Você está na página 1de 8
ANDAR A PE 1. edigéo: Averno, 2013, Datizado com CanScomer INFANCIA Em Penamacor, podia tocar nas cabras ¢ nas ovelhas dos rebanhos que passavam na rua. Eu estava convencida de que as cabras eram dsperas ¢ as ovelhas macias. Toquei em cabras e em ovelhas. Era 0 contririo. As ovelhas cram dsperas e as cabras macias, Li poemas meus na televiséo quando tinha 11 anos. Foi a primeira vez que fui a televisio. Julgo que foi a 13 de Novembro de 1971. Na televisio, deram-me um livro: Os Lusiadas de Luiz de Camées adaptacao em prosa de Joao de Barros. Ainda hoje tenho esse livro. Em crianga, as pessoas em minha casa falavam muito da Avé Conceicio. Gostavam muito dela. Era uma pessoa bondosa. Era minha bisav6. Néo a conheci, morreu antes de eu nascer. Eu falava com ela para o Céu no telefone das bonecas. Sabia que estava morta ¢ acreditava que estava no Céu. Nao era uma brincadeira nem uma fantasia. Nao falava com ela no telefone a sério. Anda hoje sou assim. Ainda hoje faco coisas assim. A Casimira era a empregada do consultério do meu Avé Raul. Vinha-nos visitar jé muito velha. Parecia uma galinha de figo. Nao estava boa da cabeca, dizia disparates ¢ tinha vis6es. A Tia Paulina fazia troga da Casimira por ela estar maluca. A Tia Paulina também parecia uma galinha de figo. Quando era pequena, batiam & campainha o cauteleiro que vendia o 13, © ceguinho que vendia sabonetes, a senhora que cheirava a chichi e que ven- dia agendas das missées, chamavamos-lhe a senhora do chichi ou a senhora dos rins. Nao sei o nome destas pessoas. Havia também o Sr. Amaro, que vendia ovos e queijos. Em 1971 ou 1972, recebi um prémio literdrio. Foi uma bicicleta. O juiri do prémio era a Fernanda de Castro. Eu tinha lido um romance dela de que tinha gostado muito, Maria da Lua, Fiquei muito contente com o prémio. 303.13 671 ANDAR A wt (2019) —— Dptieadocom Casco ‘A minha gata Lu dé-me narigadas turrinhas Sébado de manha estar com a Armanda e 0 Gongalo no café a ver jornais a tagarelar a beber café ¢ agua PRAZENTEIRA Fernando Pessoa escreveu gostava de gostar de gostar cu gosto de gostar tenho sorte PRESTAVEL Ser prestével palavra antiga al Datizado com CanScomer POBRETE MAS ALEGRETE j Pobrete mas alegrete alegrete sempre | 213.13 MEMORIA O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para criangas com ilustrag6es a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa enquanto as pessoas nao estavam lé, entravam por uma janela que tinha ficado aberta, Um dos gatos, julgo que preto e branco, derrubava uma gar- rafinha de leite em cima do teclado de um piano. Acho isto absolutamente delicioso. Jé néo tenho este livro. 145.13 LEMBRANGA Em crianga, a minha mae ea minha avé liam-me em voz alta os livros da Condessa de Ségur ¢ os Cinco da Enid Blyton. Ainda hoje quero os lanches dos Cinco eo enxoval da boneca de Margarida de Rosburgo. 4 155.13 ‘anpan 4 ré (2019) 673 | Dptieado com Casco INFANCIA A Felismina, a criada da minha tia-bisavé Ermelinda, fazia uns bolinhos muito bons chamados felisminas. Tenho pena de nao ter ficado com a receita, Apetecia-me agora felisminas. A Tia Ermelinda vivia na 5 de Outubro. O prédio tinha um elevador normal na escada. E tinha um elevador dentro de casa s6 para os vizinhos poderem andar entre as casas deles sem ir& escada. A porta deste elevador, em casa da Tia Ermelinda, estava a meio do corredor, dentro de casa. Eu achava isto magico. Gosto muito de nomes de medicamentos ¢ de caixas de medicamentos. A farmcia da minha infancia foi a farmacia da Cooperativa Militar, na rua de S. José. Ja ld com a Tia Paulina. Havia muita gente, muitas filas, esperava- -se muito. A minha tia ficava na fila e eu ia ver os remédios nas vitrinas atrés das grades. Nunca me aborrecia. Tenho isso de bom que aprendi na infincia: nunca me aborreco. 303.13 75 Em 75, achava que sabia pouco de politica. Falava-se muito de marxismo eu nio tinha lido Marx, Achei que estava pouco informada. Fechei-me em casa a ler Mans, Engels ¢ Lenine. Ainda hoje tenho esses livros todos. Percebia pouco do que lia. As vezes lia mecanicamente, nunca saltava uma palavra. Nao me aborrecia. Nunca me aborrego, Muitas vezes li assim mecanicamente ¢ tinha prazer nisso, Os caracteres da escrita dio-me prazer. 64.13 674 Dptieado com Casco a ; ’ : VERDES ANOS qd i Lembro-me com gosto do laboratério de Quimica do Liceu Pedro | Nunes, Lembro-me da reaccio do sédio com a égua, liberta uma luz amare. ‘A reacgao do potéssio com a gua liberta uma luz violeta. Tinha um colega, 0 Pinto, que dizia: «isto para a Maria José ¢ melhor do que ir 20 cinema». bow nab ree sal ats ESTILO Em 1957, 0 meu Avé Raul escreveu num livro que dew ao meu pai pelo aniversario: parabéns e desejo de muitas venturas. Gosto disto. Acho bonito. E assim que quero escrever. Joao de Barros escreveu «as estrofes aladas de Os Lusiitdas». Acho isto tio bonito, Era assim que gostava de escrever. ry fACOR © meu pai era de Penamacor, Em crianga cle eas outras criangas tinham: am ser bruxa, A Narigd, Faziam figas quando medo de uma mulher que di la passava. 675 pte com Casco Onn aA lcd pw cascade O meu Avé José era sapateiro em Penamacor. Sabia ler musica, tocava bandolim. Encontrei o livro da instrugéo priméria em que anotava datas: , notava datas: a do casamento, a do nascimento e do baptizado dos filhos, a do exame da 4. classe, a do dia em que vestiu 0 varino, a do dia em que teve ou deu a primeira liggo de bandolim. Morreu com perto de trinta anos com uma pneu- monia. Nasceu no século XIX. Em Penamacor, a minha Avé Maria tinha uma casa em que guardava batatas no rés-do-chao. As batatas estavam espalhadas no chao &s escuras, co- briam o chao completamente. Em Penamacor, chama-se ao rés-do-chio sétao ou loja. As ruas chama-se quelhas. ——Palavras de Penamacor: fergulhas, poldras, rabeirona, caldreteirona, tara- (th mordicos, a Zabel da Tradela. inte weace DESPORTO Entre os meus 12 ¢ os meus 14 anos, na Escola Pedro de Santarém, tive uma dptima professora de Educacao Fisica, Isabel Carogo. Gragas a cla pra- tiquei vélei, basquete, andebol, badminton. Até futebol! Joguei futebol com ‘o Rui Aguas, que era meu colega, no patio da escola, Ganhei uma medalha num campeonato de badminton dos liceus. Havia 0 meio-dia desportivo as quartas-feiras. Passévamos a tarde no Estédio Universitétio a praticar des- porto. Eu adorava. Aprendi a nadar aos 13 anos na piscina do Tamariz com um professor que estava sempre dentro de 4gua, muito gordo, muito bronzeado, parecia um hipopétamo. Nadei uma vez na praia do Monte Estoril até & tiltima béia. A praia tinha cordas perpendiculares ao areal pontuadas por béias cor- -de-rosa, como as Ave Marias de um tergo, até uma béia maior, jd muito longe da praia. Foi perigoso nadar assim até tao longe porque nao havia nin- guém ao pé de mim e eu tinha aprendido a nadar hd pouco tempo. Quando regressei & praia, uma velhota com quem a Tia Paulina tinha metido conversa 676 ponns pte com Casco LS - ATia Paulina disse-me: «Afoitaste-te ; 6; & beira-mar, & minha espera. A Tia Paulina estava vestida, nunca usou fato de banho, Aos 11 anos, ganhei um prémio litetatio, colega minha da Escola Marquesa de Alorna, nou-me a andar de bicicleta na minha rua, Aos 17 anos, comecei a fazer yoga. Consegui fazer a posigdo do candela- bro, Cabeca e mos no chéo, cotovelos no ar, | disse-me: «Parabéns pela sua coragem» | muito». As duas velhotas estavam de que foi uma bicicleta. Uma minha vizinha, a Isabel, ensi- joelhos nos cotovelos, pés no ar. Agora aos 53 anos, ando a pé e danco mesmo sem mtisica, Também gosto de me deitar no chao de papo para o ar na posi¢ao da pessoa a boiar no mar, 74.13-21.4.13, 677 ANDAR 4 né (2083) “~_ a Dptieadocom Casco

Você também pode gostar