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{ : i i i i i A metafisica da modernidade fi at (O retio de Sao Joaquim entre os pastores Giotto (1266-1377) Igreja de S50 Francisco ste Assis Ila Observe as imagens. 0 mosaico bizantino data do século VI, enquanto o afresco de Giotto é do comego do século XIV. Representam, portanto, dois momentos histéricos diferentes. ‘No mosaico bizantino, o imperador Justiniano esta no centro e é a figura maior do seu séquito. A rigider e a imobilidade da representagéo ndo decorrem da inabilidade do artista, mas da maneira pela qual se expressa a severa hierarquia de c\asees, estabelecida pela ‘organizagao social teocritica do Império Romano do Oriente, Por outta lado, Giotto, primeiro mestre do novo humanismo pré- -renascentista, rompeu com 0 estilo linear da era bizantina e quebrou a rigidez da representagao. A cena situa-se emt uma paisagem terrena, com arvores, pedras, animais; as figuras humanas sugerem “movimento”, so expressivas; hé o esforgo do pintor para superar a bidimensionalidade, até entio caracteristica da pintura medieval. O contraste entre as duas obras representa as mudangas na mentalidade que iria vigorar no Renascimento e na Idade Moderna. Vocé saberia explicar que mudangas so essas? 167 Ea Unidade 3 As mudangas na modernidade Chamamos modernidade a0 perfodo que se esboca no Renascimento, desenvolve-se na Idade Moderna e atinge sett auge na llustragdo, no sécu- lo XVIIL O paradigma de racionalidade que entao Se delineia é 0 de uma razio que, liberta de crengas superstigdes, funda-se na propria subjetividade e ‘no mais na autoridade, seja do poder politico abso- luto, seja da religio. De fato, estava sendo gestado um novo periodo da histéria ocidental, com mudangas em ampto espectro: sociais, politicas, morais, literérias, artis- ticas, cientfficas, religiosas e também filos6ficas. A contraposigao ao pensamento medieval estimulou a recuperaco da cultura greco-latina, agora sem a intermediagdo da religido, o que denotava @ laici- zago do pensamento: se antes 0 foco da reflexio era a teologia, na modernidade prevalece a visio antropocéntrica. O século XVII representa, por- tanto, a culminagdo de um proceszo que modifi cou a imagem do préprio ser humano e do mundo que o cerca. Cuxaas Algumas das mudancas ocorridas no Renas- cimento e na Idade Moderna foram: as Grandes Navegasdes 2 0 descobrimento do Novo Mundo: a revolugae comercial © a implantacao do cap! talismo, com a ascensdo da burguesia, a for- macde das monarqulas nacionais; 2 Rerorma protestante; as novas cléncies da fisica e da astronomia. O que vemos afirmar-se na modernidade é una caracteristica importante do pensamento: 0 racio- nalismo, a confianga no poder da razio. F uma das express6es mais claras desse racionalismo é 0 inte- resse pelo método. £ verdade que 0 método sem- pre foi objeto de discussao na flosofia, mas nunca ‘coma intensidade ea prioridade que Ihe dedicaram 08 fildsofos do século XVII, Sob esse aspecto, mere- cem destague na fllosofia as reflexdes de Descartes, Bacon, Locke e, no ambito da ciéncia, de Galileu, Kepler e Newton, 0 debate culminow na critica da razdo levada a feito por Kant no século XVII. Desde ento inten- sificou-se, quando diversas correntes filos6ficas passaram a explicar a relagdo entre o sujeito que conhece € 0 objeto conhecido, ou seja, a teoria do conhecimento, Oconhecimento BA questao do método Arevolugio cientifica quebrouo modelo deinte- ligibilidade do aristotelismo e provacot 0 receio de novos enganos. Para evitar 0 erro, a principal indagagiio do pensamento moderno tornou-se a questdo do método, que envolveu nao s6 a revi- silo da metafisica, mas sobretudo 0 problema do conhecimento, ‘Até entdo os filésofos partiam do problema do ser, mas na Idade Moderna voltam-se para as questées do conhecer. Enquanto no pensamento antigo e medieval a realidade do objeto ea capa cidade humana de conhecer no eram questio- nadas (exceto no ceticismo), na Idade Moderna 0 foco é desviado para a “conscincia da cons- ciéncia”. Antes perguntava-se: “Existe alguma coisa?"; “Isto que existe, o que é?". Na moder- nidade o problema no é saber se as coisas sii, mas se nds podemos eventualmente conhect- Jas, Portanto, as perguntas so outras: “O que é possivel conhecer?"; “Qual é 0 critério de certeza para saber se hé adequacdo entre o pensamento @ 0 objeto?”. Das questdes epistemoldgicas, isto é, relativas ao conhecimento, deriva a énfase que marcard a filosofia daf por diante. Na Idade Moderna, por- tanto, o polo de atencio é invertido: volta-se para © sujeito que conhece. ‘As solugdes apresentadas a esse problema deram origem a duas correntes filoséfieas, uma com énfase na razio, outra nos sentidos. - Oracionalismo engiobaas doutrinasqueentz- tizam 0 papel da razdo no processo do conheci- mento. Na Idade Moderna destacam-se como racionalistas: René Descartes — seu principal representante —, Espinosa e Leibniz. +O empitisme é a tendéncia filosdfica que enfa- tiza 0 papel de experiéncia senaivel no pro- cesso do conhecimento. Destacam-se no pe- riodo moderno: Francis Bacon, John Locke, David Hume e George Berkeley. —=—_— Empirismo. Do grego empeiria, experiencia’. adigma. Modelo, padro; conjunto de teovias, tenicas¢ valotes de uma determinada Gpoca e ‘que, de tempos em tempos, entram em crise. # i 2 rea pon Maar 80 © O racionalismo cartesiano: a duvida metédica Descartes & considerado 0 “pai da flosofia moderna’, porque, ao tomar 2 consciéneia como ponto de partida, abriu caminho para a discus. so sobre ciéncia e ética, sobretudo ao enfati- Zar a capatidade bumans de construir 0 préprio conhecimento. Ca René Descartes (1596-1650) & 2 também conhecido pelo nome ‘ latinode Cartesius,porsso seu. Pensamento édito"cartesiano’ e este muito jovem, 0 flésofo interessou-se por matematica, ‘geomettia e algebra. Entre 0 estudos que desenvolven, e330 ‘a geometria analtica eas cha- rmadas coordenadas cartesia~ as. Conhecedor da citncia de tc eag seu tempo, Descartes crticou 9 ‘teducagao que teve com os jesuitas. ivew em um periodo conturbado por temor da Inquisicao aps ‘acondenagao de Galley, aceitouoconvitedarainha istia para morar na Sula, onde veio a falecer, ‘alvez devido 20 rigoroso inverno.Escreveu Discurso do método, Meditagdes metafisicas, Regras para a Uiregio do esprit, atado do mundo, Prinpios de ilosofia, ratado das paixes da alma, além de int merascartas, © propésito inieial de Descartes fot encontrar um método to seguro que o conduzisse & verdade indubitével, Procura-o no ideal matematico, isto & em uma ciéneia que seja uma mathesis universalis (cnatemitica universal), o que ndo significa aplicara ‘matemética no conhecimento do mundo, mas usar © tipo de conhecimento que ¢ peculiar matem: tica. Como sabemos, esse conhecimento é inteira- mente dominado pela inteligéncia — e nao pelos sentidos — e paseado na ordem ena medida, o que the permite estabelecer cadeias de razbes, pare deduzis wma coisa de outra. Para tanto, Descartes estabelece quatro regras: - daevidéneia: acolher apenas 0 que aparece a0 espirito como idefa clara e distinta; + da anélise: dividir cada dificuldade em parcelas _menores para resolvé-las por partes: +da ordem: conduzir por ordem os pensamen- tos, comegando pelos objetos mais simples e mais faceis de conhecer para sé depois lan- ‘gat-se aos mais composts, + da enumeragao: fazer revises gerais para ter certeza de que nada foi omitido. ‘Vejamos como esas regras sao aplicadas, a0 fandamentar sua filosofia. Descartes parte em busca de uma verdade pri- meira que ndo possa ser posta em dtivida. Comeca duvidando de tudo: do testemunho dos sentidos, das afirmacdes do senso comum, dos argumentos da autoridade, das informagées da consciéncia, das verdades deduzidas pelo raciocinio, da reali- dade do mundo exterior e da realidade de sen prs- prio corpo. ‘Trata-se da divida metédica, porque éessadtivida que o impele a indagar se no restaria algo que fosse inteiramente indubitdvel. Por isso Descartes no é um filosofo cético: ele busca uma verdade, is i = I Homem travian. leonardo davine, 1490. Esse desenho de Leonardo da Vinci tomou-se Jamoso por ressaltar as proporgdes maternaticas a simetria do corpo humano encaixado dentro de um quadrado e de um citculo: quando de eras juntas e bragos em crit, pés ¢ dedas tocam 0s limites do quadrado; com pernas afasiadas e bragos etguides, tocara as linhas do circulo. A imagem chama-se Homem vitruviano ‘poxque anteriormente Vitnivio —um arquiteto romano do século IC. —teria tentado sem ‘sucesso identificar essa proporcio. Que relagéo voc’ percebe entre o rigor do econo de Leonardo da Vinci e 0 da filosofia de Descartes? Ha Unidad 3 > Cogito, ergo sum Descartes 86 interrompe a cadeia de diividas diante do seit préprio ser que duvida: [Jenquanta eu queria assim pensar que tudo era flo, cumpria necesariamente que eu, que pensava, ose alguma coisa. E, notando que esta ‘erdade eu pens, logo exis er 0 firme e 30 certa que todas as mais extravagantes suposicdes dos ctcos nao seriam capazes de a abalar,juguei que podia aceita-la, sem escrdiputo, como o primeira principio da filosofia que procurava." Esse “eu & puro pensamento, uma res cogituns (um ser pensante). Portanto, & como se dissesse: “existo enquanto penso’, Com essa primeins intuigio, Descartes julga estar diante de uma ideia clara e dis- ‘ita, a partir da qual seria reconstruido todo 0 saber. Cua Talvez vocé ache estranho o fato de nos referismos 20 textode Descartes, um fancts com expressoes temintim.£ que,naqueta epoca, ainda cra costume 0s intelectual se expressarem em lati, lingua considerada cute, Embora 0 conceito de ideias claras e distintas resolva alguns problemas com relagéo & verdade de parte do nosso conhecimento, nao dé garan- tia alguma de que 0 objeto pensado corresponda a uma realidade fora do pensamento. Como sair do préprio pensamento e recuperar 0 mundo do gual tinha duvidedo? Considerando as regras do método, Descartes deveria passar gradati- vamente de nogdes jé encontradas para outras igualmente indubitavels. Para ir além dessa primeira intuigéo do cogito, Descartes examina se haveria no espftito outras ideias igualmente claras e distintas. Distingue entio trés tipos de idetas: ‘as que "parece ter nascido comigo" (inatas); + as que vieram de fora (adventicias}; +as que foram “feitas ¢ inventadas por mim mesmo (facticis) a Facticio. Do latim factitius “artificial” Em Descartes, idelasinventadas pelo espirito. Ora, 0 cogito & uma ideia que nao deriva do par- ticular ~ ndo é do tipo das que "vem de fora’ for- ‘madas pela acdo dos sentidos — nem tampouco 6 semelhante as que criamos pela imaginaco. Ao contrério, jé se encontrazt 0 espirito, como fun- damento para a apreensio de outras verdades. Portanto, so ideias inatas, verdadeiras, nio sujei- tas a erro, pois vem da cazdo. Haveria outras ideias esse tipo além do cogito? Outra ideia inata é a de Deus, que veremos a soguir. D Aideia de Deus ‘Ao examinar a ideia de Deus, Descartes afirma: Feo rome de Deus entendo uma substancia infinita, eterna, imutavel, independente, oniscient. ninoteute¢ pela qual eu proprio e todas as coisas que sao (se € verdade que ha coisas que exister) foram criadas ¢ produzidas? ‘Mas se essa ideia de fato existe na mente, o que garante que represente algo real? Ou seja, Deus ‘existe de fato? Ora, a ideia de um Deus infinito faz, pensar que a infinitude repousa na ideia de um ser perfeito. Como somos imperfeitos © finitos, no podemos ter a ideta de perfei¢do e infinitude, a menos que a causa dessa ideia soja justamente Deus, que imprime em nossa mente a idefa de per~ {eigio e infinitude. Descartes formula mais uma prova da existéncia «de Deus, conhecida como prove artoligica:0 pensa~ mento desse objeto — Deus — a ideia de um ser perfeito; se um ser é perfeito, deve ter a perfeigao da existOncia, caso contnério Ihe faltaria algo para ser perfeito. Portanto, ele existe, Uma vez estabelecida, por dedugdo, a ideia inata de Deus como ser perfeito, o passo seguinte seria indagar sobre a realidade das coisas materials. ee ? conta ergo sum. Do tat, enso ago exist. Nao se entenda, porém, a conjun¢ao logo como a | canclusto de un aciocinio dedutvo Para Descartes, | trata-se de uma intuig pura pela qual o ser pen- sate € percebido. | onicente Do atm omnes uo" Serque tide sabe, COnipotente. Ser que tudo pode. DESCARTES, René Discurso do méfod, So Paul: Abit Cultural, 197, p. 4, ® dem. p. 115 (0 conhecimento : i resis pti tC Net resale oi een hehe Guaaos © termo ontologia vem do grego ontos, “ser” Apyova crtesana da existéndla de Deus €ontol- fen justamente porque busca provar ser de Deus. O argumento ontolégico foi usado anteriormente por Anselmo de Aosta (ee XI,fidsofae tesogo medieval. Retomado por Descartes, o argumento folerticad porkant, que oinverteu:s6poderiamas afrmarqueum ser perteto se eleestssedefsto. [te hoje esse rgumentoé controverso. > Omundo Retomando 0 caminho percorrido, vimos que Descartes comecara duvidando da existéncia do ‘mundoedeseu propriocorpo. Chegoualevantarinclu- siveahipétesedeumdeusenganador,umgéniomaligno, que o fizesse perceber um mundo inexistente. E E BB ag cas E Auguste 8 ‘ein, i Esta escultura, universalmente usada para representar a reflexio filosofica, exige, ela mesma, nossa reflexdo: para Descartes, seria 0 ‘momento primeiro de introspecgo puramente racional, na busca das ideias claras e distintas. E vocé, como interpreta a éscultura de Rodin? Considerando a certeza de que Deus existe infinitamente perfeito, podemos concluir que nao nos enganaria. A existéncia de Deus é garantia de que 08 objetos pensedos por ideiasclaras e distintas ‘so reais, Portanto, o mundo existe de fata. E, dentre as colsas do mundo, o meu préprio corpo existe. Os abjetos do mundo externo, porém, chegam & consciéncia como ideias adventicias (que tém uma realidade externa), e Descartes aplica o seu método para verificar quais dessas idetas sao cla- ras e distintas, Encontra a ideia de extensdo, uma propriedade essencial do mundo material. Desse ‘modo, so secundérias as propriedades como cor, sabor, peso, som, por serem subjetivas e delas no podermos ter ideias claras e distintas. ‘Ao intuir 0 cogito, Descartes j4 identificara a res cogitans (coisa pensante): a ela une a res extensa (coisa extensa), o corpo, também atributo das coisas do mundo. A extensdo, acrescenta a ideia de movi- ‘mento, que Deus injetou no mundo quando o criou. > Consequéncias do cogito No percurso realizado por Descartes, nota-se ‘uma incontestvel valorizagao da razdo, do entendi- mento, do intelecto. Como consequéncia, acentua-se o carter absoluto e universal da razéo, que, partindo do cogito, e 86 com suas préprias forgas, descobre todas as verdades possiveis. Dai a importincia de um método de pensamento, como garantia de que ‘as imagens mentais— ou representagées da razio — ccorrespondam aos objetos a que se referer, que por sna ver sto exteriores & prépria raz. Outra consequéncia do cogito é 0 dualismo psi- cafisico (ow dicotomia corpo-consciéncia), segundo 6 qual 0 ser humano é um ser duplo, composto de substancia pensante e substdncia extensa. Descartes sente dificuldade para conciliar as duas, substincias, cujo antagonismo sera objeto de debates durante os dois séculos subsequentes. De fato, 0 corpo é uma realidade fisica e fisioldgica — e, como tal, possui massa, extenso no espaco € movimento, bem como desenvolve atividades de alimentagdo, digestdo ete. —, por isso, est sujeito as leis deterministas da natureza, Por outro lado, as principais atividades da mente, como recordar, raciocinar, conhecer e querer, ndo tém extensio 1no espago nem localizagio. Nesse sentido, nio se submetem as leis fisicas, antes sio a ocasio da expresso da liberdade. Estabelecemse, portanto,dois dominios diferentes: ‘corpo, objeto de estudo da ciéncia, ea mente, objeto apenas de reflexao filosofica. Essa distingo marcard as diffculdades do desenvolvimento das chamadas ciéncias humanas a partir do final do séenle XIX. Gmiumas Sobre a relagdo corpo e alma em Descartes, con- sultar 0 capitulo 7, "Em busca da felicidade". Ha outras referencias ao seu pensamentono capitulog, "Oque podemos conhecer’ ‘Ametafisica da moderndade one GO empirismo britanico Ao contrério do racionalismo, 0 empirismo enfatiza o papel dos sentidos e da experiéncia sen- sivel no processo do conhecimento. A tendéncia empirista disseminou-se principalmente na Gra- -Bretanha. De fato, os britfnicos tinham forte tra- digo empirista, que remontava is pesquisas rea- lizadas na universidade de Oxford, no século XIIL Os frades franciscanos Robert Grosseteste e Roger Bacon jé naquela época realgavam a significagao hist6rica da ciéncia e do papel que ela poderia ddesempenhar na vida da humanidade. Desafiavam portanto a tradigaoescolistica ao seocuparem com observagdes e experimentos épticos no estudo da natureza da luz, entre outras pesquisas. Veremos agora Francis Bacon, John Locke e David Hume, expoentes do pensamento empi- rista nos séculos XVII e XVIII. » Francis Bacon: saber é poder Francis Bacon (1561-1626) foi um nobre inglés que fez carreira politica e chegou a chanceler no governo do rei Jaime I. Como filésofo, planejou ' 7 i i j { Ninfeias azuis.Claude Monet, 1916-1919, uma grande obra, Instauratio magna (A grande instauragio), de que faz parte o Novam organum (Novo drgio), que por sua vez tem o significativo subtitulo “Indicagées verdadeiras acerca da inter- pretagdo da natureza’ ‘Econhecido como severo critico dafilosofiamedie- val, por consideré-la desinteressada e contemplativa, uma vez que, de acordo como espirito da nova cién- cia moderna, Bacon aspirava a um saber instrumen- tal que possibilitasse o controle da natureza. ‘Na obra Novum organum, o termo “érgic’ éenten- dido como insérumento do pensamento. Por isso cr tica a légica aristotélica, por considerar a dedugao ‘inadequada para o progresso da ciéncia. A ela opde ‘o estudo pormenorizado da indugdo, como método mais eficiente de descoberta, insistindo na neces- sidade da experiéncia e da investigacao segundo métodos precisos. Assim diz Bacon: 0s gregos, com efeito, possuem 0 que é préprio das ctiangas: estdo sempre prontos para tagarelar, mas sho incapazes de gerar, pois a sua sabedoriaé farta ‘em palavras, mas esteril em obras.” No final do século XI e comego do século XX, os pintores impressionistas romperam com 2 arte tradicional ao pintar a0 ar livre, exprimindo a sensagio ‘visual das transparéncias do ar eda égua. E possivel relacionar © impressionismo ao empirismo, porque ao pintor interessa franspor para a tela a primeira impressio que se forma na retina quando langa seu olhar para a natureza. Sua mente é, como diriam os empiristas, uma otha em branco. As pinceladas curtas, soltas, as puras manchas de core a auséncia de contorno comrespondem as impresses sensiveis - 0 ponto de partida do conhecimento na matriz, empirista, 3 BACON, Francis. Now organ Livo I, LKXL So Paulo: Abel Cultural, 1978p. 4. (Colegio Os Pensadores). Unidade 3 Apatow Bacon inicia seu trabalho pela deniincia dos reconceitos e das nogdes falsas que dificultam a apreensio da realidade, aos quais chama de {dolos. + Os fdolos da tribo “esto fundados na pripria natureza humana, na propria tribo ou espécie humana”. Sao os preconceitos que circulam na comtnidade em que se vive. Trata-se da como- didade das verdades dadas e ndo questionadas, © que ¢ 0 contrétio do espitito cientifico, cujas hipSteses devem ser confirmadas pelos fatos. Por exemplo, é 0 caso das generalizagées da astrologia, para cle uma falsa “ciéncia’. Camm SOS Discutacomseucolegaqualssa00sprincpasprecon- ‘celts que vigoram no meio em que vocés vivem,seja ‘no pasa escola ou em seus grupos de arnizade. Esses {dolos também levam @ explicagées antro- pomérficas, 20 se atribuir & natureza caracterist cas propriamente humanas. Por exemplo, 08 anti ‘208 diziam que “a natureza tem horror ao vacuo" ou ‘ento que “bs corpos eaem porque eles tendem para baixo’. Os alquimistas identificam a natureza bruta com 0 comportamento humano ao se referir &sim- patia eA antipatia de certos fendmenos. idolo. Do latim idolum, e do grego,eidolon, que sig nifica “imagem Do pont de vista religioso, 63 imagem de uma divindade para ser cultuada, Para Bacon significa deta falsa eiluséla + 0s fdolos da caverna so 08 provenientes de cada pessoa como individuo. E completa: Cada um [.] tem uma cavema ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza;seja devido & natueza propria singular de cada um; sea devdo a ‘educagdo ou conversacio com os outros; sea pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram.* Alguns individuos observam as difereneas entre as coisas e outros as semelhangas; uns sto mais, contemplativos, outros mais praticos, e assim par dante. Bacon citao filésofo pré-socratico Herdclito, que criticava as pessoas por procurarem a ciéncia em seus pequenos mundos, e nao no mundo maior, que seria o mesmo para todos. + 0s fdolos do mercado (ou do fara) s4o os que decorrem das relagdes comerciais, nas quais as pessoas se comunicam por meio das palavras, sem perceberem que a linguagem tem um efeito perturbador, distorce a realidade e nos arrasta para imiteis controvérsias e fantasias. Por exem- plo, palavras como “sorte” ou “primeizo motor” referem-ce a coisas inexistentes. emo Antropomérfico. Do greg antrOpos, "homer", ‘emorphé,*forma’:0 que adquire forma humana Foro. Do latim forum, "praca piblica’,"mercado”. Ruinas do Férum romano (Roma},em 2000.0 forum era o centro da vida romana, onde eram tratados assuntos de interesse pubblico e privado nos estabelecimentos comercials, nos templos e nos tribunals. “BACON, Francis. Novum organum. Livro I, XL, So Paulo: Abril Cultural, 1973 p. 27. (Colegio Os Pensadores ‘A metafisica da modemidade Capi - +08 fdolos do teatro sao 0s “idolos que imigraram para o espirito dos homens por meio das diver- sas doutrinas flosdficas e também pelas regras viciosas da demonstragao’. Por isso compara os sistemas filoséficos a fébulas que poderiam ser representadas no palco. Muitas vezes essas doutrinas mesclam-se com a teologia, o saber comum ou as superstig6es arraigadas. Por isso, mais do que teorias, valeria pesquisar as leis da natureza. De formigas, aranhas e abelhas Para Bacon, apenas apés a depurago do pen- samento desses {dolos que 0 corrompem 6 que 0 método indutivo poderia ser aplicado com rigor. Nao se trata porém da indugSo aristotélica, mas de uma indugdo que se constitui como chave inter- pretativa. A indugdo baconiana visa aestabelecer leis cientificas, por isso deve proceder & enume- ragio exaustiva de manifestagdes de um fend- ‘meno, registrar suas variagdes, para entdo testar 0s resultados por meio de experiéncias. Nesse sentido, é interessante a comparagao feita por Bacon para crticar tanto os racionalistas quanto os empiristas, mostrando-se como alguém que parte dos sentidos e da experiéncia, mas vai além deles: (0s que se dedicaram as ciéncias foram ou empiricos ou dogmaticos. 0s empiicos, & maneira das formigas, acumulam e usam as provisbes; os racionalistas, a maneira das aranhas, de si mesmos cextraem 0 que Ihes serve para a tela, A abelha representa a posigdo intermediria:recolhe a ‘matéria-prima das flores do jardim e do campo e ‘com seus proprios recursos a transforma e digere umm | © ideal baconiano, segundo o qual saber é poder’, mostrou-se no século XX como uma experiéncia danosa ao se buscar progresso a qualquer custo. Converse com um colega para listar exemplos de como 0 desenvolvimento tecnolépico pode a0 ‘mesmo tempo trazer beneficios e causar riscos e danos as pessoas ¢ ao meio ambiente. A importéncia de Bacon decorre da valoriza- ‘glo da experiéncia, fundamental para o desenvol- vimento da ciéncia. Até hoje nos referimos 20 ideal baconiano para designar essa esperanca desmedida nos beneficios da ciéncia e do progresso, cujas con- sequéncias danosas comecamos a sentir no sécu- To XX, com a devastagao da natureza. ® John Locke: a tabula rasa 0 fildsofo inglés John Locke (1632-1704) elaborou sua teoria do conhecimento na obra Ensaio sobre 0 entendimento humano, que tem por objetivo saber “qual é a esséncia, qual a origem, qual o alcance do conhecimento human’ Grasaas Locke também fol importante como teérico do libe- ralismo,comoveremos no capitulo 24,"Aautonomia dda politica’ O selo deceraera uusado para lacrar documentos eem ‘seguida impriria- se o.carimbo {que identiicavao remetente. Locke usa oexempio para comparar ‘coma mente, que inicialmente é igual a uma cera fem que ainda nada fol insrito. Locke critica a doutrina das ideias inatas de Descartes, afirmando que a alma é como uma tabula rasa — tébua sem inscrigdes —. como um pedago de cera em que nao hé qualquer impres- séo, um papel em branco. Por isso o conhecimento comeca apenas a partir da experiéncia sensfvel. Se houvesse ideias inatas, as criancas j4 as teriam, além de que a ideia de Deus nao se encontra em toda parte, pois hé povos sem essa representa- ¢40 ou, pelo menos, sem a representagao de Deus como ser perfeito. BACON, Francis. Novum organum. Livro I, XCV. Sto Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 69. (Coleglo Os Pensadores) Ha Unidade 3 © conhecimento : i é a & i z i i i : i 2 : © A origem das ideias Ao investigar a origem das ideias, a contrério dos filésofos racionalistas, que privilegiam as verdades de azo -— tipicas da ligica e da matemética —, Locke preferiu o caminho psicol6gico ao indagar como se processa o conhecimento. Distingue, entéo, duas fontes possiveis para nossas ideias: a sensagdo e a reflexdo. + A sensagio, cujo estimulo é externo, resulta da modificagao feita na mente por meio dos sentidos. Locke observa que pela sensago percebemos que as coisas tém qualidades que podem produzir as ideias em nds. Essas qualidades so primérias e secundérias: ‘As qualidades primérias so objetivas, por exis- tirem realmente nas coisas: a solidez, a extensio, a configuracéo, o movimento, o repouso e o mimeo. ‘As qualidades secundérias, a0 contréio das pri- arias, variam de sujeito para sujeito e, como tais, so em parte relativas e subjetivas; sao elas cor, som, odor, sabor ete. +A reflexao, que se processa internamente, é a percepgfio que a alma tem daquilo que nela ocorre. Portanto, a reflexio fica reduzida & experiéncia interna do resultado da experién- cia externa produzida pela sensacao. ‘scores da palheta so qualidades secundarias, portanto subjetivas. JB a palheta, que é um objeto de madeira, tem as ualidades primarias e objetivas de extensao e solidez. Assim, a razo retine as ideias, as coordena, ‘compara, distingue, compée, ou seja, as ideias entram em conexio entre si. Portanto, as ideias simples que vem da sensago combinam-se entre si, formando as ideias complexas, por exemplo as ideias de identidade, existéncia, substancia, cau- salidade ete. esse sentido, Locke conclui que néo podemos ter ideias inatas, como pensara Descartes. E como ointelecto “constréi” essas ideias, ndo se pode dizer, como os antigos, que conhecemos a esséncia das coisas. Por serem formadas pelo intelecto, as ideias complexas ndo tém validade objetiva, sfo apenas nomes de que nos servimos para ordenar as coisas. Daf o seu valor prtico, e ndo cognitivo. =: Se vocd leu.com atenao o capitulo anterior no qual abordamosaquestaodos universais,podera compa ‘rata posigaosobress deias complexas de Locke com a do nominalista Guilherme de Ockam,um monge Inglés. Quals sio as semelhancas? Se o intelecto sozinho nao é capaz de inventar ideias, mas depende da experiéncia, que fornece 0 contetido do pensamento, como fica para Locke a ideia de Deus, jé que todo conhecimento passa necessariamente pelos sentidos? Para le, s6 estamos, “menos certos” com relagdo & existéncia das coisas externas, mas 0 mesmo nao ocorre quando se trata da existéncia de Deus. Por certeza intuitiva, sabe- ‘mos que 0 puro nada nao produz, um ser real; ora, se os seres reais ndo existem desde a eternidade, eles devem ter tido um comego, e o que teve um comeco deve ter sido produzido por algo. E conclui que deve existir um Ser eterno, que pode ser deno- minado Deus. Desse modo, o empirista Locke recorre a um argumento metafisico para provar a existéncia de Deus. Veremos a seguir como Hume aprofunda 0 empitismo com mais vigor e, no préximo capitulo, trataremos da ousadia de Kant para ir ds dltimas consequéncias do ponto de vista epistemoldgico. > David Hume: o habito e a crenga David Hume (1711-1776), filsofo escocés, levou mais adiante o empirismo de Francis Bacon e John Locke. Omumas 18 aprendemos sobre Hume no capitulo 9,“O que podemos conhecer?".Voltaremos a ele no capitulo 20,"Teorias éticas", ‘Armetafisica da modernidade cries Conforme a tradigéo empirista, em sua obra Tratado da natureza humane, Hume preconiza 0 método de investigacdo, que consiste na observagio ena generalizagio, Arma que conhecimento tem inicio com as percepedes individuais, que podem ser impressées ou ideias. A diferenca entre elas depende apenas da forga e da vivacidade pelas quais as per- cepgées atingem a mente. + As impressées sao as percepedes origindrias que se apresentam & consciéneia com maior vivacidade, tais como as sensagoes (ouvir, ver, sentir dor ou prazer etc.). + As ideias sio as percepgdes derivadas, cépias pélidas das impress6es e, portanto, mais fracas. ‘Nesse sentido, osentir impressdo) distingue-sedo pensar (ideia) apenas pelo grau de intensidade. Além de que a impressao & sempre anterior e a ideia dela depende. Desse modo, Hume rejeita as ideias inatas. ‘As ideias, por sua ver, podem ser complexas, quando pela imaginagdo as combinamos entre si por meio de associagées. Hume da 0 exemplo de uma montanha de ouro e de um centauro. exmarrtsnattics ‘© centauro é fruto da imaginagao humana, pois associamos 25 ideias de cavalo e de homemn ern uma sé figura. Nesta, tela de Pompeo Baton, Aqulles eo centauro Quiron (1746), o.centauro Quiron, preceptor de Aquiles, herd grego da guerra de rola, ensinao discipulo a usar arazao ea forga, Ea Unidade 3 ‘Oconhecimento ‘A imaginagéo é um feixe de percepgdes unidas por associacéo a partir da semelhanga, da con- tiguidade (no espago ou no tempo) e da relacdo de causa e efeito. No entanto, essas relagées nio podem ser observadas, pois ndo pertencem aos objetos. As relagdes so apenas modos pelos quais passamos de um objeto a outro, de um termo a outro, de uma ideia particular a outra, simples pas~ sagens externas que nos permitem associar os ter- ‘mos a partir dos principios de causalidade, seme- Thanga e contiguidade, Por exemplo, quando uma bola de bilhar choca- se com outra, que entdo se pde em movimento, niio hd nada na experiéncia que justifique denomi- nar a primeira bola como causa do movimento da segunda. Do mesmo modo, ao associarmos calor e fogo, peso e solidez ou concluirmos que 0 Sol surgiré, amanhé porque surgiu ontem e hoje. Hume nega, portanto, a validade universal do prinefpio de causalidade e da nogao de necessi- dade a ele associada. O que observamos é a suces- io de fatos ou a sequéacia de eventos e no onexo causal entre esses mesmos fatos ou eventos. £0 habito ctiado pela observagio de casos semelhan- tes que nos faz ultrapassar o dado e afirmar mais do que a experiéncia pode alcangar. A partir desses casos, supomos que o fato atual se comportard de forma andloga. © Para finalizar Neste capitulo vimos que, no século XVIL, a ques- {Go epistemolégica adquiriu um interesse central sobretudo no pensamento dos filésofos Descartes, Bacon, Locke e Hume, ao estabelecerem métodos para investigar o aleance e limites do conhecimento humano. esse modo, deu-se o confronto entre duas ten- déncias opostas: 0 racionalismo e o empirismo. Os racionalistas confiam na capacidade humana de atingir verdades universais e eternas, enquanto os, cempiristas questionam o carter absoluto da ver- dade, pois para estes 0 conhecimento parte de uma realidade em transformago constante, na qual tudo 6 relativo ao tempo, ao humano. ‘As consequéncias do confronto entre empirismo e racionalismo sero objeto das reflexdes de Kant, no século XVI. Veremos no préximo capitulo como © pensamento kantiano influenciou fortemente a filosofia do século XIX. a 5 Leitura complementar O mundo e a consciéncia “0 dualismo cartesiano € a doutrina da total separacao das substancias levam, no limite, a um estrantiamento da consciéncia em relacio a0 mundo, Mas hoje sabemos quea consciencia nio pode ser posta como ua entcade absolutamente autonoma € separada, a nao ser em termos estritamente metodol6gicos. Por isso somos levados a considerar nao apenas o problema das relacbes entre a consciéncia e o mundo, como também a questao, para nds talvez mais premente, da consciéncia me mundo, Pois 0 progresso e a obten;aa da sabedoria através do correto exercicio da razio sao inse- pardveis da consideracao da historia da humanidade, em que Descartes toca apenas ‘superficialmente. Hoje sabemos que todas as realizacoes humanas, e mestno a rela- o do homem com aquilo que eventualmente o ultrapassa € 0 transcend, passam pela mediacao da historia, que & necessariamente o nosso contexto de conhecimento edeagao. {sso nos leva‘ procurar saber, principalmente diante do desenvolvimento historico dos siltimos tempos, até que ponto 0 homem é senhor de suas proprias realizacbes. Ha elementos para acreditar que, embora os meios que o progresso técnico ecientifico Revendo o capitulo } Caiu no vestibular $B Releia a legenda das imagens que abrem o capitulo e reveja sua resposta a questo ali formulada. O aque significa, do ponto de vista do conhecismento, © contraste entre af dias representagdes? Por que nio se pode dizer que a divida de Descartes o transforma em um fildsofo cético? Sob que aspectos Locke discorda de Descarte? $V ual a principal diferenga entre o racionalismo 6 empirisma? Faga um esquema para demonstaz sua resposta }Aplicando os conceitos EB) Atribua as citagdes seguintes a Descartes ou a Locke e justifique sua resposta, a) “.. penso néo haver mais divida de que néo ha principios praticos com os quais todos os homens concordam e, pottanto, nenltum éinato.” b) "Primeito, considero haver em nés_certas nogées primitivas, as quais sio conto orig ais, sob cujo padréo formamos todos 08 nos- sos outros conhecimentos.” {G9 "A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciéncias é uma tinica: enquanto admi- amos ¢ exaltantos de modo falso os poderes da ‘mente humana, néo the buscamos auxitios ade- quados." (Francis Bacon. Novum Organum. Livro Lalorismo IX. Séo Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 20. Colegdo os Pensadores) Responda. a) 0 que Bacon critica nesse aforismo? b) Quais seriam 05 “auxilios adequatios” que deveriam ser buscados? ‘0 habito &, pois, o grande guia da vida humana. ‘£ aquele principio tinico que faz com que nossa experincia nos seja il e nos leve a esperar, no futuro, uma sequéncia de acontecimentos seme- hante as que se verificaram no passado. Sem a agdo do habito, ignorariamos completamente toda questo de fato além do que esta imediatamente ‘presente a memdria ou aos sentidos.” (David Hume. Investigagao sobre o entendimento humana. S40 ‘Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 145146.) a) Para Hume, qual & © papel do habito no conhecimento? ) Explique a relagdo entre a nogio de habito eo ceticismo de Hume. Eaewe- BB torn) tela este tecto. “Suporei, pois, que hé nao um verdadetro Deus, que & 4 soberana fonte da verdade, mas certo sgénio maligno, ndo menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indtis- tria em enganarme. Pensaret que 0 céu, 0 ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exterioves que vemos sdo apenas ilusdes e enga- ros de que ele se serve para surpreender minha credulidade. Considerarme-ei & mim mesmo absolutamente desprovido de méos, de olhos, de came, de sangue, desprovido de quaisquer senti- dos, mas dotado da falsa crenga de ter todas essas, coisas, Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; ese, par esse meio, no esté em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos esté ao met alcance suspen- der meu juizo. Eis por que cuidarei relosamente de ndo receber em minha crenca nenhuma falsi- dade, e prepararet to bem met espitito a todos os. andis desse grande enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderd imporme algo.” (Descartes. Meditagdes. Sao Paulo: Abril Cultural, 3979, p. 8889) esse trecho, 0 autor refere-se aos grandes pode- res de um suposto génio maligno. Com base na Teitura desse trecho e considerando outras ideias contidas nessa obra de Descartes, redija um texto explicando como o filésofo se mostra capaz de vvencet 0 génio maligno. ©B WELPW Segundo Francis Bacon, “sio de quatro géneT0s 0 idolos que bloqueiam a mente humana, Para melhor apresenté-os, lhes assinamos nomes, a saber Idolos da Cavern, Idolos do Foro e Idolos do Teatro“. (F Bacon. Novum Organum. Sao Paulo: ‘Nova Cultural, 1988. p. 21) Com base nos conhecimentos sobre Bacon, os ‘doles da Tio sao: 8) 08 idolos dos homens enquanto individuos. ) aqueles provenientes do intercurso e da asso- Giagdo reciproca dos individuos ) aqueles que imigraram para o espirito dos homens por meio das diversas doutrinas filoséficas. @ aquelesfundados humana. na propria natureza ame rab RENCE ONS LEARH eA SR ® eet sermotoca = Encilopédia, Do grego egkutlopaticiz,teralmente “ensino citcufar” (panoramic), por extensao, “educa- ‘20 completa’ Bem ao estilo do ideal iluminista, no centro desta ilustragao que consta do frontispicio da Enciclopédia, vemos a Verdade, envolta em intensa luz, ladeada a esquerda pela Imaginagio (a poesia), prestes a enieité-la, e & direita pela Razio (a filosofia), que lhe retira o mento. Esse gesto faz alusdo a palavia grega alétheia, “verdade”, que etimologicamente significa “no oculto", e, portanto, o que é “desvelado”, “descoberto”, “tazido a iuz" pela razio, A obra grandiosa da Enciclopédia ¢ composta de 28 volumes, sendo 17 de textos e 11 de estampas, Organizada por Denis Diderot, contou com mais de cem colaboradores, entre eles figuras de eso como Montesquieu, D'Alembert, Voltaire, Rousseau, Condorcet, D'Holbach. A obra divide-se em trés partes: Historia (Meméria), Filosofia (Razo) e Poesia Gmaginagao). A parte de filosofia inclut a ciéncia, conhecida também como “filosofia natural”. Observe que o subtitulo da obra —"Dicionario analitico de ciéncias, artes ¢ oficios" —revela o crescente ‘interesse pelas artes e pelos offcios, 0 que representa a valorizagio do artesdo e do trabalho. Nela destaca-se a esperanca depositada nos beneficios do progresso da ‘técnica e no poder da razéo de combater 0 fanatismo, a intolerancia, inclusive religiosa, a escravidao, a tortura, a guerra. Discuta com sen colega em que medida os ideais iluministas foram cumpridos — ou nao —ao longo dos séculos subsequentes, 9 Unidade 3 G9 De que trata o capitulo Areflexio que abre o capitulo nos dé a dimensio do que representou para o século XVIII e seguin- tes o movimento intelectual da Mustragao. A crenca na razdo como guia na busca da verdade acentuou © processo que vinha da modernidade, desde gue Descartes destacou o poder do sujeito de atingir 0 que era indubitavel. Veremos como as dificuldades colocadas por outros pensadores diante da pretenséo da razdo Jevaram a uma primeira revisio critica realizada por Kant. Por sua ver, j4 no século XIX, Hegel, Comte e Marx, entre outros, aprofundaram as divergén- cias abrindo novas perspectivas, sobretudo a partir do desenvolvimento tecnokégica € industrial, cujo impacto jé era inegivel. @ A Mustragao: o Século das Luzes © século XVIII & 0 periodo conhecido como Tuminismo, Século das Luzes, Tustragio ou Aufklarung (em aleméo, “Esclatecimento’). Como as designagbes sugerem, trata-se do otimismo em reorganizar 0 mundo humano por meio das luzes darazio. Desde o Renascimento desenrolava-se a luta contra o princfpio da autoridade e buscava-se 0 reconhecimento de que 0s poderes humanos por si ‘mesmos seriam capazes de orientar-se sem tutela alguma. racionalismo e 0 empirismo do sé- culo XVII deram o substrato filoséfico dessa reflexdo. A Silasofia do Huminismo também sofreu a in- fluéncia da revohugio cientifica levada a efeito or Galileu no século XVI. 0 método experimen- tal recém-descoberto teve a técnica como aliada, expediente que fez. surgirem as chamadas cién- cias modernas, Posteriormente, a ciéncia seria responsével pelo aperfeicoamento da tecnologia, ‘que provocou no ser humano o desejo de melhor conhecer a natiureza para dominé-la, Por fim, a natureza passou aser vista de maneira secularizada, desvinculada da religido. Livre de qualquer controle externo, sabendo-se capaz de procurar solugdes para seus problemas com base em prinefpios racionais, o ser humano estendeu 0 uso da razdo a todos os dom{nios: politico, econd- mico, moral e inclusive religioso. Roland Desné assim explica a exaltagio do poder hhumano nesse periodo: L.Ja seguranca do fildsofo € a seguranca do burgueés que deve asua inteligencia, a0 seu espirito de iniciativa e de previdéncia, o lugar que tem na ‘ociedade[..] A emancipagao do homem, na «qual Kant vé trac distintivo do lluminismo, 6 emancipacdo de uma classe, a burguesia, que atinge sua maioridade.” Gmamuas O século XV € 0 periodo das revolucbes burgue- 52s, Aina no final do século anterior, em 1688, a Revolugio Gloriosa na Inglaterra destronou os Stuarts absolutisase,em 1785,no eontinente eu eu,0$ Bourbons foram deposios com a Revelucso Francesa. No Novo Mundo ocorreram movimen- tos de emanciparao, come a Independencia dos Estados Unidos (1776), e, no Brasil, a Conjuracao ‘Mineira (789) e @ Conjuracio Balana (1798), com nitida influénciadosideatsuministas. Ainfluéncia do Tluminismo estendeu-se portoda ‘a Europa, principalmente na Inglaterra, na Franga ena Alemanha. © Kant: o criticismo No tempo de Kant (séc. XVIM), a ciéncia newto- niana jé estava plenamente constitufda eas ques- tes relativas ao conhecimento ainda giravam em torno da controvérsia entre racionalistas e empi- ristas. Kant estava atento as dificuldades relativas Anatureza do nosso conhecimento e debrugou-se sobre o assunto em sua obra Critica da razio para, mudando o rumo dessa discusso, Sua filosofia chamada criticismo porque, diante da pergunta “Qual ¢ 0 verdadeiro valor dos nossos conhecimentos e o que é conhecimento?”, Kant coloca a razdo em um tribunal para julgar 0 que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento néo tem fundamento. Segundo © préprio Kant, a leitura da obra de Hume o des- pertou do “sono dogmético" em que estavam mer- gulhados os fildsofos que nao se questionavam se as ideias da razdo correspondem mesmo & realidade. 1 DESNE, Roland, ctado por CHATELET, Frangois (Ong). Hlstria da floc: dei, doutrinas. v4, Rio de Janel: Zahar, sp. 74 O conhecimento mae 1 Caen 3 ' : 3 eres eh 1 ncaa Pretendia superar a dicotomia racionalismo-em- pirismo: condenou 0s empiristas (tudo que conhe- cemos vem dos sentidos) e ne comcordava com os racionalistas (tudo quanto pensamos vem de nds mesmos). ‘QUEM E? Immanuel Kant (1724- -1804)nasceu ha Prissla (Alemanha), em éinigsberg, cidade de onde nunca saiu. Era profundamentereligioso 2 levou vida metédica, dedicando-se a estudar e ensinar. Fol um dos maiores expoentes do lluminismo, ao superar orracionalisme @ ‘empiriemo.Alertado pelo ceticismo de Hume, exerni- ‘qouas possibllidades elim ‘es da faz em sua obra Critica da vaza0 pura, na ‘qual indaga sobre“o que podemos conhecer”;em Critica da razao prética trata das possibilidades do ato moral ao perguntar sobre“o que devemos fazer";em Critica dafaculdade dojuizoinvestigaos julzos estéticos,distinguindo o belo do agradavel edouttil. Defendeu sobretudo a autonomia moral do sujelto, a liberdade de pensamento e a “paz perpetua’ titulo de um texto famosoque atéhoje ‘merece atengao. Publicou também Furndamentos da metafisiea dos costumes eA religido dentro dos limites da simples razao, entre outras obras. Immanuel Kart, 5/6, autoria desconhecida > Sensibilidade e entendimento Para superar a contradigio entre racionalistas ¢ empiristas, Kant explica que 0 conhecimento é constituido de algo que recebemos de fora, da expe- rigncia (a posterior) e algo que j4 existe em nés mesmos (a priori e, portanto, anterior a qualquer experiéncia. (femora ‘A. posteriori. Do latimm posierus, posterions, “posterior +O que vem de fora éa matérie do conhecimento: nisgo concorda com os empiristas. + O que vem de nés 6 a forma do conhecimento: com os racionalistas, admite que a razio nia 6 ‘uma “folha em braneo™ (Qual é entao a diferenca entre Kant e 0s fildsofos gue o antecedem? Fo fato de que matéria e forma ‘atuam ao mesmo tempo. Para conhecet as coisas, precisamos da experiéncta sensfvel (matéria); mas essa experiencia nao seré nada se nfo for orga nizada por formas da sensibilidade e do entendi- ‘mento, que, por sua vez, sio a priori e condicdo da pripria experténcia, A sensibilidade & a faculdade receptiva, pela qual obtemos as representagdes exteriores, enquanto o centendimento é a faculdade de pensar ou produzit ‘conceitos, Em cada uma dessas faculdades, Kant identifica formas a priori As formas a priorida sensibilidade ou intui- Goes puras so 0 espago e o tempo. Ou seja, 0 espaco e 0 tempo nio existem como realidade externa, so antes formas a priori que o sujeita precisa para organizar as coisas. Dizendo de outra maneira, fore de nds esto as coisas, mas quando as percebemos “em cima’, “embaixo’, “do lado’ ow entao “antes’, “depois, “durante” & porque temas a intuigdo aprioristica do espaco e do tempo, caso contrétio nao poderfamos percebé-las. + 4s formas a priori do entendimento sio as categorias. Como o entendimento é a faculdade de julgar, de unificar as muitiplas impressées dos sentidos, as categorias funcionam como concei~ tos puros, que nao tém contetido, por serem for~ mas a priori, condi¢ao do conhecimento, Karit ‘identifica 12 categorias, entre as quais destaca~ remos trés: a substéncia, a causalidade e a exis- téncia, Quando observamos a natureza e afirma~ ‘mos que uma coisa é isto’, ou “tal coisa 6 causa de outra’, ou “isto existe’, temos, de um lado, coisas que percebemos pelos sentidos, mas, de outro, algo Ihes escapa, isto é, respectivamente as categorias de substéncia, de causalidade, de existOncia. Essas categoria ndo vem da expe- riéncia, mas sao postas pelo proprio sujeito.cog- noscente. Portanto, segundo Kant: Nenhum conhecimento em nds precede a experiencia, e todo 0 conhecimente cameca com ela. Mas embora todo 0 nosso conhecimento comece com a experiéncia, nem por isso todo ele se origina justamente da experiéncia. Pois poderia bem acontecer que mesino 0 nosso conhecimento de experiéncia seja um composto daquilo que recebertos por impressdes ¢ daquilo que nossa propria faculdade de conhecimento [.-] fornece de si mesma, [..] Tais conhecimentos Acree a metafisiea Capitulo “a Ee Unidade 3 denominam:se a prior! e distinguem-se dos empiricas, que possuem suas fontes a posterior, (ou seja, na experiencia? Qiinsamas Lembre-e de que Hume explic a causalidade pelo habito e pela crenca. Kanto refuta a0 afar que 2 causalidade € uma condiyao da experiencia © ‘que nao podia ser desvada dela. Posterormente cutis flgenoscritaram Kant aé que na década derg20 fico alemaoWernet ezenbergormulou oprincipiodeincertezo,que pd em xeque odetcri- nismoe questionaa nego de causalidade (consltar ‘capitulo 3,0 método das Cnelas da nature") ® As ideias da razao e a metafisica Com sua teoria, Kant garante a possibili- dade do conhecimento cientifico como univer- sal e necessério. No entanto, até aqui trata-se do conhecimento fenoménico, isto 6, restrito ao conhecimento dos fendmenos, que percebemos inicialmente pelos sentidos e pelo entendimento. Poderfamos, porém, conhecer a “coisa em si” (0 moumenag)? ‘G que seria a coisa em si? So as ideias da razio para as quais a experiéncia no nos dé o contetido necessirio. Nesse sentido, 0 noumenon pode ser pensado, mas nao pode ser conhecido efetiva- mente, porque, como vimos, o conhecimento humano limita-se ao campo da experiéncia. No entanto, o ser humano deseja ir além da experién- cia e nisso consiste o trabalho da razao, que inves- tiga as ideias de alma, mundo e Deus, justamente 08 objetos da metafisica. ‘Ao examinar cada uma dessas ideias, Kant se depara com as antinomias da razio pura, isto é, com atgumentos contraditérios que se opéem em tese ¢ antitese. ‘Vamos dar alguns poucos exemplos, entre outros, aque Kant recorreu: +aldeia de liberdade tanto pode ter argumentos a favor como conta (determinist0), + pode-se argumentar tanto que 0 mundo tem um inicio e é limitado ou que nfo teve inicio e 6 ilimitado; + tanto se argumenta que o mundo existe a par- tir de uma causa necesséria, que Deus, va gue ndo existe um ser absolutamente necessério que seja a causa do mundo. Kant conclui, portanto, nao ser possivel conhe- cer as coisas tais como so em si. Decorre dessa constatagao a impossibitidade do conhecimento metafisico. Devemos, portanto, nos abster de afir- ‘mar ou negar qualquer coisa a respeito dessas rea~ lidades. Trata-se de um agnoslicismo. =a, a Fenémeno. Do grego phainoménon, “aparéncia’, 0 que“aparece” para nos. ‘Noumenon. Do grego, "o que & pensado"; pat fpassado de noein, "pensar"; Kant isa 0 termo para cdes'gnar“a coisa em”,em aposigao a"fenémeno". Antinorsia, Do Brego dnt-nomia, “contradigao dae leis" ‘corto de leis" Agnosticisrr0. Do grego a, "nao", € gnosis, “conhe- cimento”. Para um agnéstico a razao é incapaz de sfimar ou negara existencia de mundo, da alma de Deus. Corn frequancia o termo ficou reduzido & Ideia de Deus ¢,nesse caso, distingue-sedoateismno, ‘que nega a existéncia de Deus. Entretanto, em outra obra, Critica da razdo pri- fica, Kant recupera as realidades da metafisica que Ahosanga kantiana 0 pensamento kantiano é conhecido como idea- lismo transcendental. & expresso “transcendental” em Kant significa aquilo que dé a condicao de pos- sibilidade da experiéncia, ou seja, o conhecimento transcendental é 0 que trata dos conceitos a priori dos objetos, e no dos objetos como tal. 7” KANE Immanuel. Critica da razdo pura. Sto Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 23. (Colegio Os Pensadores) ‘© conhecimonto peont el et oo Pt Alliberdade guizndo o powo. Eugene Delacroix, 1830. Oppriprio Kant descreveu sua filosofia critica como uma “revoluc&o copernicana’: tal como Copérnico levantaraa hip6tese de no sero Solquegiraem toro da Terra, mas o contrério, também Kant afirma que se a metafisica anterior adimitia que o nosso conhe- cimento devia regular-se pelos objetos, agora admi- timos que os objetos regulam-se pelo nosso conheci- ‘mento. Portanto, so os objetos que se adaptam ao conhecimento,e ndo 0 contrétio. Mesmo fazendo a critica do racionalismo e do cempirismo, o procedimento kantiano redundou em ‘dealismo: ainda que reconheca a experiéneia como fornecedorada matéria do conhecimento, 60 nosso espirito, gragas as estruturas a priori, que constréi a ordem do universo. Da critica feita por Kant A metafisica, na Crttica da razdo pura, surgiram duas linhas divergentes entre 0s fildsofos do século XIX: + a primeira, representada pelos materialis- {as (Feuerbach) e positivistas (Comte). Para Feuerbach, a matéria é anterior ao espiritual e © determina; posteriormente, os materialistas dialéticos Karl Marx e Friedrich Engels incor- poraram 20 materialismo de Feuerbach anogio hogeliana de dialética. Pare Comte, a ciéncia (0 saber positive) ¢ a forma mais adequada de conhecimento, daf ter reduzido o conheci- mento a descrigao dos fendmenos, ea flosofia, ‘mera sintese dos resultados das diversas cién- cias particulares. Esta tela foi pintada no ano da revolugéo que depés o rei Carlos X da Franga e representou uma inovagio sob varios aspectos. Abandonando os principios da representago académica, que preferia cenas posadas em atelié, Delacroix busca ne rua a turbuléncia de ‘um acontecimento daquele momento hist6rico. Em lugar de personagens importantes, prefere o povo andnimo, nna luta destemida, A Liberdade é representada por wma mulher que exgue a bandeira tricolor da Franga e empunha ‘um mosquete com baioneta. O menino ‘xmado simboliza a joven Republica A tela expressa diferentes niveis de tensdo: enire classes, jovens e velhos, homens e mulheres, vivos e mortos. Observe a ‘imagem com ur colega e tentem localizar algumas dessas oposigées. + a segunda, dos idealistas, que levaram As ilti- ‘mas consequéncias a capacidade que Kant atri- bbufa & razdo de impor formas a priori ao con- teido dado pelaexperiéncia. Os principals nomes foram Johann G. Fichte, Friedrich Schelling e Georg W. E. Hegel. Trataremos dos idealistas > Um novo tempo No final do século XVHife comego do século XIX ‘ocorreram significativas transformagdes. +As revolugées: a independéncia dos Estados Unidos (1776) e a Revolugio Francesa (1789) foram celebradas como conquistas das Luzes. +A implantago do Terror na Franga por Robespierre e posteriormente a instauracao do Império por Napoledo: tudo parecia contradizer oespirito do Huminismo. + Prentinciodoromantismona Alemanha (década de 1770) com 0 movimento Sturm und Drang (Ctempestade e {mpeto"), com 0 nacionalismo ea exaltacdo da natureza, do génio, do senti- mento e da fantasia, Esse foi um periode de grande produgao literéria, com destaque para Goethe e Schiller, e filosdfica, com Jacobi e Herder. Esse movimento desembocou na recuperacdo da cultura classica, no gosto pela arte e flosofia gregas, cujo equilfbrio se contrapds & impetuosidade do periodo inicial do romantismo. feet cons (0 monge d beira-mar, de Caspar David Friedrich, 1809, esse ambiente cultural surgi 0 idealismo filos6- fico,representado por Johann Gottlieb Fichte, Friedrich Schelling e Georg Hegel, sendo este iltimo o que exer- ‘ceu maior influéncia no pensamento posterior. Hegel: 0 idealismo dialético O alemao Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770- 1831) viveu a turbuléneia daqueles momentos que sacudiram a Europa e entusiasmou-se com eles. Conta-se que, ainda jovem, com 19 anos, ao lado de Schelling e Hélderlin,celebrou a Revolugdo Francesa com o plantio simbélico de uma arvore. Sua admi- raeao por Napoledo, pela capacidade humana de transformagio e pelo clogio aos movimentos poli- ticos revoluciondrios refletiu-se em sua concep¢io filos6fica de histria e em sua epistemologia. Imbufdo do espirito de sua época, fundou seu sis- tema.a partir da nogiio de liberdade do sujeito, cuja experiénciangoésolitiria, mas seencontra envolvida, pelo coletivo — instinciaessencial paraa consciéncia de si mesmo. Nesse sentido, Hegel criticou a filoso- fia transcendental de Kant por ser muito abstrata e alheia As etapas da formagio da antoconsciéncia do individuo e deste na sua cultura. Hogel escreveu iniimeras obras, entre as quais Fenomenologia do espirito, Ciéncia da idgica, Enciclopédia das ciéncias filoséficas, Introdagdo d histéria da filosofia e Principios da filosofia do Direite; outras resultaram das anotagdes de seus alunos na universidade de Jena, ‘A produgiio filoséfica de Hegel talvez represente 0 ‘ltimo exemplo de teoria sistemética, que forma um todo acabado cujas partes se interligam de maneira Fa Unidade 3 ‘© conhecimento pintor David Friedrich , ‘produziu iniimeras paisagens que exprimem o “sentimento do sublime”, tipico do romantismo. Nesta tela, observe a figura diminuta do monge othando 0 ‘mar, eniquanto tem a experiéncia simulténea de fascinio e terror em face do “demasiadamente grande”. 0s sentimentos provocados pela -visdo do horizonte ilimitado do ‘mar e a imensido da natureza nos colocam diante do incomensurivel, pelo qual nos demos conta de nossa pequenez e finitude. coesa. No entanto, sua vasta erudico ea transforma- ‘glo que realiza em conceitos tradicionais tomam sua filosofia de diffcil interpretagio, as vezes hermética. Conceitos como ser, ldgica, absolut e dialética assu- ‘mem sentidos radicalmente novos. Por exemplo:o set niioé o ser da metafisica tradicional, mas designa uma realidade em processo, umaestrutura dindmica. Além de que nenhum conceito é examinado por si mesmo, ‘mas sempre em relacdo ao seu contréio: ser-nada, corpo-mente, liberdade-determinismo, universal- -particular, Fstado-individuo. Ou soja, o ser est em. constante mudanga: esta é a dalética hegeliana, ins- pirada no pré-socritico Hericita, <=, ——— Dialética. Do grego diclektké, termo composto de lego, “falar e dia, “através de’ “por meto de". Entre ‘os pregos significa dislogo, a rteda dscussaa.Em Hegel, expla a mudanca pela contradirao. D A dialética Hegel introduz uma nogo nova, ade que razdo é hist6rica, ou seja, averdade é construfda no tempo. Partindo da nogdo kantiana de que a consciéncia (ovo sujeito) interfere ativamnente na construgdo da realidade, propée o que se chama filosofta do devir, do ser como processo, come movimento, como vir- -a-ser. Desse ponto de vista, 0 ser estéem constante transformagio, donde surge a necessidade de fun- dar uma nova légica que nao parta do princfpio de identidade, que é esttico, mas do principio de con- tradigéo, para dar conta da dindmica do real. A sua nova logica Hegel chama dialética. ® Hegel desenvolve, portanto, um novo concetto de histéria, também dialético:o presente é engendrado por longo e dramético processo: a hist6ria nfo é simplesmente acumulagdo e justaposigao de fatos acontecidosno tempo. Resulta de um proceso cujo motor internoé a conteadigdo dialética, que conduz, ‘20 antoconhecimento do espirito no tempo. Segundo a dialética, todas as coisas e ideias sur- ‘gem e morrem. Como diz o poeta Goethe: “Tudo 0 ‘que existe merece desaparecer”. Mas essa forca des- truidora é também a forga motriz. do processo his- térico. A ideia central 6a de que a morte é criadora, geradora, Todo ser contém em si mesmo germeda sua rufna e, portanto, de sua superar. ‘Em sua principal obra, Fenomenologia do esptrito, o termo fenamenologia remete & nogio de fenémeno ‘como aquilo que nos aparece. que se manifest, na medida em que & um objeto distinto de si, porque nele descobrimos a contradigéo, que por sua vez etd superada em um terceiro momento. Vantos exempli- ficar as trés etapas da dialética com 0 desenvolvi mento da planta, que passa pelo botio, flare fruto: + obotio: 6 afirmaca +aflor: éa contradigto, é a negagio do botio; +0 fruto: é uma categoria superior, 2 superacdo 3 i da contradigao entre botio ¢ flor. ‘Napoledo sobre o cavalo na passagem de Sao Bemardo. Jacques Louis David 1801. Hegel admirava Napcleso até que, em W807, as ttpas franeesas acamparam em frente de su casa, em Jena, na Aleman. Omineas SO E commum referi-se a tese, antitese esintese como as. ‘trésetapas da dialéticahegeliana Noentanto,0 proprio. Hegel no fee uso desses fermos, que foram introduz- dos em #837 por um comentador, Heinrich Chalybaus. ara melhor entender © processo dialético, lem- bramos que Hegel usa a palavra alema aufheben, “superar”. A riqueza do termo est em significar “suprimit’, “negar” e também “conservar’. Essa ambivaléncia € adequade para representar que, na superagdo da contradigéo, o que & negado é ao ‘mesmo tempo mantido pela dialética. Portanto, a contradigdo nao se reduz A alternativa de enuncia- dos excludentes de tipo “ou-ou". Cuaam — que sera crise da adolescEncia sendo contra: digio entre aguilo que fonos na Infancia € o que rnegamos dla? Por isso canfrontamos nossos pals seus valotes, ao mesmo tempo que esses valores fazem parte de n6s. A maturidade & que id supe- ‘ar a contradicao,a0 nos constituitmos como suji- ‘tos llwes..até que outras contradicoes surjam para serem superadas. Voc® viveu ou vive essas cntrad- es em sua adofescéncia? DE um exempio. ‘Desse modo, conhever a génese, 0 processo de constituigdo pelas mediagbes contraditérias, é conhecer o real. Por esse movimento, a razéio passa ‘por todos os graus, desde o da natureza inorginica, da natureza viva, da vida humana individual até a vida social. ‘Vejamos esse processo. Para explicar o devir, Hegel parte ndo da natu- reza, da roatéria, mas da ideia pura: +a ideia, para se desenvolver, eria um objeto oposto a si, a naturezas + a natureza é & ideia alienada, o mundo privado de consciéncia; da luta desses dois prineipios opostos surge o espirito; +0 espirito & ao mesmo tempo pensamento matéria, isto é, a ideia que toma consciéncia de si por meio da natureza. ® Oidealismo que Hegel entende por espfrito? Num sentido eral, esptrto (Geist, em alemao) é uma atividade da Consciéneia que se manifesta no temapo ese express em trés momentos distintos: + 0 esptrito subjetivo 6 0 espirito individual, ainda encerrado na sua subjetividade (como ser de ‘emogéo, desejo, imaginagao); + 0 espirito objetivo opbe-se ao espirito subjetivo: como tal, é 0 espirito exterior como expres- sfo da vontade coletiva por meio da moral, do Aireito, da politica. 0 espirito objetivo realiza-se naquilo que se chama mundo da cultara: Rertica & metafisica Capitulo 15 ce i esata de Minerva, 1880. ‘Minerva 6 a versio kina da grega Atena, deusa da razao, das artes, da literatura e da filosofa, geralmente representada com a coruja, uma ave noturna. + 0 espirito absoluto, ao superar o espltito obje- tivo, realizaa sintese final em que espirito, ter- minando 0 set trabalho, compreende-o como realizagio sua. A mais alta manifestagdo do espirito absoluto é a filosofia, saber de todos os saberes, quando o espirito atinge a absoluta autoconsciéncia, depois de ter passado pela arte ereligido Por isso, Hegel chara a flosofia de “pdssaro de ‘Minerva que chega ao anoitecer”, ou s¢ja, a critica filos6fica 6 feta ao final do trabalho realizado, Oespirito absoluto na verdade é omais complexo, porque ele 6 a totalidade ou sintese que resulta de todo o percurso anterior de autoconhecimento do espitito, Ao explicar 0 movimento geratior da realidade, Hegel desenvolve uma dialética idealista: a racions- lidade nfo é mais um modelo a se aplicar, mas & 0 proprio tecido do real e do pensamento. Na Filosofia do Direito, Hegel diz.que o mundo é a manifestagao a ideiax’g real 6racional eo racional é real". A ver- dade, nesse caso, deixa de sex um fato para ser um resultado do desenvolvimento do espitito, ‘A razdo nasce, portanto, no momento em que a consciéncia adquire “a certeza de ser toda a Tea- lidade” por meio das etapas fenomenol6gicas da ‘azo no processo dialético. E esta uma contribui- (lo fundamenta) de Hege!: a defesa de uma concep- Ho processual de tudo 0 que existe. Oconhecimento Essa maneira de pensar é um idealismo porque 08 seres humanos pensam sobre si mesmos, mas, também sobre a natureza, que inicialmente surge como um “outrs’, diferente de mim, o que supe- rado quando ela é “idealizada” pela raza, Na flosofia posterior a Hegel, tornou-se fecunda a ideia de que a razdo ¢ histérica e transforma-se a partis de conflitos e contradigdes. Como veremos, ora 08 pensadores reafirmam o caréter determi- nante da razéo e reforcam 0 idealismo, ora criticam esse idealismo. & 0 que fazem os marxistas, que enfatizam as contradigdes sociais e politicas como determinantes do proceso que provoca a mudanga da propria raz Gnasaas Voltaremos a Hegel no capitulo 25, “Liberalismo e democraca’ 5 Comte: o positivismo A Revolugdo Industrial no século XVID, expresso do poder da burguesia em expansao, demonstrou a eficécia do novo saber inaugurado pela ciéncia ‘moderna no séeulo anterior. Ciéncia e técnica tor- naram-se aliadas, provocando modificagées jamais suspeitadas. Basta lembrar que, antes da méquina a vapor, era usada apenas a energia natural (forga humana, das 4guas, dos ventos, dos animais) e, por ‘mais que tenha havido avangos nas téenicas adota- das pelos diversos povos através dos tempos, nunca um novo modo de produzir energia foi to crucial como a obtida do vapor, que s6 se tornou possivel com a Revolugéo Industrial. A exaltacdo diante dos novos saberes ¢ for- ‘mas de poder levou & concepe&o do elentificismo, que se caracteriza pela valorizagéo da ciéncia. Bla se tomnou o tinico conhecimento possivel, ¢ 0 método das ciéncias da natureza passou a ser 0 tinico vatido e que deverie, portanto, ser esten- dido a todos 08 campos de conhecimento e de ati- Vidades humanas, ‘A doutrina positivista, cujo principal represen- tante foi o francés Augusto Comte (1798-1857), nasceu nesse ambiente cientificista — que 0 pro- prio filésofo ajudeu a exacerbar. Em sua obra Curso de filosofia positiva, propds-se a examinar como ocorrew o desenvolvimento da inteligéncia humana desde os primérdios, a fim de dar as dire- trizes de como seria melhor pensar a partir do pro- gresso da ciéncia, rmbt er bcs Po PA lei dos trés estados Comte diz ter descoberto uma grande lei funda- ‘mental, segundo a qual o espfrito humano teria pas- sado por trés estados histdricos diferentes: o teol6- ico, 0 metafisico e finalmente o positive. «No estado teolégico, as explicagées dos fend- ‘menos supdem uma causalidade sobrenatural os fenémenos da natureza, a origem dos seres, ‘0s costumes so explicacis pela agdo dos denses. Tumba de Nefertarl,esposa de Ramsés Il (ig dinasta). século XII'aC. Osiris verde, deus da vida e da morte. No Egito Antiga o cuto de natureza mistura-se com Aclassificagao das ciéncias 0 determinismo cientificista do positivismo des- considerou as expressdes miticas, religiosas e meta- fisicas. E & flosofia, que papel Ihe foi reservado? Segundo Comte, cabea ela asistematizagodas cién- clas, a generalizago das mais importantes resulta~ dos da fisica, da quimica, da hist6ria natural. Comte reconhece que a matemética, pela sim- plicidade de seu objeto, constitui uma espécie de instrumento de todas as outras ciéncias e desde a Antiguidade teria atingido 0 estado positive. Elaborou entio a classificagdo das ciéncias — cinco, a0 todo: astronomia, fisica, quimica, fisiolo- gia (biologia)e “fisica social” (soctologia). Essa clas- sificagdo parte da ciéncia mais simples, mais geral € mais afastada do humano, que é @ astronomia, até a mais complexa e concreta, a sociologia, 3 CONTE, Augusto. Curso de fzsojlapoitva. So Paul: Abell Cultural 3999.9, 11 Acitica 8 metafisica Capitulo 15 Ea ® A sociologia, ciéncia soberana Comte afirmava ser 0 fundador da sociologia, por ter sido ele quem Ihe deu o nome e o esta~ tuto de cidncia. Definiu-a como fisica social, mas na verdade tomou os modelos da biologia e expli- cou a sociedade como um organismo coletivo. Entusiasmara-se pela ento recente teoria fren logica de Gall, que analisava a inteligéncia humana pela sua origem orgénica, inclusive buscando deli- mitar a localizago, no cerébro, das faculdades mentais — conhecer, sentir, querer —, sem con- siderar conceitos como “eu’, “alma, “consciéncia’, tipicos da filosofia tradicional. Inspirado por essa teoria, Comte afirmava que apenas uma elite teria capacidade de desenvolver a parte frontal do oérebro, sede da faculdade superior, ou seja, da inteligéncia e dos sentimentos morais. Concluiu pela necessidade de a maioria dos seres humanos — dominados pela afetividade e, portanto, causadores da instabilidade social — ser moldada e dirigida em nome da harmonia e da ordem social, a fim de garantir 0 “progresso dentro da ordem". Reconhece que o indivfduo, submetido & cons- cigncia coletiva, tem pouca possibilidade de inter- vengio nos fatos sociais. A ordem da sociedade 6 permanente, & imagem da invariével ordem natu- ral. A sociologia de Comte gira em torno de niicleos constantes, como a propriedade, a familia, o traba~ Iho, a patria, a religido. Para alguns intérpretes, a filosofia comteana pode ser considerada uma reagdo conservadora & Revolugao Francesa (1789).No entanto, a professora Lelita de Oliveira Benoit nao identifica seu pensa- ‘mento com o caminho contrarrevoluciondrio enca- begado por De Maistre, por exemplo, Comte no ensava em uma volta ao passado, & realeza e a0 catolicismo, a fim de conservar a ordem burguesa abalada pela revolugdo. Nao pretendia eliminar rogresso, mas desenvolver uma teoria da ordem com o progresso:ele queria participar da reconstru- do, instituindo a ordem de maneira soberana. Bessa ideia de ordem que dominou seu trabalho de sistematizacao da filosofia, levando-o a classi- ficar as ciéncias e todo o conhecimento em qua- dros fechados, estanques. Vale observar que a pala- vra ordemt significa ao mesmo tempo “arranjo’ € “mando”. £0 préprio Comte que afirma: “Nenhum grande progresso pode efetivamente se realizar se ndo tende finalmente para a evidente consolida- 80 da orden’ Ahistéria ndo émais pensada comovir-a-ser, mas como sequéncia congelada de estados definitivos. A evolugdo seria a realizacdo, no tempo, daquilo que jd existia em forma embrionéria e que se desenvol- veria até alcancat o seu ponto-final. 0 conceito de ciéncia comteano 6 0 de um saber acabado, que se mostra sob a forma de resultados e receitas. Tendo colocado a ciéncia positiva como o dpice da vida € do conhecimento humanos, Comte estabeleceu uma série de postulados aos quais a ciéncia deve- ria se conformar. O principal deles seria assegurar a marcha normal e regular da sociedade industrial. Ora, ao fazer isso, Comte trocou a teoria filoséfica do conhecimento por uma ideologia. Existe criminoso nato? Ha quem pense que sim. O médico . criminalista italiano Cesaze Lombzoso (18361909), igualmente {influenciado pela frenologia de Gall, desenvolveu uma teoria, para “identificar”, na formaglo craniana e nos tragos de fisionomia, os sinais da delinquéncia, Suas conctusées, de orientagio positivista,tiveram larga aceitagéo por um certo periodo. Teria desaparecido sua influéncia? Vocé certamente ja assistiu a telejornais de noticia policial. Na imprensa e nas conversas, sobretudo quando ooorre um crime bérbaro, é comum algumas pessoas tentarem explicar as agdes criminosas ‘com base em condicionantes psicolégicos (distirbios mentais, comportamento antissocial nato) ou fisiolégicos (biolégicos), que determinariam de modo incontrolvel aqueles atos. Qual é seu ponto de vista? Para vocé, as teorias de Lombroso para explicar o comportamento criminoso so validas ou nao? Justifigue sua zesposta. “He enocewws aT enunrraTone - ReLioTESA CIN PAD, FRANCA] Cranios de criminosos. Cesare Lombroso, 1887, ® Areligido da humanidade AA rigida construgdo tedrica de Comte culminou com a concepedo da religido positivista. Nao deixa de ser incoerente a criagéo de uma Teligiao, pois, no ccontexto do seu pensamento, o estado teoligico 0 ‘mais arcaico e infantil da humanidade. No entanto, desde seus primeiros escritos jé aparecia essa nogéo de espirituatidade, que nfo se confundia com arreli gido tradicional. Diante do poder espiritual arr nado de seu tempo, Comte via a necessidade de refuundé-lo em princfpios nfo teolégicos, por meio dacriagao de uma Igreja Positivista, principalmente para convencer o proletariado a abandonar o pro jeto revolucionério. ‘A religido do positivismo integra a sociedade dos vvivos na comunidade dos mortos, na trindade for- mada pelo Grande Ser (a humanidade), pelo Grande Feitigo (a Terra) e pelo Grande Meio (0 Universo}.Seria, areligiio da humanidade que forneceria o enquadra- ‘mento social para colocar os individuos ao abrigo das, convulsées histéricas. A religido positivista produzi- ria entiio 0 milagre da harmonia social. TED MCLOREDOK THEO Interior da igreja Positivista do Brasil. Rio de Janeiro, 2005,0 templo postivista fol canstruldo segundo orientacdes expressas de Augusto Comte. Nas Paredes laterals, 13 bustos homenageiam grandes Personalidades, responssveis pelos progressos na déncla, na industria, nas artes, na arquitetura, como ‘Moisés, Homero, Arstételes, Dante e Gutenberg. No altar principal, ha uma gintura de Clotilde de Vaux, por ‘quem Comnte se apaixonara: com uma crianga no colo, efa simboliza a humanidade. 0 positivismo no Brasil 0 positivismo exercen grande influéncia no pensamento latino-americano. Em 1876, foi fim- dada a Sociedade Positivista do Brasil e, em 1881, ‘Miguel Lemos ¢ Teixeira Mendes fundaram a Igreja ¢ Apostolado Positivista do Brasil, cujo templo se situa na cidade do Rio de Janeiro. Foram eles tam- ‘bém os idealizadores da bandeira brasileira, com o seu distico “Ordem e Progresso’ Outros representantes foram Luis Pereira Barreto e Benjamin Constant, este tiltimo militar e matemé- tico, conhecido pela participagdo atuante no movi- ‘mento politico que culminou com a proclamayao da Repiblica. Como ministro da Instrugdo (equiva lente ao da Educacio), tentou transformar a tradi- ‘cao humanistica do ensino com a introdugéo dos estudos cientfficos, Os adeptos do positivismo eram geralmente jovens da pequena burguesia comercial de cidades em crescimento, cujo anseio pela industrializagao se contrapunha aos interesses dos proprietérios de terra. Muitos positivistas eram militares, médi- cos e engenheiros, o que denotava a valorizagio do conhecimento cientifico, > A heranga positivista ‘Além da influéncia na proclamagéo da Replica, positivismo, no Brasil, repercutiu de maneira deci- siva na concepgao cientificista, a que jé nos referi- ‘mos no inicio deste tépico. Essa orientagdo marcow a epistemologia das ciéncias humanas no inicio do século XX, dando origem a sociologia de Durkheim (1858-1917), que quis fazer dela uma ciéncia objetiva, examinando os fatos sociais como “coisas”. ‘Também a psicologia teve infcio na Alemanha, no final do século XIX, como psicofisica, Seus repre- sentantes, como Wilhelm Wundt (1852-1920), eram ‘médicos voltados para o exame de questées relati- vas a percepgéo, com experiéncias controladas em laboratérios, deixando de lado questdes que néo pudessem ser observadas. QGuisaas Voltaremosa influencia de Comteno capitulo 32," Imétodo das cércias humans", Frenologia Teoria segundo a qual cada uma das faculdades mentais se localiza em uma parte do cortex cerebral.O tamanho ocupado por cada faculdade poderia ser percebido pela configuracao externa doctanio, ‘Aaitica & metafisica Capitulo 25 ‘Moradores da vila operéria na Rua do Senado. Rio de Janeiro, 1906, Moradores diante de cortigo. A literatura naturalista do século XIX exemplifica bem a tendéncia ao materialismo e ao determinismo com a separacdo entre mente ¢ corpo. ‘So comuns as descrigées de personagens como simples joguete do meio, da raga, do momento, Nos romances O muilato e O cortigo, de Aluisio Azevedo, o negro e o pobre so condicionados pelas citcunstancias, das quais ndo conseguem escapar. Marx: materialismo e dialética 03 alemies Karl Marx (1818-1888) e Friedrich Engels (1820-1895) escreveram juntos algumas obras e outras separadamente, mas sempre estive- ram um ao lado do outro por conviogdes de pensa- ‘mento e por amizade. Engels, rico industrial, muitas ‘veres acolheu Marx ¢ a familia em momentos de dificuldades financeiras. Juntos observaram queo avango técnico aumen- tara o poder humano sobre a natureza e foi res- ponsdvel por riquezas e progresso; mas, de outro lado, e contraditoriamente, trouxera a escraviza- ‘do crescente da classe operdria, cada vex mais empobrecida, Leitores de Hegel, aproveitaram dele a dialé- tica. Porém, Marx e Engels perceberam que a teo- ria hegeliana do desenvolvimento geral do espi- rito humano nao conseguia explicar a vida social. Dando sequéncia as eriticas feitas por Feuerbach a0 idealismo, Marx e Engels realizaram uma inver- sio, assentando as bases do materialismo dialético. Engels afirma que: [..Jadialética de Hegel foi colocada com a cabega para cima ou, dizendo melhor, ela, que se tinha apoiado exclusivamente sobre sua cabeca, foi de novo reposta sobre seus pés* Ou seja, enquanto para Hegel o mundo material Gaencarnagio di la “consciéncia’, para o materialismo o mundo material é anterior a0 espirito e este deriva daquele. Segundo a visio materialista, 0 movimento é a propriedade funda- ‘mental da matéria ¢ existe independentemente da consciéncia. A matéria, como dado primério, é a fonte da consciéncia, e esta é um dado secundirio, derivado, pois é reflexo da matéria. No contexto diaKttico, porém, a consciéncia humana, mesmo historicamente situada, ndo é pura passividade: 0 conhecimento das relagdes determinantes possibilita ao ser humano agir sobre o mundo, até mesmo no sentido de uma agao revolucionéria. > Materialismo histérico 0 materialism histérico 6a aplicagéo dos prin« pios do materialismo dialético ao campo da histé- ria. Como o proprio nome indica, é a explicagao da histéria a partir de fatores materiais (econémicos, técnicos). Pelo senso comum costuma-se explicar a hist6ria pela ago das grandes figuras, como César, Carlos Magno, Lufs XVI, ou das grandes ideias, como ohelenismo, o positivismo, o cristianismo, ou ainda pela intervengao divina, Marx inverte esse processo: no lugar das ideias, esto 0s fatos materiais; no lugar dos herdis, a luta de classes, ‘ENGELS, G.“Tadivig Feuerbach o fim da flosofiaclissicaalemi’. Em: MARX. Karl e ENGELS. Friedrich. Antologia loséica. Lisboa: Estampa, 1971 p. 196. EJ Unidade 3 © conhecimento Fee ance coapesai iit cartaz, provaveimente doiniciodo séeulo XX AlLei Aurea, que pis fim & escravidéo, resultou do crescente encarecimento da mao e obra escrava, das presses internas em prol de abotigdo, incluindo as revoltas e as fugas de ‘escravos, e do fortalecimento de fazendeiros do este panlista, os quais, de mentalidade mais capitalist é tinham iniciado a experigncia. ‘com a mao de obra live. Sob essa perspectiva, ‘08 motivos econdmicos tiveram maior forga na aboligao do que os ideotgicos, a0 contrério do que insinua a ilustragio. Nela o branco ‘cumprimenta 0 negro, e a expressdo “Agora sim!” demonstra um otimismo que néo se campriy, j ‘gue os exescravos nao foram adequadamente ‘ntegrados ao mercado de trabalho nem & sociedade, e lutam até hoje contra 0 preconceito e a discriminagéo. Discuta com seu colega por que esse tema foi escolhido para fazer parte eme ut ‘6pico sobre a teoria de Marx. Grasmes Consulte tambérn es capitulos 6,"Trabalho, aliena- (0.e consumo", 026,"As teorias socalistas” marsismo nao nega o herofsmo de alguns nem as ideias, mas explica a realidade a partir da estrutura material de uma determinada sociedade. A ideia 6algo secundéri, sido no sentido de ser menos importante, ‘mas sim por derivar de condigSes matetias, ou seja, asideias do direito, da literatura da flosofia, das artes ‘ou da moral estado diretamente ligadas ao modo de produugo econémico. Por exemplo: na maral medie- val avalorizago de fdelidacte do vassalo ao suserano decorre do modo de produgdo que estabelece os for- ‘es liames da hierarquia, Sema fidelidade, atelagao de produgdo na sociedade feudal estaria arruinada, Com o comércio e a indiistria nascente, que se baseava no modo de produgo capitalista, deixam de existir senhores, vassalos e seus servos. As rela- ‘Ges de trabalho estabelecidas por contratos e a idela de cidadania se sobrepdem aos valores de fide~ lidade e servidao. Portanto, segundo Marx, para estudar a socie~ dade nao se deve partir do que os individuos dizem, imaginam ou pensam, mas da identificagdo de como produzem os bens materiais necessdrios a sua vida, Analisando as forgas produtivas e as tela- ‘Gdes de produetio é que se descobre como os seres humanos produzem sua vida, suas ideias e como fazem a historia. ‘Assim dizem Marxe Engels em A ideologia alem@ Nao € a consciéncia que determina a vida, mas a vida que determina a consciéncia> E Marx, em Teses sobre Feuerbach: 05 fil6sofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; 0 que importa & transformd-lo (Oqueos dois filésofos querem nos dizer? Quendo basta teorizar, se nao partirmos da vida concreta e a ela voltarmos para transformé-la, © movimento dialético entre teoria epritica chama-se prdxis, Mas no se veja na teoria uma atividade anterior & pré- tica e quea determina nem vice-versa, uma vez que ambas encontram-se dialeticamente envolvidas. ‘Nomesmo texto Teses sobre Fewerbach (Tese Il), Marx diz: ‘Aquestao de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva nao é uma questio teérica, mas prdtica. € na praxis que o homem deve demonstrar a verdad, isto € a realidade e 0 poder, 0 cardter terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou nao realidade do pensamento isolado da Praxis € uma questdo puramente escalistica Escolastica. Com este terma, Marx ironiza a tradigao aristotéico tomista, que para ele éidealista, cantemplativa e, portanto,desligada das reals Interesses humanos, 5” MANN Karl @ ENGELS, Fledrich. A ideologiaalema Sto Paulo: Hucitee, 1964, , 37. MATOG Kat. Tess sobre Feuerbach. So Paulo: Buctoe, 1984p. 14. > Aideologia Segundo o materialismo dialético marxista, as ideias devem ser compreendidas no contexto his- térico vivido pela comunidade. No entanto, Marx vai além, mostrando que muitas vezes esse conhe- cimento aparece de maneira distorcida, como ideo- Jogia, ou seja, como conhecimento ilusério que tem por finalidade mascarar os conflitos sociais e garan- tira dominago de uma classe sobre outra, quando se vive em uma sociedade dividida em classes, com interesses antag6nicos. Para Marx, as concepgdes filoséficas, éticas, poli ticas, estéticas, religiosas da burguesia so estendi- das para o proletariado, perpetuando os valores a elas subjacentes como verdades universais. E desse modo, impedem que a classe submetida desenvolva ‘uma viséo do mundo mais universal e lute por sua autonomia, quarto estado. Giuseppe Peliza da Volpedo, 898-1901. O-titula da obra sugere que o proletariada seria o novo poder emergente. Os trés estados eram no século XIX a nobreza,0 cleroe o“tercelro estado” (a burguesia) Selevarmos as tiltimas consequéncias aideia de que, sob uma perspectiva dialética, a consciéncia nunca é cegamente determinada, pode-se concluir que caberd & classe dominada desenvolver o di curso nao ideolégico, portador de universalidade Ei Unidade 3 © conhecimento € ndo mais restrito aos interesses de uma classe dominante. E, como diré Marx, o proletariado poderé lutar inclusive pela revolugéo, entendida como transformagio radical do ser humano e da sociedade Para uma visao de conjunto No século XVIII, Kant propds superar a dicoto- mia racionalismo-empirismo, que fora a principal discussdo epistemol6gica do século anterior. Aliou as formas a priori da sensibilidade e do entendi- mento ao contetido fornecido pela experiéncia sen- sivel, mas esbarrou nas antinomias da razo que 0 impediam de conhecer as realidades metafisicas. ‘Afilosofia de Kant desembocou, no século XIX, no idealismo e no materialismo, nos quais destacamos Hegel, Comte e Marx. Hegel inovou ao perceber a realidade como um processo dialético: a razio é histérica, a verdade é construida no tempo. O pensamento, posto em movimento na histéria, desferiu um golpe na visio estética e metafisica do mundo. Para o idealismo hegeliano, mais do que um modelo a ser aplicado, a racionalidade € 0 préprio tecido do real e do pensamento. Comte procurou entender 0 novo mundo criado pelaciéncia, pela tecnologiae pelo desenvolvimento industrial. Descartou a metafisica ao reconhecer a ciéncia positiva como um saber acabado, 0 Spice da vida e do conhecimento humanos, configurando assim a concepgio cientificista que marcaria um longo perfodo. Apropriando-se da dialética e baseado em uma visio materialista do mundo, Marx reforgou a dimenséo comunitéria da vida e viu no conheci- mento uma maneira de intervir no mundo (conhe- ‘cer para transformar). Com a critica da ideologia — esse saber ilusdrio —, antecipou questdes que, no século seguinte, desencadearam a chamada “crise darazac’. Deixamos aqui de examinar o pensamento de Nietzsche, para abordé-lo na préxima parte, tal a forca iconoclasta de suas ideias e sua influéncia na filosofia do século XX. Iconoclasta. Que destrét imagens sagradas (icones) No contexto, que se ope 8 tradicao, que destréi valores constituidos. }Revendo o capitulo FB Favore um quatro comparative destacendo as principais caracteristicas do idealismo e do materialismo. {© Owais sao as formas a priori da sensibilidade ‘segundo Kant? EB} Sob cue aspecto Hegel inovou com a sua concep- qo de historia? DB Por que a doutrina de Comte é conhecida como posiivismo? $5 owe inversio Mart e Engels realizaram no con- ceito de dialética hegeliana? }Aplicando os conceitos {GB A partir de concepgdo de espago e tempo e das categorias ¢ possivel compreender como Kant tenta superar 9 racionalismo e o empirisme, Explique por qué. Hume e Kant tratam do conceito de causalidade. Em que os dots filésofos divergent? B Analise e justifique o distico “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira usando conceitos da filoso- fia positivista. $B) © texto a seguir & do flésofo francés Granger: “A raado, jonge de ser uma forma deftntivamente fra do pensamento, é uma incessante conquista. Em perpétua concorséncia com as atitudes ditas ira: cionais, ela consttui em eada época uma figura de equilibrio provisério da imaginagéo criadora, , enquanto tal, através de mil vicissitudes perma: neceri como uma das forsas mais vivas de nossa. civitizagéo." (Glles-Gaston Granger. A razio. Sé0 Paulo: Difusio Europeia do Livro, 1962. p. 12/128.) a) Identifique dois lésofos estudados no capitulo 0s quais o texto se eplica. ») Justifique sua resposta pDissertagao $0) Com base na citagao de Kant, disserte sobre a con- teibuigio do periodo iluminista para a autonomia de pensamento °O Esclarecimento [Mtuminismo] ¢ 2 saida do homem da condigio de menotidade autoim- osta. [..) Sapere aude! Tem coragem em ser- Virie de teu préprio entendimento! Este é 0 mote do Esclarecimento." (immanuel Kant. Que € Esclarecimento? Em: Danilo Marcondes. Textos biisicos de ética: de Patio a Foucault. Rio de Janeito: Jorge Zahar, 2007 p. 95.) ).Caiu no vestibular BB (WELPR) Leia o texto a seguir. “A razio humana, num determinado dominio dos seus conhecimentos, possui o singular des- tino de se ver atormentada por questées que no pode evitar, pois Ihe sdo impostas pels sua natureza, mas as quais também nao pode dar resposias por ultrapassarem completamente as suas possibilidades.” (Immanuel Kant. Critica da razdo pura. (Prefécio da primeira edigao, 1781, Lisboa: Fundagao Calouste Gulbenkian, 1994. p. 3) Com base no texto e nos conhecimentos sobre Kant, 0 dominio destas interminéveis disputas, chama-se a) experiéncia, @ metafisica, ) natureza. @) sensibilidade, ©) entendimento. (insaf PE) Marx, no Prefécio de Para a critica da eco- rnomia politica, afirma que "..na produgéo social da propria vida, 05 homens contraem relagdes determinadas, necessérias e independentes de sua vontade, relagSes de produpao estas que correspor dem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forgas produtivas materiais’. Nesse sentido, desenvolve também seu conceito de consciéncia, que define como sendo determinada: a) pela ilosofia. Assim, é 0 pensamentofiloséfico que forma a consciéncia do homem; b) pela produgdo espiritual dos homens. Assim, 6 a consciéncia que determina a produgao social da vida e ndo a produgéo social da vida que determina a consciénci ©) pela religido, Assim, é toda a ética rligiosa que determina a consciéncia humana; @) pelo ser social dos homens. Assim, é a produ- (0 social da vida que determina a consciéncia enao a consciéncia que determina a produgao social da vida; @) pelo aparetho ideolégico do Estado, Assim, & a politica, & qual se subordina a economia, a responsével pela formagio da consciéncia de sum povo.

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