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ATAS DO I ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS 4,5e 6 JULHO/95 USP/UNICAMP/UNESP © ESCARNIO DE AMOR DE AFONSO EANES DO COTON Radl Cesar Gouveia Fernandes” "(..) analisar a obra dos trovadores e jograis galego- portugueses ndo como fragmentos quase anonimizados de cancioneiros, mas como auténticas individualidades potticas; (...) procurar, através dos topismos de uma técnica geral opressiva, os rastros deixados pelo artista criador”. Poderiamos expressar a orientago de base deste trabalho com as mesmas palavras que Celso Cunha usou em seu Estudos de Poética Trovadoresca!. & nosso intuito perseguir ¢ identificar esses “rastros", convencidos que estamos do valor estético da poesia trovadoresca, Alguns estudiosos perceberam hé bastante tempo a necessidade de encarar nossos principais trovadores como verdadeiras “personalidades poéticas", e no apenas como obscuras vitimas de um estilo literério onipotente e impessoal. Rodrigues Lapa, por exemplo, jé dizia hé mais de 30 anos que conviria reunir 0 que ele chamou de “obras completas dos trovadores mais notaveis"2. Com efeito, essa "técnica geral opressiva" a que se referiu Celso Cunha, baseada na repetigdo ¢ variagio de elementos dados pela tradigao, deixou espaco suficiente para certos artistas criarem obras que, ainda que nfo rompendo com a tradicZo, revelam indiscutivelmente tragos de uma visdo e de uma técnica pessoais?. Uma leitura atenta de certas cantigas pode nos levar, por exemplo, a conclusio de que havia a possibilidade de variagdes dentro dos modelos oferecidos pelos géneros existentes (cantigas de amor, de amigo ¢ de escémio/maldizer), ou mesmo a de ultrapassar seus limites, entrando em diélogo com modelos de outros géneros - possibilidades essas que foram exploradas com mais freqiiéncia em cantigas satiricas. Com efeito, Graga Videira Lopes considera essas voluntétias “flutuagdes de géneros (...) um dos mais brilhantes exemplos da vivacidade da escola {trovadoresca galego-portuguesa]"4. Rodrigues Lapa, a0 comentar uma cantiga de Afonso Eanes do Coton (“As mias Jomadas vedes quaes son", a mimero 36 das CEM), utilizou o termo “escamio de amor”. Com efeito, ela possui a forma de uma cantiga de amor, mas seu conteido, Jocoso, ndo nos deixa enganar; tratar-se-ia, a rigor, de um sirventés. Diz 0 estudioso que “a bem ‘dizer” este tipo de composicao “no entra na categoria das ‘cantigas d'escarnho e de mal dizer’, mas antes numa categoria intermediéria, 2 que poderiamos chamar ‘escamhos d'amor'*>. Este tipo de composiggo muitas vezes apresenta caracteristicas mistas dos dois géneros, pois, como apontava Scholberg,’ a sétira * Mestrando na Universidade de So Paulo. ' CUNIA, Celso, Eidos de Poética Trovadoresca: Versifieagdo e Eedéttea, Rio de Janeiro Instituto Nacional do Livro, p. 11 2 LAPA, Rodrigues, Cantigas d’Bscarnho e de Mat Dizer, Vigo, Galdxia, p. VIL Indicaremas a obra pel sgla Ga. 3 Ch, a esse respeito, MONGELLI, Lénia Marcia de M., "Apresentagio", in Vozes do Trovadortsmo Galego- Pertuguds, So Pv, Wis, 195, pp. 79. 4 LOPES, Graga Videira, A Sétira nos Cancioneiros Medievais: ‘Gatego-Portugueses, Lisboa, Estampa, 1994, p. i SLAPA, Rodrigues. Op. cit, p. 68. 334 multifacetada € néo pode ser definida como um género literdrio em si “porque se sirve de todos ellos. (...) As{ pues, para que una obra se considere satirica no importa el género, sino la actitud y propésito del escritor y cierta vision sardnica”®. Os escérmios de amor suscitam grande interesse porque revelam a conscitncia da literariedade dos clichés da cortesia por parte dos préprios trovadores € 0 modo por que esses clichés cram vistos ¢ sentidos na época. Sem atentarmos a esta faceta, nossa compreensdo da produgdo Ifrica trovadoresca, assim como do proprio doutrinal cortés expresso nas cantigas de amor, corre o risco de ser incompleta e deturpada. Como se isto nfo bastasse, a ironia do discurso amoroso foi responsdvel pelo surgimento de algumas das melhores composicdes satiricas de nossos cancioneitos, produzidas por grandes nomes da poesia galego-portuguesa, tais como Joan Garcia de Guilhade e Pero da Ponte, Afonso Eanes do Coton, um dos autores mais criativos do trovadorismo galego-portugués, ¢ seus escémios de amor figuram também nesse rol. Pouco se sabe deste segrel galego cujo periodo dé atividade se situa em meados do século XIIL. De um total de 22 cantags que dele chegaram até nés, 18 sto satfricas, 3 slo de amigo e apenas uma é de amor 7. Sua verdadeita vocacdo literéria realizava-se enguanto ele se ria dos outros © tomava piblicos os motivos deste seu incessante divertimento. Como nfo raras vezes o fez com alguma grosseria, um estudioso portugués refere-se a ele como "o tabernério Afonso Eanes do Coton” Em suas cantigas satiricas so visadas personagens das mais variadas classes sociais: ha uma de um fisico que se passava por sdbio (CEM, 42); outra sobre Sueir’ Eanes, um mau trovador (43); em'outra, ainda, hé o retrato da pendria de um infancdo (38); e assim por diante, Ha também uma interessante tengo € dois escéios dirigidos 1 Pero da Ponte, com quem Coton guarda muitas afinidades. Em muitas delas, os alvos sto figuras femininas, tratadas normalmente com bastante crueldade: ora 0 poeta volta- se para uma abadessa pouco respeitivel (37), ora a Orraca Lopes, soldadcira ja velha e doente (47 € 48), ora refere-se a uma covilheira (isto é, uma camareira) velha e antipatica (45). ‘Suas caracteristicas mais marcantes so a liberdade verbal, 0 inusitado de certas situagdes retratadas (cle € 0 autor de ‘uma das rarissimas, composicdes.galego- portuguesas que abordam o tema da homossexualidade feminina®) ¢ 0 cardter jocoso de suas composigdes. Juntando-se a isso seu gosto pelos jogos de palavras € 0 desejo constante de subverter as convengdes sociais ¢ literdrias de seu tempo, temos o perfil de Afonso Eanes do Coton, uma das personalidades literdrias mais interessantes do século XIII. ° ‘Vamos nos deter, nesta comunicaglo, sobre a cantiga “Ben me cuidei eu, Maria Garcia". =" S SCHOLBERG, Kenneth R,Sétrae ection en a Rapaha Medheva, Masi, Oreos, p.9 Antnio Resende de Olivera, em seu Depots do Espeticulo Trovadaresco, esclarece que hi wma cantiga de ‘amigo de autoria duvidosa ¢ prope a atribuigto da canign do trovadoc Anbnimo 4 do Cancionelro da Ajuda a Coton, ressaltando 0 carter hipotéico de tal proposta (pp. $6-64 e 305-306). Cf. VASCONCELOS, Carina Michaltis de Cancioneiro da Ajuda, Lisboa, Livraria Classic vol. I, pp. 61 esx e VIEIRA, Yara Frateschi, Poesia Medieval, Sto Paulo, Global, p. 149-133. MARTINS, Mitio, A Sauro na Literatura Medieval Portuguesa, Lisboa, Insitute de Cultura e Lingua 9 Portuguesa, p. 80 9 Veja-e a curiosa cantign 41 das Cli, "Mar? Mate, i-me quer eu daque 335 Apresentaremos a seguir a cantiga, de acordo com a liglo das CEM, que no oferece qualquer paisagem duvidosa!®, cantiga seré acompanhada ‘de notas referentes a sua estrutura métrica e a eventuais variantes significativas ow esclarecimentos filol6gicos que forem necessétios (vocabuldrio e construgdes sintéticas mais dificieis), evitando, contudo, repetir cada observagfo feita por Lapa. As notas, seguem-se breves comentérios interpretativos nos quais procuraremos ressaltar os procedimentos estilisticos mais relevantes da composi¢ao antes de esbocarmos nossas conclusdes. (CEM 46; CBN. 1588; CV. 1120) Ben me cuidei eu, Maria Garcia, en outro dia, quando vos fodi, que me non partiss' eu de vés assi como me parti jé, mao vazia, 5 vel por servigo que muito vos fiz: que me non desses, como x" omen diz, sequer un soldo que ceass' un dia, Mais desta seerei eu escarmentado de nunca foder j6 outra tal mother, 10. sem’ ant’ algo'na mao non poser, ca non ei por que foda endoado; e-vis, se assi queredes foder, sabedes como, ide-o fazer con quen teverdes vistid’ e calgado. 15 Ca me non vistides nen me calgades nen ar se" eu eno vosso casal, nen avedes sobre min poder tal por que vos foda, se me non pagades; ante mui bem e mais vos en direi: 20 mutho medo, grado a Deus ea el-Rei, non ei de forca que me vbs facades. E, mia dona, quen pregunta non erra; e ¥6s, por Deus, mandade preguntar polos naturaes deste logar 25 se foderan nunca en paz nen en guerra, ergo se foi por alg’ ou por amor. Id" adubar vossa prol, ai, senhor, . c' avedes, grad” a Deus, renda na terra, 10 As ediges uilzadas para o cocjo gst na bibligzafa 336 NOTAS 1. Mewificagio: Cantiga de mestria, de 4 cobras singulares, com 7 versos cada. Versos decassilabos. Esquema rimico: abbaced. Cap. fin II-II I: Versos: v. 5: vel: ao menos; v. 6: como x'omen diz: como se diz; v. 8: desta: desta ‘vez; escarmentado: experimentado, advertido; v. 11: endoado: debalde, em vao; de graca; entenda-se "pois ndo tenho por que fornicar gratuitamente”; v. 16: sejo: habito. Casal: casa de campo; v. 24: naturaes: oriundos de uma terra, moradores nela; v. 25: nunca: alguma vez; v. 26: ergo: salvo, exceto, a nfo ser; v. 27: adubar: tratar, arranjar; prol: interesse, proveito; v. 28: a reconstituicdo € proposta por Lapa, diante das dificuldades de compreensao do texto manuscrito. Ele mesmo diz que o sentido dos wy. 27 € 29 deve ser: “Ide tratar da vossa vida, senhora, dai o corpo a troco de dinheiro, que, gracas a Deus, tendes renda suficiente para isso”!1, COMENTARIOS Lapa resume da seguinte maneira o contetido desta cantiga: “Coton, no auge do atrevimento € da grosseria, declara que o homem nas suas relagdes com a mulher obedece a dois sentimentos: o interesse material € 0 amor. Ndo se tratando de amor, entende que tem 0 direito de censurar Maria Garcia por Ihe ndo ter pago os momentos de prazer que Ihe dera” (CEM, p. 82). Afonso Eanes do Coton, em seu cancioneiro, demonstra a importancia que conferia a técnica versificatéria da poética de ento. O tatho de suas cantigas € variado € revela as preferéncias do autor: a maior parte delas sio cantigas de mestria, com ‘versos de 8 ou 10 silabas ¢ estrofes igualmente tongas (as de 7 versos sio as mais comuns), como em "Ben me cuidei eu, Maria Garcia”, um bom exemplo do cuidadoso acabamento formal que o autor procurava dar a suas composigdes. Esta longa cantiga (quatro estrofes de 7 versos decassitabos) apresenta um notével equilfbrio interno, todo baseado em bipartig®es: 0 esquema rfmico abbacca, nfo raro nos cancioneiros, divide ‘em duas partes as estrofes, pois os versos com rimas em a sio sempre femininos e portanto maiores 12. O préprio contetido veiculado reforga a biparticao das estrofes Sempre no quarto ou quinto verso. Vejamos, a titulo de ilustragio, a segunda cobra: Mais desta seerei-eu escarmentado a 10" de nunca foder outra tal mother, b 10 se m'ant’algo na mao néo poser. ’ 10 a non ei por que foda endoado; a 10° e v6s, se assi queredes foder, c 10 sabedes como, ide-o fazer c 10 con quen teverdes vistid'e calcado. a 10" 11 A versto de Lapa &, contudo, mais interprotaiva do que literal 12 Cf TAVANI, Giuseppe, Repertorio Metrico della Lirica Galego-Portogheve, Roma, Edizioni deltAtenco, 1967, 337 A estrofe ¢, assim, separada em duas partes: uma primeira em que hé os dois pés (ab c ba, o frons da lirica occiténica) € a cauda, que compreende os trés sltimos versos!3. No frons, Coton expde seu propésito e sua queixa; na cauda, di seu zombeteiro conselho a Maria. Garcia. Esse esquema bipartido repete-se, grosso modo, nas quatro cobras da cantiga. Paralelamente & divisto interna das estrofes, a ‘composigéo também se separa em duas metades gragas a0 recurso das cobras capfinidas (que consiste em wm verso utilizar palavras do verso anterior) entre a segunda ¢ a terceira estrofes (vv. 14-15), ou seja, exatamente na metade da cantiga, anunciando que a partir deste ponto se iniciaré um desenvolvimento da situagao exposta no inicio. As duas primeiras estrofes apresentam a situacao vivida pelo autor e as tiltimas tiram as conseqiiéncias dessa situago e langam uma espécie de desafio a Garcia. A estrutura que tende a0 equilibrio contribui para ndo deixar essa composigao cansativa, j4 que ela é bastante longa para os padrdes galego-portugueses. Coton parece ter mais uma vez optado por uma estrutura métrica que permitisse um discurso mais elaborado ¢ um maior desenvolvimento de idéias, outra nota caracteristica de seus melhores textos satiricos. Nio € sem motivo que nos restou de Afonso Eanes do Coton, autor irénico zombeteiro por vocago, apenas um cantar de amor!4, Nele (B 971), o autor parece assumir uma atitude a qual seu temperamento devia ser pouco inclinado, a julgar pela sua obra: adequou-se aos cinones e empregou com corregio os clichés do discurso amoroso cortés. O segrel declara no refrao desta cantiga que a coisa que mais desejaria €a “De seer seu uassalo ¢ ela mha senkor*, expressando 0 conceito bésico do amor cortés — a vassalagem amorosa — com rara clareza, A cantiga, no entanto, peca exatamente, por um formalismo excessivo, uma explicitaglo demasiadamente racionalizante que acaba por tolher a fluéncia dos sentimentos e engessar 0 texto. interessante notar, contudo, que a afirmagao feita na cantiga de amor parece ecoar neste escdmio de forma muito mais natural ¢ original. Aqui, a experiéncia da vassalagem amsrosa ¢ realizada, mas de forma diferente da esperada. © humorismo da cantiga "Ben me cuidei eu, Maria Garcia” baseia-se todo na inversto do padrao do relacionamento amoroso apresentado pelas cantigas de amor, nas quais 0 trovador suplica indefinidamente 0 favor da dona e, a seguir, sofre os efeitos dda negativa que recebe da sua dame sans merci, Nesta cantiga, a0 contrério, quem reqilesta o amor nao é 0 homem, mas a senhor. © tipo feminino que mais se prestava A ironia das cantigas satiricas era o da soldadeira, como testemunha a obra do proprio Afonso Eanes. Maria Garcia, alvo da composiggo, € no entanto retratada como a senkor, diane da qual o trovador estaria numa posigao de inferioridade, da mesma forma que nos textos Itico-amorosos. O autor cria porém uma situagéo em que a superioridade feminina nto diz. respeito 20 ‘elemento moral, 180 caro as cantigas de amor, pois ela o enganara recusando-se a pagar Por sens "servicos”. A distancia que separa os dois é, neste texto, de caréter social: & or isso que Coton reclama seu pagamento, ¢ s6 dessa forma podemos compreender 0 13k spa Sepnmundo, Monuat de Versiopdo Roménica Medieval, Ro de Joncico, Gras, 1971, pp. on. 4 Se for confirmads a pretensa de Coton em A, terlamos duascantigns de amor suas, Cf. nota 6, 338 significado dos versos 20-21: *nutho medo, grado a Deus ea el-Rei, / non ei de forca que me vbs facades". poeta refere-se a ela utilizando esta forma habitual de tratamento — senhor — , ‘num contexto que faz lembrar no-somente a figura tradicional da amada das cantigas de amor, mas alude também a idéia de "chefe, patrio” que a palavra contém, segundo © vocabulério das CEM: "Id'adubar vossa prol, ai, senhor, c'avedes, grad'a Deus, renda na terra” (vv. 27-28) Tudo indica, pois, que Coton pinta Maria Garcia como uma pepmretiia rural, que possuiria rendas na terra, de acordo com 0 testemunho do texto!5. O trovador também se refere a ela utilizando 0 termo dona (v. 22), que nos remete para a mesma ordem de idéias, j4 que significa dama, mulher, senhora casada, “em oposicdo a donzeia ou menina. Como feminino de dom, ¢ tito nobiliérquico"!6, A alusio a seu casal no v. 16 ("casa de campo", segundo Lapa!7) também no deve deixar dividas: 0 autor coloca-se como se estivesse diante de um membro da nobreza oral. ‘A este propésito nio custa abrir um parénteses para lembrar que Afonso Eanes do Coton, em outras oportunidades, j4 demonstrara ndo achar muito importante o status social da mulher quando © assunto era amor, ao contrario do que dizia a doutrina do amor cortés, Em “As mias jornadas vedes quaes son” (CEM. 36), por exemplo, ele afirma ironicamente que a mulher que o fazia andar coitado poderia ser de qualquer classe ou condigio, insinuando que teria vérias amantes ("E a dona que m’ assi faz andar / casad' é, ou viuv' ou solteira, / ou touquinegra, ou monja ou freira", vv. 8- 10). J4 em outra cantiga, CEM. 39 ("Veeron-m' agora dizer"), 0 poeta finge-se surpreso ao Ihe trazerem a noticia de que sua amante estaria gravida, Nesta cantiga também, tudo leva a crer que nfo se traria da dona dos cantares de amor, mas provavelmente, uma jovem vil& solteira, qual o poeta sempre se refere por "mother", nunca por qualquer outra forma de tratamento mais cerimonioso. ‘Voltemos & nossa cantiga: a novidade aqui é que a Telagao de vassalagem nio € entendida somente no Ambito espiritual e figurativo (literdrio), como € no caso do amor cortés. Neste jogo com o discurso amoroso da cortesia, 0 segrel galego cria uma mulher cuja superioridade é posta em termos realmente concretos ¢ predominantemente materiais (sociais e financeiros), uma vez que ele dé a entender que se sujeitou a amé-la tendo em vista nica e exclusivamente uma remuneracdo, proprio vocabulirio cortés presente no texto € contaminado pelo othar realista e materialista do compositor. Da mesma forma que os termos senhor e dona deixam de ter 0 significado com que comumente se apresentam nas cantigas © passam a designar dados da realidade social, 0 servigo que 0 poeta alega ter prestado também nao se inscreve mais-somente no plano ideslizado proposto pelo receituério do.amor cortés, ‘onde se revestia de trés formas fundamentais: mesura, fidelidade e segredo, Afonso Eanes nfo cumpre nenhum dos preceitos: a cantiga inicia j4 com 0 rompimento da 15 © signiticndo do termo renda era, no sdculo XIII, "resultado financeiro da aplicagto de capitais ou economias, ‘ou de locaglo ou de arrendamento de bens patrimoniais", de acordo com Diciondrio Etimolégico de Antnio Coral da Conk 6 Cf. glossrio da edigio de A Demanda clo Samo Graal de A. Magne. Antbnio Geraldo da Cunha, no - Ssiondro ita, diz "Prorietca, mtr, capone (st, XIE” 7 No Glessirio das CEM, Corominas di, entre outros eentidst, 0 de “casa soluiege” (Dicionério Critico @ Etologico Castellana e Ihspanica); lot Pedro Machado (Dicionério Etimologico da Lingua Portuguesa) diz que substantivarnonteo terme sigificatia "limites de ume propriedade;quinta, Fazenda, herdade, granja” 339 norma do segredo, dando a conhecer indiscretamente 0 nome da dama que o enganou; a liberdade com que cle expde suas reclamagdes também est4 muito distante da mesura do trovador suplicante dianté de sua indiferente amada. Nos wv. 1-5, nos quais 0 autor explicita 0 contetido do servigo satisfatoriamente realizado ("0 servico que muito vos fiz"), esta nogto de servigo ganha uma conotacio claramente sexual, num equivocatio ‘que serve de fundamento para a compreensio de toda a cantiga Como 0 contrato vassélico socialmente estabelecido previa compensardes pelo cumprimento das obrigagdes contra(das pelo vassalo, Coton reinvindica 0 que the fora prometido, E assim entramos a analisar 0 outro campo seméntico largamente explorado pelo autor, o dos interesses materiais: soldo!8, vestimentas, calcados ¢ hospedagem (vv. 7, 14-15 € 16) séo 0 que o poeta espera do relacionamento com Maria Garcia. Ele é objetivo e vai direto ao ponto, num verso que resume bem esta ordem de idéias: nfo mais cederé aos seus desejos “se m’ ant’ algo na mdo non poser* {v. 10). As mios, aliés, comparecem também em outro verso da cantiga, sempre associadas & espera de recebimento de algum dote material pelos “servigos” prestados: diz ele que ndo esperava partir-se dela de mos vazias (v. 4), reclamag4o que est4 na corigem do cantar. No lugar da abstracao ¢ do idealismo do amor cortés, h4 uma negagao a servir endoado, ou seja, gratuitamente. © encontro dos campos semanticos excludentes (0 da cortesia e 0 do interesse, representativos de mentalidades antagénicas), confere a cantiga sua nota de humor ¢ de subversto das convengées literdrias, tipica dos cantares de Afonso Eanes. Esta é também uma técnica recorrente em seu cancioneiro: se neste texto encontram-se termos Lipicos da cantiga de amor € alusbes 20 soldo e as rendas na terra, hd, por exemplo, um outro escérnio famoso do autor onde © mesmo processo é utilizado largamente. “Abadessa, of dizer” (CEM, 37) & uma sétira toda baséada em oposigdcs semanticas, como castidade / luxiria (abadessa / foder), conhecimento / ignorancia (sabedor / pastor), entre outras. Dessa forma, a relago amorosa é rebaixada do plano em que se encontra nas cantigas de amor para 0 terreno mais baixo do amor por dinheiro. HA uma passagem (wv. 17-18) que esclarece de forma espirituosa a situago: diz 0 autor que Maria Garcia ‘nfo tem tanto poder para que ele atenda a seus desejos se ela nfo pagar ("se me non pagades", v. 18). Este verbo, que no século XIII possufa um significado mais préximo do original, -apresenta varios sentidos. A etimologia do termo remonta ao latim pacare, ‘que significa "pacificar, apaziguar". Joan de Corominas atesta que "en el francés mas arcaico significa ‘hacer las paces, reconeiliarse' (...); por lo demés, todos los romaces resentan desde el principio el sentido de ‘contentar, satisfacer'™. Partindo daf, através de uma associagdo de idéias, chegou-se 4 nogdo de "pagar alguma quantidade”, jé que ‘© pagamento contentava 0 credor!, Afonso Eanes do Coton se vale, neste texto, da ambigiidade semfntica que pagar possuia na época: 0 referido verso 18 da cantiga pode, portanto, ser compreendido de duas maneiras: pagamento como retribuicso material, no sentido que viemos dizendo, ou pagar como satisfazer, contentar. Os dois sentidos do termo podem sugerir, ainda, leituras diferentes se desenvolvidos ao longo 18 Soldo, que originariamerte designava um certo tipo de moeds, passou a significar "salério, pagemento” no séealo XV (Cf, Corominas AntGnio Geraldo da Cunha e José Pedro Machado, op. cit). Este significado, ebiitudo, presta-se muito bem ao eontexto deste texto, 19 Viterbo, em seu Elucidério, apresenta dois verbetes com 0 verbo pagar: “Pagar-se de alguma coisa: agradas- s2 dela" e "Pagado: pacifico, sossegado, em paz, sm divida ou contradiglo alguma™ 340 do texto, permitindo-nos adivinhar que a pobre mulher no possufa os atrativos fisicos necessdrios para convencer 0 autor a amé-la sem nada em troca. Um outro aspecto digno de nota é a liberdade com a qual o pocta se dirige a dona, atitude muito distante do receio' sempre expresso pelos trovadores nas cantigas de amor, receio este que era aconselhado pelo preceito da mesura. O autor demonstra grande desenvoltura na explicitagdo do problema ¢ objetividade em suas reinvindicagdes, recorrendo a linguagem popular e oral, como se nota claramente no vocabulério empregado e sobretudo pelo caréter sentencioso de certas passagens. Estamos nos referindo aos wv. 19-21 e sobretudo A tltima estrofe, Para expor seu argumento definitive a Maria Garcia, Coton lana mao de um ditado popular: “quen pregunta non era" (v. 22), pata em seguida afirmar que os homens normalmente amam no por sentimento, mas tendo em vista uma rettibui¢do. Ditos populares também esto presentes como conclusfo de outra composi¢ao do autor: "en mia terra, per boa fé, /a toda mulher que prenh’ é / logo Uhi dizen:.- Ten baron!" (CEM, 39, wv. 19-21). Esta parédia da cantiga de amor sugere, portanto, uma forma de compreender 0 préprio cédigo do amor cortés. Partindo da situagao tradicional da queixa do trovador pela falta de retribuigdo pelo servigo prestado A amada, Coton subverte 0 discurso amoroso: a vassalagem amorosa opde a inferioridade social; ao casto © sempre recusado pedido do trovador, a vulgaridade do oferecimento da mulher; & gratuidade ¢ espiritualidade, o interesse material, Numa palavra: Coton desfaz a ilusio provocada pelo discurso amoroso como que apanhando-o das alturas ideais e irreais e puxando-o de volta a terra, 4 materialidade das coisas, dos relacionamentos € dos interesses. E nesse sentido que acrcditamos deve ser entendido 0 periodo final do texto, que generaliza a problemética exposta: insinuando que nao apenas ele havia sido alvo dos desejos de Maria Garcia, 0 trovador pede-Ihe que pergunte aos outros naturals do lugar se, quando amaram alguém, fizeram-no por amor ou por algo. Apelando assim ao senso comum, Coton langa o argumento definitivo € prova, de nossa perspectiva, o quanto as convengdes do amor cortés se distanciavam da realidade prtica vivencial. Somos levados mais uma vez a concordar com Graga Videira Lopes, ao dizer que “slo os bastidores da arte de trovar o que estas cantigas desenham com especial nitidez. Mais uma vez a expressio "lirica do realismo' nos parece a mais adequada como classificagfo geral destes cantares” Coton — que em sua tinica cantiga de amor aderiu aos c&nones propostos pelo doutrinal amoroso da cortesia, cOnscio de seu formalismo — ao penetrar 0 Ambito mais livre da sétira, seu verdadeiro terreno, procurou ver na prética quais os entraves da teoria expressa anteriormente-em plano literdrio. Tomando sua obra como um todo, Afonso Eanes do Coton parece rejeitar o doutrinal amoroso da cantiga de amor por ser demasiado teérico; ele prefere cantar a realidade & sua volta, buscando nela de modo especial a incoeréncia ¢ 0 ridiculo. 20 Op cit, p.321 341 BIBLIOGRAFIA BRAGA, Teofilo, Canconetro Portugués da Vaticana, Lisbon, prensa Nacional, 1878. CANCIONEIRO PORTUGUES DA BIBLIOTECA VATICANA, rprodueto facsmiads, Ge Estudos Fillgcos/insinuo de Alta Colts, 1973, COROMINAS, Joen de, © PASCUAL, Jot, Dictiondrio Citic e Etmalgico Castellano Bspénico, Madrid, Gredos, 1991, 6 volumes. CUNHA, Anbnio Geraldo ds, DiciondrioEtimotigico Nova Frontira da Lingua Poruguese, Sto Paso, Nova Fron, 198 CUNHA, Celso, Bondos de Pobea Trovadoresca: Versiearto e Eedéca, Rio de Jansro, Insite ‘Nacional do Livo, 1961. D'HEUR, JeanMarc, "LIAR de Trowver du Chansonnier Colocc-Braneui", don et analyse, is “Arquivos do Cntr Catal Porugus, IX, Pats, 1975, pp. 321-398. LAPA. 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