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História e historiadores no século XIX*

François Dosse

Há muito tempo se estabeleceu que o século XIX foi o século da história.


Essa afirmação banal encobre, no entanto, duas realidades diferentes e
complementares. De um lado, esse é o século da história no sentido da
profissionalização da prática histórica que se dota, por toda parte na Europa,
de um programa para seu ensino, de regras metodológicas, e que rompe
com a literatura para voar com asas próprias. Esse nascimento da história
como disciplina se confunde com a grande confiança na marcha progressiva
das ciências. Os novos historiadores profissionais desejam participar dessa
marcha ativamente, ainda que ao preço de certo cientificismo. De outro
lado, foi também o século da história, pois o historiador foi encarregado
pela sociedade de enunciar o tempo laicizado, de narrar o telos, de afirmar
a direção para a qual se dirige a humanidade. Esse magistério do futuro,
essa missão profética atribuída à história é então fortemente vivida como a
passagem da religião à disciplina histórica.
Nasceu dessa forma, entre filósofos, sociólogos e historiadores, uma
forma de religião da história à qual se atribuíam funções quase proféti-
cas, persuadidos, à época, de que se participava de uma temporalidade

Tradução de Domitila Madureira (e-mail: domitila.madureira@gmail.com).


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contendo uma direção endógena, que ia além da vontade dos agentes his-
tóricos. A história se transubstanciava assim na narrativa da marcha dos
seres humanos em direção ao melhor, ao progresso, a uma sociedade do
bem-estar para além das provações vividas. Essa história do século XIX
nasceu também dos impactos do Século das Luzes, da ascendência do rei-
no da razão entre filósofos como Kant, Hegel e Marx, que vêem na história
a realização, o desdobramento mesmo da racionalidade vivenciada nessa
época. É igualmente necessário destacar, nessa emergência, o grande papel
da ruptura, da fratura decisiva, constituída em pensar è em restituir a uma
temporalidade mais longa a Revolução Francesa e seu eco internacional.
Ela não apenas vai distrair Kant de seu passeio cotidiano, porém vai balan-
çar seriamente as linhas, pois, ao sair do período revolucionário e ao fim do
período imperial, enquanto os exércitos europeus em coalizão restauraram
a monarquia, a interpretação da Revolução Francesa se torna uma questão
central. Como, efetivamente, integrar essa ruptura reivindicada que subi-
tamente aboliu instituições seculares? Foi um acidente, um parêntese que
se podia fechar, ou então o produto do movimento da sociedade, a conse-
quência de uma evolução necessária e irreversível que qualquer governo
tem que considerar, como pensavam seus adversários liberais?
Diante da fragilidade dos governos e das instituições políticas, da repe-
tição compulsiva do gesto revolucionário que opõe até mesmo os herdeiros
da revolução entre si, os historiadores reconhecem para si um magistério
formidável: aquele de enunciar a verdade da nação. Por uma reviravolta
singular, o especialista do passado faz figura de profeta. A envergadura
da tarefa, sua importância, suas consequências são poderosos estímulos
para que se renove a forma de escrever a história. Essa já não pode mais
se contentar em ser a crónica dos grandes feitos, nem a produção erudita
amadurecida longe das paixões, muito menos uma grande síntese moral.
Ela tem que articular, a fim de convencer seus leitores, o entendimento do
impulso do movimento histórico e as novas formas de licenciatura com
uma nova forma de narrativa.
É nesse contexto que nasceu na França a escola liberal e romântica, que
teve por figura máxima aquele a quem Charles Péguy chamava de o "génio
da história", Jules Michelet. A contribuição dessa escola pode ser declinada
em três pontos: a definição do que são o olhar e as ambições da história,
que marca uma ruptura decisiva com os conceitos e as práticas anteriores
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— a tal ponto que se pode datar dessa época o verdadeiro "nascimento


da história"; as tentativas de casar ciência e arte, mais a vontade de nutrir
a história com filosofia dão às publicações desse período o estatuto de
obras literárias e as elevam ao nível de uma reflexão fundamental sobre
a história e a forma de se escrevê-la; o magistério então reconhecido aos
historiadores, que faz destes os artesãos da consciência nacional.
A revolução marca de fato uma ruptura fundamental na consciência
histórica. Ela produz uma modificação do regime de historicidade,1 quer
dizer, uma mudança do lugar e dos valores relativos atribuídos ao presente,
ao passado e ao futuro na percepção dos coetâneos. Até então, o passado
não tinha sido realmente pensado como ultrapassado. A história permane-
ce, essencialmente, conforme com a sua antiga concepção de magistra vi-
tae. Ela constitui um depósito de experiências sempre vividas como atuais
e, portanto, diretamente transferíveis. Numa sociedade ainda largamente
regida pelos costumes, a ideia de porvir — no sentido de abolir a configu-
ração precedente e produzir o irreversível — está pouco difundida. Assim
é concebível, no final do século XVIII, exigir pagamento de taxas e rendas
correntes séculos antes e caídas em desuso, bem como invocar a tradição
para se opor a qualquer mudança, tal como ilustrada pela defesa dos bens
comunais, em nome do costume, pelos povoados rurais. Somente parece
incontestavelmente legítimo o que sempre existiu, daí o esforço dos ge-
nealogistas principescos de recuar a origem das famílias, cuja linhagem
investigam, aos tempos imemoriais.
Nessa configuração o termo revolução continua mantendo sua acepção
astronómica. Até 1789, significa antes o retorno que a ultrapassagem, antes
um passado a ser reencontrado que um horizonte a ser atingido. É através
dessas grades que são lidas e comentadas as revoluções da Inglaterra.
A chave do paradoxo, encarnado por Edmund Burke e que conduziu
sucessivamente a apoiar os "insurgentes" americanos e a combater os
revolucionários franceses, reside nessa definição. Os americanos, conforme
Burke, combatem para restaurar direitos adquiridos dos quais foram
espoliados, enquanto os franceses querem fazer tábua rasa do passado.
Ora, para Burke, somente a primeira atitude é legítima. E quando a história

1 Hartog, 2003.
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é solicitada para estabelecer as pretensões nobiliárquicas e combater tanto


o absolutismo quanto as ambições da burguesia, a noção que preside a
essas construções é ainda a de "revolução-restauração". Certamente essa
ideia de história vacila no século XVIII, à medida que se afirma a noção
de progresso, mas a história ainda é frequentemente considerada fonte de
corrupção. "Comecemos por afastar todos os fatos", escreve Rousseau nas
primeiras páginas de seu discurso sobre as "Origens da desigualdade entre
os homens" (1754). A história não possui virtude explicativa; atravanca a
cena e evita captar as verdadeiras questões. Sébastien Mercier vê aí uma
fonte de erros, ela lhe parece um "esgoto dos esforços humanos" que exala
"um odor de cadáver". Igualmente o passado mobilizado para reconstruir
as cenas originais é apenas um truque de perspectiva que não exige um
verdadeiro procedimento histórico.
Desse ponto de vista, a Revolução Francesa, e mais particularmente
a experiência vivida na Assembleia bem como nas ruas de Paris ou nos
campos durante o verão de 1789, abala a consciência histórica e produz
uma "revolução nas mentes". A partir do mês de setembro de 1789, a de-
nominação Ancien regime se espalha e significa que o passado está defini-
tivamente abolido. Essa convicção está consolidada ao final das crises re-
volucionárias e na saída do período napoleônico: "as sociedades antigas se
extinguem; de suas ruínas surgem sociedades novas: leis, costumes, usos,
opiniões, e até princípios, tudo é mudado".2 O termo recorrentemente usa-
do para designar as duas décadas que se seguiram à implosão do Ancien
regime não é outro senão abismo. A escrita da história não pode deixar de
ser afetada por essa reviravolta. Para ela também, o tempo da Revolução
é o tempo da ruptura, da invenção. O novo olhar lançado sobre o pas-
sado não basta para caracterizar a consciência histórica que se forja no
momento revolucionário. Porque o passado é considerado terminado, o
porvir aparece sob uma nova luz. Ele se torna uma promessa que cabe aos
homens concretizar. A antiga perspectiva do tempo orientado pela esca-
tologia cristã é laicizada, o progresso humano torna-se sua motriz, e o
movimento deste parece tanto inevitável quanto irreversível. Tal como des-
tacado por Chateaubriand, a história é desde então percebida como um

'- Chateaubriand, 1831:7.


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processo cumulativo. François Guizot faz disso, em 1828, o conceito nor-


teador de sua abordagem da história. A ideia de progresso é identificada à
da própria "civilização", constituindo-se em seu princípio dinâmico. Um
horizonte de expectativa se impõe, conduzindo, tal como o sentimento de
ruptura, a reconsiderar o passado.
A instabilidade política não é exclusiva do período revolucionário. Ela
afeta a maior parte do século XIX, que parece revivê-la incansavelmente,
tanto e tão bem que Marx denuncia, dirigindo-se ao movimento socialista
em 1870, os"'granas souvenirs" como a "infelicidade dos franceses, inclusive
dos operários" — precisa ele —, pois essas lembranças grandiosas
obscurecem a realidade presente e evitam transformá-la. A Histoire de
France de Augustin Thierry é, toda ela, uma marcha para consagrar o povo,
pois, para ele, é isso que 1789 e o Tiers état representam. Mas essa marcha
só será concluída quando as instituições políticas da França estiverem
inteiramente adequadas aos princípios liberais. Essa análise, construída
a partir do presente e que faz da luta — no caso, aquela das raças — o
motor da história e o parteiro do futuro, chama a atenção de Karl Marx.
Ele confere a Thierry o título de "pai da luta de classes na historiografia" e
suscita o interesse da historiografia marxista pelos historiadores franceses
dos anos 1820. Entretanto, se Thierry defende uma concepção agõnica da
história, essa somente adquire sentido na unidade da nação.
Considerando-se a importância atribuída à história, a renovação da
historiografia é uma tarefa indispensável. Inaugurando uma postura que
será incessantemente reproduzida, os novos historiadores formulam seu
programa e, no mesmo impulso, se entregam à crítica da historiografia que
lhes precede. Michelet vive ao ritmo de sua narrativa e dos episódios que
relata. Ele está realizado ao evocar a festa da federação, abatido quando o
Terror se acelera. Em dezembro de 1852, ele somente abre seu diário para
escrever: "inteiramente absorto e sem respirar por causa do verdadeiro
núcleo do livro: novembro de 1793, a tentativa religiosa e o papado de
Robespierre". Ele vive, como declarou, "fora do tempo".
Essa característica não se limita à história da Revolução Francesa.
A história de Michelet está constantemente sendo reescrita, tanto suas
interpretações estão ligadas à sua vida e sua própria evolução. Sua obra
toma por vezes a forma de autobiografia, conformemente à sua vontade de
"biografar a história, como a de um homem, como a minha".
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Mas o século XIX não cabe inteiramente nesse face a face entre história e
literatura, nem na vontade dos historiadores de usar da narrativa e de pensar
sua relação pessoal com a história, ainda que afirmem a especificidade de sua
abordagem. A originalidade dessa história também está ligada ao lugar dado
a uma segunda fonte que alimenta e marca igualmente o discurso histórico:
a filosofia. Como aliar ao mesmo tempo a preocupação erudita, a vontade de
dar vida à história e a de compreender seu movimento? Desse ponto de vista,
há de fato uma tentativa "de unificação do campo histórico" sustentada pela
ambição de produzir uma história total, quer dizer, uma história que ligue o
conjunto das dimensões sociais, pois, como afirma Michelet, "tudo influen-
cia tudo" e, portanto, nenhum elemento pode ser isolado.
Isso toma formas diferentes, conforme cada um dos autores. Em Thier-
ry, traduz-se na adoção da luta como princípio motor da história e na von-
tade, ao término de narrativas em que indivíduos desempenham um grande
papel, de se alçar ao nível coletivo e de definir tipos. Guizot, por seu lado, se
atribui o objetivo de estudar não apenas os fenómenos materiais e visíveis,
mas também de dar lugar aos "fatos morais, escondidos, que não são menos
reais", aos fatos gerais, para os quais é impossível uma datação precisa e que
não podem ser excluídos da "história sem mutilá-la".3 Ele dá o exemplo atra-
vés dos seus desenvolvimentos sobre a mentalidade burguesa ou sobre a luta
de classes: "o que se costuma chamar de porção filosófica da história, as rela-
ções dos acontecimentos, o elo que os une, suas causas e seus resultados, são
os fatos, é a história, tanto quanto as narrativas de batalhas e acontecimentos
visíveis".4 A história deve, para que seja plenamente ela mesma, incorporar,
portanto, o que antes era contemplado apenas pelas preocupações da filo-
sofia. Esse desejo de compreensão global do movimento da história não está
menos presente em Quinet do que em Michelet, que dão seus primeiros
passos ao publicar traduções dos filósofos da história: Herder, no que tange
a Quinet, e Viço, no que concerne a Michelet.
A historiografia da primeira metade do século XIX se inscreve numa
relação complexa entre três poios a que podemos chamar de recursos: a
erudição, a filosofia, a literatura. Cada obra oferece delas uma trama par-
ticular. Essa configuração é fonte de riqueza, mas também de fraqueza,

3 Guizot, 1985:58.
4 Ibid.
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posto que conduz os historiadores a se posicionarem em debates teóricos


nos quais sua prática documental não pode, sozinha, garantir sua legiti-
midade. Todavia ela se revela fundadora de um conceito que outorga aos
historiadores um papel de destaque: o de narrar a nação, de pôr ordem em
seu passado para antecipar seu futuro. Através das diferentes figuras que
elencamos, o historiador aparece tal qual um profeta.
Na virada do século, os historiadores vão, diante das necessidades de
uma verdadeira especialização, de uma profissionalização, cortar o cordão
umbilical que os unia aos literatos, e se assistirá à emergência de uma escola
dita metódica, cuja contribuição se mede hoje melhor do que então, pois
foi por muito tempo depreciada. Teve de fato um papel fundador na pro-
fissionalização dos historiadores, obtendo reconhecimento e readquirindo
interesse quando esses se questionaram novamente sobre a definição de sua
atividade. Suas teses epistemológicas suscitam um novo interesse, e sua par-
ticipação na Cite, especialmente a favor do capitão Dreyfus — em contraste
com a neutralidade política dos Annales —, lhes é creditada no momento em
que as funções e responsabilidades sociais dos historiadores são reavaliadas.
Dessa forma, as releituras atuais dos historiadores metódicos se inscrevem
num contexto que favorece a emancipação destes em relação ao julgamento
feito pelos Annales e participam dos questionamentos contemporâneos que
os historiadores enfrentam.
O primeiro fator de desestabilização do modelo literário foi o forta-
lecimento da ciência que marcou a segunda parte do século XIX. A torre
Eiffel, construída em 1889, constitui o símbolo do triunfo do modelo cien-
tífico. É uma verdadeira coluna de Trajano erigida em honra da ciência,
na qual se podem ler em letras de ouro no grande friso do primeiro andar
— à maneira de muitas batalhas vitoriosas — os nomes dos cientistas fran-
ceses, de Lavoisier a Pasteur. Com seus 1.792 degraus, esse monumento
associa inextrincavelmente progresso, ciência e república. Os conceitos de
trabalho científico divulgados pelos pesquisadores das ciências experimen-
tais (física, química, biologia) se impõem gradativamente como modelo de
qualquer atividade de conhecimento, inclusive em matéria de literatura.
Assim é que Émile Zola sustenta que "o romancista" realiza "uma verdadei-
ra experiência, com a ajuda da observação". Esses conceitos se assentam
sobre a confiança na experimentação e reivindicam sua filiação a Bacon,
Copérnico ou Galileu. A passagem da metafísica à física moderna, da ai-
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quimia à química, é concebida como universal, uma mudança necessária


que toda ciência tem que percorrer. Nessa visão grandemente indutiva da
atividade científica, a verdade decorre de observações e experimentações
repetidas que são por si mesmas "observações provocadas" (Claude Ber-
nard). É o que sustentam, igualmente, Louis Pasteur ou Marcelin Berthelot,
além de Claude Bernard. A obra deste último, Introâuction à Ia médecine
expérimentale (1865), que foi um sucesso imediato, rejeita toda inserção do
procedimento científico em qualquer sistema filosófico.
Quadros como o que representa Jean-Martin Charcot examinando
uma paciente diante dos seus discípulos (Pierre-André Brouillet, 1887) di-
fundem a imagem de uma comunidade científica constituída, capaz de se
reproduzir. Essa situação, que contrasta com a desorganização dos estudos
de história e com a dificuldade de administrar uma prova definitiva capaz
de encerrar o debate, só pode deixar os historiadores a sonhar. A partir dos
anos 1860, as referências aos procedimentos científicos da fisiologia ou
da patologia (Hyppolite Taine) e aos da química ou da geologia (Fustel de
Coulanges) se impõem. As pretensões "cientificistas" se multiplicam e con-
vidam a romper com a dupla tradição das letras e da filosofia que condena
a historiografia à instabilidade e a reduz a ser somente um conhecimento
de fraco embasamento científico e, portanto, contestável.
Essa mutação disciplinar e científica parece ter sido, já e desde então,
concluída na outra margem do Reno. Desde 1867, Victor Duruy lança
uma pesquisa comparativa entre as instituições universitárias estrangei-
ras, em particular alemãs, e as francesas. Ela induz à criação, em julho de
1868, da École Pratique dês Hautes Études. Esta tem que aclimatar os mé-
todos alemães e, especificamente, realizar seminários especializados para
garantir a transmissão dos saberes técnicos e para instaurar uma relação
dos mestres com os seus estudantes. Ela deve permitir um aprendizado
em laboratório comportando manipulações ou, no que tange à literatura,
trabalhos documentais. Desde a metade do século, Ernest Renan multipli-
ca os elogios da erudição alemã, em particular da gramática comparada e
da filologia, mas também do sistema educativo d'além-Reno. Um jogo de
espelhos se instaura, que é recomeçado por Victor Duruy, depois se gene-
raliza, nos dias que se seguem à Guerra Franco-Prussiana de 1870, quan-
do a superioridade do sistema educativo se torna uma das explicações da
derrota francesa. Para os partidários de uma reforma do sistema educati-
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vo, a França deve, como a Prússia depois da derrota em lena (1806), ser
ré fundada intelectualmente.
A comparação com a Alemanha se torna um lugar-comum, e a estada
nas universidades alemãs, já estimulada por Victor Duruy, uma etapa ne-
cessária no currículo dos mais brilhantes estudantes franceses, a começar
por Ernest Lavisse, Gabriel Monod, Charles Seignobos ou Camille Jullian,
para ficarmos apenas nos historiadores. O que surpreende na Alemanha
é a luz que várias universidades irradiam, enquanto na França é apenas a
Sorbonne que tem um peso esmagador, sem que, por isso, se tenha cons-
tituído num polo inovador. Essa característica da geografia universitária
germânica é o produto paradoxal da fragmentação desse espaço, durante
a maior parte do século XIX, em uma pluralidade de Estados dos quais
cada soberano se esforçou em desenvolver um núcleo universitário. Disso
resulta um "mercado académico" caracterizado pela mobilidade. Esse no-
madismo dos professores e dos estudantes em busca de melhor situação
ou de melhor formação não para de impressionar os universitários fran-
ceses seduzidos por esse liberalismo temperado, saídos de um sistema em
que a tutela do Estado e, portanto, do poder político se exerce sobre as
nomeações dos professores e pesa até na definição do programa tratado.
Ao contrário da França, onde os estudantes são ouvintes livres, onde os
cursos atraem um público com motivações variadas e onde os próprios
campos disciplinares só são definidos na ausência de ementas específicas,
as universidades alemãs operaram precocemente uma mutação discipli-
nar. Victor Duruy em 1868 e, depois, Ernest Lavisse opõem o público
das universidades alemãs ao público um tanto mundano da Sorbonne.
Além desse público assíduo que se dedica à ciência como a um sacerdó-
cio, que na descrição de Lavisse se destaca pela pobreza do vestuário, a
força da Universidade alemã reside em formar um corpo. Seignobos se
mostra atento a tudo o que facilita a formação de um sentimento de per-
tencimento a um grupo específico. Assim, ele observa que na saída dos
seminários, realizados na casa do professor, os estudantes costumam ir
juntos à cervejaria, onde se cria um laço pessoal entre os alunos de um
mesmo professor. A sociabilidade, é claro, não é o único benefício dos
seminários. Sua primeira virtude é formar os estudantes para manejar os
métodos críticos: "o seminário [...] é, na Alemanha, a verdadeira escola
dos historiadores. Aluno de um professor é não aquele que assistiu a suas
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aulas, mas o que participou de seu seminário. É aí que convém procurar a


verdadeira medida do ensino atual da história".5 Acrescentemos que esses
relatórios, tabelas e artigos evidenciam a importância dos recursos desti-
nados além-Reno à universidade, o que contrasta com a mesquinharia dos
que lhe são destinados na França.
Ademais, os historiadores alemães desempenham um papel funda-
mental na identidade nacional. Os historiadores foram os verdadeiros
promotores do novo império alemão. O editorial do número inaugural
da Revue de Schmidt (1843), da qual Leopold von Ranke é um dos fun-
dadores, publicado por ocasião do milésimo aniversário do tratado de
Verdun — celebrado pela Prússia como o certificado de nascimento da
Alemanha —, exalta Clio como "mãe e mestra" da vida política nacional.
Da mesma forma, A história romana de Berthold Georg Niebhur (1811)
tem por função mostrar aos alemães como se poderia criar o Estado de
que sentem falta. Esse papel de fermento nacional só podia fascinar os
historiadores franceses no momento em que esses ambicionam ter fun-
ção semelhante em seu próprio país. Estão também impressionados — a
despeito de numerosas críticas quanto à forma — com a força e o rigor da
historiografia alemã. Assim, Ranke é qualificado de "escravo da verdade
histórica". Mais do que tudo, a organização e a codificação dos estudos
históricos infundem respeito aos franceses. A erudição alemã, apoiada
no domínio das ciências auxiliares (filologia, paleografia, numismática,
diplomática, entre outras), parece ser a única via para fundar a história.
Sua transmissão assegura a possibilidade dessa constituição disciplinar à
qual aspiram os reformadores franceses. Mas a história na Alemanha não
é apenas um fermento nacional, é um método.
O método histórico alemão se inscreve na continuidade da tradição
erudita do século XVIII. É redefinido por Wilhelm von Humboldt (1767-
1835), cientista e estadista, fundador da Universidade de Berlim em 1810
e irmão do geógrafo Alexander von Humboldt. De saída, sua obra A missão
do historiador (1821) reafirma o objetivo do conhecimento que, desde Tu-
cídides, funda o contrato de verdade que rege a história: "a missão do his-
toriador é expor o que se produziu".6 Entretanto, de imediato ele precisa:

5 Seignobos, 1934:90.
6 Humboldt, 1985:67.
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"mas o que se produziu não é visível no mundo sensível senão em parte, o


restante tem que ser sentido, concluído, adivinhado para além disso".7
Humboldt emprega mais adiante o termo analogia. Ele inscreve a
prática historiadora numa tensão entre investigação rigorosa, imparcial e
crítica, que é um elemento constitutivo de seu ofício — sua "missão profis-
sional" —, e a necessidade de operar uma síntese que mobilize a intuição
do todo. A base estável da disciplina é fornecida pela filologia, à qual ele
consagra longos estudos. Mas é o estabelecimento da conexão (Zusamme-
nhang) que se mostra a operação mais perigosa. A história, longe de ser
concebida como uma ata do real, é apresentada como uma imitação, à
imagem da criação artística. Entretanto, destaca Humboldt, a finalidade
é diferente, já que a história é animada pela ambição de tender para o
verdadeiro. Para atingir esse objetivo, a história tem que se emancipar da
filosofia. Com Humboldt, temos o nascimento do historicismo, isto é, de
uma história ligada ao particular para tentar dar conta da ação humana.
Humboldt inspira grandemente o historiador alemão Leopold von Ranke.
Leopold von Ranke (1795-1886) é uma figura maior dentro da histo-
riografia alemã. Professor da Universidade de Berlim de 1825 a 1871, ele é,
desde 1841, o historiador oficial da Prússia. Sua obra histórica é centrada
na Reforma (especialmente na Alemanha, na França e na Inglaterra), mas
sua influência ultrapassa de muito o campo da história moderna. É líder
de uma escola, o "seminário", no qual viriam, a partir de 1833, se iniciar
na crítica e no método históricos a maioria dos eruditos e historiadores
alemães, como Droysen, que foi seu aluno e fala da Ranke-schule (escola
de Ranke).
Como Humboldt, Ranke se recusa — em razão de suas convicções
religiosas — a inscrever a história num porvir cujas leis pudessem ser de-
finidas. De fato, o determinismo histórico que marca tanto o positivismo
de Auguste Comte quanto o devir histórico de Hegel, de quem ele é colega
na Universidade de Berlim, leva, a seu ver, a suprimir qualquer valor às
escolhas e às ações dos homens. Essas teorias que renegam a liberdade
humana lhe aparecem como "absolutamente indignas de Deus", o livre -
arbítrio parecendo ser apenas uma "ilusão".8 Ele rejeita a ideia de um

7 Humboldt, 1985:67.
8 Ranke, 1994:336.
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desenvolvimento linear e ritmado pelos progressos sucessivos da humani-


dade, ideia que a experiência de inúmeras civilizações contradiz, princi-
palmente na Ásia, que "depois de períodos de altas florações caiu de novo
na barbárie".9
Por conseguinte, o historiador deve se mostrar modesto, evitar os
raciocínios abstratos e demasiados generalizantes para se ater somente
aos fatos. Essa concepção estabelece uma separação entre a história e a
filosofia. Com Ranke, a história não é mais um género moralista, não é
mais magistra vitae. Ela se quer uma prática empírica e positiva ao oposto
da filosofia, destinada à teoria e à especulação. A ambição é, sem tirar
nem pôr, destronar a filosofia em benefício da história como síntese de
conhecimentos sobre os homens. É, de acordo com seus próprios termos,
uma "ciência livre e objetiva" que Ranke pretende fundar.
A corrente historicista trazida por Ranke não se resume à historiografia
de além-Reno. Johann Gustav Droysen defende, por seu lado, uma história
de reflexão em sua obra Preás de théorie de 1'histoire,10 que rompe com
a teoria do refle tido, cara a Ranke. Ele problema tiza a historicidade
fundamental de qualquer investigação histórica e convida o historiador a
enunciar explicitamente as questões que formula aos vestígios conservados,
bem como a se perguntar sobre as razões que o levaram a formulá-las.
Nessa diversidade, a historiografia alemã terça suas armas e se impõe como
referência em inúmeros setores da história. Citemos para a Antiguidade
grega e romana as obras de Friedrich August Wolf ou de August Bóckh,
que colocam a filologia a serviço da história, a de Johann Gustav Droysen
(Grécia helenística), ou a de Theodor Mommsen (Roma).
Assim, Michelet dedica a Niebhur um estudo elogioso — ainda que
crítico — em que este reduz a história de Roma ao nível das "conquistas"
alemãs, a tal ponto que, para ele, esta se afigura como "colónia germânica".
Camille Jullian, que cita esse texto em sua coletânea sobre os historiadores
do século XIX, comenta: "esse questionamento de Michelet tem, ainda
hoje, sua razão de ser. Durante séculos, os alemães se mantiveram na
dianteira em relação a nós quanto aos estudos da história romana. [...]

9 Ranke, 1994:337.
10 Droysen, 2002.
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[Suas] publicações das inscrições da Gália e [suas] traduções dos tratados


de direito romano reinam soberanamente em nossas escolas".11
Podemos imaginar como a Alemanha parece, aos olhos dos historia-
dores franceses no início dos anos 1870, uma espécie de terra prometida
da história. Certamente, alguns deles se esforçam em achar também de-
feitos no sistema alemão. Depois de tudo, Lavisse observa, "nós não esta-
mos proibidos de ambicionar fazer melhor que nossos vizinhos".12 Mas a
atração é evidente, tanto assim que os meios nacionalistas franceses não
terão palavras duras o bastante para estigmatizar essa germanofilia que eles
julgam antinatural, principalmente quando os principais nomes da escola
metódica tomam, em sua maioria, o partido de Dreyfus. Então, nesse con-
certo de louvação, Fustel de Coulanges marca sua diferença ao sustentar
que "o método a que alguns hoje chamam de alemão [...] é francês há dois
séculos".13
Na entrada do século XX, as qualidades que um historiador deve ter
estão definidas: modéstia, prudência, erudição, recusa das paixões. Por
causa das reviravoltas políticas ocorridas, e do lento amadurecimento da
disciplina, a história ocupa um lugar central: "nosso século", sustenta
Monod, "é o século da história". A profissionalização dos historiadores
decorre, num primeiro momento, de uma operação de delimitação, da
definição de uma norma legítima que marque os contornos de uma co-
munidade científica que garanta a validade do saber histórico. Essa clau-
sura se efetua em dois planos: a organização do ensino e a codificação
do método.
O discurso do método histórico é delimitado em 1898 por Charles-
Victor Langlois e Charles Seignobos em Introduction aux eludes historiques.
Ambos são professores titulares de história e doutores em história medie-
val. O primeiro, nascido em 1863, também é chartiste. É para transmitir
as competências assim adquiridas na École dês Charles que ele se torna
professor assistente, mais tarde catedrático da Sorbonne. Em 1913, assu-
me a direção dos Arquivos Nacionais. O segundo, normalien, se torna em
1898 o substituto de Lavisse em história moderna, professor assistente em

u jullian, 1897:304.
12 Lavisse, 1879:48.
13 Apud Hartog (1988:340).
28 LlÇÕES DE H I S T Ó R I A

pedagogia da Sorbonne, antes de ser nomeado professor de metodologia


histórica em 1907. Em 1921, ele se torna catedrático de história política
da idade moderna.
À semelhança dos Handbúcher e de Grundisse alemães, a Introduction
é um manual de metodologia, o primeiro dessa envergadura em francês
capaz de concorrer com o Compêndio da ciência histórica de Johann Gustav
Droysen, traduzido e publicado na França em 1887. As indicações são
precisas e não se dignam a entrar em considerações demasiado materiais,
tais como a recomendação de anotar de preferência em. fichas, em vez de
cadernos. Além desse aspecto descritivo, que define até o estilo que con-
vém ao historiador, Langlois e Seignobos tentam reconstituir o conjunto
das etapas da elaboração da história. Começam por expor a pesquisa das
fontes, depois passam à apresentação das diversas críticas. A crítica externa
ou de erudição determina a autenticidade do documento, define sua ori-
gem e permite datá-lo ao recorrer às disciplinas auxiliares. É uma condição
necessária à história. A Introduction dá conta das exigências do momento
sobre a classificação das fontes e prega uma divisão do trabalho entre os
eruditos encarregados de estabelecer os textos e os historiadores que de-
vem explorá-los. Ao fazer isso, esse livro define uma deontologia — uma
ética da história — e uma epistemologia.
Nos anos 1890-1910, a história metódica entra numa zona de tur-
bulência. Encontra-se aprisionada entre dois fogos: de um lado, os que
censuram seu culto da objetividade e a sua fraqueza em considerar os pro-
cessos específicos do conhecimento histórico; de outro, os que denunciam
seu enraizamento grande demais no particular e no individual, o que tem
por resultado um déficit científico. Em ambos os casos, é a definição lar-
gamente empírica das práticas históricas que é derrubada. Na Alemanha,
o debate se inicia nos anos 1890. Ele opõe, de um lado, os que são favo-
ráveis a uma mutação científica da história que deveria se operar — mais
ou menos — a partir do modelo das ciências da natureza, considerando
(de vários modos) a noção de coerção, quer para construir as leis do devir
histórico (Karl Marx), quer para definir os tipos ideais (Max Weber); de
outro lado, aqueles que definem a história como ciência do espírito (Wi-
Ihem Dilthey).
No seio da comunidade de historiadores, Karl Lamprecht recomenda
precocemente o comparatismo e questiona o fundamento individual da
H I S T Ó R I A E H I S T O R I A D O R E S NO SÉCULO XIX 29

história defendido por Ranke e sua escola: "o indivíduo não possui portan-
to uma liberdade absoluta, ele se move encerrado em seu tempo [...] e tem
somente a liberdade de que dispõe o passageiro a bordo de um navio".14
Ele pretende fundar a história sobre a noção englobante de cultura. Outros
autores, muitas vezes filósofos, insistem, ao contrário, no fato de que o
conhecimento histórico é o conhecimento de fatos idiográficos. A história
é a "ciência do individual, do que ocorre uma vez, em contraste com o
que acontece nas ciências naturais, que têm por objeto o universal, o que
ocorre sempre com as mesmas características".15
Como Humboldt já fazia, eles dão ênfase à subjetividade em curso na
escritura da história, à compreensão (verstehen) que o diálogo entre duas
subjetividades pressupõe: a do passado, tal como transparece através dos
documentos, e a do próprio historiador. Eles aprofundam o antigo con-
ceito de hermenêutica (interpretação) e destacam que a especificidade das
"ciências da mente" diante das ciências da natureza se deve, exatamente,
à compreensão da ação humana como sendo dotada de sentido. Essa filo-
sofia crítica da história, qualificada de "historicismo", é formulada — com
nuanças — por filósofos como Wilhem Windelband, Georg Simmel, Wi-
Ihem Dilthey ou Heinrich Rickert.
Diferentemente do que ocorria nos anos 1870, agora é uma reserva
que, de preferência, se manifesta diante das teorias alemãs. Berr insiste nes-
se ponto durante sua exposição. Dessa forma, a virada do século é marcada
por uma relativa autonomização em relação à Alemanha, cujos debates
são lidos através dos enfrentamentos que opõem, na França, os durkhei-
mianos e os metódicos. Essa instrumentalização que amalgama posições
muito diferentes para reconstruir uma oposição simples entre partidários
de uma ciência monotética, calcada nas ciências da natureza, e historicistas
idiográficos foi por muito tempo capaz de encobrir a complexidade das
questões levantadas além-Reno. Daí para a frente é o estilo nacional da
historiografia, tal como se constitui no momento de fundação da disci-
plina, que se impõe e sobredetermina as trocas entre os historiadores dos
diferentes países.

14 Lamprecht, 1900:26.
15 Rickert, 1901:123.
30 L l Ç Õ E S DE H I S T Ó R I A

Ora, o acontecimento maior do cenário francês é a emergência da


sociologia e, mais precisamente, da sociologia durkheimiana. Com efeito,
o projeto sociológico, como vontade de estabelecer regras do funciona-
mento social e do devir histórico, é anterior ao fim do século XIX. Esse
projeto de fazer da sociologia uma ciência inteira — Auguste Comte fa-
lava da "física social" — é aparentado com o realizado por Taine e Fus-
tel de Coulanges. Esse parentesco é aliás reivindicado por Durkheim no
prefácio do primeiro número de EAnnée Sociologique. Entre outros, Louis
Bourdeau — autor de um ensaio de 1888 intitulado Sur l'histoire consi-
dérée comme science positive — encarna esse horizonte cientificista. As
tomadas de posição a favor de uma história concebida como ciência do
social são então numerosas. Essa vontade comum de certos historiadores
e sociólogos de levar em consideração grupos sociais e economia é asso-
ciada muitas vezes ao engajamento ou à simpatia socialistas. Lucien Herr,
bibliotecário da Escola Normal Superior, desempenhou dessa forma um
papel importante na difusão das ideias socialistas entre várias gerações
de normaliens.
Ainda que uma sociedade francesa de sociologia tenha sido fundada
em 1872 por Littré, a emergência da sociologia é lenta. Correntes rivais se
enfrentam. Émile Durkheim, ao constituir uma verdadeira escola, conse-
gue marginalizar tanto René Worms (que sustenta uma interpretação na-
turalista, organicista dos fenómenos sociais) quanto Gabriel de Tarde (que
recusa o modelo naturalista e põe no cerne de sua abordagem a psicologia
coletiva). Professor titular de filosofia e normalien, encarregado do cur-
so de "ciência social e educação" na Universidade de Bordeaux em 1887,
Durkheim define sua própria doutrina (Lês règles de Ia méthode sociologique),
que ele aplica à divisão do trabalho (1893) e ao suicídio (1897). Ele funda
em 1898 LAnnée sociologique, da qual participam Célestin Bouglé, Maurice
Halbwachs, Mareei Mauss, François Simiand, entre outros. Essa revista se
torna o polo de adesão a essa nova corrente que se impõe como represen-
tante da sociologia e vai contribuir na França para se ignorarem quaisquer
outras filiações da sociologia — a sociologia compreensiva alemã, a de Max
Weber, de Simmel, de Dilthey —, que assim se encontram privadas de le-
gitimação. O divórcio é óbvio entre as duas orientações, e as referências a
Weber são raras na língua francesa, contrastando com a abundante biblio-
H I S T Ó R I A E H I S T O R I A D O R E S NO S É C U L O XIX 31

grafia em língua inglesa.16 Essa situação remete à ignorância voluntária de


uma orientação da sociologia antinômica em relação à corrente durkhei-
mo-marxista dominante na época. De fato, temos aí duas vias opostas entre
a filiação positivista comtiana, cujo modelo heurístico é a física mecânica,
e a filiação da sociologia compreensiva, para a qual as ciências da mente
não podem ser dissociadas das ciências da natureza. Houve, portanto, uma
ruptura na virada do século que voltou à cena no pós-guerra entre a filoso-
fia crítica da história de Simmel, Dilthey ou Weber, e a tradição positivista
que a criticava por psicologizar as ciências históricas»17

16 Lê savant et lê politique, de Max Weber, só foi traduzido para o francês em 1959 por Julien

Freund; Lês essais sur Ia théoríe de Ia science, apenas em 1965; e Léthique protestante et 1'esprít du
capitalisme, em 1964.
17 Mesure, 1993.

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