Você está na página 1de 9

33

A perspectiva do “mundo negro”: notas para o ensino de Geografia da África no Brasil


Alex Ratts
Após a viagem de campo a ex-colônias africanas, o geógrafo Milton Santos relatou no artigo “Nossos
irmãos africanos” para o jornal ​A Tarde,​ em 1962, uma apreensão da ideia de “mundo negro” vista a
partir da África:
Há, na verdade, aqui, uma concepção universalista do mundo negro, que reúne, num mesmo abraço
fraterno, os pretos da própria África, bem como os das Américas, do Sul, Central e do Norte. As
expressões comuns dessas raízes dentre as quais a música, muitas vezes são inconscientes delas, no
novo continente. Na África, porém, e entre os africanos, ela é bem viva e atuante. (2001, p. 404-405).
As ideias do autor nesse campo são pouco conhecidas, mas frequentes em sua obra (CIRQUEIRA,
2010) e são pouco vistas no escopo dos estudos geográficos acerca das sociedades africanas.
A demanda por inserir a “História da África” na formação educacional brasileira emerge de maneira
enfática nos anos 1970, por atuação de militantes acadêmicxsdos movimentos negros, em face de uma
notória lacuna no ensino básico e superior e também diante das independências de países africanos.
Somente em 2003 foi assinada a Lei 10639/03 que institui a obrigatoriedade dos conteúdos de História
da África e Afro-brasileira. Em seguida, outros marcos legais foram tornados públicos (CNE, 2004;
SECAD, 2004; MEC, 2009). Inúmeros esforços têm sido feitos para introduzir ou aprofundar estes
conteúdos nos cursos de licenciatura em História, Letras, Pedagogia e diversos campos das Artes. Mas e
a Geografia? Além do trabalho pioneiro de Anjos com os quilombos e a cartografia africana (2005a;
2005b), dos estudos de Santos, R. (2011; 2010), ambos à frente de núcleos de pesquisa e ensino, há
abordagens clássicas abertas à revisitação e várias iniciativas, mas pouco refletidas em conjunto.
Este ensaio traz parte de uma proposta que venho ministrando no curso de Geografia da Universidade
Federal de Goiás (UFG). Primeiramente, propus a disciplina “Espacialidades e culturas africanas e
afro-brasileiras”, ministrada em 2006 e 2008, baseada no espírito da Lei 10.639/03 e aberta a estudantes
de vários cursos. Mais recentemente, desde 2012, a experiência se concentra na disciplina ainda
denominada de “Tópicos Especiais em Geografia Humana” ou “Tópicos em Geografia Regional” voltada
para as sociedades africanas. Na UFG está em curso uma ação no sentido de implementar os conteúdos
ligados à África e à educação para as relações etnicorraciais (ERER).
Na ementa, temos 5 tópicos definidos que, notoriamente, são difíceis de abordar em um único semestre
letivo, mas que são roteiros para as aulas expositivas e podem ser complementados com os seminários:
● O ensino de Geografia da África;
● As sociedades africanas da antiguidade e do período moderno/colonial;
● Escravismo e colonização na perspectiva atlântica;
● Movimentos culturais e políticos africanos, com foco nos processos de independência e
descolonização;
Neste artigo, trago apenas os dois primeiros pontos. Inicio retomando os conteúdos e princípios da Lei
10.639 em face de demandas históricas de acadêmicxs e ativistxs negrxs, apresento três aspectos da
abordagem feita na disciplina – a relação entre eurocentrismo, racismo e a Geografia; as sociedades
africanas da antiguidade; as sociedades africanas do período moderno/colonial – e, por fim, abordo um
princípio que tem relação com tema geral: o reconhecimento da autoria negra africana e da diáspora.
34
A Lei 10639/03 e a longa demanda de intelectuais ativistas
Nos anos 1970, do Sul ao Norte do país, acadêmicxs e militantes, que estavam construindo o que se
tornou o “movimento negro”, traziam em sua agenda de ações, além da denúncia do racismo, uma
proposição de abordar a história negra, africana e brasileira, para além do patamar da escravidão. De
fato, esse era um dos pontos relevantes na ação de coletivos que iam desde o Grupo Palmares, em
Porto Alegre (1971), passando pelo Grupo de Trabalho André Rebouças, em Niterói (1974), os blocos
afro Ilê Aiyê (1974) e Olodum (1979), em Salvador, o Centro de Cultura Negra do Maranhão (1979) e o
Centro de Defesa do Negro no Pará (1979/1980), dentre outros. Tornou-se uma reivindicação e ação
comum a realização de cursos de “História do Negro” e/ou “História da África”. Havia o reconhecimento
de intelectuais, artistas e religiosxs sem ligação direta com a universidade. Havia uma tentativa de
intervenção enquanto acadêmicxs para pautar estes temas ao menos na Humanidades (RATTS, 2011) e
particularmente na área de História (RATTS, 2007). Uma gama de temas era levantada e discutida:
quilombos, sobretudo a retomada da figura de Zumbi, último grande líder de Palmares; a crítica ao dia 13
de maio e à abolição formal da escravatura e a subsequente ausência de educação, trabalho e saúde
para a população negra; dimensões do racismo; a situação das mulheres; variados aspectos das culturas
negras e da relação Brasil – África.
Somente em 09 de janeiro de 2003, o então recém-eleito presidente da República Luís Inácio Lula da
Silva assina a Lei 10639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) em alguns
artigos. Diz o cabeçalho da lei: “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.” (BRASIL,
2003). O primeiro artigo detalha a proposta da legislação:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A,
79-A e 79-B:
"Art. 26-A.​ Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o ​caput​ deste artigo incluirá o estudo da História da África
e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
(BRASIL, 2003).
A Lei prevê ainda a inclusão da data de 20 de novembro no calendário escolar como “Dia da Consciência
Negra”, reivindicação dos movimentos deste os anos 1970:
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.
Depreendemos disto que levou mais de 30 anos para que o Estado brasileiro reconhecesse a
necessidade de uma política educacional em que a população negra fosse vista não somente no patamar
da escravidão ou de ações episódicas de algumas figuras de destaque.
Posteriormente foi promulgada a Lei 11645 que alterou o artigo 26-A e seus dois parágrafos
acrescentando a obrigatoriedade do ensino da História e cultura indígena:
35
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de
2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede
de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2003).
Mais de uma década depois são poucos os cursos de licenciatura em Geografia que inseriram estes
conteúdos nos planos de disciplinas, obrigatórias ou optativas (SILVA, 2012). O plano nacional de
implementação da Lei 10639, no tópico “Principais ações para os Conselhos de Educação”, menciona a
área:
e) Recomendar às instituições de ensino públicas e privadas a observância da Interdisciplinaridade tendo
presente que:
I. os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura, História Brasileiras e de
Geografia. (MEC, 2009, p. 40)
No entanto, considero que ainda estamos muito longe de inserir os temas afeitos à lei na formação inicial
e continuada dxs docentes de Geografia.
Uma proposta de abordagem das sociedades africanas no ensino de Geografia
Na experiência que tenho desde 2012 com a disciplina “Tópicos em Geografia Humana: África”
desenvolvi uma proposta de ementa, notoriamente superdimensionada para um período letivo de 4
meses: “O ensino de Geografia da África; as sociedades africanas da antiguidade e do período
moderno/colonial; escravismo e colonização na perspectiva atlântica; movimentos culturais e políticos
africanos, com foco nos processos de independência e descolonização”. Passo a delinear o primeiro
tópico dessa proposta. O segundo - as sociedades africanas da antiguidade e do período
moderno/colonial – será desdobrado em dois itens como ocorre no plano de ensino.
O ensino de Geografia: eurocentrismo e racismo
A Geografia Escolar, repensada e refeita desde os anos 1970 no Brasil, segundo uma perspectiva crítica,
se deteve em algumas áreas do “continente africano”, particularmente no tocante aos conteúdos e livros
didáticos, a exemplo da África do Sul, com o sistema do ​apartheid​ e, mais recentemente, com sua
participação nos BRICS; do Egito e suas notórias relações com o mundo árabe. Durante a chamada
“Guerra Fria”, parte significativa da África aparecia como periférica ao “mundo capitalista” e pouco eram
evidenciados ou abordados os países africanos socialistas.
A ideia de uma África “desconhecida” ou representada em imagens restritivas e negativas de “vida
selvagem”, “conflitos étnicos”, “pobreza”, “doenças” se situa num quadro mais amplo de eurocentrismo e
racismo formado ao longo de séculos, com dois grandes momentos de inflexão: a passagem do século
XV para o XVI, o encontro/confronto do reino de Portugal com o reino do Congo (e “vizinhos”), em plena
fase comercial do capitalismo e a segunda metade do século XIX repleta de viagens, relatos, exposições
internacional (de gente africana, ameríndia e asiática), de conformação e divulgação de teorias
racialistas, de divisão da África em plena fase industrial do capitalismo.
Santos, R. (2010) resume e traz esse quadro para a ciência geográfica e problematiza um dos principais
aspectos da narrativa eurocentrada acerca da África:
Omissões, distorções, ausências, fabricações e estereótipos constroem uma narrativa sobre a África
onde ela aparece como um continente desistoricizado e desgeografizado – as referências tanto de
periodização quanto de organização espacial são todas exógenas (p. 152)
36
As interpretações e exemplos são inúmeros nesse campo. Vão de ausências flagrantes a representações
lacunares ou negativas da África, dos africanos e da população negra no livro didático de Geografia
(RATTS, ROGRIGUES, VILELA e CIRQUEIRA, 2007; FERRACINI, 2012). A contra-hegemonia ao
eurocentrismo não é abordar a África “em si” e, sim, entender que cada área do continente pode ser vista
em longos sistemas de trocas econômicas, políticas e culturais, e que é importante procurar as
referências de cada sociedade em pauta.
Quando questionamos os estereótipos, há quem afirme a falta de fontes para abordar as sociedades
africanas. Nas áreas de Educação e História, em face de iniciativas anteriores a Lei 10639, mas também
pelas demandas que ela suscita, é possível observar um crescimento da produção bibliográfica. Tendo
em mente a inter e transdisciplinaridade, vários caminhos são possíveis.
Se a “invenção” ou construção da África foi e é um processo longo, intrincado e vasto, repleto de planos
e camadas – viagens, relatos, jornais, mapas, desenhos, fotografias, literatura, cinema, - à semelhança
do que Edward Said e outrxs têm estudado para o Orientalismo e para as Américas, as reelaborações,
quiçá reconstruções, também são e serão longas, intrincadas e vastas.
Se há desconexões e um centramento na Europa, o ensino de Geografia da África pode ser centrado nas
sociedades africanas considerando suas formações socioespaciais, etnicorraciais e culturais sempre em
conexão com o sistema-mundo. A multiplicidade de atores – coloniais e “pós-coloniais” – deve sempre
ser considerada como conexão mundial – quer tratemos de intelectuais ou de conflitos territoriais.
É possível indagar: o que sabemos sobre os contextos locais de países, cidades, províncias e estados
africanos? Neste sentido, seja com o olhar remoto ou contemporâneo, a proposta tem sido se voltar para
determinadas áreas da África e observá-las em conexão com o mundo (de seu tempo) e considerar o
quadro local. O primeiro campo de observações são as sociedades africanas da chamada antiguidade.
As sociedades africanas da antiguidade: a (des)racialização do Egito e sua relação com
sociedades vizinhas
Pela memória religiosa judaico-cristã, pelo cinema, pela televisão, por uma literatura do fantástico, o
Egito antigo aparece desconectado da África e representado de forma esquemática. O historiador Elikia
M’Bokolo (2009a) chama a atenção para um processo que ele denomina de a “racialização da questão
egípcia”. O autor menciona duas vertentes historiográficas que tinham “dominado o conhecimento do
Egito antigo que, tinham cortado o Egito do continente africano para o integrar na Ásia ocidental e no
mundo mediterrâneo e que tinham, além disso, se apropriado deste período, considerado glorioso, da
história da humanidade” (p. 58). M’Bokolo se refere à historiografia europeia e a árabo-muçulmana. Da
primeira, ele destaca os “supostos laços de continuidade entre o Egito antigo, a ‘Antiguidade clássica’ e à
Europa (...)” (p. 58). Da segunda, pouco conhecida, ele destaca a hesitação entre desconsiderar um
longo período de “paganismo” e o reconhecimento da grandeza dos monumentos.
O autor indica estudiosos que incidiram na (des)racialização do Egito antigo desde o século XVIII e
ressalta um momento dos anos 1950 em que, a partir do trabalho do físico e etnólogo, Cheik Anta Diop
se recoloca de maneira enfática a ideia de um Egito Negro. A existência de poucas traduções deste
cientista prejudica sua recepção no Brasil, mas parte seu pensamento pode ser retomada com vistas ao
ensino de Geografia da África, por meio de outras abordagens (MOORE, 2005).
37
Na proposta que venho trabalhando considero importante retomar este debate e reconectar o Egito
antigo com a África, com a chamada África Negra, por meio da relação entre as formações de Kush,
Axum e Napata e, ainda que correndo risco de saltos históricos, insistir na reação entre Egito, Etiópia,
Eritreia, Sudão e Sudão do Sul, dentre outros países, pelas interrelações de longa duração em diversos
processos e momentos históricos, a exemplo do cristianismo etíope. No caso de Kush, império que
existiu entre os séculos VII (a. C.) e IV (d. C.) , destaco as pirâmides de sua “capital” Meroé.
Ainda no tocante à antiguidade, abordo a presença de mulheres na realeza, a exemplo de Hatshepsut (c.
– 1542 a. C. – c. 1458 a.C.), no Egito, e as rainhas candaces no reino de Meroé. No portal da UNESCO
há imagens dos locais que foram selecionados como Patrimônio da Humanidade, o que notoriamente
abrange o vale dos Reis e a Planície de Gizé no Egito. O sítio arqueológico da Ilha de Meroé foi incluído
nesta categoria.
As sociedades africanas do período moderno-colonial
A ideia de que modernidade e colonização são dois lados de um mesmo processo advém das leituras de
autorxs da vertente autodenominada de “giro decolonial”, particularmente de Aníbal Quijano (2005):
Colonialidad es un concepto diferente de, aunque vinculado a, Colonialismo. Este último se refere
estrictamente a una estructura de dominación/explotación donde el control de la autoridad política, de los
recursos de producción y del trabajo de una población determinada lo detenta otra de diferente identidad
y cuyas sedes centrales están además en otra jurisdicción terriorial. Pero no siempre, ni necesariamente,
implica relaciones racistas de poder. El Colonialismo es obviamente más antiguo, en tanto que la
Colonialidad ha probado ser, en los últimos 500 años, más profunda y duradera que el Colonialismo.
Pero sin duda fue engendrada dentro de éste y, más aún, sin él no habría podido ser impuesta en la
intersubjetividad del mundo de modo tan enraizado y prolongado (p. 93).
Ainda que o autor se volte bastante para a América Latina, é possível fazer observações correlatas para
as sociedades africanas, como faz R. Santos (2011; 2010), geógrafo, que se aproxima desse quadro
epistemológico.
Entendo que essa vertente tem um cunho profundamente geográfico. Cabe também considerar que a
noção de colonialidade não é necessariamente utilizada por autorxs africanxs. Vale ressaltar que a
grande movimentação capitalista comercial e industrial que se desdobra na chamada modernidade é
também uma ação colonial que retoma formas não capitalistas de exploração do trabalho humano como
a escravidão em larga escala.
A ideia de descoberta, utilizada na passagem do século XV para o XVI – para a América e para o Brasil –
é profundamente colonial ou colonialista. Ela envolve navegações, relatos, cartas náuticas e outros
mapas, desenhos, concepções religiosas e científicas do mundo. Como a África não foi “descoberta”,
alguns navegadores portugueses são reconhecidos por “descobrir” trechos da costa dos oceanos
Atlântico ou Índico, como é o caso de Diogo Gomes e a viagem de 1456, no Rio Gâmbia, na área que se
torna conhecida como Guiné, e a viagem de Diego Cão ao rio e reino do Congo, em 1482. Cabe nesse
quadro a viagem de Vasco da Gama para a Índia, em 1498.
38
Os interesses econômicos e políticos nestas áreas persistem e se refazem na longa duração. Os relatos
dos viajantes se constituem em fontes para entender as imagens acerca dos povos, dos corpos, dos
ambientes naturais africanos (SILVA, 2012). A cartografia moderna/colonial da África traz elementos
“fantásticos”, mas também inúmeras anotações da existência de cidades, reinos e impérios que as
representações contemporâneas abstraem. O reino do Congo, formado na segunda metade ou no final
do século XIV, é um dos que mais teve registros que se tornaram fontes historiográficas (M’BOKOLO,
2009, p. 190-195).
Este tópico compreende também o período que se estende por quase cem anos desde a segunda
metade do século XIX até a primeira metade do século XX: fim do tráfico negreiro internacional, estímulo
à migração europeia ocidental, abolição da escravatura, a chamada “segunda revolução industrial”, a
divisão colonial da África, a consolidação de teorias racialistas, as revoltas socialistas ou comunistas, as
duas guerras mundiais, o começo da descolonização africana.
A Conferência de Berlim, realizada entre 15 de novembro de 1884 e fevereiro de 1885, tratou dos direitos
de navegação nos rios Níger e Congo, da ação de missionários e do trabalho escravo, mas não
exatamente, como se imagina, a definição de fronteiras: “O tema mais debatido, isto é, o assunto
verdadeiramente político e polêmico, foi a formulação de critérios para justificar reivindicações coloniais.”
(DÖPCKE, 1999, p. 81).
Cabe lembrar que este é o tempo de maior divulgação das teorias racialistas, do racismo científico e de
formação da Geografia e da Antropologia enquanto áreas do conhecimento numa perspectiva moderna.
Os processos de descolonização, independência e formação dos estados-nações africanos no século XX
são abordados tendo em mente países específicos, ou conjuntos de países, como os de colonização
portuguesa. Neste caso, incluo também uma reflexão acerca das distinções e separações coloniais,
incluindo a racial, feitas por Portugal.
À guisa de conclusão: o epistemicído e a autoria negro-africana
A Geografia anglo-saxã e também a brasileira produziu obras relativas à África em perspectivas que não
são consideradas críticas. Autorxs que não são conhecidos nesse campo podem ser retomados, a
exemplo dos estudos de Milton Santos sobre as cidades do chamado Terceiro Mundo. Além dos
geógrafos citados, a produção utilizada é de autoria basicamente de historiadorxs (KI-ZERBO, 1979;
HERNANDEZ, 2005; OLIVA, 2005 e 2008; M’BOKOLO, 2009a e b), mas também das áreas de
Antropologia (SERRANO e MUNANGA, 1995) e Sociologia. Notoriamente artigos dos volumes da
coleção História Geral da África (UNESCO, 2010) são consultados e indicados, assim como as sínteses
produzidas acerca deste material (SILVÉRIO, 2013).
Há um caminho aberto para se tratar de África, diáspora africana, população negra, relações
etnicorraciais, racismo e temas correlatos no campo da Geografia Escolar. A produção e a experiência
que têm sido feitas em algumas universidades (UnB, FFP/UERJ, UFRGS, USP e UFG, dentre outras)
indica a fertilidade desse terreno. Cabe, por fim, uma reflexão que muitas vezes passa ao largo da
produção científica que é a invisibilização ou negação destes temas e da autoria, ou seja, do sujeito
negro como produtor de conhecimento como contra-hegemonia no quadro do pensamento ocidental.
39
Se a Lei 10639/03 é uma reivindicação e proposição dos movimentos negros, particularmente de
intelectuais ativistas, cabe em todo processo o reconhecimento e a inserção da autoria negro-africana.
Este foi um dos princípios da coleção História Geral da África da UNESCO com base na formação de
historiadores africanos principalmente em universidades europeias. A não inclusão de autorxs africanxs e
negrxs da diáspora colabora para o epistemicídio, noção desenvolvida por Boaventura Sousa Santos e
ressignificada por Sueli Carneiro (2005).
Esta autoria – de africanxs negrxs ou não, de negrxs das várias diásporas africanas – tem um foco na
produção acadêmica em expansão nas Américas e pode incluir a produção artística, em particular a
literária, mas, também, a cultural-religiosa que traz mitos e cosmologias negadas ou tratadas em
segundo plano na produção didática voltada para a formação inicial.
De Milton Santos (2001) a geógrafxs contemporâneos, historiadorxs, antropólogxs, sociólogos, cineastas,
músicxs, cantorxs, escritorxs e poetas, há uma vasta produção criativa que pode compor os textos
básicos, complementares e os recursos de apoio para introduzir, reorientar e/ou aprofundar o ensino de
Geografia da África.

Referências
ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. A África, a educação brasileira e a geografia. In: SANTOS, Sales
Augusto dos Santos (Org.). ​Caminhos abertos pela Lei Federal 10.639/03.​ Brasília, MEC/SECAD,
2005a, p. 167-184.
______. A África e o tráfico de povos africanos e o Brasil. In: ______. ​Territórios das comunidades
remanescentes de antigos quilombos no Brasil:​ segunda configuração espacial. Brasília: Mapas
Editora & Consultoria, 2005b.
BRASIL. ​Lei n° 11.645, de 10 março de 2008.
______. ​Lei ​n°​ 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
______. ​Lei ​n°​ 10.639, de 9 de janeiro de 2003.
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (CNE). Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, MEC,
2004b.
______. RESOLUÇÃO N° 1, de 17 de junho 2004a.
CARNEIRO, Sueli. ​A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.​ Tese (Doutorado
em Filosofia da Educação)–Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2005.
CIRQUEIRA, Diogo Marçal. ​Entre o corpo e a teoria: a questão étnico-racial na obra e trajetória
socioespacial de Milton Santos.​ Dissertação (Mestrado em Geografia)– Universidade Federal de
Goiás. Goiânia, 2010.
DÖPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África
Negra. ​Revista Brasileira de Política Internacional.​ v. 42, n. 1, 1999, p. 77-109.
FERRACINI, Rosemberg. ​A África e suas representações no(s) livro(s) escolar(es) de Geografia no
Brasil (1890-2003).​ Tese (Doutorado em Geografia)–Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012.
HERNANDEZ, Leila Leite. ​A África na sala de aula:​ visita à história contemporânea. São Paulo:
Summus/Selo Negro, 2005.
KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Volume I e II. Lisboa: Biblioteca Universitária, 1979.
M’BOKOLO, Elikia. ​África Negra:​ história e civilizações. Tomo II (do século XIX aos nossos dias).
Salvador: UFBA, 2009b.
______. ​África Negra:​ história e civilizações. Tomo I. Salvador, UFBA, 2009a.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Brasília, MEC, 2009.
40
MOORE, Carlos. Novas Bases para o ensino da história da África no Brasil. In: ​Educação
anti-racista:​ caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03 – Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 133-166.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na
literatura didática. In: ​ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS.​ v. 25, n. 3, setembro de 2005, p. 213-244.
______. Da Aethiopia à Africa: as ideias de África, do medievo europeu à Idade Moderna. ​Fênix –
Revista de História e Estudos Culturais.​ outubro/ novembro/ dezembro de 2008, v. 5. Ano V, n. 4.
Disponível em: ​www.revistafenix.pro.br​.
PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. O ensino e a pesquisa sobre África no Brasil e a Lei 10.639. In:
CLACSO (Org.). ​Los estudios afroamericanos y africanos en América Latina​: herencia, presencia y
visiones del outro. Córdoba/Buenos Aires, 2008, p. 253-276.
QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasifi cación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago y
GROSFOGUEL, Ramón Grosfoguel. ​El giro decolonial:​ reflexiones para una diversidad epistémica más
allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios
Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 93-126.
RATTS, Alecsandro (Alex). J. P, RODRIGUES, Ana Paula, VILELA, Benjamin P. e CIRQUEIRA,
​ epresentações da África e da população negra nos livros didáticos de Geografia. ​Revista da
Diogo​. R
Casa da Geografia de Sobral,​ Sobral, v. 8/9, n. 1, 2006/2007, p. 45-59.
RATTS, Alex. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadêmica. ​Revista
Nguzo.​ Ano 1, n. 1, Londrina, mar/jul, 2011, p. 28-39.
______. ​Eu sou Atlântica:​ sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial
/ Instituto Kuanza. 2007.
SANTOS, Milton. “Nossos irmãos africanos”. Jornal A Tarde, 12/03/1962. In: VASCONCELOS, Pedro de
Almeida. Milton Santos: geógrafo e cidadão do mundo. ​Afro-Ásia​, 25-26 (2001), p. 369-405.
SANTOS, Renato Emerson do. Ensino de geografia e currículo: questões a partir da Lei 10.639. ​Terra
Livre,​ n. 34, 2010, p. 141-160.
______. A Lei 10.639 e o Ensino de Geografia: construindo uma agenda de pesquisa-ação. ​Revista
Tamoios,​ v. VII, 2011, p. 04-23.
SERRANO, Carlos & MUNANGA, Kabengele. ​A revolta dos colonizados:​ o processo de
descolonização e as independências da África e da Ásia. São Paulo: Atual: 1995.
SILVA, Alberto Costa e. ​Imagens da África.​ São Paulo: Penguin, 2012.
SILVA, Beatriz Carretta Corrêa da. ​Levantamento e análise de informações sobre o
desenvolvimento da temática “História e Cultura Indígena” nos cursos de licenciatura de
instituições públicas e privadas.​ Brasília, MEC/CNE, 2012.
SILVEIRA, Oliveira. Vinte de novembro: história e conteúdo. In: GONÇALVES E SILVA, Petronilha
Beatriz e SILVÉRIO, Valter R. (Org.). ​Educação e ações afirmativas:​ entre a injustiça simbólica e a
injustiça econômica. Brasília, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira,
2003, p. 21-42.
SILVÉRIO, Valter (Ed.). ​Síntese da Coleção História Geral da África:​ pré-história ao século XVI.
Brasília: UNESCO/MEC/UFSCar, 2013.
______. ​Síntese da Coleção História Geral da África:​ Século XVI ao Século XX. Brasília:
UNESCO/MEC/UFSCar, 2013.
UNESCO. História Geral da África (Vários editores) Brasília: UNESCO, MEC/SECAD, 2010 (8 volumes).
Disponível em: ​http://www.unesco.org​.

Você também pode gostar