Você está na página 1de 14

0$18(/0$5,$%$5%26$'8

%RFDJH
8PVRUULVRGHDPRUVpFXORVYDOH
0LOPRPHQWRVGHDPRUDHWHUQLGDGH
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

INTRODUÇÃO

Bocage é um dos maiores, mas simultaneamente um dos mais


mal conhecidos, poetas portugueses. Popularmente lembrado pelo
seu lado mais anedótico e de linguagem vulgar e pornográfica,
trata-se de uma perspectiva falsa e enganadora da grande obra que
este nosso poeta nos deixou, fruto de aproveitamentos ilícitos,
particularmente de editores sem escrúpulos, na procura de obter
lucros satisfazendo um público culturalmente indigente.
Numa vida de imensas dificuldades económicas, Bocage cedo
descobriu o seu talento, ao ponto de querer decalcar o percurso
de Camões, embarcando numa viagem ao Oriente, com expoente
em Macau e passagem pelo Brasil, terras onde deixou a sua marca
e onde continua a ser lembrado. De volta a Portugal, ingressou na
academia literária Nova Arcádia, usando o pseudónimo de Elmano
Sadino. Exibindo sempre um temperamento forte e violento, que
também se denota na sua obra, rapidamente se desentendeu com
os seus pares, com constante troca de sátiras entre eles.
A sua obra, da qual os sonetos constituem a parte mais sig-
nificativa ou mais conhecida, abrange muitos outros tipos de ver-
sos: elegias, canções, cantatas, idílios, epístolas, odes, cantos, madri-
gais, etc., demonstrando a enorme versatilidade do seu talento
além do grande conhecimento cultural de Bocage, desde os gran-
des autores latinos (Ovídio,Virgílio) até aos mais recentes auto-
res franceses (Voltaire, Racine, Rousseau), contemporâneos da sua
existência, dos quais traduziu algumas obras.
Os ares da Revolução Francesa e os escritos consequentes que
chegavam às mãos de Bocage mais cedo ou mais tarde haveriam

7
PAULO NEVES DA SILVA

de o influenciar, e, fruto disso, a grande repressão política que


existia na altura, comandada por Pina Manique, levou Bocage à
prisão devido ao seu grande poema «Pavorosa Ilusão da Eterni-
dade» («Epístola a Marília»), onde fazia um ataque feroz à reli-
gião, entre outros aspectos dos costumes sociais.
É acerca do tema do Amor que Bocage mais escreve, quase
sempre em tom dramático e muitas vezes trágico. Além deste, são
inúmeros os poemas em homenagem ou em sátira a alguém, e pon-
tuais os que focam um ou outro aspecto particular ligados à sua
vida ou a acontecimentos que presenciou. Ainda escreveu um con-
junto de fábulas morais e outro de poemas considerados como
poemas eróticos.
Como testemunho directo da personalidade de Bocage temos
a seguinte declaração de Lorde Beckford, um cronista inglês que
conviveu com ele e muito o admirava: « ...um pálido, esquisito
mancebo, o Senhor Manuel Maria, a criatura mais extravagante,
mas porventura a mais original que Deus ainda formou. Aconte-
ceu estar este mancebo num dos seus dias de bom humor e de
excentricidade, que, como sol de inverno, vinham quando menos
se esperava. Mil ditos conceituosos, mil rasgos de delirantes jovia-
lidades, mil apodos satíricos por ele incessantemente vibrados,
fizeram-nos finar de riso; quando, porém, começou a recitar algu-
mas das suas composições, nas quais, a grande profundidade de
pensamento se alia com os mais patéticos toques, senti-me como-
vido e arrebatado. Pode em verdade dizer-se que aquele estranho
e versátil carácter possui o verdadeiro segredo de encantamento,
com o qual, ao grado do seu possuidor, anima ou petrifica um audi-
tório inteiro.» Mais recente, temos o testemunho de Olavo Bilac
(1865-1918), grande poeta brasileiro, sobre Bocage: «Em Portu-
gal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois
dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o
máximo cinzelador da métrica. A plástica da língua e do metro; a
perícia do ensemblar das orações e no escandir dos versos; a riqueza
e a graça do vocabulário; o jogo sábio e às vezes inesperado das
vogais e das consoantes, dentro da harmonia da frase; a precisão
e o colorido dos epítetos; todos estes difíceis e complicados segre-
dos da arte poética, cuja raridade e beleza às vezes escapam até

8
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

aos mais cultos amadores da poesia e aos mais argutos críticos lite-
rários, e que somente os iniciados podem ver, compreender e ava-
liar; esta consciência, este gosto, esta medida, este dom de adivi-
nhação e de tacto, de que os artistas natos têm o privilégio – tudo
isto coube a Elmano, tudo isto se entreteceu no seu talento. Depois
dele, Portugal teve talvez poetas mais fortes, de surto mais alto,
de mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu nem o igua-
lou no brilho da expressão.»
A escrita de Bocage tem a fluência natural e a nítida clareza
da prosa, acrescidas, porém, de todas as seduções e de toda a
sugestividade do verso. Ainda que um poema seu possa ter sido
gerado por veementes explosões e tumultuosos conflitos interio-
res, nem por isso é quebrado o harmonioso equilíbrio entre o fundo
poder de ressonância e a imediata e grata inteligibilidade. Por todas
essas razões, faz sentido a existência deste livro de citações e pen-
samentos de Bocage, onde se captam as expressões mais carismá-
ticas e intemporais da sua obra, quer em clássicas citações, quer
em excertos de textos maiores, passando por uma inevitável colec-
ção de uma selecção temática dos seus sonetos.

9
PAULOPAULO
NEVESNEVES
DA SILVA
CITAÇÕES
DA SILVAE PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

Citações
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

ADULAÇÃO

Nenhum mérito lhe encontras


Por que o devam atender.
Que mais mérito lhe queres?
Agradar é merecer.
Epigrama satírico – Dizem que Fileno É Tosco

AMBIÇÃO

Aquele canta e ri; não se embaraça


Com essas coisas vãs que o mundo adora
Este (oh, cega ambição!) mil vezes chora
Porque não acha bem que o satisfaça.
Sonetos

AMIZADE

É da Amizade no benigno seio


Apurar a existência, os gostos dela;
Não só viver em si, viver em outrem;
Ter duas possessões, dois sofrimentos
Já no bem, já no mal, e em turvejando
A hora de pavor, que os reis não poupa,

13
PAULO NEVES DA SILVA

Ter jus de proferir com voz sumida


Ao amigo fiel, metade nossa:
«Fico existindo na existência tua.»
Epístola – Resposta ao Ilustríssimo Senhor
Sebastião Botelho

Ó serena amizade!
Tu prestas mais que Amor: seus vãos favores
São caros, são custosos.
Ode – Aos Amigos
(imitada de uns versos de Monsieur Parny)

Tu, séria Amizade,


São, divino prazer, tu só não podes
Contentar meus desejos.
Ao tropel das paixões, que lutam n’alma,
Debalde impõem silêncio
As vozes da Razão e as vozes tuas.
Ode – Aos Amigos
(imitada de uns versos de Monsieur Parny)

Puni pelo caro amigo,


Ferido de interna dor:
Singular sou na amizade,
Como singular no amor.
Trabalhos de Vida Humana

AMOR

Tu despertaste em minh’alma
A dormente simpatia,
Sentimentos que a desgraça
Quase amortecido havia.
Alegoria – A Anarda

Meus pensamentos se apuram,


Apuram-se os meus desejos

14
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

No ténue filtro celeste


De teus espontâneos beijos.
Alegoria – A Anarda

Mas, ah tirano Amor! Ou cedo ou tarde


É forçoso aos mortais sofrer teu jugo;
Amor, tu és um mal que fere a todos:
Longa exp’riência contra ti não vale,
Ou Virtude, ou Razão, só vale a Morte.
Areneu e Argira (Metamorfose Original)

Com gesto alegre teu amor exprime,


Falem teus olhos, todo o corpo fale;
Mudo lhe dize que te assombra, e pasmam
Do seu semblante a formosura e a graça.
Ora de espanto se amorteça a face,
Ora se acenda com venéreo fogo:
O mesmo efeito teus contrários fazem,
Todos o orgulho mulheril incensam.
Arte de Amar ou Preceitos e Regras Amatórias
para Agradar às Damas

Apraz a Vénus variar de forma,


Também Cupido de ser vário gosta;
Um gesto sempre doce se aborrece,
Às vezes vale muito um desagrado
Arte de Amar ou Preceitos e Regras Amatórias
para Agradar às Damas

Se por acaso lágrimas derrama,


Tu de pranto também as faces banha;
Finge ao menos secar com alvo lenço
O terno pranto, que verter não podes;
Se irritada parece, toma fogo,
Se com assombro pasma, tu te assombra.
Arte de Amar ou Preceitos e Regras Amatórias
para Agradar às Damas

15
PAULO NEVES DA SILVA

Por entre a chuva de mortais peloiros


A nua fronte enriquecer de loiros
Eu procuro, eu desejo,
Para teus mimos desfrutar sem pejo,
Pois quem deste esplendor se não guarnece,
Não é digno de ti, não te merece.
Canção – O Adeus

Amor! Amor! Teus júbilos excedem


Da loira abelha os engenhosos favos,
Mais gratos são que as flores teus sorrisos.
Gostei todos os bens que aos teus escravos
Fazem tão leve a rígida cadeia,
Tão doce a chama, que no peito ondeia.
Canção – O Ciúme

Protesto, ingrata, converter meus cultos


Em mil desprezos, irrisões e insultos.
Mas ah!, protestos vãos, baldada empresa!
Sou a amar-te obrigado;
Não é loucura o meu amor, é fado.
Canção – O Ciúme

Dos Fados no volume


Este decreto está:
– Quem for mais extremoso
Mais infeliz será. –
Cançoneta – A Armânia

Amor em sendo ditoso


Costuma ser imprudente,
E nos gestos de quem ama
Logo o vê quem o não sente.
Cançoneta – A Armia

Olinda, ama; conhece que delícias


Amor encerra, amor, alma de tudo;

16
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

Amor, que tudo alenta e que só causa


Os gostos de uma vida abreviada.
Se contra amor ditames escutaste,
Que seus efeitos pintam horrorosos,
Não dês crédito a máximas fingidas,
Que a língua exprime, e o coração reprova.
Cartas de Olinda e Alzira

Rouba a virtude acaso a paixão doce


Que beijos mil só fartam, e que só pode
Nos braços de um amante saciar-se?...
Não; amor a virtude fortifica:
Mais a piedade sobre as desventuras
Que os outros sofrem, mais a humanidade
Em nós se aumenta, quando mais amamos.
Cartas de Olinda e Alzira

Sabe, por fim, que quanto mais retardas


Tão ditosos momentos, sem gozá-los;
Quanto mais tempo perdes, ociosa,
Sem às vozes de amor ser resignada,
Tanto mais tempo tens de lastimar-te,
Por não tê-lo em amar aproveitado.
Cartas de Olinda e Alzira

O mundo para mim já tem encantos;


Sob outras cores vejo mil objectos,
Que a fantasia me pintou tristonhos.
Propício Amor abriu-me os seus tesouros,
A Natureza seus tesouros me abre.
Cartas de Olinda e Alzira

Vai sempre avante a paixão,


Buscando seu doce fim;
Os amantes são assim:
Todos fogem à razão.
Décimas sobre dísticos – A Minha Antiga Alegria

17
PAULO NEVES DA SILVA

Se amor vive além da morte,


Constância eterna hei-de ter;
Se amor dura só na vida,
Hei-de amar-te até morrer.
Décimas sobre quadras – Se Amor Vive além da Morte

Tudo escuta a sua voz,


Tudo a seu jugo é ligado;
Mas, para ser adorado,
Amor depende de nós.
Décimas sobre verso único – Amor Depende de Nós

A minha alma, sempre erguida


Numa ideia relevante,
Não imita indigno amante
Que aspira a ténue prazer:
Ou possuir-te ou morrer.
Décimas sobre verso único – És Glória da Natureza

Iremos ambos unidos


Onde nossas almas voam,
Ou onde os prazeres soam,
Ou onde soam gemidos.
Décimas sobre verso único – És Glória da Natureza

Quem a Amor pretende obstar


Transgride uma lei divina;
E o fim do mundo maquina
Quem pode deixar de amar.
Décimas sobre verso único – Quem Pode Deixar de Amar?

Mandou o Supremo Autor


Ao mundo esta paixão doce,
Para que alimento fosse
Da térrea máquina Amor.
Décimas sobre verso único – Quem Pode Deixar de Amar?

18
CITAÇÕES E PENSAMENTOS DE FERNANDO PESSOA

Da lívida suspeita e vil perjúrio,


Da traição, da inconstância e da saudade,
Do pranto e do queixume,
Do rábido ciúme,
Inferno de apurados amadores,
Falas, ó deusa injusta,
Como se fossem meus cruéis ministros,
Cruéis sequazes meus! Não consideras
Que o bando horrível de tão negros males,
Que de Júpiter mesmo azeda instantes,
Prole não é de Amor, sim dos amantes?
Drama alegórico – A Concórdia entre o Amor e a
Fortuna

Morrer é pouco, é fácil; mas ter vida


Delirando de amor, sem fruto ardendo,
É padecer mil mortes, mil infernos.
Drama heróico – Afonso Henriques ou a Conquista
de Lisboa

Que farás, coração? Que lei, que jugo


Te dispões a sofrer? O amor e a honra
Proíbe o fado meu que em ti se ajustem:
Se à honra me submeto, amor suspira;
Se para amor propendo, a honra clama.
Que trance tão cruel! Que alternativa!
Drama heróico – Afonso Henriques ou a Conquista
de Lisboa

O fero Amor, ou déspota do mundo,


Que os homens agrilhoa, impõe aos deuses,
O cruel, que entre víboras e flores
Néctar, néctar promete, e dá veneno
Aos tristes corações que mais o adoram.
Elogio – Ao Público, em Nome de Um Actor no Dia
do Seu Benefício

19
PAULO NEVES DA SILVA

Um sorriso de amor séculos vale,


Mil momentos de amor a eternidade.
Epístola – Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
Aires de Saldanha e Albuquerque

Existir sem amar! Que horror! Qu’Inferno!


Não: viva-se de amor, de amor se morra.
Epístola – Ao Senhor Joaquim Severino Ferraz
de Campos

Um virtuoso amor nunca se apaga:


O tiro de outra mão não faz emprego
Aonde a tua abriu tão doce chaga.
Epístola – Elmano a Gertrúria

Obra a mais singular da Natureza,


Erário dos seus dons, conheça o mundo,
Que és tão rara em amor, como em beleza.
Epístola – Elmano a Gertrúria

Dos risos da alegria Amor se enfeita,


E invisível prisão nos forja e lança:
É doce, é brando Amor em seu princípio;
Amor em seu progresso é agro, é duro.
Epístola – Resposta ao Ilustríssimo Senhor
Sebastião Botelho

Amar é um dever, além de um gosto,


Uma necessidade, não um crime,
Qual a impostura horríssona apregoa.
Céus não existem, não existe Inferno,
O prémio da virtude é a virtude,
É castigo do vício o próprio vício.
Epístola a Marília (Pavorosa Ilusão da Eternidade)

Tal (me diz a experiência) é o zeloso amante:


Por amor importuna, enfada a cada instante;

20

Você também pode gostar