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mudancas-da-nova-ortografia-da-lingua-portuguesa

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 219, 01 de Janeiro | 2009

Planejamento

As mudanças da nova
ortografia da Língua
Portuguesa
As regras para a unificação da forma de escrever em
português já estão em vigor. Professores de todas as
disciplinas, preparem-se!
Beatriz Santomauro
Beatriz Vichessi

Os romances editados no Brasil raramente são lidos em


Portugal. Da mesma forma, as produções literárias de lá têm
pouco mercado por aqui. Em Moçambique e Angola, países
africanos que também falam o português, as edições
impressas tanto no Brasil como em Portugal não circulam
entre a população. Apesar de todos esses países usarem o Aqui tem outras
regras do acordo
mesmo idioma, nem sempre é fácil para o habitante de um
deles entender o texto escrito no outro - porque, além das
diferenças culturais, existem as variações na maneira de grafar as palavras,
aqui e do outro lado do Atlântico.

A unificação da ortografia da Língua Portuguesa, anunciada com alarde pelo


Ministério da Educação (MEC) no ano passado, promete acabar com parte
desse cenário de desencontros. A partir do mês de janeiro, os habitantes de
quatro nações (Brasil, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal) passam a
seguir as mesmas regras para escrever, definidas por um novo acordo
ortográfico. Os outros quatro integrantes da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor Leste)
aguardam a aprovação formal do tratado para também adotar as regras - o
que deve ocorrer nos próximos meses.

O governo brasileiro definiu que as mudanças entraram em vigor no dia 1º de


janeiro de 2009 - mas o uso da grafia antiga (em livros e outras publicações,
além de vestibulares, provas e concursos públicos) está liberado até o fim de
2015. Os especialistas acreditam que esse período é mais do que suficiente
para que nós, usuários da língua, nos acostumemos às novidades. Calcula-se
que, no Brasil, 2 mil palavras sofrerão alterações, ou seja, 0,5% do total. De
forma muito resumida, as mexidas são no trema (que deixa de existir), nos
acentos (há várias alterações previstas) e no hífen (que também tem diversos
casos específicos).

"É importante ressaltar também que o acordo não interfere na língua falada.
Cada uma das nações de Língua Portuguesa mantém seus padrões de
entonação e pronúncia. Essa diversidade de sotaques não será abalada. Por
isso, a adaptação não deve ser tão difícil para quem escreve com frequência",
afirma Irandé Antunes, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da
Universidade Estadual do Ceará. Além disso, o acesso a materiais escritos é
maior do que há algumas décadas e tanto os principais jornais do país (como
O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo e Extra) quanto a maior
editora de revistas (Abril) - já adotaram as normas da nova ortografia.

Reflexão sobre a língua e um bom dicionário

Apesar de o jeito de escrever já ter mudado, o tempo relativamente longo de


adaptação faz com que nem todos os livros didáticos e materiais impressos
disponíveis para os alunos tenham a grafia nova (e essa situação deve
perdurar). A convivência com palavras escritas de duas formas diferentes
pode provocar alguma confusão entre os estudantes recém-alfabetizados ou
mesmo nos que dominam bem algumas regras da língua escrita. Por isso,
professores de todas as disciplinas precisam conhecer as mudanças para
ajudá-los a revisar textos e ter sempre bons materiais de consulta para usar
quando aparecerem dúvidas (leia no quadro abaixo mais detalhes sobre o
Manual da Nova Ortografia, produzido por NOVA ESCOLA).

Consultar é preciso

Com o novo acordo ortográfico, as palavras em que o


trema é usado para indicar a pronúncia da letra u ficam
sem o sinal gráfico. Ele deixa de existir na Língua
Portuguesa e só se mantém em nomes próprios
estrangeiros e suas derivações. Essa é uma das novidades
mais simples de memorizar, assim como a inserção oficial
no alfabeto das letras k, w e y. Porém as mudanças que
envolvem os acentos agudo, circunflexo e diferencial e o
hífen são mais complexas e vão exigir consultas
frequentes a materiais de apoio. Um exemplo é a dupla heroico (que perde o
acento agudo, pois é uma paroxítona com ditongo aberto) e herói (que segue
acentuado porque é uma oxítona terminada em ói). NOVA ESCOLA e as
editoras Ática e Scipione organizaram, no ano passado, o Manual da Nova
Ortografia, que terá nova edição agora, em fevereiro, revisada e ampliada. O
guia também apresenta um histórico das transformações que a língua sofreu
e volta às bancas por apenas 1,99 real.

Artur Gomes de Morais, da UFPE e autor de livros sobre o aprendizado da


ortografia, diz que ler palavras grafadas corretamente é importante,
sobretudo para compreender as formas que não podem ser explicadas com
regras e, portanto, precisam ser memorizadas. O fato de as mudanças
afetarem poucos verbetes vai ajudar a garotada. "Ninguém terá de gastar
tempo decorando muitas expressões que raramente serão usadas em
textos."

Kátia Lomba Bräkling, professora de pós-graduação do Instituto Superior de


Educação Vera Cruz, em São Paulo, reforça a importância do ensino da
ortografia. "A escrita é uma construção histórica que se modifica com o
tempo e em função dos usos no processo de comunicação. Ela segue um
conjunto de convenções que deve ser respeitado." Momentos como esses, de
mudanças de regras, são ideais para apresentar as realidades em que a
Língua Portuguesa é utilizada e para mostrar que já houve muitas outras
formas de grafar no passado. "Todo idioma tem história e as crianças devem
ser levadas a perceber isso com clareza. É uma maneira de elas notarem que
os pais e avós escreveram de maneira diferente porque a língua é viva", diz
Ulisses Infante, professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira na
Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, e autor de livros
didáticos.

E que estratégias os educadores podem adotar em sala de aula neste


momento? Infante sugere usar cartazes e outros recursos de memorização,
além de um bom dicionário (leia no quadro abaixo como introduzir as novas
regras na escola). Mas ele chama a atenção para o foco. "O fundamental no
ensino de Língua Portuguesa continua sendo o uso dos textos no mundo
social."

Voo tranquilo na sala de aula

Os especialistas são unânimes em dizer que é desnecessário separar um


tempo específico para trabalhar a nova ortografia na escola, mesmo em
turmas já alfabetizadas. As regras devem ser objeto de reflexão e discussão
somente durante atividades de re-escrita e de revisão de texto que estarão
previstas no planejamento. Confira algumas sugestões que podem ser
incorporadas à rotina escolar.

• Peça que os alunos escrevam cartazes com as palavras que eles mais usam
cuja grafia foi alterada. Deixe o material exposto na sala.

• Organize a produção coletiva de um manual com as novas regras,


acompanhadas de exemplos. Assim os estudantes terão outro material de
consulta sempre à mão. É importante que todos participem da elaboração.

• Combine com a turma o período em que a grafia antiga será aceita e


quando ela passará a ser considerada incorreta. O prazo deve ser
estabelecido quando você perceber que todos já incorporaram as mudanças.

• Planeje momentos para apontar e comentar as alterações - mas sem se


desviar do conteúdo previsto para trabalhar. Durante a leitura de um
determinado texto, se surgir a palavra geleia grafada da maneira antiga
(geléia), incentive os alunos a justificar o "erro", descobrindo, por exemplo,
quando o livro foi impresso.

• Identifique o acervo da biblioteca com etiquetas que informem os


exemplares publicados com a grafia antiga, como se pode ver na foto abaixo.

E não esqueça: desde já, use as novas regras para escrever comunicados para
os pais e alunos e também para produzir todo o material exposto nas
paredes da escola (exatamente como você está lendo nesta reportagem).

Consultoria Cleuza Bourgogne, diretora pedagógica da Escola Móbile, e Elaine


Rissato, coordenadora pedagógica da EMEF Olavo Pezzotti, ambas de São
Paulo.

Crianças em processo de alfabetização serão as menos afetadas. Isso porque


nas séries iniciais ainda não há um trabalho sistemático com acentuação nem
com o uso do hífen - que são os dois principais grupos de mudanças do novo
acordo. "Nesse momento, os pequenos se preocupam com outros aspectos
da ortografia. Quando chegarem à fase de refletir sobre acentos circunflexos
e agudos, as regras novas certamente já estarão mais consolidadas e será
mais simples as colocarem em prática", afirma Clécio Bunzen, coordenador
do curso de pós-graduação em Alfabetização e Letramento da Universidade
de Jundiaí, na Grande São Paulo.

Se os estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental tiverem mais


dificuldade, atividades de revisão e pesquisa em dicionários são suficientes
para que eles passem a dominar todas as mudanças gradativamente. "O mais
importante é entender e desenvolver procedimentos de escrita considerando
os ajustes necessários para produzir um texto de qualidade em função dos
objetivos e dos leitores para os quais ele se destina", completa Kátia. As
regras só devem ser o tema das aulas nos momentos em que as questões
ortográficas forem o foco da revisão. Isso significa que, além de escrever
corretamente sempre, o professor também precisa saber o momento de
tornar a ortografia objeto de reflexão e colocá-la em foco nas atividades.

A terceira mudança oficial do português no Brasil

Alterações na ortografia não são novidade no Brasil. Em 1943, foram


realizadas as primeiras mudanças oficiais. Na época, nossa língua escrita era
mais próxima da de Portugal, mas diferente da utilizada oralmente no dia-a-
dia. Então, ficou decidido que alguns dos usos locais seriam norma, como dita
o Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa: "Está registrada a inclusão
dos brasileirismos consagrados pelo uso e a substituição de certas formas
usadas em Portugal pelas correspondentes formas usadas no Brasil".

Durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, em 1971, ocorreu


a segunda reforma. O período de transição foi de dois anos, pois eram
poucas as alterações. O trema nos hiatos átonos (como em vaïdade) foi
abolido. Também saíram de cena o acento circunflexo diferencial nas letras e
e o das palavras escritas da mesma maneira, mas com sons diferentes (como
a conjugação do verbo almoçar na primeira pessoa do singular e o
substantivo almoço e a letra "ele" e o pronome pessoal êle) e os acentos
circunflexo e grave dos vocábulos com os sufixos mente ou zinho e derivados
de palavras que eram acentuadas (tênuemente, sòmente e cafèzinho, que
tinham na raiz as palavras tênue, só e café).

Nessa época, Odilon Soares Leme era professor do Ensino Médio do Instituto
Mackenzie, em São Paulo. Ele lembra que as mudanças facilitaram a escrita,
embora as regras causassem dúvidas e algumas surpresas. "Sempre me
recordo de uma questão sobre a acentuação da palavra alcachofra. Até
então, ninguém sabia que ela precisaria ser acentuada - pela regra que
deixava de existir - porque havia uma homógrafa com outra entonação: a
conjugação do verbo alcachofrar, que significa ‘tornar crespo’, na terceira
pessoa do singular do presente do indicativo."

Lucia de Brito Salgado Gomez, que hoje leciona para turmas de Ensino
Fundamental e Médio no Colégio Militar do Rio de Janeiro, nos anos 1970
dava aulas no antigo supletivo, atual Educação de Jovens e Adultos. Ela
também guarda na memória situações inusitadas: "Embora tenha sido uma
transição tranquila, alguns colegas teimavam em tirar os acentos de todas as
palavras. Imagine a confusão que os alunos fizeram com isso! Lembro-me de
um menino que tentou me convencer de que você não levaria mais
circunflexo", diz, divertindo-se.

Na pele de aluna da 5ª série, Rosalie Bin, hoje docente da EE Professor


Benedito Gomes de Araújo, em Santo André, na Grande São Paulo, não tem
na lembrança um cenário de "confusão" por ter de escrever de maneira
diferente daquela com que tinha sido alfabetizada. Contudo, ela afirma que
agora sim terá algumas dificuldades. "As regularidades antigas estão
gravadas na minha memória. Terei de prestar mais atenção ao redigir e
certamente levarei algum tempo para me adaptar por completo."

Quase 20 anos de discussão antes do consenso

Foram muitos anos - mais precisamente, 18 - de muito trabalho e discussão


para chegar a um acordo que permitisse à Língua Portuguesa ter apenas uma
grafia (era provavelmente o único idioma a ter duas normas oficiais). O
principal objetivo das mudanças é mesmo econômico: facilitar a integração
comercial entre as nações. Mas é claro que elas também abrem as portas
para o intercâmbio científico e cultural, já que a comunicação fica muito mais
fácil e caem os custos de produção e adaptação de material impresso. O
português é a sexta língua mais usada do mundo, com 230 milhões de
falantes (está atrás do mandarim, do inglês, do espanhol, do hindu e do
árabe). "A circulação de livros entre os países pode proporcionar o maior
contato com a cultura escrita", aposta Godofredo de Oliveira Neto, presidente
da Comissão da Língua Portuguesa, órgão ligado ao MEC responsável pela
implementação do novo acordo ortográfico. "Num mundo formado por
blocos, o lusófono pode ser mais um deles."

As conversas para unificar o idioma começaram entre Portugal e Brasil em


1990. Desde então, diversas reuniões foram realizadas e os outros países que
têm o português como seu idioma oficial passaram a participar do debate.
Embora Portugal tenha tomado a iniciativa, o país foi um dos que mais
resistiram às mudanças, pois a quantidade de alterações lá é bem maior do
que aqui: cerca de 10 mil palavras. Para nossos vizinhos d’além-mar, acção,
acto e baptismo passam a ser grafadas como no Brasil: ação, ato e batismo.

Reportagem sugerida pela leitora

BARBARA VIEIRA DE SOUZA, Curitiba, PR


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Escola Móbile, R. Araguari, 167, 04514-040, São Paulo, SP, tel. (11) 5536-4402
Godofredo de Oliveira Neto, godolive@uol.com.br
Irandé Antunes, moraisantunes@uol.com.br
Kátia Lomba Bräkling, kbrak2006@gmail.com
OdilonSoares Leme, prof.odilon@uol.com.br
Ulisses Infante, ulissesinfante@gmail.com

INTERNET
Em www.cplp.org e www.museulinguaportuguesa.org.br, artigos sobre ortografia.

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