
reformar seus sistemas de proteção social, o que incluía a saúde como carro-chefe. A partir
internacionais que reúnem gestores de grandes nações para discutir novas ideias, como os
de vida da população do primeiro mundo, de modo sustentável aos seus governos (Buss,
2000).
Talvez seja possível afirmar que as bases da proposta da Atenção Primária à Saúde
sido responsáveis por uma pequena alteração na Clínica contemporânea com o passar dos
anos. Além do acesso universal aos sistemas de saúde, a descentralização do cuidado, com
foco nos territórios, coloca para a Clínica a necessidade de acompanhar os modos de adoecer
cada local. O território passa a ser o elemento organizador desta nova orientação.
atenção e formação (Teixeira e Solla, 2006). A Clínica seguiu seu processo cada vez maior de
especialização e de uso da tecnologia no setor dos exames, dos diagnósticos e dos fármacos.
país – o médico de família e comunidade (MFC) surge como a especialidade de uma Clínica
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cuja natureza é a generalidade. Trata-se de um profissional que deve conhecer, desde a clínica
geral dos agravos agudos e crônicos mais recorrentes nos diversos ciclos vitais, até as técnicas
significa algo mais complexo do que ter acesso à informação sobre os limites geopolíticos, os
especializada, individual e biologicista, que nos inspira a perguntar: afinal, não haveria a
3. Método
experiência que pudesse indicar caminhos e primeiras respostas. A linha que estruturou esse
plano, em conjunção com o ponto do não saber, fora um projeto de extensão universitária,
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iniciado em 2016, por meio do qual, professores e alunos de diversos cursos de áreas afins à
saúde ou que se ocupam do espaço e dos modos de vida nos territórios, propuseram-se o
urbanismo e que mais tarde ganharia geógrafos e assistentes sociais, era produzir uma
experiência crítica e inovadora de aproximação das formas de vida no espaço urbano sem os
recursos já estruturados pelo saber de alguma área do conhecimento científico ou pelo poder
científicos tradicionais não deveria ser de nenhuma das áreas que, inclusive, estavam
representadas em nosso grupo. O que se buscava era tomar o território como fundamento e
não como objeto de diagnóstico, classificação ou intervenção. Arriscamos que nosso intento
até poderia ser a busca por uma clínica feita de território. Eis a pré posição de nosso ato e o
sentido que a preposição confere à expressão clínica de território. Uma homologia relativa ao
conceito de vontade de potência de Nietzsche (1988), a saber, uma vontade que se insurge
contra aquilo que resiste a ela. Desse modo, a clínica de território seria aquela que se
manifesta no momento em que algo reage, resiste ou se insurge contra seus agenciamentos no
território.
com que nossas primeiras navegações em territórios de bairros periféricos de uma grande
cidade, escolhidos intencionalmente pelo cenário de desigualdade social que representa bem o
contexto sócio histórico do nosso país, fossem ancoradas em uma unidade de saúde e
timoneadas por uma de suas trabalhadoras: a agente comunitária de saúde (ACS). Veio daí a
acompanhados por uma pessoa reconhecida por trabalhar no posto de saúde local nos
serviços, entre outros. Assim, nossa disposição no território já estava capturada pelo discurso
grupo itinerante não permaneceria muito tempo sem precisar revelar sua procedência. Foi
universidade. O lugar de ensino, pesquisa e extensão universitária nos investiu de tal potência
que até mesmo um emprego nos foi solicitado durante uma conversa, fazendo com que
refletíssemos sobre o tipo de relação que ali estávamos estabelecendo com aquela população,
território: como escapar das capturas que premeditam e conformam relações? Como modular
os efeitos dos lugares instituídos do saber/poder nos territórios? Por fim, como dispormo-nos
ao lado povo para escutar narrativas de seu ponto de vista, se, mesmo tendo sucesso em
atravessadas pela linguagem das ciências, pelo desejo do mercado ou pelo trabalho do
Estado?
O primeiro movimento de reflexão sobre essas questões, ainda como grande grupo de
professores e alunos, foi promovido pela literatura. Uma colega sugeriu um conto para servir
de substrato de nossas discussões iniciais: A arte de andar nas ruas... (Fonseca, 1992),
mencionado no início deste capítulo; afinal, andar nas ruas era tudo o que fazíamos até ali. A
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aposta talvez tenha sido conhecer e significar o mundo por outra forma que não pela lente da
ciência, como a arte nos possibilita. No entanto, foi apenas no segundo ano do projeto que a
prática da errância pelas ruas daquele bairro periférico de uma capital encontrou um conceito.
nossa errância inicial - e a própria linha narrativa errante do conto - de algum modo nos levou
meados do séc. XX (Debord, 2003). Como um ato de rompimento com as coerções do modo
invés do intencional. Os derivantes devem renunciar aos motivos premeditados para deslocar-
se e se deixarem levar pelas solicitações do terreno e pelos encontros que a ele correspondem.
O campo espacial da deriva é mais ou menos preciso ou vago se esta atividade visa o estudo
remete a uma psicogeografia - os efeitos do meio geográfico que agem diretamente sobre a
afastam do local de lazer ou descanso. O traçado das vias urbanas e a estrutura estática com
que se apresenta a cidade ao espectador são frutos de uma racionalidade que tende a manter os
automáticos dos espaços urbanos, passou a ser o modo para produzir os encontros inesperados
no território que servia de cenário de nossas práticas. Foi nossa epifania. O personagem
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Epifânio do conto também desejava constituir um saber a partir do território e escrevê-lo com
o território e não sobre ele. Seu procedimento, sua ética e seu lema, solvitur ambulando –
2003; Careri, 2003). E a estética do caminhar, articulada à prática da deriva, nos brindou com
produzidos por um específico campo de saber – como, por exemplo, a entrevista estruturada
modo, possibilitou a atenuação de certas capturas que acabam por conformar e esterilizar
relações com a população ou seu território vivido. Numa consulta médica, num levantamento
topográfico ou na abordagem policial, os desfechos não ocorrem muito além do que esse
discursos do capital e da ciência, parece ter organizado um laço social no qual, entre outros
ciência seja privilegiada como a forma verdadeira de avaliar e descrever fenômenos das mais
até nossos dias, bem como os modos pelos quais os sujeitos sociais endereçam-se aos
fontes confiáveis de informações e que servem como base comum para políticas, ações e
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intervenções práticas sobre os supostos problemas dos diversos territórios onde acontece a
vida de relação. Esses mapeamentos trazem indicadores relevantes e traçam um perfil inicial
como objeto de estudo situacional, trazem um possível, mas pálido, desenho para a construção
das cidades de médio e grande porte do país, dizem respeito à violência e à mobilidade
urbanas, aos salários e contratos precários de trabalho, ao difícil acesso à educação e à saúde e
à falta de tempo e espaços para o lazer, entre os mais presentes antes da pandemia da
COVID19. A compreensão acerca de como operam essas dificuldades na vida de relação nas
de aproximação das narrativas e dos discursos circulantes nas famílias e na comunidade que
culturas familiares e sociais diferentes se relacionam com as instituições, entre tantos fatores
complexos, constituem determinantes psicossociais que geram sofrimentos das mais variadas
contexto, parece claro que os mapas tradicionais apresentam limites em promover um tipo de
constituídos a partir de dados avaliados por indicadores quantitativos. Contudo, entre outros
usos, são estes tipos de dados que alimentam a já mencionada Clínica. Parece lógico assumir
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Esse foi o campo problemático para o qual a deriva promoveu a primeira resposta. As
reconhecidos diretamente como objetos de intervenção, precisam ser tratados com a dignidade
de uma escuta, de uma leitura demorada, de uma construção que se faça lentamente com o
território.
escuta começaram a se estabelecer. A entrada em uma escola gerou o encontro com um grupo
de alunos, por meio dos quais foi possível tomar conhecimento de questões trazidas sob a
ótica do jovem naquele local. A chegada de derivantes de nosso projeto a um bar rendeu
narrativas da perspectiva do homem aposentado, idoso, que conhecera um outro lugar que não
mais existia naquele pedaço de chão. A escuta dos recantos precários e das pichações
evidenciaram uma poética do espaço (Bachelard, 1978) e uma escrevivência (Evaristo, 2006)
entre outras, a de sentirmo-nos mais seguros e livres na caminhada pela parte pobre do
território e vigiados na parte rica, sermos abordados por seguranças em espaço público, nos
uma simples esquina - nos trouxeram uma nova problemática. Como dar expressão a essas
experiências imediatas do território? Com que formas, com que linguagem, com que estilo
privilegiada?
A necessidade desta segunda etapa em nossa busca por uma clínica feita de território,
nos levou ao estudo do conceito de narrativa. Benjamin (1994; 1994a) foi o primeiro guia e,
em seguida, Ricoeur (2010), pois a experiência não nos deixava crer que a narrativa pudesse
humana a partir do séc. XX, é relativizado posteriormente por Ricoeur quando este propõe
que o resgate do tempo e da história como elementos humanos só pode ser realizado pelo ato
em formas e conteúdos a cada deriva, acabou nos levando a outra posição ética que se
que produzimos com o território para o contexto da formalização não pudesse ser descritivo,
gerar um encontro menos capturado pelos sentidos que o senso comum produz sobre seu
objeto de conhecimento, como capitular frente a algum saber acadêmico e produzir um mapa
privilegiado?
A solução veio pela ideia de produzir um mapa expressivo do território. Um mapa que
se expresse, que fale, é mais vivo do que um mapa que apenas mostre. Concedendo-lhe, pela
expressão, a qualidade de manter alguma vida própria, poderemos, talvez, constituir uma
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clínica que defenda essa vida em seus modos de ser imponderáveis, incontáveis, não
capitalizáveis. Uma clínica cujo sentido do pathos seja a paixão (Caon, 1994) e não a doença.
Um mapa é uma escrita. Qual o traço desse mapa? Ainda não o sabemos. Apenas
intuímos até aqui que um mapa narrativo do território não terá a aparência do mapa
geopolítico, do Atlas, do Google Earth, do GPS. Assim como o livro de Epifânio não será um
guia turístico, com dicas de restaurantes e locais históricos para se visitar, nosso mapa será
expressivo e não representativo do território através de uma escala que emula o real do
espaço. Buscávamos, como o personagem do conto A arte de andar nas ruas..., uma escrita
pesquisadores, cujos pressupostos não são os paradigmáticos da grande Clínica e que usam
nossa manifestação ética metodológica, optamos por habitar os territórios desde o lugar do
estrangeiro, que a tudo estranha e que causa estranhamento a todos, por estarmos vestidos
médica operando um desvio do ver para o ouvir. Como anedotário, produziu muitas histórias
interessantes, desde os escritos clínicos de Freud terem sido acusados de reles ficções
literárias pelos homens da ciência, até as inúmeras em que o protagonista fora o inquieto
psicanalista francês Jacques Lacan. Numa delas ficamos sabendo que um incrédulo candidato
a analisante questiona Lacan, logo na primeira sessão, sobre a utilidade da psicanálise para
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seu caso. Embora uma análise não se constitua pelo utilitarismo e nenhum analista, por mais
experiente, possa prever o desfecho de um caso na primeira sessão, Lacan responde de modo
certeiro e sedutor sobre seus efeitos. Disse ao analisante: a psicanálise realiza algo
experiência inicial na busca por uma clínica de território. É impressionante perceber agora
que nosso método acabou formalizando alguns elementos já presentes no conto de Rubem
manual ou um protocolo, são exemplos. Cabe afirmar que, afinal, nosso Bildungsroman
estrangeiros em relação aos instituídos, foi nosso primeiro campo problemático. Posicionar o
nosso próprio saber não tem sido tarefa cômoda. Experimentar a produção de fundamentos
práticos e teóricos para uma clínica que não se deixa capturar facilmente pelos cânones da
A arte, pela via da literatura, vem novamente nos acolher quando tomamos o que
valer de outra língua que não a alemã lhe permitiu escapar aos cânones da grande língua,
de que se servem os negros, se presta a usos menores (Idem, p.26). É, como dizia-se, o que
levou os autores a designar a impressionante obra de Kafka como uma literatura menor.
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certas obras literárias surgidas no século XX que revolucionaram uma grande literatura já
estabelecida como maior. Não é a literatura de uma língua menor, mas o que uma minoria
consegue fazer em uma língua maior (Deleuze & Guattari, 1975, p.25). Em Kafka, assim
como em outros autores que subverteram campos hegemônicos com suas literaturas no último
século, o registro das relações ou dos talentos individuais da personagem é ampliado de tal
modo que passam a revelar sua estreita articulação a contextos maiores - econômicos,
burocráticos, jurídicos - fazendo com que o individual dê lugar ao coletivo e tudo nela se
torne, antes, político. A literatura menor tem mais a ver com o povo (Idem, p.27).
Epifânio, o escritor que desejava escapar da literatura prosaica e utilitária que enfoca a
cidade, como o guia turístico, o compêndio arquitetônico ou o manual que nomeia e localiza
logradouros, também quer romper com algo maior e já estabelecido. Anda a pé para
aproximar-se da vida em coletividade e encontrar uma arte e uma filosofia que lhe permita
maior comunhão com a cidade (Fonseca, 1992, p.17). É clara sua preocupação em preservar a
dimensão política de seu intento literário. É justo que seu maior problema, fonte de suas
partir do território significa a recusa da narrativa da grande Clínica que não enxerga mais a
não escuta o espaço coletivo que conforma modos de viver e morrer e que, evidentemente,
não mais responde tão bem ao que há de humano e subjetivo nos contextos que a Clínica deve
se debruçar. Outro campo problemático surge nesse contexto. A deriva engendra o encontro
quase imediato com o território, mas não garante que a escuta não seja mediada. Assim sendo,
foi preciso perguntar o que passamos a escutar e como devíamos nos posicionar em nosso
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retorna dele? Qual é o traçado, a escrita, que pode expressar esse mapeamento?
Foucault (2004) reconstrói a história da clínica médica mostrando que ela encontra seu
sobre as especificidades distintas da clínica psicanalítica, Dunker (2017) observa que o corte
freudiano fora com a medicina e não com a clínica. Por conseguinte, até mesmo outros tipos
de clínica não prescindem de uma semiologia. Não há clínica sem registro de quais são os
signos privilegiados para apreensão dos fenômenos patológicos. E não há clínica sem uma
possibilidade diagnóstica. Frente a tanto, parece claro que a clínica de território precisa ainda
posicionar-se sobre o conceito de pathos e a ética que orientará o fazer a partir de sua
diagnóstica.
que a noção de pathos deva ser mesmo a que se aproxima dos sentidos do provar e do
sintoma biopsicossocial. Parece razoável afirmar, por conseguinte, que a clínica que
buscamos seja também uma clínica menor, tomando de empréstimo a acepção de Deleuze e
Guattari a respeito da literatura de Kafka. Há uma impossibilidade de não fazer esta clínica
onde tudo deve tomar a dimensão do político, especialmente no tempo em que vivemos.
Numa inspiração livre a respeito da literatura menor, diríamos que a clínica menor não é a que
vem de um campo de saber menor, mas, antes, é toda clínica que uma minoria faz em um
realizam em interface com a clínica médica em seus processos de trabalho em equipe. Este é o
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argumento que também nos permite deduzir hipoteticamente que a clínica de território não
A estrutura mínima inicial da clínica de território, que temos buscado formalizar nos
últimos anos - e que é objeto deste artigo -, parte da deriva, estabelece uma escuta, mas sua
produção precisaria ser transmitida também sem o filtro de um campo privilegiado do saber.
Tal é o terceiro complexo problemático que devemos enfrentar e que envolve uma articulação
entre os tempos da escuta e de sua transmissão. As tentativas de trazer relatos orais das
outro texto autoral o que cada um de nós experimentava a partir da deriva e da escuta. Esses
textos poderiam ser em qualquer forma literária ou mesmo uma composição de palavras e
imagens, de acordo com o estilo ou condições de cada um. O compartilhamento de cada texto,
no grupo que chamamos Roda de Narrativas Escritas, permitiu a circulação das palavras e a
seguida, um novo texto segue sendo tecido a partir daqueles produzidos pelos escritos: trata-
se da circulação, agora, da palavra falada. E nessa trama, algo se transmite do discurso que
caminho que estamos trilhando para produzir expressões da experiência com os territórios.
produz nesse tempo que vai da escuta até a determinação do traço do caso da clínica de
território já capturado por um campo de saber. A transliteração, por sua vez, pode produzir
traço para o mapeamento do território, que constituiria a base mínima necessária para o
recorte diagnóstico e o raciocínio clínico. Traço, aqui, deve ser entendido em sua polissemia,
que vai do sentido de marca, cifra, que identifica um elemento singular do caso, juntamente
coerente com o fundamento desta clínica: preservar em nosso procedimento a noção de que
experiência singular da alteridade. O que separa duas instâncias heterogêneas é um litoral, não
uma fronteira que se pode atravessar inadvertidamente sem que as diferenças sejam
remete com a pretensão de tradutor ou representante. Com a vida do outro, nosso mais
avançado conhecimento é, no máximo, simplório. Eis outro axioma possível de uma clínica
de território.
política de uma clínica de território, segundo nossos termos. E que, ao mesmo tempo, tem o
potencial de organizar distintas práticas para operar no campo da saúde a partir dos territórios.
A formação inicial do suposto clínico de território, até segunda ordem, baseia-se num convite
aquele que deseja provar e passar pela experiência com a deriva, a escuta e a escrita, além de
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precisar colocar algo de si, também é convidado a teorizar sobre a clínica de território. Ao
mesmo tempo em que contribui para seu avanço, poderá avaliar como ela pode constituir para
si uma nova concepção em sua prática maior, já estabelecida, ou, quem sabe, a encontrar
orientando em nossos avanços recentes, além de explicitar princípios e formalizar nossa grafia
A clínicaS de Território (cST) está do lado da população: dos grupos e dos indivíduos.
portadora privilegiada de algum dos discursos que organizam o setor da Saúde. Mas, é
A cST é uma clínica menor: opera com a resistência aos grandes discursos que
Não é uma medicina, pois embora goze de recursos diagnósticos, não impõe
terapêuticas, mas análises e encontros. Não é uma psicanálise, embora possa promover a
interpretação do desejo pelo modo de vida nos territórios. Não é um urbanismo, embora se
pergunte pelo viver nos espaços coletivos das cidades. Não é uma antropologia, embora tenha
uma hipótese sobre o humano. Não é um serviço social, embora seu potencial seja o
paisagem e a vida que neles podem ocorrer. Não é uma sociologia, embora opere com as
relações e os discursos que organizam laços sociais. Não é, enfim, um tratamento, mas tem
efeitos terapêuticos. Porém, é uma clínica, pois resgata a escuta das narrativas do sofrimento,
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determinado espaço urbano a partir de sua construção coletiva e interpretativa. Não é voltada
a nenhuma especificidade de classe social ou tipo de território, tendo em vista que não há
pela problematização daquilo que se faz objeto de sua clínica: os modos de viver nos
seu saber e da análise narrativo-discursiva que opera em dado momento nos territórios, bem
como da provocação, o pro-vocare, os atos que fazem falar como antítese aos atos que fazem
calar um território.
A formação desses clínicos não é acadêmica, não fornece certificado e nem é garantida
como em Derrida por seu aspecto de irrestrita abertura solidária ao outro, ao estrangeiro, ao
preservação da diversidade dos modos de vida, a construção do desejo advertido pelos modos
clínicaS de território se grafa em minúscula por ser uma clínica menor. O plural e o
singular jogam insistentemente na compreensão e na prática da cST. Por conta disso é que a
território. Essa grafia evoca a pluralidade de uma clínica específica, além do S, maiúsculo,
também indicar os encontros que estabelecem um litoral: marca indeterminada que divide
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