Claval Geografia Cultural

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_— Paul Claval . gecdrafia © 1995 Editions NATHAN, Paris Titulo da edicao original: La Géographie Culturelle Editora da UFSC Campus Universitario —Trindade Caixa Postal 476 880 10-970 — Florianépolis — SC @ (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686 (48) 3721-9680 © edufsc@editora.ufse.br & http/Mwww.editora.ufsc.br Diregao editorial: Paulo Roberto da Silva Editoragao: Daniella Zatarian Paulo Roberto da Silva Mapa e ilustragbes: Sylvine Bouvry Revisao técnico-editorial e capa: Aldy Vergés Maingué Revisao: Ana Liicia Pereita do Amaral Leticia Tambosi Maria Joana Barni Zucco Ficha Catalogréfica (Catalogagio na fonte pela Biblioteca Universitaria da Universidade Federal de Santa Catarina) 617g Clava, Paul A geografia cultural / Paul Claval ; tradugao de Luiz Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Pimenta. 3.ed.—Floriandpdlis : Ed. da UFSC, 2007. 453p. :il. Bibliografia: p. 423-453 1, Geografia humana. 2. Cultura ~ Histéria.3, Cultura — Aspectos sociais. 1. Titulo, cou: 9113 ISBN OTE-RSSZE-ORTA Reservados todos 0s direitos de publicacaio total ou parcial pela Editora da UFSC Impresso no Brasil 66 Cultura, vida social e dominio do espago Pode-se imaginar que, neste tipo de estrutura, ha pouca chance (a nao ser com a irrupgao de um acontecimento exterior) de que as coisas mudem muito de uma geracao a outra — que os jovens imaginem outra coisa além do que faziam seus pais e seus ancestrais. 2) Em se tratando de sociedades mais diferenciadas onde as tarefas miltiplas e especializadas se repartem entre as familias, a situagao torna-se mais complexa. Antes da revolugao industrial, podia-se dizer que a maioria dos saberes técnicos praticados nas pequenas unidades agricolas ou artesanais continuavam a ser transmitidos de pai para filho. Dinastias familiares podiam assim monopolizar localmente suas profissdes. Havia contudo uma certa abertura: 0 aprendizado eo estagio com um mestre ampliavam o recrutamento. Se se tratasse de técnicas mais complexas ligadas 4 escrita, nog6es abstratas ou tarefas muito dificeis e demandando longos exercicios, a intervencéo de mestres especializados tornava-se indispensavel. O acesso & escrita desempenha um papel totalmente essencial e introduz um corte entre as culturas puramente orais e as culturas histéricas reveladas pelos textos que nos deixaram. Mas o custo do aprendizado e Os suportes sobre os quais as mensagens era inscritas reservaram, por muito tempo, a escola € a alfabetizacdo a uma elite restrita. 3) Atualmente, é fora da familia e do meio préximo, nas insti- tuicdes escolares que, durante um tempo mais ou menos longo, as criangas do mundo aprendem a ler e a escrever, Eum prolongamento, um complemento da cultura familiar ou uma ruptura? 2 Transmissao e cédigos de comunicagao A transmisséo dos saberes implica sistemas eficazes de comunicagao (Attallah, 1989). Cada cultura estabeleceu cédigos que Ihe sao préprios. Passar de um a outro implica um aprendizado ou a intervengao de intermedidrios que assegurem a tradugao. Isto colocao problema das relagées transculturais. 2.1 A comunicagao oral e gestual Modalidade natural, a comunicagao oral e gestual nao necessita de nenhum instrumento e é utilizavel por todos. O movimento observado ea palavra que o acompanha freqiientemente permitem a aquisigao de Transmissao da experiéncia coletiva e génese das culturas 67 praticas: 0 aprendiz brande seu martelo e mira o prego para introduzi-lo direito: “Segure bem a ponta, olhe o prego, dé.um bom golpe!” aconselha o mestre. Nos casos simples, 0 gesto pode suplantar a linguagem. No dominio dos comportamentos sociais, o gesto e a palavra dao origem a rituais. Cada cultura tem os seus: 0 japonés se inclina mais ou menos baixo, com as maos unidas, enquanto o francés diz bom-dia e estende a mao. As regras abstratas da moral, as crengas, os conhecimentos racionais néo tém outro suporte a nao ser o discurso. O gesto ou a mimica deixam de ser um socorro para comunicar. Os meios de transmissao naturais, gestos e palavras nao tém mais que um alcance limitado (Westly e MacLean, 1957) (fig. 3-1). Faz-se necessdrio estar perto daqueles de quem se quer copiar os gestos para seguir as etapas, misturar-se a um grupo para apreender as regras de polidez ou de troca. A voz alcanga alguns metros para mensagens pouco complexas, algumas dezenas de metros para ordens simples que podem ser bradadas. Fazer-se entender e compreender por uma massa a algumas. dezenas de metros demanda uma formagao profissional (o orador polftico ou o ator de teatro). Sao necessérios, igualmente, lugares apropriados para sustentar uma boa actistica como sabiam fazer os gregos nos seus teatros. A musica e 0 canto aumentam o alcance da mensagem e sua carga de emocao. Em algumas popula¢ées, o tam-tam codificado dos tambores transmite as noticias a distancia. 2.2 Aescrita Ainvengao de cdédigos graficos para traduzir a linguagem traz um progresso decisivo e uma mudanga importante na eficacia e na riqueza das culturas. A escrita faz o tempo e o espago triunfarem (Havelock, 1981; Ong, 1982; Goody, 1985). A preservagao das experiéncias do passado nao depende mais da memoria dos individuos: ela é assegurada pelas inscrigdes gravadas na pedra ou nas tabuas de argila, os signos tragados em suportes de madeira, pergaminhos, papiros e mais tarde papel. O privilégio do local desaparece em parte. As mensagens sao conduzidas intactas por longas distancias a partir do momento em que os suportes tornam-se leves e resistentes (fig. 3-1). Entretanto, pode-se distinguir dois circulos de difusao, e o saber técnico, que necessita de um contexto direto do gesto, permanece limitado a 4reas estritas. Estas 68 Cultura, vida social e dominio do espago s6 podem se ampliar na medida em que os profissionais se tornem némades, ao menos no tempo de sua formagao ~ foi o caso dos pedreiros e carpinteiros do “Tour de France”.* Pode acontecer, também, que alguns cheguem a desvendar os segredos de uma fabricagéo prestigiosa, como foi o caso da seda ou da porcelana. A espionagem industrial é um fendmeno antigo e a difusdo das técnicas desempenhou um papel importante no Mundo Antigo. As injungées e os controles do poder podem, gracgas aos mensageiros, chegar aos limites dos grandes Estados que se formam desde a Antigitidade (Mann, 1986). Os livros que encerram o corpo de leis e os mitos fundadores das religides como os trabalhos dos pensadores e dos sébios asseguram a difuséo de elementos de uma cultura intelectual sobre extensas areas (Goody, 1979). A Europa é um mosaico de povos que néo empregam as mesmas palavras para dizer as mesmas coisas, Eles criaram diferentes paisagens, e casas e estilos urbanos variados adaptados as praticas locais. Suas roupas tradicionais, sua comida e sua bebida mudam de um lugar a outro. Mas a unidade do continente nao deixa dtividas. Em toda parte, do Atlantico ao Ural, é o texto da Biblia e dos Evangelhos e as grandes obras gregas ou romanas que alimentam as almas e os espiritos. As tradigdes judaico-cristas e o racionalismo cientifico estao presentes em todos os lugares. A transcrigao da lingua falada acrescenta-se aquela dos nimeros. Aescrita de nameros permite igualmente a difusao do poder: registro, em cada lugar, dos homens e das riquezas, cobranca de impostos. As contas tornam também possiveis as trocas que vao além do escambo: adiantamento das mercadorias e da moeda. Nao se faz mais pagamentos em espécie; as letras de cambio e os depédsitos de conta a conta os substituem. A difusdo cultural os segue. Aescrita € enfim um fator de desigualdade social. O custo do aprendizado e do suporte material do texto limitam, por muito tempo, o acesso a cultura e a escrita a um ntimero muito restrito de iniciados. Estes retiram dai seu poder: um monopdlio sobre a leitura e o comentario dos livros onde estao consignados os textos fundamentais — preceitos religiosos, cédigos de leis, receitas magicas dos curadores, contratos comerciais. Eles podem frear a difusao desta ciéncia e reserva-la auma elite: fonte e meio de hierarquia e de influéncia social. * Tour de France significa volta pela Franca, ou seja, que os aprendizes deveriam, também, para se aperfeicoar em seus oficios, fazer estdgios em diferentes pontos do pats, N.T. Transmissao da experiéncia coletiva e génese das culturas 69 | 3 2 2 S< “3 5) Pees 3 es] £8 =u) Za (Quantidade de kformacto oats ooeccumns f Recepeae | ponte —- Trosa assimétrica ++ Trace simétrica A. Ainformacao emitida é amputada por perdas que se produzem na codificacao, durante a transmissao em linha ¢ na decodificagéo. Além de uma certa distancia, nada mais € recebido. B. Na comunicagao oral, as perdas na codificagao ¢ decodificacao s4o minimas; em b! o auditor recebe quase tudo; em b’, alguns metros mais longe, ele nao recebe quase nada. C. A comunicagéo escrita reduz a nada as perdas em linha, mas amputa & codificagao e a decodificacao toda a parte da mensagem que se refere aos gestos ¢ asatitudes. O individuo educado, c!, decodifica melhor que 0 outro c?, que nao tem o habito de ler. D. Atelevisdo € quase tao eficaz como a relacao face a face; ela vence a distancia, mas continua assimétrica. As mensagens difundidas séo algumas vezes de qualidade, como em d', freqientemente pobres como em d. Figura 3-1 A teoria da comunicacao. 70 Cultura, vida social e dominio do espaco Os membros das sociedades onde reina exclusivamente a oralidade tém todos o mesmo acesso a cultura. Com 0 aparecimento da escrita, a situagao muda: as culturas populares daqueles que continuam a ser unicamente formados pelo gesto e pela palavra, opdem-se os conhecimentos transmitidos por escrito dominados pelas elites (fig. 3-2). Um dualismo profundo caracteriza, assim, todas as sociedades histéricas. sent est (cain een Ly wat Figura 3-2. Universidades e colégios de medicina no século XVIII. O acesso &s formas cruditas de conhecimento € um privilégio urbano. Os colégios de medicina, que respondem a necessidades praticas, s40 mais numerosos. Existem zonas desfavorecidas, Macigo central e Bretanha em particular, Pierre Goubert e Daniel Roche, Les Francais ¢ Ancien Régime (Os franceses e o antigo regime), tomo 2, Culture et Société, Paris, Armand Collin, 1984, p.216. Transmissao da experiéncia coletiva e génese das culturas 71 0 100 200 300 400 km Figura 3-3 Os autores literdrios na Franca de 1750 a 1784. As elites do final do antigo regime provém da Franca pré-desenvolvida e instruida do norte, doleste e do sudeste (Languedoc e Provence). As grandes cidades, Lyon, Toulouse ou Bordeaux, estéo bem representadas, mas menos que Orleans, Dijon ou Bensancon. Dominique, Julia et alii, Atlas de la Révolution Francaise (Atlas da Revolugao Francesa), vol. 2, Lenseignement (O ensino), 1760-1815, Paris, EHESS, 1987, p.13. O papel feito dechiffon é conhecido na China desde a Antigitidade, ealmprensa com caracteres méveis é praticada na €poca T'ang (séculos VII-X). Estas invengGes s4o filtradas pouco a pouco na Europa a partir do século XIII. Fez-se necessdrio esperar os aperfeigoamentos trazidos a 72° Cultura, vida social e dominio do espaco qualidade do papel, a escrita e aos caracteres de metal para que aimprensa multiplicasse os livros na Europa a partit dos anos 1460, Foram necessarios muitos séculos para que 0 conjunto dos pequenos europeus fosse a escola: todos os cidadaos de uma democracia devem saber ler! Hoje, a maior parte dos pajses fazem grandes esforgos para que a maioria de suas criangas sejam escolarizadas, mas a alfabetizagéo dos mais velhos permanece freqientemente fragil. De acordo com as enquetes da UNESCO, mais de 40% dos maiores de 15 anos nao sabem nem ler nem escrever na maior parte dos paises da Africa ou da Asia. Isto quer dizer que uma ruptura entre as geragdes vern-se produzindo. A cultura familiar tradicional dos mais velhos entra em concorréncia com aquela que resulta da alfabetizagéo de uma parte crescente da juventude. A quebra é tanto maior na medida em que muitas linguas nao dispdem de sistemas de escrita tradicionais nem de publicagées numerosas e diversificadas, a despeito dos esforgos de eruditos lingitistas para criar uma transcricao alfabética de suas linguas vernaculares. O acesso a escrita imp6e, pois, freqlientemente, a juventude do Terceiro Mundo, 0 esforgo de assimilar uma lingua que veicula uma cultura rica, mas totalmente estrangeira. Uma biblioteca nao é um simples conservatorio, uma mem6ria morta. Ler permite viajar no espaco, conhecer outras maneiras de ver e de dizer, outras idéias. Ler e escrever sao atividades inquietantes, as vezes subversivas. A intelligentsia ameaga o poder e prepara a revolugéo cultural. Falando de difusao do saber, Paul-Louis Courier escrevia: “Desta época datarn as preocupagGes das pessoas, dos cortes4os” (citado por Stendhal). 2.3 O desenho e as artes plasticas Certas formas muito antigas de desenho anunciam a escrita. Os pictogramas, hieréglifos e ideogramas egipcios ou chineses representam coisas ou agdes de maneira muito esquemitica antes que a escrita fenicia e seus derivados atinjam a pura abstragdo dos signos alfabéticos. Mas o desenho figurativo e sua expressao plastica no baixo-relevo e a escultura sao os unicos capazes de exprimir uma mensagem compreendida por todos. Os desenhistas e os escultores chegam a apreender ea fixar a corrida desordenada dos animais selvagens sobre as paredes de uma gruta, ou a fazer aparecer os deuses ¢ os herdis, e o mundo ideal da transcendéncia. Os arquitetos e todos aqueles que decoram os paldcios e os templos, que elevam as estatuas e ornam as

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