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os co mu n ista s e a cu lt u r a p opul a r
1945 – 1950
pr êm i o a rqu i vo p ú b li co d o esta d o d o r io d e ja n eiro - 2005
r i o d e jan ei ro 2009
©2009 by Valéria Lima Guimarães
revisão
Aos companheiros do Centro Comunitário
Carmen Lucia Teixeira Jochen
de Capacitação Profissional Paulo da Portela.
projeto gráfico
Elen Ribera
A Marcelo Duarte de Almeida e Elba Lima Guimarães,
tratamento de imagem
pela razão mais sublime.
Fernando Ebert
G963
capítulo 1 - reflexões em torno da cultura popular: capítulo 4 - samba, o ópio do povo? 125
o mundo do samba como objeto de análise acadêmica 41
4.1 - Uma Tribuna Popular
1.1 - A procura das “raízes do samba” 128
44 4.2 - O samba sobe a Tribuna
1.2 - O embate ideológico: cultura erudita x cultura popular 133
50 4.3 - Um carnaval para Prestes
1.3 - Cultura popular, culturas populares 145
55 4.4 - A Tribuna sobe o morro
1.4 - A ascensão do samba como expressão maior 152
da cultura popular
57
capítulo 5 - a quarta-feira de cinzas 177
capítulo 2 - do samba marginal ao samba nacional 65 5.1 - Uma democracia relativa
177
2.1 - Um Estado Novo para o samba 5.2 - As polícias políticas e o controle da ordem política e social
65 182
2.2 - Villa-Lobos, o maestro das escolas de samba 5.3 - As polícias políticas no mundo do samba
76 186
2.3 - Do malandro ao operário 5.4 - A difícil negociação
82 195
5.5 - Outros carnavais
199
capítulo 3 - o partido comunista
à procura das camadas populares 95
6 - conclusão 203
3.1 - Intelectuais e artistas a serviço da educação política do povo
96 7 - bibliografia 229
Prefácio
11
e uma identificação desses trabalhadores com a festa e a diversão que convivia com a realidade de uma intensa e cruel repressão, ao
que haviam marcado sua identidade maior num período que pode mesmo tempo em que buscava expandir suas bases e tornar-se um
ser chamado, retrospectivamente, de pré-comunista. Daí em dian- grande partido político. Por um lado, era um partido muito sério,
te a história dos trabalhadores daria cada vez menos atenção ao preocupado com a exploração das massas, que não conseguia es-
lazer, para buscar se afirmar como uma luta séria, de reconhecidos conder seu desconforto com a alienação de pessoas que preferiam
participantes da história política do século xx brasileiro. uma festa ou um jogo de futebol a uma reunião do sindicato. Por
Já faz muito tempo que a história não é mais vista apenas como a outro, reconheciam que todo comunista tem que ir onde o povo
história da política e dos governantes. A partir dos anos 1970, uma está, e que se era na diversão, ali estariam também. O mundo da
diversidade de temas e objetos acelerou as mudanças na produção cultura – no seu sentido mais restrito de arte – poderia permitir
de historiadores, explodindo com as pretensões explicativas mais ações de conscientização, denúncias da exploração, e também uti-
tradicionais e trazendo para o campo da história assuntos até então lizar a tradição irônica e crítica do humor para falar mal dos pode-
pouco importantes ou territórios de amadores ou de outras ciências rosos. Como o povo gostava de rir, seria útil tentar uma subversão
sociais. Esse processo não se fez sem reação e sem um descontenta- pelo riso, canalizar uma prática tradicional e conferir-lhe um sig-
mento, que ainda hoje aparece diante de certos temas considerados nificado revolucionário. Essa ação dos comunistas foi particular-
irrelevantes demais. A chamada História Cultural firmou seu terri- mente significativa na conjuntura da legalidade de 1945, quando
tório, mas alguns colegas ainda parecem pensar que, de vez em quan- era importante ter muitos votos e ganhar eleições. E o Cavaleiro da
do, ela vai longe demais. Existiria uma história “séria” e uma história Esperança marchou para a Escola de Samba...
mais curiosa, apenas tolerada. Essa divisão do campo talvez oculte o O encontro de objetos se presta à ironia, a um sentimento de in-
que seria a ousadia maior: misturar os objetos, fazendo quem sabe o congruência que parece propor que se houvessem coisas importantes
que os antigos chamavam joco-sério. Falar sobre a relação dos atores na vida do partido comunista, não estariam no mundo das escolas
políticos com a diversão e o prazer pode ser muito perigoso. de samba e, se este tem importância, não é pela atuação comunista.
É essa relação perigosa e ambígua que Valéria buscou compre- Mas o encontro é carregado de possibilidades. A partir dali o pcb iria
ender, quando mergulhou em relações históricas da foice com o solidificando uma política cultural, uma apreciação do popular como
pandeiro. A maior parte da historiografia levava a crer que, a partir um valioso instrumento de crítica e mobilização. Os sambistas tam-
de 1930, os populares abandonaram a fantasia e o carnaval e entra- bém viveriam a presença da política, talvez muito menos oportunista
ram para os sindicatos, a favor ou contra Vargas. Numa primeira do que outras aproximações posteriores, marcada por uma admira-
versão, manipulados politicamente, numa mais moderna “nego- ção pelo ideal de artistas do povo. Poderiam mostrar um pouco do
ciando”, o lugar do pobre objeto da história foi se distanciando da que pensavam sobre as transformações que vivia o Brasil e refletindo
festa. Essa só era lembrada na manipulação, nos eventos populistas sobre seus heróis. Pensar nos festejos de aniversário de Luís Carlos
de Getúlio no Estádio do Vasco. Mas os pobres nunca deixaram de Prestes percorrendo escolas de samba é colocar juntos dois elementos
se divertir, de frequentar bares e carnavais, talvez até bordéis, e os bastante diversos da história brasileira – o encontro do General com
políticos sempre souberam disso e construíram uma relação com o carnavalesco parece a mistura dos capítulos de um livro de Roberto
esses espaços em busca de apoios. da Mata - mas a admiração mútua tinha muito de verdadeira.
Isso pode ser particularmente interessante na trajetória de um Foi um momento breve, um curto desfile. Uma reflexão pessi-
partido comunista, comprometido com os interesses do povo, mista poderia dizer que nessa terra tudo acaba em repressão. Os
S ão mu i tos os q u e pa rt i c i pa r a m d i r eta o u
indiretamente da preparação deste livro. A lista é interminável. Serei
sempre grata a todos vocês: minha família, amigos, professores do
ppghis do ifcs/ufrj, funcionários das bibliotecas e arquivos públi-
cos pesquisados, velhas guardas, diretores e carnavalescos dos gres
Império Serrano e Portela, portuários, dirigentes do pcb e do pc do b,
membros de escolas de samba virtuais, colecionadores de discos raros,
produtores culturais, jornalistas, artistas, pesquisadores de carnaval,
enfim, tanta gente me ajudou com pistas, comentários, sugestões, crí-
ticas, depoimentos, apoio, uma palavra amiga...
Gostaria de fazer uma referência especial ao professor Marcos
Luiz Bretas da Fonseca, meu orientador, que sempre acreditou que
essa história iria dar samba.
Ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, sem o qual este
livro não seria possível, especialmente ao seu diretor, Paulo Knauss,
pelo seu trabalho e grande empenho nesta publicação. Introdução
Aos professores Anita Leocádia Prestes, Maria Paula Araújo e Val-
ter Duarte, fundamentais na realização deste trabalho.
A Rachel Valença, João Ximenes Braga, Hiran Araújo, Beatriz
Ryff, Raquel Pomar, Virgínia Fontes, Marília Barboza, Arthur Olivei-
ra Filho, Marcos Napolitano, Ana Paula Palamartchuk e Luiz Carlos
Prestes Filho, que apostaram nessa idéia e me abriram muitas portas.
A José Carlos Rego e Paulo Mota Lima (in memorian).
a b r e-a l a s
19
como a de “brincar de bandeirantes”. Pelos terrenos baldios e quintais carnaval, nesse caso o samba, articulado a um outro grande prazer do
de nossas casas, de “arma” em punho, seguíamos eu e outros amigos de qual fiz o meu ofício: a História.
infância, todos da mesma classe, pela “mata” na deliciosa “aventura” de O resultado desse prazer e de acreditar na viabilidade acadêmica
“caçar índios” e “salvar o Brasil”. do estudo do mundo do samba, para usar o jargão corrente entre os
Sempre havia discórdia: todos queriam ser Fernão Dias e Domin- sambistas e os não-sambistas, é a materialização desta dissertação de
gos Jorge Velho, mas ninguém queria ser a “caça”. A despeito das letras mestrado, que atualiza algumas questões estudadas na monografia
de samba que também enfocavam os indígenas (sob a ótica dos bons de encerramento do curso de graduação e as amplia, trazendo novas
selvagens), o apelo dos bandeirantes, representados nos livros escola- discussões e um novo enfoque, que agora é apresentada ao leitor sob
res como belos, de feições amistosas, grande bravura e um bom cará- o título de O pcb cai no samba: relações entre política e cultura:
ter, era mais forte do que a representação do indígena, com expressões 1945-1950.
hostis... todos éramos, então, bandeirantes, à procura de um inimigo
imaginário, já que ninguém se candidatava ao posto...
Anos mais tarde, as comemorações do centenário da abolição da
escravatura, levadas para a avenida pelas escolas de samba, apontavam Muito se tem escrito a respeito do Partido Comunista Brasileiro, espe-
mais claramente para as relações entre o samba e a História. Então, no cialmente após o fim da ditadura militar e da censura, um de seus prin-
final do antigo primeiro grau, cada vez mais fazia sentido e era bem cipais braços, que, imbuída daquilo que Maria Tucci Carneiro chamou
mais agradável conhecer a História do Brasil através do carnaval. de lógica da suspeição1, dificultava o desenvolvimento de pesquisas que
Assim como assistir a um filme que abordasse temática histórica elegessem o Partido Comunista como foco de suas preocupações.
significava apreender a história tal qual ocorreu, um samba-enredo Desde então, trabalhos científicos, ensaios e livros de memórias têm
de abordagem histórica era um veículo de informação equivalente aos sido produzidos com muita freqüência, desnudando a complexa his-
manuais escolares. O discurso de ambos era muito semelhante, a ideo- tória do mais antigo partido político em atividade no Brasil, uma his-
logia também, embora ainda não pudesse percebê-la. tória marcada pela violência, repressão e, sobretudo, pela resistência,
O amadurecimento intelectual não provocou uma ruptura com responsável por manter a atuação do partido nos longos momentos
a antiga crença no valor da relação samba-história: ao contrário, re- em que fora posto na clandestinidade.
velou novas possibilidades de ver o tema, e tornou-a mais complexa, Um dos mais frutíferos debates entre historiadores e filósofos neste
deixando de ser percebida como um mero apêndice dos livros didá- final de século refere-se à necessidade premente de se fazer uma revisão
ticos, acrescido de uma poética peculiar. Cada vez mais convencida crítica de temas e autores já bastante investigados, considerando que
de que a relação samba e História é bastante fértil, desenvolvi a mo- por mais que se tenha discorrido a respeito de um assunto, ele não se
nografia O Carnaval da Vitória e Outros Carnavais: relações entre esgota em si mesmo. A cada retorno ao tema, uma nova possibilidade;
política e samba – 1945-1950, trabalho que trouxe à tona uma série a cada nova prova, um novo fato pode ser valorizado, que, ao lado de
de questões que precisavam ser investigadas e discutidas mais deta- novas possibilidades de abordagens e métodos, pode acrescentar muito
lhadamente num segundo momento. A comunicação O Carnaval mais sobre o mesmo, que, por sua vez, passa a se constituir no novo.
dos 500 anos e o ofício do historiador, apresentada na anpuh-rj,
foi uma outra experiência bastante interessante, que reforçou ainda “(...) é necessário examinar de novo. E os historiadores que pensam
mais o meu prazer em participar e estudar elementos pertinentes ao que não vale a pena retomar este ou aquele problema tradicional justa-
41
coletâneas de sambas, fotos e desfiles carnavalescos, casos e histórias mudanças percebidas no samba. Em novembro de 1999, Cabral la-
pitorescas, compêndios sobre a história do samba, como por exemplo, mentava-se no seminário Deixa de ser rei só na folia: samba, cultura e
a conhecida obra As Escolas de Samba em Desfile: Vida, Paixão e Sorte2, memória que não freqüentava mais a escola de samba Portela porque
escrita por dois importantes dirigentes de escolas de samba e promo- esta já não era mais a mesma dos anos 70, onde a comunidade partici-
tores do carnaval carioca. A Fundação Nacional de Arte – funarte pava e não se tocava o tão criticado samba da moda.
– ocupa um papel de destaque na produção de trabalhos ligados ao O referido seminário, promovido pelos centros acadêmicos de
samba, oportunizando os artistas populares e aqueles que têm alguma História da ufrj e da uerj procurava de alguma forma trazer contri-
inserção no mundo do samba, de imortalizarem a sua história e pre- buições a uma recente demanda por estudos que privilegiam a relação
servarem a sua cultura nos livros editados por essa instituição governa- música e História, mais particularmente, samba e História, que vem
mental. Citamos aqui, a título de exemplificação, as obras de Vagalume3 sendo percebida nas universidades. A extensão universitária, trazendo
e de Lúcio Rangel4. Também são conhecidas as edições bilíngües, que para a academia diversos sambistas e admiradores de samba, o diálo-
procuram contar em linhas gerais fatos interessantes do carnaval cario- go com o senso comum e o interesse provocado no público acadêmi-
ca e apresentar em fotos de dimensões consideráveis a cultura popular co, foram aspectos de grande importância que fizeram do seminário
e o Rio de Janeiro, considerado a capital do samba, na perspectiva de uma experiência muito bem sucedida. Contudo, o que nos chamou a
divulgar a cultura e a Cidade no exterior e atrair um crescente número atenção foi exatamente o tom conservador das discussões, conforme
de turistas, tendo em vista a imagem consolidada dentro e fora do Bra- apontava Cavalcanti. A tônica das discussões em torno do lugar social
sil como o país do samba, da praia, da cachaça e do futebol. do samba e do seu papel na cultura, eram as modificações pelas quais o
Os trabalhos do jornalista Sérgio Cabral, bom entendedor de sam- mundo do samba atravessara, provocando a sua descaracterização e a
ba e antigo militante do pcb, são considerados as maiores referências perda das suas raízes, uma questão bastante polêmica e recorrente nos
sobre o mundo do samba. É antiga a incursão do jornalista na literatura meios de comunicação, acentuada no período de carnaval.
a esse respeito. Responsável pela coleta de importantes depoimentos de Esse saudosismo que lamenta a perda de suposta essência, especial-
renomados sambistas para o Museu da Imagem e do Som, como Car- mente quando se fala em samba, vem informando uma série de traba-
tola, Carlos Cachaça e Ismael Silva, Cabral é o autor da obra bilíngüe lhos dentro e fora da universidade, que assumem o papel de perpetua-
As Escolas de Samba – o quê, quem, como, quando e por quê, editada dores dessas práticas “em vias de se perderem”. O discurso das “raízes”,
em 1974, e de uma nova versão, de 1996, atualizada e ampliada, que a partir das quais o samba se erigiria, é uma componente ideológica do
recebeu o título de As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. A obra, de processo de construção da identidade da nação, que encontra eco tan-
grande fôlego, valoriza menos o formato turístico, descartando o texto to no senso comum quanto nos trabalhos científicos e chega ao século
em inglês e o volume excessivo de fotografias de passistas em evolução e XXI mais contundentes do que nunca, face às incertezas típicas da
prioriza o texto, enriquecido com a utilização de diversas fontes, ainda virada do milênio e ao mal-estar surgido com a pós-modernidade6.
que a sua sistematização não tenha sido adequada. O objetivo deste capítulo é refletir sobre o significado e os usos do
Maria Laura V. de Castro Cavalcanti5 alerta para uma tendência termo cultura popular em relação ao mundo do samba, percebendo
conservadora que vem tomando lugar nos trabalhos relacionados ao como o discurso em defesa das chamadas “raízes do samba” se constrói
mundo do samba, na qual o jornalista Sérgio Cabral está incluído ao a partir de uma determinada concepção acerca da cultura popular.
deixar clara a sua simpatia para com sambistas e escolas de samba de
reconhecida tradição e ao mesmo tempo manifestar a sua aversão às
65
nove em diante, é interpretado como um dos responsáveis pela desor- da censura a todos os meios de comunicação e cultura – teatro, ci-
dem provocada no país. nema, música, atividades esportivas e recreativas, imprensa, a fim de
Para a implementação desse Estado que se anunciava Novo, e se controlar a vida cultural do país. Também era da sua competência a
considerava totalmente adverso a todo tipo de política praticado até organização de desfiles cívicos e festas de exaltação ao patriotismo,
aquele momento, recorreu-se a um recurso nada condizente com além de exposições, concertos e conferências3.
qualquer regime que se pretenda democrático: o autoritarismo. O Es- Em maio de 1938, o governo promovia diversas solenidades em
tado Novo, como se sabe, amparou-se numa ditadura, que restringiu comemoração ao cinqüentenário da Abolição. Coube ao médico Ar-
sensivelmente os parcos direitos dos cidadãos, fechou o Congresso, tur Ramos, a pedido do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Ca-
criou o sistema de intervenção federal nos estados, privou os partidos panema, elaborar a programação das festividades, que compreendiam
políticos de seu funcionamento, controlou os sindicatos e outorgou desde seminários e lançamentos de livros até um chá oferecido por des-
uma nova Constituição. cendentes da princesa Isabel a ex-escravas no Palácio do Catete, sem
A matriz ideológica que oferecia a via autoritária como única alter- deixar de lado a apresentação de canto orfeônico, regida pelo maestro
nativa para a construção de um Estado distante do que fora a Repúbli- Heitor Villa Lobos. As comemorações dos cinqüenta anos do fim da
ca Velha, com todas as suas mazelas, clientelismo, pacto oligárquico, escravatura, amplamente publicadas na imprensa em todo o país, fa-
etc., foi extraída do pensamento de alguns intelectuais radicais, como ziam parte, segundo Gomes da Cunha, de um projeto de reconstrução
Oliveira Vianna e Alberto Torres. Estes ideólogos se tornaram bastan- do passado e da memória da escravidão, recontextualizando a imagem
te influentes no pensamento social da época, conquistando a adesão do trabalho não-qualificado e da marginalização social, com vistas a
de grande parte da elite política. A base do pensamento autoritário “dignificar planos da cultura e da história de um povo, de uma raça, de
brasileiro era construir um Estado forte, centralizador e interventor, uma civilização, cujos indivíduos eram quase sempre vistos através das
que pudesse organizar a massa, bastante desarticulada em função da- lentes da desqualificação social.”4 No último país do Globo a abolir a
quilo que se considerava ser incapacidade inata dos mestiços, rumo ao escravidão, urgia repensar a condição social do negro, privado da con-
desenvolvimento nacional2. Fazia-se necessário investir na construção quista de direitos sociais, e redimensionar o seu papel, valorizando-o
ideológica do homem novo, consciencioso dos valores que o dignifica- em busca de sua incorporação à condição de trabalhador-cidadão, res-
riam, como o trabalho, a disciplina e o respeito à ordem. A paz social e ponsável pelo desenvolvimento do Brasil.
o progresso do país estavam condicionados a uma mudança de atitude O jornalista Costa Rego, que destacava na sessão cívica realizada
de cada indivíduo, que, com seu labor, contribuiria para a melhora de no Teatro Municipal os legados e contribuições do negro na cultura bra-
si e da nação, em conformidade com o anúncio de um novo tempo, sileira, escrevia no Correio da Manhã, em 14 de maio de 1938:
propício à criação de um país unido e próspero.
Para impulsionar o seu projeto político-cultural, o Estado Novo “Em todos os problemas do Brasil, que são grandes e vários, debalde
contava com dois órgãos fundamentais: o mes – Ministério da Edu- se buscará o negro como fator de inquietações. O negro não perturba a
cação e Saúde e o dip – Departamento de Imprensa e Propaganda, marcha dos negócios. A liberdade que lhe outorgamos não serviu para
que controlava todas as informações a serem veiculadas à população e torná-lo soberbo. Foi antes condição que só o tem encaminhado no seu
se esmerava em construir a imagem do Estado Novo como o governo sentido de cooperar, como legítimo brasileiro, na grandeza do país. Co-
que se preocupava com o bem-estar das massas, ressaltando a figura do memorar o cinqüentenário da Abolição é, sem dúvida, ilustrar a história
trabalhador como a mola propulsora desse projeto. O dip ocupava-se do Brasil em um dos seus pontos mais delicados, aquele precisamente em
A Gazeta de Notícias também manifestou-se contrária às iniciati- “Assistiremos de fato este ano a um carnaval brasileiro? Um da-
vas da Vizinha Faladeira: queles carnavais famosos no mundo inteiro (...) e que há muito tempo
não temos?
“Se algumas escolas de samba – aliás, a maioria – souberam guardar as – Duvido muito, diz o poeta a quem faço esta pergunta, carnavalesco
suas tradições, outras desvirtuaram por completo a sua finalidade. Vimos convicto na grande época e que hoje foge da cidade mal entra fevereiro.
escolas de samba com carros alegóricos, instrumentos de sopro, comissões a – O último grande carnaval foi o de 1934. Nesse ano começa a deca-
cavalo, etc. Isto não é mais escola de samba. Elas estão se aclimatando com as dência – do carnaval e do Brasil.
rodas da cidade e, neste andar, os ranchos vão acabar perdendo para elas”.15 – Meu Deus, digo eu rindo, mas afinal era tão importante assim?
“Delegado Chico Palha Paulatinamente esse estigma do samba dá lugar a um discurso que
Sem alma, sem coração elogia abertamente o sambista, identificado como o operário empreen-
Não quer samba nem curimba dedor que se esmera em fazer bonito pela cultura do país. Como nos
Na sua jurisdição conta Soihet, o articulista do jornal O Radical, em 1938, valorizava a
importância do grêmio carnavalesco, “composto de operários que não
Ele não prendia vacilam em se sacrificar para emprestar a maior expressão possível ao
Só batia nosso tão falado carnaval”.38 A expressão nosso...carnaval, sugere o alcan-
Um personagem de grande representatividade no mundo do sam- “Todos aqueles que olhavam o negro do morro como desordeiro,
ba e de grande importância neste trabalho é Paulo da Portela, conhe- viam-no organizado (...) Através da organização, que lhe custava sacrifí-
cido pela sua elegância e distinção. Paulo, eleito Cidadão Samba em cio, dinheiro, tempo e paciência, dominava a metrópole. Por outro lado,
193741, gozava de grande credibilidade em sua comunidade, no subúr- as instituições ou órgãos que os oprimiam e/ou perseguiam no morro
bio de Oswaldo Cruz, a quem moças de família eram confiadas. Paulo agora estavam a seu serviço: a polícia que o prendia abria alas para que a
levava as jovens à Portela, escola da qual era um dos fundadores, com escola desfilasse (...). O carnaval era, assim (...) uma festa de integração,
o consentimento de seus pais, sob a garantia de que elas seriam leva- mas, especificamente, um ato de auto-afirmação negra”.43
das para casa ao final das festas. Sua confiabilidade é derivada de uma
conduta que cobrava dos sambistas extrema polidez. Sob o lema “todo O momento de construção do samba como elemento portador
mundo de pés e pescoços ocupados”, o dirigente portelense refutava a da identidade cultural da nação, da valorização da cultura negra e de
apresentação dos foliões que estivessem trajando tamancas ou rejeitas- incorporação do trabalhador ao projeto político do Estado Novo era
sem o uso de gravata. favorável a posturas identificadas com certos valores essenciais para o
A necessidade de um comportamento exemplar, dentro dos padrões regime varguista. É o próprio Paulo da Portela quem especifica quais
burgueses e a recusa do estereótipo do malandro tinham para Paulo da são esses valores: “devemos impor a cultura e a arte da nossa raça, res-
Portela um significado extremamente importante. Acreditava, com isso, peitando e fazendo respeitar as normas e as leis. O sambista deve ser
reunir condições necessárias para um diálogo com as camadas domi- responsável e correto, cultivando a união e evitando a violência”.44
nantes, em busca da afirmação da identidade cultural de sua comuni- O líder portelense adquiria crescente prestígio entre as camadas
dade e de sua inserção na sociedade. Sob o estigma da sua localização dominantes, conquistando espaços e funcionando como um media-
geográfica, o subúrbio, da difícil condição econômica dos trabalhadores dor transcultural, na categoria cunhada por Vovelle. Era essa a sua es-
que em sua maioria passaram a habitar o bairro a partir do bota-abaixo tratégia que buscava a abertura de um canal de participação para as
de Pereira Passos, das complicadas relações do mundo do samba com camadas populares organizadas a partir do mundo do samba. Era esse
o poder público, que ainda o via com desconfiança, e da pesada heran- também um dos braços do projeto de Vargas para incorporação das
ça que a escravidão deixara para grande parte da comunidade, Paulo da camadas populares ao Estado Novo.
O cur i oso é p o r q ue os d em a is pa rt i d os
“burgueses”, “reformistas” ou “eleitorais” não têm hereges, embora este-
jam repletos de trânsfugas. Entendemos que no cerne da questão, como
o lubrificante que faz funcionar a máquina partidária, está a idéia da
interpretação correta do mundo. A superioridade do Partido vem do
fato de que ele possui o monopólio da verdade, não da verdade divina,
mas da verdade terrena. A raiz está no marxismo, a doutrina científi-
ca da interpretação da História, a chave para a compreensão de todos
os eventos. Tal como a Igreja reivindica o monopólio da interpretação
da vontade de Deus, o Partido possui o monopólio da interpretação da
História. O saber é o instrumento da dominação dentro do Partido. Por
isso, ele atrai os intelectuais, os pré-intelectuais ou sub-intelectuais (a
104 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 105
“(...) Tal ‘cultura’ [a cultura de Partido] funciona simultaneamente ao alinhamento do Partido aos interesses burgueses como instrumen-
como uma ‘tradição’ cultural reivindicada, assumida e a ser incorporada to de combate às velhas oligarquias.
por seus (novos) militantes/filiados e como conjunto de critérios polí- Com a concessão do registro de funcionamento ao Partido Comu-
tico-culturais e estéticos de valoração e seleção dos materiais culturais e nista do Brasil, a menos de um mês das eleições de dezembro de 1945,
artísticos presentes no social, e através deles, julgados pertinentes pelo que inaugurariam o período democrático17 no pós-guerra, foi garanti-
PC para serem estimulados e desenvolvidos na sociedade. Em suma, uma da ao pcb a possibilidade de lançar os seus próprios candidatos a sena-
‘cultura de Partido’ que governa a intervenção político-cultural do Parti- dor, deputado e também, em combinação com os interesses de Vargas,
do, seus dirigentes e membros”.13 lançar um candidato à presidência, o desconhecido Yedo Fiúza.
Mesmo com o pouco tempo de campanha, o Partido consegue ob-
Nessa cultura de partido de que nos fala Rubim, a atuação dos inte- ter uma expressiva votação, elegendo 1 senador, Luiz Carlos Prestes,
lectuais é imprescindível. Segundo o pensamento gramsciano, na dis- o Cavaleiro da Esperança, amparado pelo grande prestígio que ainda
puta pela hegemonia, são os intelectuais que “dão homogeneidade e possuía entre o povo, e 14 deputados federais.18 Ainda que tivesse sido
consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas derrotado à presidência da República, Yedo Fiúza alcançou um gran-
também no social e político”14 Quanto às classes dominadas, compete de feito para o pcb, obtendo 500.000 votos, cerca de 10% dos votos
aos intelectuais orgânicos articular as forças emergentes e lutar por válidos. O Partido conquistaria daí em diante uma popularidade cada
uma nova ordem social.15 Mesmo antes da chegada das idéias de Gra- vez maior19, o que lhe garantiu, nas eleições para prefeitos e vereadores
msci ao Brasil, nos idos dos anos 1960, foi de grande importância a em 1947, um significativo sucesso, tornando-se a maior bancada em
participação dos intelectuais no Partido Comunista no papel de orga- vários estados.
nizadores do proletariado.16 A participação dos comunistas na elaboração da nova Carta Cons-
titucional foi extremamente limitada. Giovannetti Netto chama a
atenção para uma tendência no Ocidente de marginalização sistemá-
tica ou contenção dos comunistas na vida política em todo o mundo
3 . 2 – a ba n ca da co mu n ista e a defes a da no período pós-guerra.20 Os 15 integrantes da bancada comunista
cu lt u r a na C o n st i t ui n t e de 1946 procuravam um espaço de atuação numa Assembléia conservadora,
composta por mais de 300 constituintes representando as legendas do
A famosa Conferência da Mantiqueira, em agosto de 1943, represen- psd, ptb, pr, psp, udn e da coligação ed/pdc/pl.21 Eram constantes
tou um marco no processo de reorganização do pcb. Além da reestru- os pronunciamentos dos constituintes em repúdio à presença de agen-
turação do Partido, foi acordada a política da União Nacional, carac- tes das Polícias Políticas nas sessões da Assembléia Constituinte. Os
terizando a aproximação do Partido com a burguesia e a aliança com manifestos da bancada comunista em favor da extinção das referidas
o governo Vargas. Era a expressão brasileira da política stalinista de polícias também eram freqüentes.
alinhamento ao capitalismo no combate ao nazifascismo. A bancada comunista atuava obedecendo às diretrizes traçadas
A União Nacional encontrava apoio na conservadora Liga de De- pelo pcb. As emendas apresentadas eram previamente submetidas à
fesa Nacional, composta, inclusive, por comunistas, que engrossavam aprovação da direção do Partido, que procurava fazer uma divisão de
o coro em favor da participação do Brasil na Guerra. A adoção de uma tarefas a serem desempenhadas pelos constituintes. A Jorge Amado e
linha política classista e o discurso oposicionista do pcb deram lugar Carlos Marighella, por exemplo, coube a tarefa de escrever os discur-
106 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 107
sos dos comunistas na tribuna. Uma das práticas usuais era a ocupação Num longo pronunciamento na sessão de 27 de junho de 1946, às
da tribuna para protestar contra a violência em relação aos militantes fls. 3.022 e 3.023 do Diário da Assembléia, o deputado Maurício Gra-
comunistas. Segundo João Amazonas, durante o período de realiza- bois faz críticas contundentes ao caráter democrático da Constituinte:
ção dos trabalhos da Constituinte – que se estenderam de fevereiro
a setembro de 1946 – foram mortos cerca de 30 comunistas que se “(...) O Projeto de Constituição em debate nesta Assembléia não está
manifestavam a favor de movimentos grevistas.22 à altura das conquistas já alcançadas pelo nosso povo. Já foi declarado
Em decorrência de uma greve realizada pelos trabalhadores da mesmo desta tribuna que o Projeto é anacrônico e não mais corresponde
Light, àquela época uma empresa privada pertencente ao capital es- à realidade do Brasil, pois se acha atrazado [sic] em relação às grandes
trangeiro, que resultou no espancamento de vários trabalhadores pela conquistas já obtidas pelo nosso povo, como a autonomia municipal.
polícia, o deputado Batista Neto levou à Assembléia os trabalhadores Observamos, quanto as tais conquistas que nesse Projeto se pratica
espancados “para mostrar aos deputados o que era a democracia bra- verdadeiro atentado contra a democracia. (...)
sileira”. E dizia: “eis aí o significado da democracia brasileira para os (...) Parece que o espírito da ditadura, de quinze anos de opressão
trabalhadores”. Decepcionado com a pequena repercussão e falta de em nossa terra, em que um centralismo burocrático impedia a completa
interesse das demais bancadas em relação à violência contra os traba- autonomia municipal, prevaleceu naqueles que elaboraram o Projeto de
lhadores e ao problema da limitação dos direitos políticos no Brasil, Constituição”.
Batista Neto concluiu desanimado: “a coisa ficou por isso mesmo”.23
Muitas foram as derrotas sofridas pelos comunistas na Constituin- Foram constantes os incidentes envolvendo comunistas e Polícias
te, como o veto ao direito de voto de militares de baixa patente e dos Políticas por ocasião dos comícios e festividades em praça pública
analfabetos. promovidos pelo pcb, especialmente no Rio de Janeiro e na cidade
de Santos, em função do movimento operário no porto. Por diversas
“(...) Declara a bancada comunista que pleiteou destaque para a emen- ocasiões, os atos públicos encabeçados pelo Partido resultavam em ti-
da número 3.032, do Partido Comunista do Brasil, e que votou contra a roteios e prisões, o que se refletia na atuação dos constituintes comu-
decisão que negou o aludido destaque, por não se poder conformar com a nistas, que ocupavam a tribuna da Assembléia para protestar contra
negação do direito de voto a analfabetos, soldados e marinheiros. os acontecimentos. Não faltavam denúncias de tortura a portuários
Apoiando o indeferimento do destaque mencionado, a ilustre As- sindicalizados e de impedimento de greves. O deputado Jorge Amado,
sembléia, senão na totalidade, pelo menos na esmagadora maioria, assu- diante da interrupção a bala da festa de comemoração do primeiro
miu graves responsabilidades perante o povo. aniversário do pcb na legalidade, teceu ácidas críticas ao novo regime
(...) O golpe de força da maioria que eliminou a votação do direito de democrático, que desde cedo mostrava-se extremamente frágil:
voto a soldados, marinheiros e analfabetos tem o nosso formal desapoio.”
“Sr. Presidente [da Assembléia Constituinte], a voz do Partido Co-
A Constituinte, recorrendo novamente à Giovannetti Netto, não munista será ouvida nesta Casa, porque o Senador e os Deputados comu-
era soberana. Sua atuação se dava num “terreno movediço”, pois estava nistas, com assento nesta Assembléia Constituinte, foram tão eleitos pelo
sob pressões de fortes interesses políticos e econômicos, que buscavam povo como os de outros Partidos.
a manutenção de sua hegemonia e o afastamento da participação po- Seria antidemocrático, humilhante para esta Assembléia Consti-
pular no processo decisório. tuinte, se não podesse [sic], no dia de hoje, depois de tão lamentáveis e
108 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 109
lutuosos acontecimentos, ontem ocorridos, ser escutada a voz dos repre- Medidas arbitrárias como esta, de suspensão de um órgão da im-
sentantes de qualquer Partido, especialmente do meu, de tal forma envol- prensa, com base em lei caduca, baixada no período do Estado Novo, em
vido e vítima que é de provocações. Seria humilhante que um Deputado 1938, são, sem dúvida atentados à democracia”.27
comunista não tivesse a liberdade de falar e ser ouvido num ambiente
democrático. Percebendo o pouco espaço para o exercício da sua participação po-
(...) Não vimos para esta tribuna atacar Partidos ou atacar o governo. lítica, o pcb interpreta tal problema como sendo fruto da permanência
Vimos, apenas, para dizer que ontem no Largo da Carioca, a reação e o de elementos fascistas infiltrados no governo Dutra. Tal assertiva im-
fascismo deram mais um passo para que se feche esta Casa do povo, a plicava na necessidade de uma atuação mais contundente, incluindo a
Assembléia Constituinte. Esse é o fim visado pelos provocadores: é o fim realização de campanhas de grande abrangência popular no intuito de
a que se dirigem os os que agridem indefesos cidadãos”.26 combater os resquícios fascistas que penetravam na Constituinte. A ga-
rantia da democratização, na avaliação do pcb, se daria pela eliminação
Quando da apreensão e impedimento, por quinze dias, de circu- daquelas reminiscências e pelo respeito à nova Constituição.
lação do jornal Tribuna Popular, do Partido Comunista, a bancada O jornal Tribuna Popular, matutino do pcb que circulou durante
não poupou críticas, fazendo uso da palavra na tribuna para protes- os anos de legalidade do Partido (1945-1947), revelava em suas pági-
tar contra a decisão do Ministro da Justiça. Maurício Grabois, Jorge nas a preocupação com a sobreposição dos interesses do governo à so-
Amado, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighela se revezavam em pro- berania da Constituinte. Já em fevereiro de 1946, o jornal denunciava
nunciamentos contrários à censura à Tribuna Popular. Prestes enviou na sua primeira página:
telegrama lido para toda a Assembléia Constituinte na sessão de 17 de
agosto de 1946: “Governo tentará impor à Constituinte, hoje, a legalização do
monstro fascista de 1937 – Mas o povo carioca lutará contra esse gol-
“Protesto contra suspensão ‘Tribuna Popular’, até violência estúpida pe baixo do governo, não se conformando com tão criminoso atenta-
que fere imprensa livre e marca um retrocesso inqualificável na redemo- do às liberdades democráticas e à marcha pacífica para a democracia”
cratização do País. Evidencia de tal ato manobra elementos sabotadores (tp, 27.02.46).
democracia infiltrados governo”.
O jornal afirmava que a falta de liberdades democráticas expressa
Maurício Grabois identificava na censura da Tribuna Popular o naquilo que compreendia como manutenção do fascismo, caracterizava
disparate entre o princípio democrático enunciado pela Constituinte um “estado de sítio não declarado” e que faltava apenas “para concre-
e a prática política: tizar a trama reacionária a prisão dos deputados e o fechamento do
Parlamento, como aconteceu nos dias sombrios de 37”.
“Enquanto nesta Assembléia estamos elaborando uma Carta Constitu- O medo do que os comunistas consideravam ser a permanência
cional; enquanto a espectativa [sic] popular se manifesta atravez de grande do fascismo no Brasil, baseados nas interpretações do comunismo in-
afluência a esta Casa; enquanto há o máximo interesse de todos os Srs. Repre- ternacional e na experiência dos movimentos nazifascistas na Europa,
sentantes em que, elaboremos uma Carta que assegure a normalidade Cons- levava à necessidade de se partir para ações concretas nessa nova luta
titucional do País, assistimos ao mesmo tempo, a atos completamente arbi- contra o “fascismo” no país. Na mesma edição da Tribuna Popular,
trários que parecem não levar em conta o trabalho que estamos realizando. também na primeira página, destacam-se:
110 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 111
“O mut [Movimento Unificador dos Trabalhadores] denuncia ma- emendas ao Projeto de Constituição que tinham como ponto central
nobra dos remanescentes fascistas”; “[... ] Fala-nos a direção do mut Na- questões relacionadas à cultura.
cional acerca dos acontecimentos verificados nas minas do Rio Grande Dos constituintes comunistas, Jorge Amado foi o que mais inten-
do Sul; Urge revogar a Carta fascista de 37; Apelo à solidariedade do samente se debruçou sobre a questão cultural. Uma das questões mais
proletariado”. caras para o escritor baiano, eleito por São Paulo, era a liberdade reli-
giosa. Foram muitos os pronunciamentos contrários a determinadas
Jorge Amado, em comício realizado em Santos, comparava a práticas que, na ótica do constituinte comunista, feriam o direito de
repressão ao movimento operário santista ao período do Estado Novo, liberdade de credo. Jorge Amado, assim como Maurício Grabois era
apontando na nova Constituição a reprodução da “Polaca”: contrário, por exemplo, à invocação da “proteção de Deus” no preâm-
bulo da Constituição,31 além de severas críticas às propostas de adoção
“O povo e o proletariado de Santos, especialmente os bravos estiva- do ensino religioso nos colégios.
dores das docas santistas, vivem sob o terror e as mais absurdas amea- São inúmeros os pronunciamentos do escritor baiano atribuindo o
ças, como se estivéssemos não em 1946, após a derrota do nazi-fascismo, baixo nível cultural do povo à situação de dependência econômica do
mas em pleno 1937 quando o ascenço [sic] mundial do fascismo ditava o país frente ao capital estrangeiro. Como solução do problema cultu-
monstrengo intitulado de Constituição de 1937. (...)”.28 ral, era preciso resolver as desigualdades econômicas:
A historiografia encarregou-se de superar as considerações de que “Não tenhamos ilusões de resolver os problemas culturais do Brasil,
o Estado Novo tenha sido uma experiência do fascismo no Brasil.29 O de liquidar ou diminuir sensivelmente o índice humilhante de analfabe-
conservadorismo e o autoritarismo do governo Dutra, portanto, estão tos do nosso país, enquanto mantivermos o povo em tal estado de miséria
longe de serem encarados pelos pesquisadores como resquícios do fas- física. (...) Todos nós sabemos que milhares e milhares de crianças não
cismo brasileiro, como pensavam os comunistas no calor dos aconte- vão ã escola porque não têm o que comer e o que vestir e são necessárias
cimentos de 1946. Suas considerações precisam ser avaliadas a partir em casa para ajudar o ganha-pão dos pais, em trabalhos quase sempre im-
da compreensão de que a cultura política comunista, desenvolvida no próprios para a sua idade. E quanto a essa tão falada preguiça do nosso
período imediatamente posterior a ii Guerra, numa situação de clara caboclo, do nosso camponês, que é ela senão o desinteresse nascido da
desestabilização dos comunistas em escala internacional, inclusive no fome, da subalimentação, do estado permanente de miséria, sem uma
Brasil, provoca uma visão de mundo muito particular, que não lhes ofe- única perspectiva, sem nenhuma esperança.
rece outra possibilidade de análise senão a que apontava a ressurgência O nível da nossa cultura aumentará à proporção em que nos liber-
– ou pelo menos a existência de resquícios – do [suposto] fascismo no tarmos de nossa situação angustiosa de semi-colônia, de país produtor
Brasil e que conclamava as massas a se organizarem para impedir que o de matéria-prima, de atrasada economia feudal, de camponeses como
monstro pudesse novamente despertar e aterrorizar o país.30 servos, sem indústria, sem real independência, joguete dos interesses
Examinando mais atentamente a atuação dos comunistas na As- imperialistas. Quando realizarmos a independência econômica de nossa
sembléia Constituinte, percebemos a preocupação das bancadas do Pátria, anseio maior do povo brasileiro”.32
Partido em relação à cultura. Já sob a influência do realismo socialista,
além das orientações do Partido em relação às condições econômicas Resolver a questão econômica superando os “resquícios feudais”
e sociais, eram constantes os discursos, pronunciamentos, moções e não era o bastante para alcançar o desenvolvimento cultural dos bra-
112 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 113
sileiros. Havia também a necessidade de utilização de instrumentos idéias do Partido dentro da nova conjuntura que surgia, qual seja, a de
eficazes na educação cultural e política do povo. Cumpria à arte de- sua legalidade proporcionada pela democratização.
sempenhar esse papel político-pedagógico. O autor enfatiza que o novo momento exigia do pcb uma atua-
Na sessão de 19 de junho de 1946, os constituintes foram surpre- ção dentro do respeito irrestrito à lei, não mais admitindo as práticas
endidos com a leitura de um discurso de Jorge Amado em homenagem de divulgação experimentadas durante a clandestinidade do Partido.
a Máximo Gorki, cujo falecimento completava 10 anos. O discurso do O novo trabalho em muito diferia-se daquele executado na ilegali-
escritor brasileiro enfatizava a participação de Gorki na montagem do dade, cuja ênfase era dada ao combate ao nazi-fascismo. Nesse novo
sistema socialista, “que é a abastança, a alegria e a cultura”, sua imagem contexto, Grabois chama a atenção de seus camaradas para a impor-
como símbolo na luta contra o nazi-fascismo, além de destacar a im- tância que o trabalho de divulgação assume na aplicação da linha
portância da arte na transformação política e social: política do Partido.
Diante de uma situação absolutamente nova, era chegado o mo-
“Mestre do romance e do conto, Máximo Gorki foi também em nosso mento que exigia de todos os quadros grande esforço para superar a
tempo dramático, o melhor exemplo do escritor de vida e obra dedicadas falta de experiência na atuação no regime democrático. Nessas con-
à liberdade e à dignidade do homem. Acreditou no ser humano e na sua dições, segundo o autor, cabia ao Partido a tarefa de “desmascarar
missão sobre a terra, a serviço da sua felicidade colocou sua pena. os agentes do capital estrangeiro colonizador, do isolacionismo e do
(...) Jamais, como na obra de Máximo Gorki, nos seus livros e em colonialismo inglês, fazendo com que fique bem claro quem são os
seus artigos, - romances, contos dramas e poemas, discursos e conferên- verdadeiros amigos do povo e quais os inimigos da liberdade e do de-
cias – se provou aquela verdade que afirma que a obra de arte é também senvolvimento progressista em nossa terra”.33
arma do povo em luta por uma vida melhor e mais digna. (...) Nascido Através da imprensa comunista, que atingia o seu auge, ao lado de
camponês na Rússia tzarista, adolescente operário nas suas fábricas, ele outros mecanismos de divulgação, como os discursos proferidos por
teria que ser, quando escritor, o romancista dos operários e campone- Prestes nos comícios do Partido, os comunistas assumiam a tarefa de
ses, o narrados dos seus sofrimentos, das suas dores, e também das suas levar informação às massas e à classe média, cumprindo o que Grabois
esperanças e suas lutas”. considerava ser o seu “papel decisivo no curso dos acontecimentos”.34
Maurício Grabois enfatiza o trabalho de divulgação como uma forma,
sobretudo, de organização das massas, conforme preconizava Lênin:
3 . 3 – a impr en sa co mu n ista e o encon t ro “O papel do jornal não se limita, sem dúvida, a difundir idéias, a educar
d o Pa rt id o co m as m ass as politicamente e a ganhar aliados políticos. O jornal é não só um propagan-
dista e um agitador coletivo, mas também um organizador coletivo.
Maurício Grabois escreve, em agosto de 1945, o informe de divulga- (...) Só a tarefa técnica de assegurar a necessária provisão de materiais
ção ao Comitê Nacional do Partido Levemos às Massas nossa Linha para um jornal e a sua difusão obrigará a criar uma rede de agentes locais
Política, um dos mais importantes documentos para a compreensão dum Partido único, que manterão entre si contato vivo, que conhecerão o
da estratégia de divulgação do Partido comunista. Nas suas 29 pági- estado geral das coisas, que se acostumarão a exercer regularmente funções
nas, o libreto, publicado pelas Edições Horizonte, de propriedade do parciais dentro do trabalho geral de toda a Rússia, que irão pondo à prova
pcb, traz uma reflexão de Grabois sobre o papel da divulgação das as suas forças na organização de diversas ações revolucionárias”.35
114 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 115
Na atividade de organização e agitação das massas, o autor de dos os problemas para todos os sociais-democratas russos que defendam
Levemos às Massas nossa Linha Política enumera uma série de tarefas pontos de vista dos mais diversos matizes. Não só não recusamos a polê-
a serem cumpridas pelos membros do Partido, os intelectuais orgâ- mica entre camaradas nas páginas dos nossos órgãos, como, pelo contrá-
nicos, se quisermos utilizar a terminologia gramisciana. Cabia aos rio, estamos dispostos a dar-lhe o maior espaço”. 36
intelectuais orgânicos a tarefa de dividirem-se estrategicamente para
organizarem ações que transformem os jornais do Partido em orga- Assim, o órgão central do Partido, o jornal A Classe Operária, de-
nismos de massa, preparando, por exemplo, ações entre amigos, re- veria ter como função:
alizando coleta de recursos entre amigos e simpatizantes; promover
festas e conferências que gerem recursos para os jornais; ampliar o “Ensinar aos camaradas de todos os organismos a trabalhar dentro do
espectro de anúncios para angariar fundos e garantir uma circulação Partido e fora dele. Explicar as questões que se referem à organização, so-
mais ampla. bre a nossa estrutura orgânica, sobre a nossa política de quadros. Ajudar o
Aos intelectuais do Partido estava reservada a tarefa de alfabeti- Partido, desde as bases até as direções, a realizar o trabalho de divulgação.
zarem os camaradas iletrados e ministrarem “aulas de conhecimen- Procurar manter as tradições gloriosas da imprensa do Partido”. 37
tos gerais”. Também lhes era atribuído o papel de “escrever sobre
as nossas questões, trazendo ensinamentos aos nossos membros e Os jornalistas e escritores da imprensa comunista deveriam compor,
educando-os no espírito do marxismo-leninismo”. Grabois, imbu- de acordo com Lênin, “um estado-maior”, formado por “especialistas
ído da concepção leninista de imprensa, falava da necessidade de correspondentes, um exército de repórteres social-democratas” que
criação de uma revista, de caráter teórico, para ajudar na formação criassem uma rede de articulação em toda a parte, “sabendo penetrar
dos quadros através da transcrição de estudos marxistas publicados em todos os ‘segredos de estado’ (...) um exército de homens obrigados
em outros países e da publicação de textos dos intelectuais comu- “pelas suas funções” a ser omnipresentes e omniscientes” [sic]. 38
nistas brasileiros. Segundo Lênin, a revista cumpre o papel propa- Pode-se afirmar que no Brasil, a especialização dos jornalistas que
gandístico, enquanto o jornal deve estar voltado para a organização trabalhavam nos órgãos de imprensa do Partido, recomendada na te-
e agitação das massas. oria leninista, em certa medida fora alcançada. Isso se deve ao fato de
que, segundo o jornalista Paulo Motta Lima, histórico colaborador
“A distribuição dos temas e dos problemas indicados, entre a revista e dos jornais do Partido,
o jornal, efetuar-se-á em razão das diferenças de extensão dessas publica-
ções e pela diversidade do seu caráter: a revista deve servir com preferên- “As pessoas que trabalhavam em nossos jornais raramente conseguiam
cia à propaganda, o jornal à agitação. trabalhar noutro jornal. Era muito comum a pessoa ter necessidade de
Devemos esforçar-nos por criar uma forma superior de agitação atra- trabalhar em mais de um jornal (...) porque os nossos jornais sozinhos,
vés do jornal, o qual registrará periodicamente as queixas dos operários, geralmente não davam para sustentar ninguém. O fato de trabalhar num
as greves e outras formas de luta proletária e todas as manifestações de jornal comunista era uma espécie de barreira para poder trabalhar noutro
opressão política em toda a Rússia e que, de acordo com os objetivos fi- jornal não comunista”. 39
nais do socialismo e com as tarefas políticas do proletariado russo, tire
conclusões de cada acontecimento. O trabalho de divulgação, entretanto, não deveria restringir-se à
(...) queremos que os nossos órgãos sejam órgãos de discussão de to- palavra impressa. Nem à imprensa comunista. Antônio Rubim nos
116 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 117
lembra da política comunista de influência de outros veículos, que do, pelos grandes ensinamentos que contêm sobre a atual posição política
funcionava como recurso à maximização da comunicação do Parti- do Partido e sobre os vários problemas nacionais”.
do.40 Outra alternativa para a divulgação, no entender de Grabois,
seria a intensificação de palestras, a serem realizadas nas fábricas e em Ainda faziam parte do processo de capacitação intelectual dos
outros locais de trabalho; a realização de vários comícios, que atraíam quadros do Partido o estudo de questões locais e internacionais para
grande número de espectadores e que produziram resultados memo- debates acerca dos problemas nacionais e estrangeiros, assim, os ca-
ráveis para os comunistas, como os famosos comícios de 1945 nos es- maradas estariam aptos a por em prática a propaganda do Partido,
tádios do Pacaembu, em São Paulo e de São Januário, no Rio de Janei- discutindo os problemas que afligem as massas e atingindo-as. Nas
ro, sendo Luiz Carlos Prestes ovacionado em ambas as ocasiões. palavras de Lênin,
Os discursos em público também são apontados por Grabois como
eficientes instrumentos de divulgação. Neste aspecto, o autor refere- “Um propagandista (...) deve dar ‘muitas idéias’, tantas que todas es-
se especialmente aos discursos de Prestes proferidos nos comícios e sas idéias, no seu conjunto, só poderão ser assimiladas no momento por
em outras ocasiões e que são publicados em folhetos pelas editoras poucas pessoas.
comunistas e vendidos aos trabalhadores. O discurso do comício de (...) o agitador tomará um exemplo, o mais flagrante e mais conhecido
São Januário, segundo Grabois, foi publicado numa tiragem recorde do seu auditório (...) e aproveitando este fato conhecido por todos, fará
de 170 mil exemplares. todos os esforços para inculcar nas massas uma só idéia: a idéia do absur-
Os manifestos publicados em todo o país, os painéis e cartazes, es- do da contradição entre o aumento da riqueza e o aumento da miséria;
tes últimos utilizados nas campanhas eleitorais, “mobilizando pintores, (...) cabe ao propagandista o cuidado de dar uma explicação completa
desenhistas e artistas amigos do Partido”, são apontados como outros desta contradição. É por isso que o propagandista atua principalmente
recursos de divulgação do pcb nesse novo contexto de atuação dentro por meio da palavra impressa”.43
da legalidade e praticamente inédito na história do Partido.41
Embora os comunistas dispusessem de razoáveis recursos mate- Cumpria às editoras comunistas uma tarefa elementar no proces-
riais para o seu trabalho de imprensa e divulgação, Maurício Grabois so de capacitação intelectual dos membros do pcb. A publicação, a
criticava duramente os recursos humanos, apontando falhas no tra- pleno vapor, de novos títulos e de edições revistas e mais bem cui-
balho de divulgação devido à baixa capacitação teórica dos quadros. dadas, em língua portuguesa, superando as edições não autorizadas,
Para ele, era necessário realizar um sério trabalho de preparação inte- em sua maioria publicadas em espanhol, eram essenciais para o pro-
lectual dos membros do Partido, desde a base até a direção, para que jeto do Partido.
houvesse um “melhoramento do nível político, teórico e ideológico O quadro abaixo baseia-se num anúncio das Edições Horizonte,
de seus quadros”. Para isso, propunha o estudo individual dos clás- publicado na contracapa de Levemos às Massas nossa Linha Política.
sicos do marxismo, a edição urgente de livros e estudos teóricos “de Além da publicação de livros e panfletos, as Edições Horizonte tam-
maior atualidade”, a discussão da linha política do Partido, conside- bém anunciavam a venda de “retratos de Prestes cr$2,00 – uma foto
rando que: de Ruy Santos”.44
118 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 119
Grabois via nas Edições Horizonte um importante meio de edu-
cação do povo:
122 o pcb cai no samba o partido comunista à procura das camadas populares 123
c ap ít ul o 4
S e em 1 9 3 6 o g ov er n o b r a s i lei ro s e u t i li z ava
das escolas de samba, em particular a Mangueira, como instrumento
de divulgação dos seus interesses junto aos nazistas, cuja fórmula viria
a se repetir em diferentes contextos, a esquerda também não deixaria
de recorrer a esse expediente, reconhecendo a expressividade e noto-
riedade que as escolas de samba vinham adquirindo. Um dos exemplos
mais significativos é o artigo de 1936, do jovem Carlos Lacerda, à épo-
ca um fervoroso militante comunista, para o jornal Diário Carioca:
“O samba nasce do povo e deve ficar com ele. O samba elegante das
festanças oficiais é deformado: sofre as deformações na passagem de mú-
sica dos pobres para divertimento dos ricos. O samba tem de ser admirado
125
onde ele nasce, e não depois de roubado aos seus criadores e transforma-
do em salada musical para dar lucro aos industriais da música popular.
O samba é música de classe. O lirismo da raça negra vive nele. Uma
estupenda poesia surge dele. A força criadora da classe que vai transfor-
mar o mundo brota nele aos borbotões na improvisação, na cadência, no
ritmo. É’ preciso defender o samba contra as concepções de seus defor-
madores, que preferem mostrá-lo como curiosidade exótica. O samba não
é exótico. É humano. É uma expressão de arte viva. Defenda-se o samba.
Defenda-se o sambista. Quando os oprimidos vencerem os opressores, o
samba terá o lugar que merece”.1
Por deliberação do órgão representativo das escolas de samba, a Vai se Quiser Pela Vitória das Armas do Brasil
União Geral das Escolas de Samba, uges, no Carnaval da Vitória, Somos da Vitória
Fiquei Firme
todas as escolas deveriam desenvolver enredos relativos à vitória dos
Aliados sobre as forças do Eixo, destacando a participação do Brasil na Mocidade Louca de Alvorada de Paz
guerra. Assim, as agremiações que desfilaram na Avenida Presidente
São Cristóvão
Vargas, então palco central do desfile das escolas de samba, desenvol-
veram os seguintes enredos: Paz e Amor Mensageiros do Samba
A Portela, escola de samba mais premiada na década de 1940, ga-
nhando os carnavais de 1941 a 1947, foi a campeã do carnaval de 1946 na Assembléia das Reparações
com o enredo Alvorada do Novo Mundo, desenvolvido com alegorias Tomada de Monte Castelo
Depois Eu Digo
batizadas de A volta das Forças Armadas, os Acordos Ministeriais, as
Nações Unidas vitoriosas, “Hitler esmagado e Mussolini enforca- Corações Unidos As Armas da Vitória
do e por fim uma alegoria mostrando ‘Tio Sam’ em pé com Hitler
Unidos do Salgueiro Recordando a História
ajoelhado”.14 O regulamento do desfile de 1946 proibia o improviso na
segunda parte do samba, rompendo com uma prática tradicional dos
Últimos a Chegar Duque de Caxias Edem Silva, o Caxiné, vencedor do concurso Cidadão-Samba de
Unidos de Cabuçu Cabuçu 1946, prestou a sua homenagem a Prestes com o samba:
“É claro que os camaradas não vão esperar que a massa se junte desde
logo ao bloco para então começar a passeata. É preciso a máxima iniciati-
va por parte dos camaradas. Façam a concentração com os nossos elemen-
tos, comecem a cantar, iniciem a passeata. E, principalmente não caiam
na defensiva, alegando que não sabem cantar, que não têm jeito para isso.
É importante que os camaradas compreendam que isso é fundamental
para a propaganda de massas do Partido. Esse trabalho poderá ser feito
sempre se estiverem em locais onde haja aglomeração, em bondes, cafés,
Fig. 13 – Reflexos do realismo socialista no
filas, no intervalo para o almoço nos locais de trabalho, etc”.38
Brasil. O ritmo preferencial para o contato
com as camadas populares era a marchinha
carnavalesca. Jararaca, parceiro de Ratinho, Nesta matéria ainda, é apresentada como “eficiente” uma nova mo-
saiu vitorioso nas eleições para vereador, em
1947. a letra de Mamãe eu quero, de Jararaca
dalidade de entretenimento político e adesão das massas, que conta
e Vicente Paiva, recebeu a seguinte versão, com a participação de palhaços, de grande simbologia no imaginário
de autoria do próprio Jararaca: “Mamãe não infantil, e de filhos da militância do Partido.
quero”: Mamãe não quero/ mamãe não quero/
mamãe não quero mais mamar/ eu já estou
grande/ quero saber em quem é que eu vou “iv palhaços
votar/ vota meu filho/ que és moço e és viril/
Pela sensação que um palhaço desperta sempre, êsse [sic] é um dos
vota pra grandeza e pro progresso do Brasil/
vota com cuidado/ com cuidado vota/ e dá meios mais eficientes de levarmos para a rua a nossa campanha. Um cama-
o seu voto a um sincero patriota!/ Não vota rada que tenha veia cômica, vestido de palhaço, percorre as ruas da cidade,
meu filho/ não crê na marmelada/ dos que
fazendo palhaçadas, dando cambalhotas, mexendo com os conhecidos (de
prometem tudo/ e no fim não fazem nada/
vota com cuidado/ olhe bem a lista/ escolha preferência fazendo alusões às dificuldades por que eles passam e às difi-
os candidatos do Partido Comunista. Apud. culdades gerais). Para chamar mais atenção ao trabalho do palhaço, pode-
RODRIGUES, Sonia Maria B. Calazans. Jararaca
e Ratinho. A famosa dupla caipira.
se [convidar] os filhos dos camaradas e fazer uma adaptação do conhecido
Rio de Janeiro: Funarte, 1983, pp. 63-64. ‘Hoje tem Marmelada?’. Damos aqui um exemplo dessas adaptações:
A presença das escolas de samba nos comícios e festejos do pcb Enfrentou qualquer perigo
tinha para o jornal, e em última instância para o Partido, um triplo sig- Mas eu quero é te escutar
nificado: além de atrair as massas para o comício e dar-lhes diversão, Seja na Praia do Russel ou em Jacarepaguá
um direito do qual a carestia não lhes permitiria usufruir, representava Podem os reacionários
também a abertura de um espaço para que os artistas populares se ma- Querer nos atrapalhar
nifestassem, para que o povo sofrido e criativo das escolas de samba ti- A vitória é de Prestes e da Chapa Popular
vesse vez e voz. “Está bem claro, vez mais, que os ‘shows’ são um poderoso
instrumento de ligação com as massas”. 39 Que importa que a intriga aumente
Uma outra atribuição dos shows, para o Partido, era o seu caráter O que eu quero é votar (bis)”
educativo, prestando o serviço à sociedade de instrução política das
massas desinformadas: Eu quero é votar, na sua função de promover a educação política do
povo, conforme enunciava a Tribuna Popular, procurava consolidar o
“O caráter festivo impresso ultimamente às nossas festas eleitorais imaginário em torno de Prestes como alguém cuja trajetória fora mar-
tem dado maior brilho às mesmas, tornando possível a realização de bons cada pela luta em favor dos ideais democráticos, o que lhe custou per-
comícios em locais onde a massa não está suficientemente esclarecida e seguições, injustiças e intrigas. E, que, a essas vicissitudes, reagia com
onde é preciso levar a nossa palavra”.40 bravura, transformando-se num símbolo de resistência em prol dos
interesses do povo e sendo por ele reverenciado. Afinal, o que valeria
“As músicas populares da campanha eleitoral podem e querem ser o sacrifício de ir até o Irajá, para escutar o querido Prestes, que muitos
cantadas pela massa. Para isso basta que os promotores da festa ao povo, ensinamentos teria a passar para o público,42 diante de sacrifício maior
profusamente, [distribuam?] volantes com as letras das músicas. Esta é feito para o povo, como passar dez anos encarcerado e comer o pão que
também, uma forma de educação política do povo”.41 o diabo amassou?
A edição de 16.01 da Tribuna Popular fazia a chamada, em letras
Uma dessas músicas populares da campanha eleitoral, era a mar- garrafais, para a Grande Festa Eleitoral de encerramento da campanha
cha Eu quero é votar, paródia da música que dá título à comédia da Chapa Popular, o comício histórico, batizado de O Primeiro Lugar
A quarta-feira de cinzas
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do voto classista, à moda do nazi-fascismo e a instituição do voto fe-
minino obrigatório, e apesar do retorno à legalidade dos partidos po-
líticos, fatores que contribuem para a caracterização do período como
democrático, há de se argumentar que a nova Constituição conserva
alguns traços marcantes do período de autoritarismo, como a manu-
tenção da clt e o forte controle sindical, dando seqüência à subor-
dinação dos sindicatos ao Estado, como fizera Vargas. E o retorno ao
sistema partidário, “a despeito do seu caráter pluralista, confrontou-se
em condições altamente desfavoráveis, no terreno do processo decisó-
rio estatal, com a burocracia de Estado, então organizada como força
política autônoma”.2
A própria Constituinte de 1946 já se revelaria ultraconservadora
em sua base, objetivando a manutenção de um Congresso forte a fim
de se contrapor ao quadro anterior, onde o Executivo predominava.
A emenda n.º 3.159, proposta por constituintes do psd sentenciava:
“É vedada a organização , bem como o registro ou funcionamento de
qualquer partido ou associação cujo programa ou ação, ostensiva ou
dissimuladamente vise a modificar o regime político e a ordem econô-
mica e social estabelecidos nesta Constituição”.3
O governo Dutra, marcadamente conservador, contribuiu para Fig. 17 – “Depredação do PCB
a instabilidade da democracia de diversas maneiras. O alinhamento pela política. 1947. Fotógrafo:
Salomão Scliar”. (Fonte:
total, na política externa, aos Estados Unidos e a diluição das reservas
Arquivos da Relação. Rio de
obtidas na ii Guerra através da aquisição de produtos absolutamente Janeiro: FAPERJ, 2000, p.27).
irrelevantes para o desenvolvimento interno, como ioiôs, além da re-
sistência à promoção do desenvolvimento industrial brasileiro, não só
custaram-lhe o apelido de “presidente ioiô”, como traduziram a sub-
serviência do Brasil aos interesses monopolistas do capital estrangeiro,
contribuindo para a deflagração de uma onda de protestos e insatis-
fação dos trabalhadores, seguidas de forte repressão policial através
da chamada “polícia especial”, a polícia especializada em desarticular
violentamente comícios e manifestações dos trabalhadores.
Também é durante o governo Dutra que os comunistas eleitos
para a Constituinte de 46 terão seus mandatos cassados e o Partido,
que vinha ganhando expressividade, encabeçando a lista dos mais vo-
tados no Rio de Janeiro, por exemplo, será posto na clandestinidade.
e Desportivo 1º de Março:
“dps
Referente Prot. nº 17.819/48
Dos sócios fundadores do Grêmio Recreativo e Desportivo 1º de Março,
figuram registados nesta Divisão, como célebres agitadores comunistas
(...)
Assim, esta Divisão, considerando que a referida entidade foge às finalida-
1 – ob r a s t eór ica s :
AYALA, Marcos et al. Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Ática, 1995.
BORGES, Vavy Pacheco. História e Política: laços permanentes.
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set. 1991/ago, 1992.
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– Cantos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora UFRJ –
Fundação Getúlio Vargas, 1998.
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la), entrevista concedida à autora em 07.11.1999.
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do Estado do Rio de Janeiro: 2000. vista concedida à autora em 17.08.2000.
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