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Licenciado para - Juliana lippi de morais lobo - 01172057109 - Protegido por Eduzz.

PEDIR, OFERECER E
RECEBER AJUDA
Fernanda Angelini

ISBN: 978-65-00-30267-7
Edição: Pedro Simões
Revisão: Lucas Lara, Giovanna Ponte, Bian-
ca Mayumi e Rebeca Oliveira
Capa: Iuri Prando
Ilustrações: Igor Sudo
Diagramação: André Caniato

1ª EDIÇÃO
2021

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“Poder sem amor é imprudente e
abusivo, e amor sem poder é sen-
timental e anêmico. Poder no seu
melhor é amor implementando
as demandas da justiça, e justiça
no seu melhor é poder corrigindo
tudo que se está contra o amor.”
Martin Luther King Jr.

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Sumário

Pedindo ajuda

Ninguém é uma ilha


Privilégio e oportunidade
Desconstruindo a culpa
Epistemologia do sofrimento
Pedindo ajuda para quem odeia você

Recebendo ajuda

Como ajudar a te ajudar


Como retribuir ajuda
O sentimento de dívida
Construindo uma rede de apoio
Lidando com a decepção
Estou preocupado com você

Ajudando os outros

Você consegue ajudar?


Ajuda e sacrifício

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Uma crítica à caridade
Autonomia e responsabilização
Consentimento
Como ser um bom ouvinte
O que dizer quando não há nada que pos-
sa ser dito
Pais e filhos
Os limites da ajuda
Ajuda que não ajuda

Agradecimentos

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PEDINDO AJUDA

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Ninguém é uma ilha

Na nossa cultura, romantizamos fazer tudo por


conta própria. De artistas a empresários, perpe-
tuamos a narrativa de que as pessoas chegaram
no topo por talento e esforço individual, supe-
rando as dificuldades pela perseverança e força
de vontade, como se bastasse você cultivar certas
características em sua personalidade para conse-
guir o que quer.
Entretanto, basta arranhar um pouco o verniz
dessas histórias para ver que não é bem por aí.
Jeff Bezos, o primeiro centibilionário do plane-
ta, fundou a Amazon com um empréstimo de
300 mil dólares dos seus pais [1]. O pai da
Beyoncé, Mathew Knowles, já era um produtor
musical de sucesso que dedicou sua carreira ao
sucesso da filha [2]. Joseph Safra, o falecido bra-
sileiro mais rico, veio de uma longa linhagem de
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banqueiros [3]. Tanto Anitta [4] quanto Billie
Eilish [5] tiveram seus respectivos irmãos como
produtores.
Apesar de todas essas informações serem pú-
blicas, de alguma forma elas são ignoradas e
consideradas irrelevantes para a narrativa do su-
cesso dessas pessoas. Claramente ninguém chega
ao topo sozinho. Por que então nos apegamos a
essa ideia de que todos dão conta de tudo por
conta própria, exceto nós mesmos?
Para começar, parte dessa narrativa se susten-
ta por uma ilusão e necessidade de controle.
Afinal, é assustador perceber que nosso destino
está nas mãos de fatores tão imprevisíveis quan-
to outras pessoas. Acreditar que Elon Musk se
fez sozinho é acreditar que você também pode,
um dia, ascender da mesma forma. Se a única
coisa que nos separa é esforço, então quando eu
realmente decidir me empenhar, ninguém me
segura. Reconhecer que essas pessoas contaram
com poderosas redes de apoio, por outro lado, é
entender que nem todo mundo tem as mesmas
chances de chegar lá, e que é possível se esforçar
ao máximo e ainda fracassar.
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Igualmente desconfortável é submeter nossas
habilidades pessoais ao teste. Talvez você até te-
nha recursos ao seu dispor, mas será que você
consegue superar sua vergonha de pedir? E se a
pessoa recusar? E se você pedir ajuda, mas não
gostar do resultado? Muito mais confortável
nem pedir em primeiro lugar. Melhor nem ten-
tar do que se decepcionar e perder tempo, não é
mesmo?
Não é bem assim. Existe um jeito de escapar
da ilusão da meritocracia individual e o desam-
paro aprendido da mediocridade: pedir ajuda.
Mais tarde vamos explorar melhor todos esses
conceitos, mas por enquanto o importante é en-
tender que existe uma saída. O que é impossível
para uma pessoa sozinha muitas vezes pode ser
conquistado em equipe. Nem todos temos fa-
mílias ricas para quem pedir um empréstimo
milionário, mas todos temos para quem pedir
ajuda ou, no mínimo, podemos trabalhar para
criar uma rede de apoio a quem poderíamos vir
a pedir. Ao longo do livro vamos explorar al-
guns motivos pelos quais deixamos essas opor-
tunidades passarem.
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Em particular, precisamos desapegar do con-
trole. Trabalhando sozinhos ou não, nem tudo
vai sair exatamente como gostaríamos. É co-
mum criarmos um funcionamento de perfeccio-
nismo dentro de nós mesmos para justificarmos
o porquê de estarmos fazendo algo sozinhos, o
clássico “se quer algo bem feito, faça você mes-
mo”. Bom, onde vocês dizem perfeccionismo,
eu vejo ansiedade. Inevitavelmente as coisas vão
dar errado. É arrogante olhar para o mundo e
todas as variáveis que o envolvem e achar que
temos o controle de tudo. A única coisa sobre a
qual temos algum controle é nós mesmos e
como vamos reagir diante dos nossos erros e fra-
cassos. Quando as coisas eventualmente derem
errado, é importante ter em quem se apoiar. Li-
dar com seus erros não precisa ser uma ativida-
de solitária.
É comum termos dificuldade em permitir
que alguém nos veja falhando, pois não nos é
ensinada a importante habilidade de ser vulne-
rável. Essa palavra em si já carrega um subtexto
de algo frágil ou inferior, quando na verdade é
ela que nos conecta. Quando peço ajuda, estou
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desafiando a narrativa de que é necessário dar
conta de tudo sozinho. Soa até arrogante falar
que essa narrativa está errada quando ela é dita e
defendida em tantos lugares. Mas quando você
pede ajuda você está libertando a si mesmo e ao
outro dessa narrativa sufocante. Ao se colocar
vulnerável ao ponto de reconhecer que você
precisa de ajuda para se levantar, você se torna
também um exemplo para as pessoas ao seu re-
dor, se humanizando aos olhos delas. O pensa-
mento “nossa, eu achava que era só comigo, que
só eu tinha essa dificuldade” traz a pessoa para
perto de você. Tudo bem se virem você falhan-
do. Você não precisa ser perfeito, e de fato nin-
guém é.
Felizmente, pedir ajuda é uma habilidade
como qualquer outra, e como tal pode ser
aprendida, treinada e aprimorada. Aprender a
pedir ajuda, como pedir, quando pedir e para
quem pedir são todas habilidades incrivelmente
úteis que você pode adquirir com a mesma
mentalidade que usou para aprender, digamos, a
mexer no Word ou a usar as novas funções que
as redes sociais trazem todo mês.
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Por incrível que pareça, oferecer ajuda tam-
bém é algo que vem naturalmente. Primatas
evoluíram sofisticadas estratégias de cooperação
para aumentar as suas chances de sobrevivência.
Por exemplo, chimpanzés caçam em grupo, bo-
nobos tiram os parasitas uns dos outros, e saguis
foram observados oferecendo comida até para
filhotes de outras espécies [6].
O biólogo evolutivo Richard Dawkins apre-
sentou uma explicação para esse comportamen-
to no seu livro O Gene Egoísta [7]. Segundo
Dawkins, é um erro pensar que a seleção natu-
ral privilegia o indivíduo mais forte. Ao invés
disso, a evolução opera no nível genético: se o
sacrifício de um indivíduo permite que dois ou-
tros com uma genética semelhante sobrevivam,
então o comportamento é benéfico do ponto de
vista do gene específico, ainda que não favoreça
a sobrevivência daquele indivíduo em particular.
Dessa forma, podemos entender que o compor-
tamento altruísta tem uma raiz biológica.
Humanos vão ainda mais longe em seu com-
portamento pró-social, ou seja, atitudes que
buscam o bem de outros. Nenhum outro ani-
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mal forma sociedades tão complexas e compos-
tas por tantos indivíduos. Nosso poder de ima-
ginação - de criar histórias - permite que cente-
nas, milhares ou até milhões de indivíduos tra-
balhem em conjunto por uma ideia comum.
Em seu livro Sapiens [8], o professor de His-
tória Yuval Harari dá como exemplo as grandes
catedrais medievais, financiadas e construídas
por pessoas que não tinham a menor expectati-
va de sobreviver para ver a obra pronta. Notre
Dame, para citar uma, levou 180 anos para ser
concluída, e mais de mil pedreiros, engenheiros
e arquitetos. O que dizer então das enormes
massas mobilizadas por conceitos tão abstratos
quanto países, ideologias, ou dinheiro? A cultu-
ra, claramente, também é capaz de moldar o
comportamento humano de maneira poderosa,
muito além de atividades que trazem benefício
imediato ao indivíduo.
O fato é que ajudar o próximo é parte do
nosso DNA, tanto cultural quanto biológico.
Por exemplo, existe uma abundância de fósseis
de pessoas com deformidades ou ferimentos que
tornariam impossível caçar ou acompanhar o
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restante da tribo em suas migrações. Apesar dis-
so, vários desses fósseis exibem sinais de que ha-
via quem cuidasse desses indivíduos mesmo nas
nossas sociedades mais antigas [9].
Um dos casos mais ilustrativos talvez seja o de
uma mulher que viveu há cerca de quatro mil
anos na Península Arábica. Na infância ela con-
traiu uma doença neuromuscular, provavelmen-
te poliomielite, e como resultado teve seus
membros severamente atrofiados, de forma a
exigir cuidado constante dos outros membros
do grupo até para se alimentar. Apesar disto, ela
viveu até os dezoito anos de idade. Ironicamen-
te, um de seus problemas de saúde era uma série
de cáries, causadas por uma dieta rica em frutas
doces. É evidência de que ela não era apenas to-
lerada, mas sim amada e mimada com iguarias
raras [10].
Você provavelmente consegue se lembrar de
uma vez em que ajudou um amigo, e aquilo
trouxe um quentinho no coração. A sensação de
se sentir útil é maravilhosa. Tão maravilhosa
que muitas vezes se torna um problema, pois fi-
camos viciados nela, associando de forma não
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saudável nosso valor interno ao ato de servir.
Porém, diante de uma sensação tão boa, pode-
mos pensar que existe um certo egoísmo em
privar seus amigos da oportunidade de sentir
isso também por meio da ajuda que eles podem
oferecer a você.
Pedir ajuda pode ser uma questão pontual e
isolada, mas idealmente queremos criar uma
base estrutural, algo que estará presente em nos-
sas vidas — não apenas em um contexto especí-
fico, mas em situações diversas. Pedindo ajuda,
você permite que as pessoas enriqueçam a sua
vida no processo. E o primeiro passo nesse pro-
cesso é aprender a aproveitar as oportunidades
que surgem no seu caminho.

[1] STONE, Brad. e Everything Store: Jeff


Bezos and the age of Amazon. New York: Little,
Brown And Company, 2013. ↩
[2] KNOWLES, Mathew. Destiny’s Child: e
Untold Story. Music World Publishing, 2019.

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[3] INFOMONEY. Joseph Safra: a trajetória do
banqueiro mais rico do mundo. 2020. Disponí-
vel em: https://www.infomoney.com.br/per-
fil/joseph-safra/. ↩
[4] POLLILO, Aline. Anitta e seus poderosos:
veja quem ajuda a cantora em sua carreira.
2013. Disponível em: http://ego.globo.com/fa-
mosos/noticia/2013/08/anitta-e-seus-podero-
sos-veja-quem-ajuda-cantora-em-sua-carrei-
ra.html. ↩
[5] FEKADU, Mesfin. Family affair: Billie Ei-
lish, Finneas win big at Grammys. 2020. Dis-
ponível em: https://apnews.com/article/us-
news-ap-top-news-hip-hop-and-rap-basketball-
music-9aceafe2574d6ee0dc7aae308ae6926a. ↩
[6] SCHINO, Gabriele. Grooming and agonis-
tic support: a meta-analysis of primate recipro-
cal altruism. Behavioral Ecology, Oxford, v. 18,
n. 1, p. 115-120, jan. 2007. ↩
[7] DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta.
Companhia das Letras, 2007. ↩
[8] HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma Breve
História da Humanidade. L&Pm, 2015. ↩
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[9] HALLY, David. King: e Social Archaeo-
logy of a Late Mississippian Town in Northwes-
tern Georgia. University Alabama Press, 2008.

[10] STODDER, Ann L W (ed.). e Bioar-
chaeology of Individuals. University Press Of
Florida, 2012. ↩

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Privilégio e oportunidade

É necessário no processo de aprender a pedir


ajuda que a gente reconheça nossos privilégios,
ou seja, as suas características que tornam mais
fácil obter o que você quer. Em uma cultura em
que só tem valor aquilo que você faz sem ajuda
nenhuma, vejo pessoas se sentindo culpadas por
fazer uso dos recursos que têm a sua disposição,
como se aquilo fosse de alguma forma errado.
Na verdade, é no processo de reconhecer seus
privilégios que você deve aprender a importân-
cia de usá-los. Se os seus pais podem te indicar
para uma entrevista de emprego, ótimo. Um
amigo seu trabalha na rádio e pode tocar a mú-
sica da sua banda? Excelente. Você faz jus a um
programa de bolsas? Aproveite.
Talvez você tenha lido o parágrafo anterior e
pensado “mas isso não é justo”. De fato, não é.
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Na nossa sociedade as oportunidades são dividi-
das de maneira desigual, e preconceitos estrutu-
rais afetam essa distribuição de forma a concen-
trar o poder em uma classe dominante com ca-
racterísticas específicas de gênero e raça. Mas
aqui está o problema: você individualmente
abrir mão do seu privilégio não ajuda ninguém.
Seu sofrimento não ajuda ninguém. Quando a
sua mãe tentava convencer você a comer toda a
comida no prato “porque tem crianças passando
fome na África”, a sua comida em excesso não
era magicamente transportada para quem preci-
sava. Da mesma forma, a sua abnegação sozinha
não faz nada para tornar a sociedade menos de-
sigual. Se você verdadeiramente não quer ser hi-
pócrita, se a desigualdade realmente é uma pre-
ocupação para você, junte-se a um coletivo e
faça parte da luta por mudanças concretas. O
que você não pode fazer é usar do sofrimento
dos outros para se sentir moralmente superior
ao abrir mão das suas vantagens, como se sofrer
negando seus privilégios tornasse alguém mais
nobre. Não devemos romantizar o sofrimento.
Não existe nada mais privilegiado do que negar
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os próprios privilégios. Da mesma forma que
uma pessoa não tem culpa de nascer pobre,
igualmente ninguém tem culpa de ter nascido
em uma família rica. Você já pensou que na ver-
dade não faz sentido se sentir culpado por coisas
sobre as quais você não teve controle nenhum?
Se você faz parte de um grupo que sofre dis-
criminação estrutural, aí então você deve dupla-
mente se aproveitar de todas as oportunidades
que estiverem ao seu alcance. Já tive pacientes
negros que se recusaram a participar do progra-
ma de cotas raciais da sua universidade, por
exemplo, na justificativa de que outra pessoa
ainda menos privilegiada poderia fazer uso da
vaga. Esse não é um argumento que se sustenta.
Programas de ação afirmativa não são Olimpía-
das da desgraça, buscando o coitado mais desa-
fortunado para dar uma esmola. Pelo contrário,
eles têm como objetivo elevar e capacitar uma
liderança negra capaz de usar o seu status e co-
nhecimento para pressionar por políticas públi-
cas, concorrer a altos cargos e usar esse poder
para ajudar a população negra como um todo.
Corrigir uma injustiça histórica não é um favor,
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é uma obrigação que a sociedade brasileira mal
engatinha no caminho de cumprir. Seu critério
para participar das cotas não deve ser se há al-
guém que precisa mais que você, e sim se você é
capaz de fazer bom uso dessa oportunidade.
Até porque essa escassez de oportunidades
surge de uma disfunção mais ampla da socieda-
de. Não é culpa sua que exista fome, ou que o
governo não ofereça vagas suficientes nas uni-
versidades federais, nem que as pessoas precisem
disputar empregos degradantes para manter um
teto sobre as suas cabeças. Porém, uma série de
discursos na nossa sociedade tenta individuali-
zar a culpa desses problemas: não tem emprego
quem não quer trabalhar, quem não passa na fa-
culdade não estudou o suficiente, se está passan-
do fome provavelmente gastou o dinheiro com
crack.
Um exemplo gritante dessa individualização
da culpa é o conceito de “pegada de carbono”
no contexto do aquecimento global. A ideia é
medir quanto gás carbônico foi liberado na at-
mosfera como resultado das atividades de cada
indivíduo. Existe até uma calculadora online
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[11] para você descobrir exatamente como os
seus hábitos pessoais estão colaborando para a
destruição do planeta. Depois de acessar a cal-
culadora e verificar qual é a sua parcela de cul-
pa, talvez você se pergunte quem exatamente
está por trás dessa ideia.
Bem, a logomarca simpática com uma flor
adornada pela sigla “bp” no rodapé da calcula-
dora representa a antiga British Petroleum, a
sexta empresa mais poluidora do planeta [12].
Em 2004, o departamento de marketing da BP
criou o termo “pegada de carbono” com o obje-
tivo de desviar a culpa do aquecimento global
para as pessoas comuns [13]. Na lógica absurda
da pegada de carbono, mesmo uma pessoa sem-
teto nos EUA ainda seria “responsável” pela
emissão de mais de oito toneladas de gás carbô-
nico por ano [14], o dobro da média mundial.
Se mesmo um indivíduo sem posses materiais
ainda teria uma pegada insustentável, é óbvio
que a culpa do aquecimento global não é das
pessoas, e que os seus hábitos individuais não
são capazes de afetar significativamente a situa-
ção. Mas a ideia de responsabilidade individual
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é conveniente para as empresas e governos que
se beneficiam do uso de combustíveis fósseis, e
portanto essa narrativa se espalha ao tom de
campanhas de marketing milionárias. Assim co-
metemos o erro de tratar o problema de manei-
ra pontual e individualizada, quando na realida-
de a única solução seria lidar com a questão de
maneira estrutural e coletiva.
Ao individualizar essa culpa, é criada uma ar-
madilha cognitiva onde passamos a acreditar
que basta mudar nosso próprio comportamento
para fazer uma diferença. Na verdade, um pro-
blema estrutural dificilmente pode ser resolvido
no nível individual. Ainda que seguíssemos esse
discurso individualista, mesmo que toda a po-
pulação mudasse radicalmente seus hábitos, sem
mudanças no nível governamental, internacio-
nal e das grandes empresas não haveria uma
mudança significativa no ritmo do aquecimento
global. O mesmo vale para uma variedade de
outros problemas, do ensino superior ao racis-
mo, do consumo de água ao desmatamento. O
discurso da culpa individual mascara esses pro-
blemas estruturais.
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Agora, se uma parcela da população se orga-
nizar politicamente para reivindicar uma políti-
ca ambiental melhor; ou um financiamento
adequado do ensino público; ou por ações es-
truturais contra o preconceito e discriminação,
aí sim poderíamos ver resultados. Não sinta cul-
pa, sinta indignação e lute coletivamente para
que haja uma abundância de oportunidades, de
forma que você não precise mais se sentir mal
por estar usando das ferramentas ao seu alcance
para tornar sua vida um pouco mais fácil. Seu
sofrimento individual pode até ser um tanto po-
ético, mas ele não ajuda ninguém.

[11] Know your carbon footprint. Disponível


em: https://www.bp.com/en_gb/target-neu-
tral/home/calculate-and-offset-your-emissi-
ons.html. ↩
[12] THE GUARDIAN. Revealed: the 20 firms
behind a third of all carbon emissions. Disponí-
vel em: https://www.theguardian.com/environ-
ment/2019/oct/09/revealed-20-firms-third-car-
bon-emissions. ↩

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[13] KAUFMAN, Mark. e carbon footprint
sham. Disponível em: https://mashable.com/fe-
ature/carbon-footprint-pr-campaign-sham. ↩
[14] MIT NEWS. Leaving our mark. Disponí-
vel em: https://news.mit.edu/2008/footprint-
tt0416. ↩

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Desconstruindo a culpa

Deixar de fazer uso dos recursos à sua disposi-


ção é apenas uma das manifestações da culpa
que muitas vezes nos impede de pedir ajuda.
Mas o que é a culpa? Etimologicamente, essa
palavra costumava descrever a responsabilidade
moral causada por uma ação incorreta [15]. Ou
seja: ao cometermos um erro, incorremos tam-
bém na obrigação de corrigi-lo, e essa seria a
culpa. Porém, nos dias de hoje, a culpa tomou
outro lugar em nosso subjetivo.
Psicologicamente, é comum a culpa preceder
o suposto erro em si. Essa culpa preventiva é
uma ferramenta social que reprime comporta-
mentos indesejados. Por exemplo, muitos de
nós cometemos pequenos furtos na nossa infân-
cia, talvez pegando dinheiro na carteira dos nos-
sos pais para comprar doces. A descoberta dessa
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transgressão e a bronca subsequente geram a
culpa, que a partir daí retorna quando passamos
por uma situação semelhante.
Esse comportamento se torna disfuncional
quando sentimos culpa por simples pensamen-
tos, ou por ações que não seriam um erro mes-
mo se concretizadas. No caso de pedir ajuda, é
comum sentir culpa por se tornar um estorvo,
por incomodar os outros ou por não ser “forte”
o suficiente para se virar por conta própria. Ob-
viamente, nada disso seria uma ação falha ou
um erro que então estaríamos moralmente obri-
gados a resolver. Como já discutimos, ninguém
é uma ilha, e pedir ajuda é uma parte funda-
mental da vida de todos nós.
De maneira geral, a culpa é um sentimento
improdutivo que tende a piorar a situação ao
invés de corrigi-la. Uma das dinâmicas mais co-
muns é usar a culpa como autoflagelação, um
chicote psicológico que serve simultaneamente
como punição por um ato transgressivo e per-
missão para cometê-lo novamente.
Explico: uma vez que você pagou o preço do
seu ato com a culpa, você está moralmente puri-
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ficado para repetir o ciclo sem mudar nada. De
fato, a culpa tem esse local muito enganador
dentro do nosso subjetivo, pois ao mesmo tem-
po em que ela faz a gente se sentir horrível, ela
também faz a gente se sentir bem. Com a culpa
você pode se dar um tapinha nas costas dizendo
“tudo bem por ter errado, pelo menos você sabe
que não é um monstro, afinal, veja o quanto
você está se sentindo culpado”. Para o nosso
senso comum, é isso que significa justiça: puni-
ção. No momento em que me aplico, por meio
da culpa, uma sentença punitiva pelos meus
próprios crimes, eu me torno também absolvi-
da, afinal já paguei pelos meus pecados.
Vemos aqui novamente a falsa narrativa de
que sofrer é uma forma de enobrecimento. Uma
vez com os crimes pagos e a punição aplicada já
sendo suficiente, não existe mais uma necessida-
de de reparação. Por outro lado, quando você se
culpa e se autoflagela, isso também te corrói e
enfraquece, faz você sofrer, tira as suas forças
para buscar uma solução, uma reparação ou
uma forma de corrigir seus erros. A culpa não
deixa essa reflexão acontecer. O sofrimento é
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tanto que normalmente a única coisa que você
consegue fazer é se sentir mal consigo mesmo.
E, mais uma vez, seu sofrimento não beneficia
ninguém.
Por exemplo, no meio jurídico vem ganhan-
do força o conceito de justiça restaurativa. Se a
lógica comum do sistema de justiça é encontrar
um culpado e aplicar a punição correspondente,
o propósito da justiça restaurativa é empoderar
a vítima no curso do processo, atender suas ne-
cessidades e reparar na medida do possível o
dano que ela sofreu. O ofensor, por sua vez,
passa por um processo de responsabilização em
que é levado a compreender o sofrimento que
causou e a necessidade de reparação, ao invés de
ser simplesmente submetido à violência do Es-
tado como punição. Essa política alternativa é
recomendada pelo Conselho Nacional de Justi-
ça desde 2016 [16], e vem demonstrando bons
resultados na resolução de casos de violência do-
méstica, entre outros.
Reparar uma injustiça muitas vezes envolve a
negociação: sentar com o outro, admitir a sua
vulnerabilidade e tentar chegar a um lugar onde
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ambos se sintam minimamente satisfeitos com
o resultado, ainda que provavelmente ninguém
vai ter exatamente o que quer. A culpa e a cor-
respondente autoflagelação são um curto-circui-
to nesse processo, uma forma de evitar envolver
o outro na discussão ou reavaliar seu próprio
comportamento. Pode ser ainda uma forma de
eliminar a necessidade de um pedido de descul-
pas: “já passei por todo esse sofrimento me cul-
pando, ainda tenho que pedir desculpas? Aí já é
demais”.
Se culpa não costuma ajudar nem com atos
verdadeiramente problemáticos, sentir culpa
por questões banais e cotidianas como precisar
pedir ajuda é ainda mais disfuncional. A culpa,
tendo como ponto gerar sofrimento, vai precisar
então moldar nossas narrativas internas, tornan-
do dentro das nossas cabeças tudo muito maior
e pior do que parece. Logo, essas narrativas pre-
cisam ser maldosas: se você pede ajuda você é
um estorvo, você só cria problema, você é um
incapaz por estar dando trabalho para os outros.
A culpa é um dos motivos mais comuns para
que as pessoas se recusem a pedir ajuda, e por
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isso precisamos desconstruí-la para fazer uso dos
recursos ao nosso redor.
Uma outra forma em que a culpa nos atrapa-
lha é quando usamos ela como arma. Aqui, o
problema é punir o comportamento de outra
pessoa fazendo com que ela se sinta culpada de
maneira vaga e indefinida. É normal que a pes-
soa sinta culpa porque pisou na bola. Porém, às
vezes nós usamos essa superioridade moral para
torturar a pessoa, reforçando essa culpa em toda
oportunidade sem oferecer uma forma de repa-
ração. O exemplo estereotípico seria a traição:
uma vez traído, é comum em nossa psique que-
rer um pouco de vingança. Mas manter a pessoa
rastejando eternamente em busca de uma re-
denção que nunca virá é contraproducente para
ambos e só multiplica o ressentimento mútuo,
especialmente quando você pretende continuar
nesse relacionamento. E não sendo o caso, por
que você está perdendo tempo punindo alguém
com quem não vai mais ter contato? Uma abor-
dagem mais produtiva estaria ou em estabelecer
um caminho de reparação e perdão ou em en-
cerrar o relacionamento de vez.
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Naturalmente, a nossa relação com a culpa
sofre grande influência cultural da religião, que
desde os primórdios buscou estabelecer uma re-
lação de causa e consequência entre o infortúnio
e o descumprimento das suas regras. Se a colhei-
ta falhou, certamente foi porque não sacrifica-
mos ovelhas suficientes, atraindo a justa ira dos
deuses. Como exemplo desta distorção cogniti-
va, há quem acredite que o ator Paulo Gustavo
morreu de COVID-19 como punição divina
por ser gay. Nosso desejo por controle torna es-
sas narrativas atrativas: é ironicamente melhor
imaginar que a culpa é sua do que reconhecer
que coisas ruins acontecem aleatoriamente.
Deus pode ser vingativo e cruel, mas se você se-
guir Suas regras você estará seguro. Nessa visão,
há um caminho para a tranquilidade, ainda que
ninguém consiga segui-lo na prática.
Existe um nome para esse fenômeno: a Falá-
cia do Mundo Justo [17]. É o nosso viés cogni-
tivo que acredita que as ações das pessoas são
sempre seguidas por consequências apropriadas.
Ou seja, coisas boas acontecem com quem faz o
bem e coisas ruins acontecem com quem faz o
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mal. Essa falácia existe como uma tentativa de
colocar ordem no caos. Basta que eu evite certos
comportamentos nocivos que coisas ruins não
vão acontecer comigo. Pensar que vários eventos
acontecem de forma aleatória, não tendo ne-
nhuma relação com o bem ou o mal, é algo pro-
fundamente angustiante para as pessoas. Porém,
a Falácia do Mundo Justo ironicamente reforça
injustiças. Afinal, se você só será punido se fizer
algo ruim, então se uma tragédia acontecer a
única explicação compatível com essa visão de
mundo é que você fez algo para merecer aquilo.
Este pensamento também traz um local de con-
formismo, pois “o mundo dará o que essa pes-
soa merece”, “você colhe o que você planta” e “o
castigo vem a galope”. Para que fazer algo eu
mesma se o universo com sua justiça cármica
vai resolver tudo por mim?
Uma falácia é uma narrativa falsa que aparen-
ta ser verdadeira e que, normalmente, é acatada
pela sociedade como explicação de algo. Neste
caso, a Falácia do Mundo Justo “explica” e “jus-
tifica” de forma simplista as vivências das pesso-
as, mas desconsidera todos os fatores que influ-
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enciam a vida de alguém. Com isso, a ideia de
que o mundo é justo causa visões distorcidas do
que realmente acontece. Nem sempre uma pes-
soa que faz boas ações é reconhecida por isso - e
abundam exemplos de pessoas que prejudicam
outras e saem impunes dessas situações. A dis-
torção é tão forte que ironicamente pessoas que
acreditam em um mundo justo têm uma maior
probabilidade de cometerem elas mesmas atos
desonestos [18].
Mas por que essa falácia existe? Primeiramen-
te, nosso cérebro é programado para procurar
por relações de causa e consequência mesmo
onde elas não existem. Nas savanas em que evo-
luímos, se um colega de tribo morreu depois de
comer umas amoras esquisitas, era mais seguro
presumir que esses eventos estão conectados e
evitar o mesmo comportamento. Se fulano foi
andar sozinho e acabou devorado, a tribo pode
derivar uma lição útil em tornar aquele compor-
tamento tabu. Mesmo quando essas conexões
estavam erradas - como nas superstições - o cus-
to de estar errado era muito menor que o bene-
fício de estar certo. No nosso ambiente moder-
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no, porém, esse atalho cognitivo nos leva a inú-
meras crenças irracionais, entre elas essa falácia.
Psicologicamente, a Falácia do Mundo Justo
também é uma grande fonte de conforto diante
da nossa fragilidade e vulnerabilidade. Quando
nos deparamos com uma situação desagradável,
nossa reação natural é de tentar evitar que o
mesmo aconteça conosco, tomando a decisão de
agir de maneira diferente da vítima. Se foram as
ações da vítima que a colocaram naquela situa-
ção, então evitar o mesmo destino é algo que
está sob seu controle. Acredito que esse seja o
mecanismo que torna mulheres o principal pú-
blico de séries e podcasts de assassinatos e serial
killers. O pensamento de que algo trágico pode
acontecer conosco independentemente dos nos-
sos esforços é terrível demais para se contem-
plar. Porém, a falsa segurança de que tudo vai fi-
car bem se nos comportarmos direito é ainda
mais perigosa, estruturalmente falando.
Por fim, essa falácia age para diminuir a ansi-
edade diante das injustiças que o mundo pro-
porciona. Dessa forma, se torna mais palatável
atribuir total responsabilidade às pessoas pelo
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que acontece com elas, certos de que ainda que
o mundo não seja perfeito, ele pelo menos é jus-
to.
É importante lembrar que nossas vidas são
muito mais complexas do que a divisão entre o
bem e mal, e que isso não determina exclusiva-
mente nossas vivências. Então da próxima vez
que você pensar “o que eu fiz pra merecer isso?”
tente levar em consideração que a resposta “você
não fez nada de errado” também é uma opção.
E ainda que você tenha feito algo de errado, isso
não significa que você deixa de merecer empatia
e ajuda, e muito menos que sentir culpa por
seus atos é o suficiente para reparar seu erro.
Mas para aqueles que vivem acreditando que
toda ação é monitorada por um juiz onisciente,
a única alternativa é adotar um estado de hiper-
vigilância onde o menor deslize pode custar a
sua alma imortal. Essa preocupação exagerada,
transmitida culturalmente, afeta mesmo aqueles
entre nós que não seguem um deus tão puniti-
vo, ou que sequer acreditam na existência divi-
na. Para quem tem essa culpa internalizada, o
pior juiz é você mesmo.
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Um pequeno truque que pode ajudar a dri-
blar esse algoz é examinar a situação como se
fosse com outra pessoa. Imagine que uma pes-
soa muito querida estivesse na mesma posição
que você. Você pensaria menos dela se ela pedis-
se ajuda? Você consideraria ela um estorvo?
Você esperaria que ela fosse capaz de lidar com
tudo sozinha? Ou que se ela está pedindo ajuda
para consertar um erro, é porque ela merece so-
frer como punição? Não é razoável esperar de
você o que você não espera de mais ninguém. E
se você não faria isso com uma pessoa querida,
que tal começar a pensar em você mesmo como
uma pessoa querida?
Outras perguntas que você pode se fazer para
refletir e evitar cair na armadilhas da culpa e da
Falácia do Mundo Justo:

Será que eu não estou tentando encaixar


uma situação complexa em uma resposta
simples?
Realmente faz sentido falar de Bem e Mal
nesse contexto?
Eu estou tentando melhorar a situação ou
só encontrar um culpado para punir?
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Existe mesmo uma relação de causa e con-
sequência entre o que aconteceu?
Você realmente cometeu um erro que justi-
fique sentir culpa?
Se sim, há algo que você pode fazer para re-
parar a situação, ainda que simbolicamen-
te?

[15] BUCK, Carl Darling. A Dictionary of Se-


lected Synonyms in the Principal Indo-Europe-
an Languages. University Of Chicago Press,
1988. ↩
[16] CNJ. Justiça Restaurativa. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/justi-
ca-restaurativa/. ↩
[17] Melvin J. Lerner, e Belief in a Just
World: A Fundamental Delusion, (New York:
Plenum Press, 1980). ↩
[18] WENZEL, Kristin; SCHINDLER, Si-
mon; REINHARD, Marc-André. General Beli-
ef in a Just World Is Positively Associated with
Dishonest Behavior. Front. Psychol., v. 1770, n.
8, out. 2018. Disponível em:

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https://dx.doi.org/10.3389%2Ffpsyg.2017.017
70. ↩

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Epistemologia do sofrimento

Ainda que a gente consiga superar a culpa, na


outra ponta do processo existe ainda uma outra
armadilha que nos atrapalha a pedir ajuda: nós
tendemos a menosprezar as conquistas que fo-
ram alcançadas com outras pessoas, no entendi-
mento de que “assim também é fácil”. Certa-
mente o nível de dificuldade para atingir um
mesmo objetivo pode variar bastante dependen-
do das circunstâncias, mas por que isso deveria
diminuir o valor do objetivo em si?
Como exemplo, vamos considerar o pico de
uma montanha. De fato é mais impressionante
escalar a montanha sozinho e sem equipamento.
De um ponto de vista esportivo, faz sentido dar
mais reconhecimento para aqueles que conse-
guem realizar um feito da maneira mais difícil.
Mas se existe alguém perdido na montanha es-
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perando resgate, não é melhor ir de helicóptero
buscá-lo? Nesse caso o mérito não estaria em fa-
zer as coisas da forma mais fácil e segura?
Sua vida não é uma corrida. Ao fim da jorna-
da, ninguém vai distribuir medalhas de acordo
com a dificuldade relativa do seu percurso. Pe-
gar o caminho mais difícil só para provar que dá
conta é um enorme desrespeito com aqueles que
não têm essa escolha.
Entretanto, nossa cultura está cheia de men-
sagens que pregam a futilidade do que é sim-
ples. “O que vem fácil vai fácil”, diz o ditado, e
o lema da maromba é “no pain, no gain”. Inver-
samente, tudo que causa incômodo ganha um
ar de legitimidade. Por exemplo, se alguém faz
um elogio a gente pensa que foi só por educa-
ção, mas encaramos as críticas e ofensas como se
fossem sinceras. Acaba que a medida de uma
conquista é quanta dor ela causou.
Nessa epistemologia masoquista, quanto mais
sofrimento, mais verdadeiro. O que dói é de al-
guma forma mais real, mais honesto, mais valio-
so. Por exemplo, o amor que uma mãe sente é
julgado pela quantidade de sacrifícios, abnega-
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ção e sofrimento que ela teve que passar para
criar os seus filhos, e esse sofrimento é por sua
vez justificado pela imensidade desse amor.
Aqui o sacrifício vem como forma de engrande-
cer e dar legitimidade para esse amor. Mesmo
quando aprendemos na vida adulta que o amor
não deve ser um sofrimento constante, temos
aqui dois discursos conflitantes, e muitas vezes o
discurso do sofrimento como forma de demons-
trar afeto acaba prevalecendo. Logo, retribuir o
amor de mãe também vira algo a ser pago na
mesma medida de sofrimento. Já presenciei di-
versas famílias com condições financeiras de
contratar uma enfermeira para cuidar dos pais
em sua velhice, mas que se recusam a fazê-lo
porque cuidar dos próprios pais seria uma obri-
gação, em uma lógica interna de dívida a ser
paga. Contratar uma enfermeira seria fácil de-
mais.
Consigo ver uma leve melhora nesse sentido
nas gerações mais novas, o que por sua vez gera
um conflito entre gerações. É comum pais da
geração anterior terem sido criados em um con-
texto que propiciou um embrutecimento afeti-
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vo, logo acabam ficando ressentidos quando
uma das suas únicas formas aprendidas de de-
monstrar amor é questionada. Especialmente
quando eles tiveram que sacrificar tanto para
conseguir fazer o que eles aprenderam que era o
importante: prover a abundância material.
“Nem que eu precise me matar de trabalhar,
vou dar aos meus filhos tudo que eu não tive”,
eles pensam, e deixam faltar demonstrações de
amor que não envolvem o sofrimento. Afinal,
sentar para ouvir meu filho atentamente e dar
palavras de apoio seria muito simples, logo não
deve ser essa a resposta certa.
Um dos mecanismos mentais que explica o
valor que damos ao que nos faz sofrer é a racio-
nalização. Nosso corpo naturalmente evita estí-
mulos negativos, então se estamos nos expondo
voluntariamente a um, nosso cérebro precisa
justificar o que está acontecendo. Por exemplo,
se estamos usando um remédio ardido, a única
explicação racional é que a dor é necessária. Sa-
tisfeito com essa lógica, nosso cérebro cria um
precedente e faz a mesma associação entre dor e
resultado em outras situações: na academia
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(“isso me cansa mas eu gosto do resultado”), no
trabalho (“eu vou fazer hora extra pra comprar
algo que eu gosto”) e em hobbies (“praticar é
chato, mas é o único jeito de ficar bom”). A ra-
cionalização é uma ferramenta potente para re-
solver a dissonância cognitiva entre o que você
está escolhendo fazer e os sinais negativos do
seu corpo.
Mas nem tudo são flores, e o problema é que
a racionalização acaba criando uma associação
positiva com o sofrimento. Nosso cérebro inver-
te a lógica: se o sofrimento pode levar a coisas
boas, então passamos a acreditar que o sofri-
mento em si é uma coisa boa. Assim caímos em
relacionamentos tóxicos (“se eu não fui embora
é porque realmente amo essa pessoa”), nos feri-
mos em um exercício (“se está doendo é porque
está funcionando”) e somos explorados pelas
empresas (“eu me mato de trabalhar porque
amo o que eu faço”). Infelizmente, não é verda-
de que o que não mata nos fortalece. Às vezes o
sofrimento nos diminui, nos torna frágeis, nos
quebra. Por isso é tão importante ser capaz de
reconhecer quando a dor é demais e que, em
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muitos contextos, para sair dessa situação preci-
samos pedir ajuda.
Como lidar com essa racionalização? Estar ci-
ente de que a racionalização existe já é um óti-
mo começo para diminuir os seus impactos ne-
gativos. Sabendo que seu cérebro vai tentar jus-
tificar todo comportamento que causa sofri-
mento, você pode tentar analisar a situação de
uma maneira mais objetiva, pesando os verda-
deiros benefícios contra os custos. “Eu realmen-
te gosto desse relacionamento ou estou raciona-
lizando meu medo de ficar sozinha?” ou “talvez
eu não queira admitir que o treino que me pas-
saram na academia está errado porque eu já pa-
guei seis meses adiantado?” ou “eu realmente
amo meu trabalho ou eu abuso desse local pois
aqui é o único lugar onde eu me sinto reconhe-
cida?”. A racionalização muitas vezes acontece
como uma tentativa do seu cérebro de distrair
você de uma percepção que ele julga mais dolo-
rosa do que continuar naquele estado. Pedir aju-
da, nesse contexto, é uma forma de escapar do
ciclo de sofrimento e culpa. Nesse caso, um psi-
cólogo é de grande valia, pois como uma pessoa
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de fora com olhar treinado para perceber esses
fenômenos, ele pode te ajudar com as ferramen-
tas necessárias para que você consiga sair dessa
romantização do sofrimento.

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Pedindo ajuda para quem odeia
você

Nós falamos sobre a importância de escolher a


pessoa certa para pedir ajuda. Porém, há cir-
cunstâncias em que você pode querer pedir aju-
da justamente para as pessoas que não vão com
a sua cara.
Existe um efeito colateral interessante no ato
de ajudar alguém. Como discutimos, nosso cé-
rebro gosta de usar o mecanismo mental da ra-
cionalização para resolver dissonâncias cogniti-
vas, inventando uma justificativa posterior para
explicar o motivo de ter agido de uma forma
aparentemente contraditória.
Para mostrar quão extrema essa tendência é,
considere o caso de pacientes com hemisférios
cerebrais separados, que o psicólogo Daniel

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Kahneman relata em seu livro Rápido e Deva-
gar: Duas Formas de Pensar [19].
Nosso cérebro é composto de duas metades,
conectadas por uma área central chamada de
corpo caloso. Normalmente cada hemisfério
executa as suas respectivas tarefas e o corpo ca-
loso permite que os dois lados se comuniquem
para coordenar ações que envolvem ambos. Por
exemplo, se você observar algo com seu olho es-
querdo, essa informação é processada pelo lado
direito do seu cérebro (os nervos são cruzados).
Mas se você quiser falar sobre o que viu, essa é
uma atividade geralmente coordenada pelo lado
esquerdo do cérebro, então os dois lados preci-
sam se comunicar para coordenar a visão com a
fala.
O que acontece então com pessoas que não
têm o corpo caloso e não podem realizar essa
comunicação? Surpreendentemente, é possível
ter uma vida funcional com dois hemisférios
que não conversam entre si, e cortar o corpo ca-
loso cirurgicamente chegou a ser um tratamento
para casos extremos de epilepsia. Mas como o

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cérebro dessas pessoas resolve conflitos entre
suas duas metades isoladas?
Em um experimento, um paciente com cére-
bro bipartido teve imagens diferentes mostradas
para cada olho: neve apenas para o olho direito
e um pé de galinha apenas para o olho esquer-
do.
Em seguida, quatro cartas com desenhos fo-
ram colocadas na frente do paciente, para que
ele escolhesse duas - uma com cada mão - que
combinassem com as imagens que ele tinha vis-
to. Com a mão esquerda ele apontou para a car-
ta com uma pá, e com a direita para uma gali-
nha. Ou seja: o hemisfério que viu a neve esco-
lheu a carta da pá, e o hemisfério que viu o pé
de galinha escolheu a carta com uma galinha.
Finalmente, os pesquisadores pediram que ele
explicasse por que ele havia escolhido aquelas
cartas. O problema é que conversar é uma ativi-
dade que envolve primariamente o hemisfério
esquerdo do cérebro, mas esse hemisfério só viu
a imagem do pé de galinha. O hemisfério direi-
to, que viu a imagem da neve, não tinha como
se comunicar com a parte do cérebro que estava
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criando a explicação. Como o hemisfério es-
querdo viu o pé de galinha, explicar a carta da
galinha era fácil. Mas como justificar a carta
com a pá?
Sem hesitar, o paciente explicou que ele esco-
lheu a carta da pá porque ele viu a imagem do
pé de galinha, e seria necessária uma pá para
limpar a sujeira de um galinheiro. Ou seja: sem
ter uma boa explicação de por que ele teria es-
colhido a carta com a pá, o hemisfério esquerdo
simplesmente inventou uma história que mais
ou menos fazia sentido com o que ele tinha vis-
to, sem que o paciente sequer estivesse ciente de
que estava inventando.
Cérebros bipartidos são interessantes porque
permitem exemplos extremos deste fenômeno,
mas a verdade é que todos nós funcionamos as-
sim. Normalmente pensamos em nós mesmos
como atores racionais, que pensam sobre um as-
sunto antes de tomar uma decisão. Na verdade,
o mecanismo mais comum é o oposto: nosso
cérebro enxerga o resultado e retroativamente
inventa uma justificativa para que você tenha
agido daquela maneira.
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Uma consequência disso é que é difícil para o
cérebro oferecer ajuda para uma pessoa que você
detesta e então continuar não gostando dela. Ao
registrar que você está gastando tempo e esforço
com alguém, a racionalização natural é “bom,
eu devo gostar muito dessa pessoa para estar me
dando todo esse trabalho”.
Os pesquisadores Jon Jecker e David Landy
estudaram esse efeito em 1969 [20]. Participan-
tes no estudo foram instruídos a realizar uma
série de tarefas e informados que receberiam
uma pequena recompensa financeira pelo traba-
lho. Eles foram então separados em grupos: para
o primeiro grupo, um pesquisador pedia que a
recompensa fosse devolvida, porque ele estaria
pagando do próprio bolso. Para o grupo de con-
trole, não foi pedido que a recompensa fosse de-
volvida.
Depois de decidirem devolver ou não o di-
nheiro, os participantes preencheram um ques-
tionário que perguntava o quanto eles gostaram
dos pesquisadores. O primeiro grupo consisten-
temente atribuiu as melhores notas em compa-
ração com o de controle. Ou seja: o grupo que
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ficou sem recompensa monetária nenhuma,
para justificar psicologicamente os seus atos,
concluiu que na verdade gostava do pesquisador
e por isso decidiu apoiar os seus esforços de gra-
ça.
Uma interpretação alternativa desse efeito
pode ser que seres humanos reconhecem um pe-
dido de ajuda como uma tentativa de aproxima-
ção e tendem a reagir favoravelmente. Nessa hi-
pótese, não é que o cérebro da pessoa se confun-
de, mas sim que pedir ajuda é um ato de vulne-
rabilidade e de humanidade compartilhada, e
portanto algo que faz com que a pessoa passe a
ver você de uma forma mais generosa.
Seja como for, pedir ajuda pode ser uma for-
ma potente de reverter relações ruins. Nem
sempre funciona - a pessoa pode simplesmente
se recusar a ajudar ou achar que você está sendo
folgado - mas não deixa de ser uma ferramenta
para converter até mesmo seus inimigos em par-
te da sua rede de apoio. E claro, não esqueça de
retribuir a ajuda - talvez você também descubra
que aquela pessoa não é tão ruim assim, afinal
de contas.
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[19] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar:
Duas Formas de Pensar. Objetiva, 2012. ↩
[20] Jecker, Jon; Landy, David. Liking a Person
as a Function of Doing Him a Favour. Human
Relations. 22 (4): 371–378. ↩

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RECEBENDO AJUDA

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Como ajudar a te ajudar

Então você conseguiu superar nosso viés cultu-


ral individualista e decidiu pedir ajuda como
um adulto responsável. YEY! Mas e agora?
O primeiro passo é escolher para quem pedir
ajuda. Esta escolha precisa ser estratégica, e não
baseada apenas em quem é seu amigo mais pró-
ximo. Pense em quem de fato pode ter os meca-
nismos e recursos para te ajudar. Se você precisa
desabafar, talvez seu pai emocionalmente dis-
tante não seja a melhor escolha; e se você preci-
sa de dinheiro, sua amiga endividada dificil-
mente vai resolver o seu problema. Muitas vezes
você pode não conhecer diretamente a pessoa
que tem as habilidades para te ajudar. Nesses ca-
sos, sugiro pensar em quem poderia indicar a
direção certa para encontrar essa pessoa.

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Na verdade, escolher a pessoa errada para pe-
dir ajuda é um tipo comum de autossabotagem,
uma forma de comprovar narrativas de solidão e
isolamento. “Viu, eu sabia que não podia confi-
ar em ninguém”, diz o sapo que resolveu carre-
gar um escorpião nas costas.
Queria contar uma história para vocês. Uma
vez eu estava viajando para Cuiabá e no fim des-
sa viagem comecei a passar muito mal. Quando
peguei o avião de volta tinha certeza que havia
algo errado. Mesmo sendo uma pessoa que
odeia hospitais e ir ao médico, eu sabia que era
exatamente o que devia fazer quando pisei em
Brasília. Porém, tinha medo dos meus pais não
entenderem a gravidade da situação, mesmo
porque eu estava com muita dor e mal conse-
guia explicar direito o que estava acontecendo.
Precisava de alguém que só fizesse o que eu pre-
cisava sem questionar, alguém que fosse levar a
situação a sério e tivesse um carro para me levar
até o hospital. Encontrei essa pessoa na minha
lista de amigos, ele prontamente concordou e
me levou ao hospital. Fizeram os exames e iden-
tificaram um quadro grave de pielonefrite.
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Quando finalmente me recuperei, os médicos
me falaram que se eu tivesse demorado mais um
pouco era óbito. O que eu aprendi com isso?

Viva o SUS.
Saiba do que você precisa.
Peça ajuda para as pessoas certas.
Tenha uma rede de apoio.

Essa era uma situação extrema de vida ou


morte, e eu desejo que vocês nunca precisem
testar suas habilidades de pedir ajuda em uma
situação grave como essa. Mas uma vez que pre-
cisei passar por isso, fiquei feliz por ter as habili-
dades e os recursos necessários para sair dessa si-
tuação. Essa, como muitas outras situações em
nossas vidas, se tratava de uma ocasião onde eu
não iria conseguir sair dessa sozinha. Daí vem a
importância de uma rede de apoio e do manejo
dessas habilidades: você nunca sabe quando vai
precisar.
Por mais angustiante que seja, considere ain-
da que ninguém é obrigado a ajudar. Mesmo
que a pessoa tenha recursos de sobra, ela não
tem uma obrigação moral de dividir seu tempo,
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esforço ou dinheiro com você. Oferecer ajuda é
realmente uma atitude nobre, mas negar ajuda
não é um demérito, especialmente porque não
sabemos nunca o verdadeiro estado interior do
outro. Estamos todos travando nossas próprias
batalhas, e ninguém deve lutar a batalha de ou-
tra pessoa por obrigação. Mantenha suas expec-
tativas no lugar, prepare-se para uma eventual
negativa e tenha um plano B em mente.
No fundo, sabemos disso. Sabemos tanto dis-
so que é por isso que muitos de nós não conse-
guem pedir. Pedir ajuda exige uma resposta, e
toda resposta tem a chance de ser um “não”.
Essa negativa faria com que a gente se sentisse
rejeitado e desamparado, então para evitar esses
sentimentos avaliamos que a chance de receber
um “sim” não compensa o risco e a dor de rece-
ber um “não”. Um fenômeno curioso que resul-
ta disso é aquela pessoa que nunca pede nada
diretamente, mas está sempre falando “nossa,
estou tão cheia de dívidas” ou “andar de ônibus
essa hora é tão perigoso”, na esperança de que
alguém pegue a dica e se ofereça a ajudar, ao in-

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vés de efetivamente pedir por um empréstimo
ou uma carona para casa.
Ao pedir por ajuda é provável que uma de
duas coisas aconteça: ou você conseguirá o que
quer ou perceberá que a pessoa para quem você
está pedindo não tem capacidade para fornecer
o que você precisa. Precisamos superar essa bar-
reira da rejeição entendendo que uma resposta
negativa não necessariamente é algo pessoal.
Além disso, é através do pedir e das trocas resul-
tantes disso que começamos a construir uma
rede de apoio.
Boas notícias: como dito em capítulos anteri-
ores, a maior parte das pessoas está disposta a
ajudar de bom grado nas circunstâncias certas.
E por isso, outra forma de ajudar os outros a te
ajudar é ser específico no seu pedido. Não espe-
re que as pessoas leiam sua mente, verbalize as
suas ideias. Se julgar necessário, organize seus
pensamentos em um papel antes de falar com
alguém para se sentir mais confiante.

De que tipo de ajuda exatamente você pre-


cisa?

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Prática?
Emocional?
Tente elaborar quais são as suas necessida-
des e expresse elas da maneira mais clara e
objetiva que conseguir.

Como exemplo, às vezes eu preciso entrar em


contato com acadêmicos para tirar dúvidas so-
bre um estudo ou pedir uma cópia de artigos
que não estão disponíveis para o público. São
pessoas extremamente ocupadas que às vezes
não me conhecem e não têm nenhum motivo
para me ajudar. Mesmo assim, um email curto e
que deixa claro o que eu preciso logo no assunto
tem boas chances de receber uma resposta. Essas
pessoas provavelmente não teriam meia hora
para jogar fora comigo, mas cinco minutos para
responder um email? Bem mais viável.
Outros exemplos de bons pedidos de ajuda
seriam “estou me sentindo triste e preciso de al-
guém para me ouvir desabafar, você está ocupa-
do?”, ou “vou me mudar no domingo e queria
ajuda para carregar uns móveis, você pode vir?”.
Sendo ainda mais específica: “eu realmente só
queria colocar pra fora, não precisa tentar me
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dar conselhos ou resolver meus problemas” ou
“preciso de ajuda com esse trabalho, mas é bem
urgente e preciso entregar isso em três dias, você
realmente tem essa disponibilidade?”.
É importante não abusar. A pessoa está fazen-
do um favor. Seja paciente e não faça cobranças
indevidas ou muito exigentes. De fato, aprender
a pensar no que você está pedindo e a controlar
as suas exigências com o outro pode ajudar a re-
fletir sobre as exigências que você faz consigo
mesmo, e perceber que talvez algumas dessas se-
jam absurdas a ponto de que você não pediria
elas para nenhuma outra pessoa. Se for algo im-
portante, considere contratar um profissional.
Seus amigos não são seus empregados, e tratá-
los como se fossem é um caminho certo para
perdê-los. Fazer pedidos absurdos e depois re-
clamar que ninguém te ajuda é fácil, né?
Existem algumas pegadinhas e nuances às
quais também precisamos ficar atentos. Estabe-
lecer limites claros desde o início facilita: se você
desconfia que a pessoa vai querer tomar o con-
trole de tudo na sua vida só porque você preci-
sou de uma ajuda pontual, verbalize essa preo-
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cupação. Confronte a pessoa sobre essas dúvi-
das, e esclareça até onde você quer ir. Algumas
pessoas enxergam em um pedido de ajuda uma
licença para consertar a vida dos outros como se
fosse um projeto de caridade. Outras, tipica-
mente pais, podem se aproveitar da oportunida-
de para exercer um nível de controle que eles
sentem saudade de ter. Muitas vezes, uma con-
versa honesta sobre as expectativas dessa negoci-
ação pode evitar problemas futuros.
Do outro lado, não é porque a pessoa está fa-
zendo um favor que existe uma liberdade total.
Reconheça que por melhores que sejam as in-
tenções, ajuda também pode atrapalhar, e que
você não tem obrigação de aceitar ajuda de
qualquer jeito. É válido dizer “obrigada por
tudo, mas não acho que isso está dando certo”,
“podemos pensar em uma maneira melhor de
fazer isso funcionar?” ou “agradeço a ajuda, a
partir daqui eu dou conta sozinha”. Se ninguém
é obrigado a oferecer ajuda, evidentemente nin-
guém é obrigado a aceitar ajuda também.
Pedir ajuda tem um local de vulnerabilidade,
não vou mentir, e há quem trate a vulnerabili-
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dade como a marca de uma vítima em potenci-
al. Predadores de todo tipo muitas vezes se
aproveitam dos momentos em que mais precisa-
mos de ajuda, e pode ser difícil identificá-los na
hora. Pessoas que rapidamente já se mostram
muito disponíveis, enchendo você de atenção
logo no início da relação, podem fazer isso para
que um vínculo de forte apego se estabeleça
com rapidez, com a intenção de usar esse apego
como barganha e manipulação. Ou se você mes-
mo é esse tipo de pessoa mas não busca mani-
pular os outros, eu questionaria se você não está
sendo irresponsável na forma como direciona
seus afetos, não é seguro esse nível de dedicação
a pessoas que você mal conhece. Tenha paciên-
cia com o processo.
Felizmente, esses predadores são raros - a
maior parte das pessoas realmente gosta de ser
útil. Em outros capítulos vamos tratar mais a
fundo essa questão, mas brevemente: desconfie
de quem oferece demais e não pede nada ou
não deixa claro o que quer em troca. Uma rela-
ção saudável é recíproca e proporcional, com

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ambas as partes se ajudando em momentos e de
formas diferentes.
E se a pessoa não respeitar os seus limites e
usar o pretexto da ajuda para invadir sua priva-
cidade e autonomia? Lembre-se mais uma vez
que você não é obrigado a aceitar qualquer coi-
sa. Se a ajuda está ruim ou se o custo está muito
elevado, você pode recusar. É melhor ser vista
como uma pessoa ingrata do que deixar que os
outros pisem em você.
A longo prazo, o objetivo é criar uma rede de
apoio, ou seja, aliados diversos que podem ofe-
recer ajuda em uma ampla gama de situações,
que entendam instruções, limites e estejam dis-
postas a dialogar; e onde você também oferece
ajuda de volta. Criar relacionamentos de reci-
procidade é a chave para ampliar essa rede e en-
riquecer sua vida com novas experiências e pers-
pectivas. Por isso, é importante aprender como
retribuir a ajuda que recebemos para cultivar re-
lações equilibradas.

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Como retribuir ajuda

Pelo senso comum escutamos que é ruim fazer


uma boa ação na expectativa de que você vai re-
ceber algo em troca. Na verdade, julgo que rece-
ber algo em troca tem o potencial de ser algo
extremamente benéfico para a relação a longo
prazo. Esse discurso de fazer sem esperar recom-
pensa só nos ensinou a normalizar relações não
recíprocas, e essa ideia de que não devemos es-
perar recompensas mantém uma narrativa de
subserviência. Afinal, fazer o bem já deveria ser
o suficiente, você ainda quer mais? Precisamos
pensar sobre quem essa narrativa beneficia. É
uma maneira de criar pessoas que fazem as suas
tarefas caladas, que não cobram, que são dóceis,
que não reclamam e apenas aceitam o que vier,
se vier.

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Para evitar criar uma relação desigual, é im-
portante que a ajuda tenha um aspecto de reci-
procidade, em que ambos se ajudam ao longo
do tempo. Mesmo entre nossos colegas prima-
tas, um bonobo que se recusa a retirar os pio-
lhos dos outros vai rapidamente descobrir que
ninguém mais quer ajudar a retirar os dele.
Em matemática, o campo da Teoria dos Jogos
estuda cenários hipotéticos para analisar qual se-
ria o comportamento mais vantajoso em uma
determinada situação. O exemplo mais famoso
é o chamado Dilema do Prisioneiro [21], em
que dois suspeitos têm a opção de dedurar o ou-
tro para reduzir a própria pena, mas se ambos
abrirem o bico a pena dos dois será maior do
que se ficassem calados.
No exemplo original, os prisioneiros não são
amigos e não têm oportunidade para coordenar
uma estratégia nem para interagir novamente
depois do jogo. As condições são as seguintes:

Se A e B traírem um ao outro, cada um de-


les será condenado a dois anos de prisão.
Se A trair B mas B ficar calado, A sairá livre
e B será condenado a três anos de prisão.
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Se A ficar calado mas B trair A, A será con-
denado a três anos de prisão e B sairá livre.
Se A e B ficarem ambos calados, os dois se-
rão condenados a apenas um ano de prisão.

A B Pena de A Pena de B
Calado Calado 1 1
Dedura Calado 0 3
Calado Dedura 3 0
Dedura Dedura 2 2

Em teoria, nessas circunstâncias a única atitu-


de racional para A é trair B. Imagine que B vai
escolher colaborar: nesse caso, A pode escolher
trair B e sair livre, a melhor escolha possível. Por
outro lado, se B escolher falar, A pode dedurar
B e ficar preso por dois anos ao invés de três.
Logo, independentemente do que B decidir fa-
zer, a melhor escolha para A é trair B. Obvia-
mente, o mesmo é verdade analisando a situa-
ção do ponto de vista de B.

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O resultado é que dois atores perfeitamente
racionais jogando o dilema do prisioneiro irão
sempre dedurar um ao outro, apesar da alterna-
tiva de ambos ficarem calados ser mais vantajo-
sa.
Explicando de outra forma: para quem está
observando a situação de fora, é óbvio que o
mais vantajoso seria ambos ficarem calados, já
que os dois seriam condenados a apenas um
ano. Mas se A e B estão incomunicáveis e não
há um vínculo de lealdade entre eles, a conclu-
são racional de cada um é que é mais vantajoso
dedurar o outro. Como os dois farão a mesma
coisa, o resultado é que eles passarão dois anos
presos, o dobro do que se colaborassem.
Felizmente, humanos não são atores perfeita-
mente racionais, e desde os primeiros testes da
teoria verificou-se que pessoas têm um viés pela
cooperação [22]. E nas variações do jogo em
condições que se parecem mais com o nosso co-
tidiano social - em que podemos esperar que va-
mos interagir várias vezes com as mesmas pesso-
as e em que podemos lembrar como outras pes-

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soas agiram em relação a nós - a cooperação se
torna ainda mais vantajosa.
Por exemplo, no cenário em que os partici-
pantes jogam um número indeterminado de
partidas e podem lembrar qual foi a ação do
oponente no passado e ajustar a sua escolha de
acordo, uma abordagem válida é a estratégia de
espelhar o comportamento: você começa cola-
borando a princípio, e nas rodadas seguintes re-
pete a jogada do oponente. Ou seja: se B cola-
borou na primeira rodada, A vai continuar cola-
borando. Se B decidir trair A, A vai trair B de
volta na próxima rodada.
Claro, a Teoria dos Jogos lida com situações
idealizadas e simplificadas para um contexto
matemático de pontos. Mas esta estratégia de
“colabore, mas fique esperto” me parece uma
excelente primeira abordagem para muitos ce-
nários reais. Portanto, como incentivar que
aqueles que nos ajudaram no passado continu-
em a fazê-lo no futuro? Retribuindo.
O primeiro e mais importante passo na hora
de retribuir a ajuda que você recebeu é fornecer
validação. Diga o quão importante foi a ajuda
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ou o apoio das pessoas. Ainda que a ajuda tenha
sido pequena ou que você sinta que a pessoa
não fez mais que a obrigação. Nesse ponto de
obrigação, cabe ressaltar: com exceção de algu-
mas poucas responsabilidades definidas por lei,
ninguém tem obrigação nenhuma com você.
Esse sentimento de que o mundo lhe deve fa-
vores, talvez em retribuição por você ser uma
pessoa tão boa, é incrivelmente tóxico. Primei-
ro, isso vai alienar as pessoas ao seu redor e difi-
cultar a construção de uma rede de apoio, por-
que se você sente que o mundo lhe deve um fa-
vor você não vai reciprocar apropriadamente os
favores que de fato recebe. Mas o efeito mais
perigoso é que essa atitude também cria uma le-
targia psicológica que pode te impedir de agir
concretamente para ir atrás do que você quer e,
ao invés disso, ficar esperando que o mundo fi-
nalmente reconheça o seu valor, alimentando
cada vez mais seu ressentimento. Agradecer e re-
tribuir são formas de enxergar as relações huma-
nas de uma forma mais rica, calorosa e produti-
va do que pensar em obrigações que foram
cumpridas ou não.
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Há duas formas de pensar sobre a importân-
cia da retribuição. Se você gosta de pensar em
termos éticos, validar a ajuda não é mais que
um quid pro quo, a retribuição por um ato re-
cebido. Se preferir pensar em termos de lógica
fria, a simples verdade é que reforço positivo é a
forma mais eficaz de incentivar que o comporta-
mento seja repetido. Então, se você quer que
aquela pessoa ajude novamente, não deixe de
agradecer e elogiar.
Costumo brincar que adultos são apenas cri-
anças que pagam boletos. Quando uma criança
fala alguma coisa, começa a andar, consegue
usar o penico, o que normalmente as pessoas ao
redor fazem? Batem palma e as enchem de para-
benizações como uma forma de não só indicar
que a criança fez direito, como recompensá-la
de alguma forma ao reconhecer seus atos e es-
forços. Bom, acho que a gente não deveria ter
parado de fazer isso com adultos. Reforço posi-
tivo é importante, você está premiando um
comportamento que você quer que se repita
para que ele ocorra mais vezes. Ou seja: quando
seu parceiro ou parceira lavar a louça, que tal
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dizer “obrigado, essa ajuda é muito importante
pra mim” ao invés de “nossa, mas o que aconte-
ceu com você hoje?” ou “não fez mais que a
obrigação”. Agradecer e ser gentil com quem
nos ajuda não deveria ser difícil. Punição não é
o caminho da solução, ou seja, um diálogo
agressivo só fará a pessoa menos disponível a te
ajudar ou retribuir.
É comum que a validação seja retribuição su-
ficiente. Pessoas gostam de ter seu esforço nota-
do e apreciado, e de se sentirem úteis. Mas se
você quiser ir além na construção de uma rela-
ção recíproca, você pode pensar em como retri-
buir a ajuda que recebeu de outras formas. Às
vezes a retribuição é óbvia: se um colega pagou
pelo seu almoço, você pode pagar pelo dele da
próxima vez. Outras vezes, nem tanto: qual é a
forma apropriada de agradecer um professor
que ficou depois do horário para explicar um
conceito difícil, ou a sua amiga que ficou horas
ouvindo você desabafar?
Muitas vezes uma boa retribuição não vai ser
na mesma moeda, e pode ser até puramente
simbólica. Por exemplo, digamos que seu par-
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ceiro ou parceira tenha comprado para você um
presente caríssimo, aquele celular topo de linha
que você estava precisando. Um gesto equiva-
lente não precisa ser comprar um celular de vol-
ta. De fato, não precisa nem ser material. Talvez
uma atenção especial ou uma comida gostosa ao
fim de um dia estressante traga, para aquela pes-
soa, uma felicidade tão grande quanto o celular
trouxe para você. Especialmente em relações
com grandes diferenciais de idade, poder e ren-
da as recompensas simbólicas se tornam impres-
cindíveis para cultivar uma relação emocional-
mente equilibrada.
Já disse que ninguém tem obrigação com
você, certo? Bom, o inverso também é verdadei-
ro: você não tem obrigação com ninguém. Uma
ajuda não gera uma obrigação. Retribuição não
é obrigação, é uma ferramenta na construção de
redes de apoio. No exemplo do celular, você não
forçou a pessoa a dar um presente, ela deu por-
que quis. Se ela pede algo desproporcional de
volta ou usa o presente como ferramenta de ma-
nipulação, lembre-se que você literalmente não
é obrigado.
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Um exemplo que lida com vários dos concei-
tos que abordamos é o cenário dos pais com-
prando um carro para o filho que passou na fa-
culdade. Seus pais são obrigados por lei a prover
educação, comida e um teto, mas eles não são
obrigados a te dar um carro. Mas digamos que
seus pais de fato compraram o carro. Para retri-
buir, você provavelmente não conseguiria com-
prar um carro para eles de volta, mas talvez você
poderia fazer um jantar especial, escrever uma
carta, dizer o quanto aquilo foi importante para
você e cuidar do carro com responsabilidade.
Para muitos pais, um filho feliz, responsável e
agradecido vale mais que qualquer veículo.
Além disso, não vamos ser ingênuos, todo mun-
do sai ganhando aqui. Um carro não só traz
mais liberdade para o filho, como também para
os pais. Os pais não precisam mais adequar sua
própria agenda à rotina dos filhos, uma vez que
agora eles podem se locomover sozinhos e com
segurança. Independência beneficia todo mun-
do.
Agora, seus pais também não podem fazer pe-
didos absurdos no momento da retribuição.
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Talvez por terem feito um gesto tão grandioso
eles se sintam no direito de ditar sua personali-
dade, proibindo você de pintar o cabelo ou de
sair com um determinado grupo de amigos. Se
é algo dado com uma condição prévia e explíci-
ta, como “eu vou te dar um carro, mas em troca
quero que você passe a buscar seu irmão no co-
légio”, aí vai do seu julgamento aceitar essa tro-
ca ou não. O ponto importante nesse exemplo é
a clareza dos termos do contrato que você pode
estar assinando, não vale esconder as letras miú-
das. Dar um presente e exigir uma retribuição
específica e não combinada não é ajuda, é mani-
pulação emocional.

[21] Amadae, S. Prisoner’s Dilemma. Cambrid-


ge University Press, 2016. ↩
[22] Axelrod, Robert e Hamilton, William D.
(1981). e Evolution of Cooperation. Science,
211:1390-1396. ↩

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O sentimento de dívida

Falando em manipulação emocional, às vezes o


que nos impede de receber ajuda é a sensação de
dívida. Se você já experimentou esse sentimen-
to, é natural que fique receoso de entrar em no-
vas relações que podem gerar mais dívidas, ou
simplesmente não serem equilibradas. Para dei-
xar claro, não estou falando apenas de dívidas
financeiras, mas sim da sensação de estar deven-
do, que pode ser causada também, e mais pro-
fundamente, por questões emocionais e morais.
Um exemplo extremo (e racista) seria o caso
de Robinson Crusoé, o náufrago, e seu servo
Sexta-Feira, criados em um livro de Daniel De-
foe [23] em 1719. Depois que Crusoé vai parar
em uma ilha selvagem, ele salva um dos nativos
de ser devorado por canibais, e esse homem de-

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cide se tornar escravo de Crusoé pelo resto da
vida como forma de pagar sua dívida de sangue.
Vamos lá pois repetição é importante: você
não deve nada a ninguém. Você sempre pode
romper uma relação sem que precise necessaria-
mente sentir que pagou a pessoa na mesma mo-
eda. Se a pessoa ajudou de livre e espontânea
vontade, não existe uma obrigação de retorno,
no máximo uma expectativa. Existem vários
bons motivos pelos quais essa reciprocidade
pode não acontecer, e se, depois de ajudar, a
pessoa está exigindo uma retribuição específica,
então não era exatamente ajuda que ela estava
oferecendo em primeiro lugar. Você sempre
pode e deve priorizar a si mesmo.
Para fins de argumentação, vamos considerar
o caso de Sexta-Feira, resgatado de uma morte
horrível nas mãos de canibais. Qual é o limite
da dívida que ele tem com Crusoé? Essa dívida
é para sempre? O que fazer se o próprio ato de
pagar essa dívida passa a ser um transtorno tão
grande quanto o problema original? Para um
público moderno, fica difícil argumentar que

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ele realmente merecia se tornar um escravo em
pagamento.
Apesar disso, muitos de nós acabamos nos
tornando Sexta-Feiras, escravizados metaforica-
mente no pagamento de uma obrigação moral
com pessoas que nem mesmo enfrentaram cani-
bais para nos resgatar. Qual o sentido em se des-
truir para pagar uma dívida se essa dívida foi
contraída justamente em uma tentativa de aju-
dar? Qual o sentido em tornar sua vida pior
quando todo o ponto era ajudar para que você
pudesse melhorá-la? Esse é o ponto da ajuda,
melhorar as coisas, não o contrário.
Por conta dessa mentalidade, muitas vezes
mantemos relações tóxicas com pessoas que no
passado fizeram muito pela gente. Podemos fa-
lar por exemplo da relação com os nossos pais,
mas também acontece com amigos. Mesmo que
seu amigo um dia tenha te ajudado de uma for-
ma que significou muito, as pessoas mudam
conforme a vida se torna cada vez mais comple-
xa. Está tudo bem se um dia perceber que vocês
não têm mais compatibilidade, ou que a relação
simplesmente se desgastou. Você não precisa se
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sentir mal por se colocar em primeiro lugar e se-
guir em frente. Não se pode ficar eternamente
em dívida com todo mundo que um dia foi le-
gal com você.
Como conciliar essas ideias com o conceito
de retribuição que discutimos? O objetivo da re-
tribuição é criar uma relação equilibrada e mu-
tuamente positiva, em que ambos os participan-
tes podem compartilhar seus recursos e ajudar
um ao outro. Em contraste, a dívida é algo uni-
lateral, um peso que acompanha só um dos par-
ticipantes e que leva não a uma multiplicação
dos recursos, e sim a simples transferência de re-
cursos de um para outro. A longo prazo, rela-
ções saudáveis de ajuda e reciprocidade criam
uma rede de apoio ao seu redor. Relações de dí-
vida e culpa, por outro lado, tendem a isolar os
seus participantes e podem até levar a uma situ-
ação de codependência.
Portanto, ao receber ajuda, por maior e por
mais transformativa que ela seja, lembre-se do
Sexta-Feira. Retribua a ajuda de uma forma ra-
zoável, sem que isso se torne um sacrifício da
sua parte. Provavelmente a pessoa que ajudou
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ficará mais feliz em ter uma relação equilibrada
e duradoura do que em assistir você se destruir
para pagar uma dívida impossível. E quem sabe,
talvez você possa, no futuro, retribuir simples-
mente ajudando outra pessoa em uma situação
semelhante, expandindo ainda mais a sua rede
de apoio.

[23] DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Lon-


dres: Penguin, 1719. ↩

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Construindo uma rede de apoio

Ao longo do livro viemos falando sobre como a


ajuda é importante na construção de uma rede
de apoio. Mas o que exatamente seria construir
essa rede? Não é simplesmente conhecer novas
pessoas e fazer amizades.
No senso comum, uma das compreensões
que temos sobre o que seria uma rede de apoio
é a ideia do melhor amigo. Acreditamos que
amigos de verdade só se conta nos dedos de
uma mão, e olhe lá. Mas o que acontece é que
essa definição de amizade é idealizada ao ponto
do absurdo. Se um amigo de verdade é alguém
que sabe dar bons conselhos, que pode te aco-
lher, que tem o mesmo ritmo que o seu, que
tem hobbies compatíveis, que sabe ouvir e que
está sempre disponível para sair quando você

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precisa… é óbvio que essa pessoa não existe, es-
pecialmente no longo prazo.
Ao invés disso, o nosso conceito de rede de
apoio pode ser pensado como a ideia de acumu-
lar ao seu redor pessoas com características vari-
adas e complementares, e nos relacionar com
elas de maneira a maximizar o que elas têm de
melhor para oferecer e minimizar as áreas em
que elas acabam mais atrapalhando do que aju-
dando. Por exemplo, digamos que eu tenha
uma amiga que é muito boa com questões amo-
rosas: ela me escuta, acolhe e não julga. Mas se
eu começar a reclamar da minha família ela vai
me podar, falar que estou sendo ingrata e fazer
eu me sentir culpada. Já um outro amigo tem
problemas parecidos com a família dele, conse-
guindo empatizar comigo nessa situação, mas se
começo a falar do meu trabalho ele não entende
bem como funciona e acaba falando bobagem.
Nenhum dos dois se encaixa nessa visão ideali-
zada do amigo perfeito, mas ambos são mem-
bros valiosos da minha rede de apoio, bastando
apenas que eu saiba procurar a pessoa certa de-
pendendo do problema. A variedade de perso-
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nalidades e habilidades é o sinal de uma rede de
apoio frutífera.
Não existe ninguém que sozinho vai atender
todas as suas necessidades. Essa ideia além de
absurda é um pouco preguiçosa: bastaria encon-
trar essa pessoa especial feita para mim, sem de-
feitos, que depois disso não teria que me preo-
cupar com mais nada, não precisaria nem mes-
mo fazer novos amigos, essa pessoa já é o sufici-
ente. É essa mentalidade que também gera mui-
ta frustração. Se um dia você se iludiu de forma
a pensar que uma única pessoa poderia atender
todas as suas necessidades e quebrou a cara, pro-
vavelmente você não vai querer construir uma
nova rede de apoio com pessoas que nem mes-
mo parecem perfeitas. Mas essa é justamente a
atitude correta: entender que pessoas perfeitas
não existem e que todos temos o que oferecer
para os outros, apesar dos nossos defeitos. Só
um lembrete: se não existem pessoas perfeitas,
isso também vale para você, viu?
Ter uma rede de apoio é algo que este livro
apresenta como um ideal, um objetivo a se mi-
rar. Mas não estou dizendo que é algo fácil nem
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simples. Na verdade, é um projeto de longo
prazo, que dá muito trabalho, e muitas vezes as
pessoas têm medo de sequer começar pois não
querem confrontar a própria dificuldade em de-
senvolver novas habilidades, em ser vulnerável,
em criar conexões, e até mesmo com habilida-
des sociais básicas como puxar assunto, manter
uma conversa e demonstrar interesse. Às vezes
achamos que é mais confortável desistir do que
tentar e falhar.
A habilidade mais importante para isso é
aprender a fazer a manutenção das nossas rela-
ções, e lamentavelmente essa é uma habilidade
raramente ensinada.
Uma das principais características da manu-
tenção é que ela leva tempo. Acontece muito na
terapia: conversando com o paciente, chegamos
a uma intervenção para tentar resolver um pro-
blema, que o paciente fica de testar. Na próxima
sessão, o paciente volta e diz que não funcio-
nou. Mas na verdade, é raríssimo uma interven-
ção funcionar de primeira. Seres humanos são
criaturas de hábito, e é necessário repetir um
novo conceito ou comportamento dezenas de
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vezes antes que ele vença a inércia e possa ser in-
ternalizado.
Vou compartilhar um exemplo pessoal. Mi-
nha mãe não gostava de tatuagens e não aprova-
va que eu fizesse as minhas. Para evitar conflito,
conversei com ela que eu não esperava que ela
mudasse de opinião sobre o assunto, mas que
gostaria que ela parasse de compartilhar essa
opinião comigo. Ela poderia falar mal de tatua-
gem o quanto quisesse, com quem quisesse, só
não na minha frente. Da primeira vez que tive-
mos essa conversa, ela achou ruim, reclamou,
mas acabou entendendo. Fim de papo? Não. Na
semana seguinte ela voltou a falar mal das mi-
nhas tatuagens, e tive que repetir: “mãe, isso
não é legal, já conversamos sobre isso”. Nova-
mente ela não gostou, achou ruim, mas na prá-
tica ficou um mês sem criticar as minhas tatua-
gens. Dois meses depois, tive que fazer mais
uma nova intervenção, explicando que esses co-
mentários vindos dela me deixavam triste. Na
próxima recaída, seis meses depois, já brinquei,
perguntando se ela estava amarga com alguma
coisa para estar me enchendo o saco de novo,
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conseguimos rir e logo mudar de assunto. Hoje
faz dois anos que minha mãe não comenta nada
negativo sobre as minhas tatuagens. Na verdade
ela passou a aceitá-las, o que facilita muito a
nossa convivência. Mas para chegar aqui foi ne-
cessário manter as minhas expectativas no lugar,
entendendo que recaídas acontecem, compreen-
dendo que manutenção é algo que leva tempo,
requer muita paciência e muita repetição.
Raramente as pessoas, incluindo você mesmo,
vão mudar na primeira tentativa. E quando es-
tamos falando em construir uma rede de apoio,
estamos muitas vezes falando dessas repetições.
É improvável que você vá encontrar uma pessoa
feita exatamente nos moldes que você esperava,
e que você se encaixe nos moldes que ela espera
de volta. Então a única alternativa é construir
uma relação melhor ao longo do tempo.
Espero que isso ajude a regular as expectativas
sobre o que realmente significa uma rede de
apoio. Quero desconstruir a ideia de que rede
de apoio são pessoas iluminadas que vão passar
na sua vida por sorte e que vão te acolher em
tudo. No lugar disso, quero que vocês pensem
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que é uma construção, uma atividade que leva
tempo, que precisa de manutenção, administra-
ção e estratégia.
Em troca de tanto esforço, o que você recebe
é um modelo de relacionamento em que você
pode cultivar relações recíprocas e duradouras.
Pela natureza social do ser humano, é muito im-
portante que a gente sinta que pertence a um
lugar, e uma maneira de conquistar esse perten-
cimento de forma saudável é realmente colocar
energia nos seus relacionamentos, ao invés de se
contentar com as pessoas que passaram na sua
vida por acaso e só nunca foram embora. Bem,
se você escolher viver assim, não serei eu a jul-
gar. Mas se quiser algo mais, imagine quão mais
satisfatório seria sentir que pertence a um lugar
que você lutou ativamente para construir.

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Lidando com a decepção

Por vivermos em um sistema capitalista, temos a


tendência de ver amizades como um investi-
mento, e é uma analogia válida até certo ponto.
Nessa comparação, podemos pensar que perder
um amigo seria jogar esse investimento fora, e
nessas circunstâncias podemos até pensar que
seria melhor nem ter criado essa amizade em
primeiro lugar. De fato, acho que dá para pen-
sar em uma amizade como um investimento de
alto risco.
Mas com as ferramentas certas (como paciên-
cia e repetição), é um investimento que vale a
pena. Mesmo que você não tenha exatamente o
retorno esperado, dificilmente você vai ficar de
mãos abanando. Digamos que uma amizade
não deu em nada, vocês acabaram brigando e
hoje não se falam mais. Você perdeu todo o in-
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vestimento? Não. Além de ter criado boas me-
mórias enquanto a amizade foi prazerosa, ao
longo dessa relação você desenvolveu várias ha-
bilidades valiosas, como por exemplo habilida-
des de conversação e socialização. Se vocês bri-
garam, provavelmente você treinou as habilida-
des de mediação de conflito, argumentação e
mediação de humor.
Claro, podemos considerar que saber julgar se
uma pessoa vai realmente agregar à sua rede de
apoio é, em si, uma habilidade a ser treinada. O
mesmo vale para saber sair de uma relação tóxi-
ca. Passar por essas experiências ruins traz uma
vivência que pode ser ressignificada, aproveitan-
do os dados que foram coletados para aprender
lições valiosas. Não que seja necessário passar
por sofrimento para progredir. Não devemos ro-
mantizar o sofrimento, mas a verdade é que não
temos controle sobre o que outras pessoas vão
fazer, apenas em como vamos reagir a isso.
Mesmo alguém que já faz parte da nossa rede
de apoio pode, eventualmente, vir a nos decep-
cionar, e toda nova aposta é de certa forma um
risco. Não existem garantias em relações huma-
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nas. De fato, a ideia de um amigo “para sempre”
é parte desse conceito fantasioso sobre amizades
que não tem muita correlação com o mundo
real. Ao invés disso, minha sugestão é que a
gente busque refinar nossas apostas com o tem-
po, aprendendo com nossos erros sem cair na
ilusão de que é possível prever o futuro. Não
precisamos que nossa rede de apoio seja perfei-
ta, basta que ela se torne robusta e variada o su-
ficiente para que uma ou duas decepções não
derrubem a estrutura inteira.
Para aprender a criar uma rede de apoio, por-
tanto, você vai precisar aprender a lidar com o
seu medo de se decepcionar com as pessoas. Se
as pessoas são imprevisíveis, ser capaz de se rela-
cionar com elas depende da sua resiliência em
lidar com falhas e frustrações. De certa forma,
não é sobre confiar nos outros. É sobre confiar
em si mesmo, confiar na sua capacidade de lidar
com a situação se alguém te decepcionar. Em
outras palavras: reconhecer que independente-
mente de uma pessoa te deixar na mão você vai
ficar bem, vai sobreviver e seguir com a sua
vida. Não concentrar todos os seus esforços em
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uma pessoa só é uma forma de garantir que se
alguém cair no seu conceito você não vai cair
junto.
Essa é uma boa filosofia interna, e ajuda a
combater uma narrativa de dependência e code-
pendência. O que você está dizendo é que você
tem que aprender a confiar em si mesmo, nas
suas estruturas, na sua resiliência e na sua pró-
pria capacidade de superação. O objetivo não é
nunca se decepcionar. O objetivo é aprender a
lidar com ser decepcionado. Ao invés de deixar
o medo te impedir de criar uma relação, você
pode aprender a ter uma boa relação, mesmo
quando pensa que algo pode dar errado eventu-
almente.
Muitas vezes “se preparar para o pior” é uma
reação ansiosa e paranoica. É uma reação relaci-
onada ao medo. Mas se pensar que é uma situa-
ção em que você vai ficar bem mesmo se algo
der errado, então é possível considerar o pior
sem que isso traga emoções negativas de uma
maneira tão forte. Imaginar o pior se torna en-
tão um exercício de criatividade, um teste hipo-
tético dos seus recursos que pode ser bem tran-
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quilizador. Saber que você está preparado é uma
sensação boa.
Se a paranoia é um dos extremos a ser evita-
do, a confiança cega é o outro. Mesmo com
nossos melhores amigos, não compensa bancar
a Pollyana [24] e acreditar que tudo vai simples-
mente dar certo. Contar um segredo para seu
amigo que gosta de fofocar é obviamente um
risco considerável, não importa o quanto ele
prometa que não vai contar para ninguém. Em
outra análise, se você gosta de fofocar com a
pessoa, talvez o melhor seja entender que algu-
mas coisas que você contar para essa pessoa vão
realmente vazar, e se preparar para essa eventua-
lidade. É importante também reconhecer os
pontos fortes e fracos dos seus amigos: se você
realmente precisa de alguém que vá guardar o
segredo, provavelmente é melhor procurar ou-
tro amigo, ao invés do seu colega fofoqueiro.
Veja a diferença sutil, mas crucial: o que nós
queremos cultivar é a confiança de que você vai
conseguir se recuperar quando as coisas derem
errado. Fingir que nada nunca vai dar errado é
uma fantasia. O objetivo é sair do raciocínio de
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falsa dicotomia - preto ou branco, oito ou oi-
tenta, ou você confia cegamente ou não confia
em ninguém. O equilíbrio está em dar uma
chance para as pessoas, verificando se elas real-
mente fazem jus a essa confiança, e sempre sen-
do responsável, não colocando em risco mais do
que você conseguiria recuperar. Como diz o
provérbio russo: “confia, mas confira”. Você
pode começar com tarefas menores, pequenas
responsabilidades e compromissos que vão aos
poucos construindo uma confiança mútua.
Você não deve colocar algo que vai transformar
sua vida nas mãos de um desconhecido.
No fim, pedir ajuda é de certa forma um ato
de vulnerabilidade. É possível sair frustrado, de-
cepcionado, traído. Você pode acabar recebendo
uma porcaria de ajuda, uma ajuda pela metade,
uma ajuda que mais atrapalha. Porém, não é
por isso que devemos evitar pedir toda e qual-
quer ajuda, e sim aprender a pedir ajuda de uma
forma mais inteligente, melhorando as suas
chances de sucesso e aprendendo a lidar com o
fracasso.

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E sendo sincera, não temos realmente alterna-
tiva. Por mais que seja doloroso admitir, nin-
guém dá conta de tudo sozinho. A ideia de que
nós também podemos ser super-heróis autossu-
ficientes, como o Homem de Ferro que criou
sua armadura com sucata em uma caverna, é
uma ilusão poderosa na nossa cultura. Alimen-
tar esse delírio é uma armadilha difícil de evitar
porque todos queremos ser admirados e respei-
tados, e uma das maneiras de conseguir esse res-
peito é criar nossa própria narrativa de sucesso e
elevação individual. Como vimos, essas narrati-
vas são uma ficção. Não há quem prospere em
isolamento, e em cada história de um jovem mi-
lionário há um parágrafo escondido sobre os
seus pais ricos [25]. Construir uma rede de
apoio passa por desapegar dessa necessidade de
ser um super-herói, e entender que nossos ami-
gos também não são perfeitos e podem, eventu-
almente, nos decepcionar.

[24] PORTER, Eleanor H. Pollyanna. 1916. ↩

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[25] LARA, Rodrigo. Conhece a Bettina? Inter-
net não perdoa “milionária das propagandas”.
Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/no-
ticias/redacao/2019/03/15/conhece-a-bettina-
internet-nao-perdoa-milionaria-das-propagan-
das.htm. ↩

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Estou preocupado com você

Uma experiência comum da nossa infância é


que nossos pais em algum momento duvidem
das nossas habilidades: “você vai se machucar”
ou “deixa que eu faço pra você”. Quando nós
reclamamos, a resposta deles é simples: “eu só
estou preocupado com você”. É uma explicação
razoável, afinal, há pouco tempo atrás mal sabí-
amos andar ou falar direito. É uma resposta que
demonstra atenção e cuidado, porém, ao longo
de nosso crescimento essa explicação pode aca-
bar tomando outro local simbólico.
O problema ocorre quando essa lógica nos
persegue mesmo na vida adulta, seja porque
nossos familiares não conseguem reconhecer o
nosso crescimento, seja porque outras pessoas
escondem a sua própria condescendência ou fal-

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ta de confiança que tem em você atrás da des-
culpa da preocupação.
Um exemplo que ilustra a diferença entre a
preocupação genuína e a condescendência é
uma viagem de avião. Digamos que sua mãe
está preocupada que o seu avião pode cair ou
que podem extraviar sua bagagem. Até aqui, faz
sentido, afinal essas circunstâncias não estão
dentro do controle de ninguém. Mas se além
disso ela achar que você vai perder o voo, que
não vai saber recuperar a sua bagagem extravia-
da ou que você vai acabar sendo vítima de um
golpe, a essa altura ela já está meio que te cha-
mando de idiota, ou no mínimo ingênua.
Devemos ter cuidado com pessoas que nos
tratam dessa forma, que não reconhecem suas
habilidades e que sempre acreditam que o que
você tentar vai acabar mal. Não só essas pessoas
tendem a drenar a nossa autoestima, como elas
têm altas chances de se intrometer na sua vida e
tentar resolver os seus problemas por você, com
resultados imprevisíveis mesmo se elas tiverem
boas intenções. Mais preocupantemente, essa
condescendência pode se tornar desprezo, um
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sentimento que deve ser encarado como o mais
vermelho dos sinais vermelhos. Queremos estar
cercados de pessoas que nos consideram como
iguais, que valorizam nossas contribuições e ha-
bilidades, e que buscam nossa ajuda assim como
buscamos as delas.
O caso dos pais que não acreditam na sua ca-
pacidade é particularmente danoso à autoesti-
ma, já que como crianças tendemos a enxergar
nossos pais como figuras que estão sempre cer-
tas. Se sua mãe está sempre preocupada porque
acredita que você não consegue fazer nada sozi-
nho, é fácil internalizar a narrativa que de fato
você não é capaz.
Ou seja, se preocupar não costuma ser uma
boa forma de oferecer ajuda, e age mais como
uma manifestação externa - e contagiosa - de in-
segurança.
O que fazer então quando é o contrário, e é
você que está preocupado com outra pessoa?
Como evitar que isso se torne tóxico? Para co-
meçar, verifique se você está preocupado com
algo que está sob o controle da pessoa. Se você
estiver com medo de uma erupção vulcânica sú-
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bita, isso não é exatamente um julgamento so-
bre a capacidade daquela pessoa. Mas se você
tem medo que ela simplesmente não consiga se
virar, pense em termos mais concretos sobre
qual é a habilidade que você acredita que a pes-
soa não tem e cuja falta pode colocar ela em pe-
rigo. Por exemplo, digamos que ela tenha um
péssimo senso de direção e você tem medo de
que ela se perca em uma cidade desconhecida.
O que você pode fazer é, com muito tato, tentar
oferecer ajuda. Se ela aceitar, vocês podem jun-
tos salvar um mapa offline no celular, anotar os
endereços mais importantes em um caderno de
papel, identificar os melhores pontos de referên-
cia. Envolver ela no processo vai fazer com que
ela passe a desenvolver essas habilidades e a sua
própria independência, e no longo prazo deixar
você mais tranquilo com a sua preocupação ao
ver o preparo envolvido. Mas mesmo com todos
os avisos, existe um ponto em que a pessoa ine-
vitavelmente precisará viver e aprender sozinha.
É até possível que se perder seja uma experiên-
cia muito rica para ela. Aprenda a viver com o
desconforto, inclusive o desconforto de ver uma
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pessoa querida exercendo seu livre arbítrio de
querer errar sozinha antes de aprender.
Pondo de outra forma, o que eu sugiro é uma
abordagem estratégica:

Se você está preocupado, está preocupado


com o quê?
Como podemos minimizar esse risco?
Como você pode ajudar?
Você realmente precisa se preocupar, ou a
pessoa já demonstrou que sabe o que está
fazendo?

As pessoas jamais alcançarão a sua indepen-


dência se não formos capazes de deixar que elas
corram e lidem com um pouco de risco - ofere-
cendo também um local seguro de refúgio e aju-
da caso elas precisem.
Ajudar não é evitar que a pessoa se envolva
em encrencas. Na maior parte das vezes a pessoa
já tomou uma decisão sobre o que quer ou não
fazer, e precisa sentir que ela tem alguém com
que pode ter apoio. Apoiar não precisa ser que
“eu concordo com tudo o que você está fazen-
do”, mas sim um “estarei aqui para o que quer
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que aconteça”. Por isso mesmo, não faz sentido
avisar sobre todos os perigos e possíveis conse-
quências como se a própria pessoa não soubesse
disso. A ajuda não precisa ser a ajuda perfeita, a
solução mais racional de todas, o que vai resol-
ver o problema de uma vez por todas. Muitas
vezes só queremos alguém que esteja por perto
quando quebrarmos a cara.
Usando um exemplo pessoal, meu marido foi
comprar um novo monitor para o computador
dele, mas ele estava dividido entre dois mode-
los. Um era o modelo de bom senso, algo bara-
to que atendia as necessidades dele sem muitas
firulas. O outro modelo era uma aberração gi-
gante com tela curva, o tipo de monitor que
hackers usam em filmes ruins. Meu marido me
enviou uma mensagem perguntando qual eu
achava melhor, mas antes que eu pudesse res-
ponder ele corrigiu: “na verdade, eu preciso que
você me apoie a escolher a segunda opção”. É o
monitor dele há anos.
Muitas vezes ajudar é isso, apoiar sem entrar
no mérito de qual é a melhor opção. Meu mari-
do não queria a minha opinião técnica e objeti-
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va sobre qual seria o melhor modelo. Ele já sa-
bia o que queria, e só precisava de um empur-
rãozinho para se sentir mais confortável com
aquela escolha.

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AJUDANDO OS OUTROS

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Você consegue ajudar?

Ajudar ao próximo é parte da natureza humana.


Todo tipo de recompensa acompanha o ato de
ajudar, desde a endorfina liberada no nosso cé-
rebro ao ouvir um “obrigado” até as medalhas
dadas àqueles que se distinguem em atos de bra-
vura. Como mencionei anteriormente, existem
fortes incentivos biológicos e sociais para que a
gente ajude as pessoas ao nosso redor.
Não surpreende, portanto, que às vezes a gen-
te dê um passo maior que as pernas na hora de
ajudar alguém. Uma anedota pessoal talvez aju-
de a ilustrar o problema.
Quando eu me mudei de Cuiabá para Brasí-
lia na adolescência, eu fiquei completamente
perdida. Brasília, para quem não conhece, usa
um sistema de endereços completamente dife-
rente do resto do país, cheio de siglas e números
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baseados nas coordenadas de um plano cartesia-
no. Se você é acostumada com “Rua das Borbo-
letas, casa 3”, a transição para “SHCGN 706,
bloco D” pode ser bem desorientadora.
Porém, perdida como eu era, sempre tentava
ajudar outras pessoas que pediam por direções,
e frequentemente as mandava na direção oposta
do que elas procuravam. Por que não simples-
mente reconhecer que eu não sabia? Em parte,
porque eu era orgulhosa e não queria admitir
minhas dificuldades de adaptação a uma vida
diferente. Mas outro fator era sem dúvida a
vontade de ajudar pessoas que estavam passando
pelo mesmo problema que eu. Eu caí na arma-
dilha de tentar me sentir útil, mesmo quando
estava sendo o oposto.
Minha empatia e vontade de ajudar apenas
pioraram a situação. Não sejam como a Angeli-
ni adolescente. Querer ajudar e conseguir ajudar
são coisas diferentes, e é fácil tornar uma situa-
ção pior com a melhor das intenções.
Na maioria das vezes, o melhor é buscar por
pessoas qualificadas ou de preferência deixar
para um profissional. Os corajosos que já tenta-
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ram fazer sozinhos um conserto hidráulico ou
elétrico na casa sabem que o risco de terminar
com um vazamento ou um choque são altos.
Da mesma forma, problemas psicológicos com-
plexos não devem ser tratados por um amador,
seja ele seu melhor amigo, seu pastor ou seu co-
ach. Nosso senso comum é incrivelmente ruim
quando o assunto é saúde mental, e a complexi-
dade da nossa fiação cerebral não deve ser subes-
timada. Eu espero que você que chegou até aqui
já tenha percebido o quanto o buraco é bem
mais embaixo, né?
Justamente pela delicadeza da situação, nin-
guém deve jamais se sentir obrigado a ajudar.
Ao encontrar a vítima de um acidente de carro,
a orientação é não movê-la até que os paramédi-
cos cheguem ao local, certo? O reconhecimento
de que uma ajuda mal dada pode piorar a situa-
ção deve servir de alerta a todos nós, e ser um
lembrete para sermos humildes. Não será a sua
ajuda, isoladamente, que vai transformar a vida
de ninguém. Reconhecer os próprios limites vai
colaborar para que você possa agir melhor nas
situações em que você de fato pode ajudar.
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Outra motivação comum para ajudar que
deve ser examinada com cuidado é o desconfor-
to com a dor do outro. Às vezes o que a gente
quer é que a pessoa pare de chorar na nossa
frente e tentamos ajudar só para ver se isso re-
solve o problema logo. Mas alguém chorando e
se permitindo sentir as próprias emoções não é
um problema, logo, não é algo que precisa ser
resolvido. É uma motivação difícil de reconhe-
cer no momento, mas que vale a pena tentar
identificar. Ver alguém mal ou chorando te faz
sentir um pouco de pânico? Vem uma vontade
de fugir dessa situação? Você acaba levando para
o lado pessoal e se encontra mais alterado emo-
cionalmente do que a própria pessoa? Então va-
mos trabalhar nesses aspectos, pois você prova-
velmente não será a melhor pessoa para ajudar
nessa situação.
Socialmente, não somos bem preparados para
lidar com sentimentos considerados negativos.
Ver alguém lidando com dor, luto ou tristeza é
profundamente desconfortável, e nosso instinto
de evitar estímulos desagradáveis pode muito
bem assumir o controle.
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Nesse caso, porém, você não deve ajudar. Se a
sua prioridade é simplesmente fazer a pessoa pa-
rar de chorar o quanto antes, o mais provável é
que você tenha um comportamento imediatista
que só vai agravar a situação a longo prazo.
Pode parecer cruel, mas se recusar a ajudar e até
mesmo se retirar da situação é o melhor que
você pode fazer, pelo menos até se acalmar, pos-
sibilitando uma melhor análise do que poderia
ser feito com a sua ajuda.
Vamos também considerar que se você não
estava bem em primeiro lugar ou se aquela situ-
ação mexe com a sua cabeça de forma a te de-
sorganizar emocionalmente, então você não está
em condições de ajudar ninguém. Ou seja: além
da sua capacidade técnica para ajudar, outro fa-
tor a ser considerado é se você tem essa energia
e capacidade emocional sobrando. Dividir re-
cursos que não são suficientes para uma pessoa
sozinha só vai multiplicar o número de pessoas
que precisam de ajuda. Por mais que ajudar seja
recompensador, não adianta nada cobrir a pes-
soa com o seu lençol se você mesmo vai ficar
passando frio. De fato, esse tipo de atitude sai
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completamente do território da ajuda e entra no
pântano do sacrifício.
Ninguém é obrigado a estar sempre disponí-
vel, e ninguém tem todas as respostas. Ao invés
de ajudar no piloto automático, primeiro consi-
dere se você realmente pode ajudar. Ao negar
ajuda de vez em quando, você vai ser capaz de
ajudar melhor no longo prazo.

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Ajuda e sacrifício

A vida inteira aprendemos que uma “boa pes-


soa” é aquela que se sacrifica pelos outros, a
ponto de muitas figuras religiosas se definirem
pela sua relação com o sacrifício. Na cultura
cristã o exemplo supremo de moralidade é Jesus
Cristo, que deu a própria vida em favor da hu-
manidade que o crucificou. No budismo, Sidar-
ta Gautama iniciou sua jornada de iluminação
abdicando da sua vida como príncipe. Até mes-
mo Odin só adquiriu sua sabedoria infinita de-
pois de sacrificar seu olho por um gole das
águas do poço de Mimir.
Essa ligação entre religião e sacrifício está em-
butida na própria palavra: sacrificar significa
tornar sacro, ou seja, sagrado. Aquilo que sacri-
ficamos é oferecido aos deuses, e portanto é um

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ato que será divinamente recompensado, sinal
de um ser espiritualmente iluminado.
Essas raízes religiosas ainda encontram terre-
no fértil até mesmo na cultura comercial de
Hollywood: assim também o Homem de Ferro
morre para salvar o universo no fim de Vinga-
dores: Ultimato; o Wolverine morre em Logan;
e o Super-Homem morre em Batman vs Super-
man. A marca de um verdadeiro herói é o seu
sacrifício altruísta, mesmo no contexto de pro-
dutos comerciais de uma das culturas mais indi-
vidualistas do planeta.
A associação entre moralidade e sacrifício é
tão profunda que funciona até mesmo quando
revertida: um vilão como Severus Snape encon-
tra sua redenção no momento em que ele dá sua
vida por uma causa nobre. Darth Vader, em um
momento de clareza moral, agarra o Imperador
e arremessa ambos para a morte. De Senhor dos
Anéis a Dragonball Z, se um antagonista precisa
ser redimido aos olhos da plateia, ele tem boas
chances de morrer em um sacrifício heróico.
Em uma tendência mais problemática, é co-
mum séries e filmes matarem personagens
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LGBT+ como forma deles se “redimirem” pela
sua não-conformidade. É raro o personagem
gay que sobrevive até o fim de um livro do Step-
hen King, muitas vezes se sacrificando para sal-
var um dos protagonistas heterossexuais.
Para pessoas criadas nessa piscina de exaltação
do sacrifício, é difícil não sair molhado. Mas é
preciso se perguntar: que tipo de padrões essa
narrativa perpetua?
Dois estereótipos de sacrifício são pervasivos:
vou chamá-los de a Mãe e o Soldado. A Mãe,
com maiúscula, é aquela que se sacrifica incon-
dicionalmente pelos seus filhos. Uma Mãe, diz
o senso comum, não apenas pularia na jaula de
um leão para resgatar seu filho, como também
levantaria um carro no processo. Essa Mãe só se
alimenta quando os filhos já comeram, só se
veste quando os filhos já têm roupas de grife, e
ajudaria seus filhos a esconder os cadáveres caso
eles se revelassem assassinos em série.
Já o Soldado é aquele que por meio do seu sa-
crifício físico protege as mulheres e crianças in-
defesas ao seu redor. O Soldado morreria em
uma guerra para proteger a honra da sua nação,
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mataria outro homem para proteger a honra da
sua mulher, e poderia até tragicamente matar a
sua própria mulher se necessário, como Jon
Snow e Daenerys em Game of rones.
Naturalmente, estes arquétipos muitas vezes
tomam formas simbólicas: um homem sem fi-
lhos pode ser a Mãe do seu grupo de amigos, e
uma nerd baixinha pode se enxergar como um
Soldado das mídias sociais. Mas em ambos os
casos é fácil ver que se sacrificar pelo outro não
necessariamente é um gesto nobre, e nem sem-
pre traz boas consequências.
Portanto, antes de oferecermos ajuda é preci-
so examinar a fundo esse nosso complexo coleti-
vo de mártir, e aprender a distinguir entre ajuda
e sacrifício.
Pode ser muito difícil diferenciar ajuda de sa-
crifício no cotidiano. Culturalmente, nós nor-
malizamos muitas atitudes tóxicas e tornamos
tabus atitudes perfeitamente saudáveis, como
por exemplo esperar retribuição pela ajuda pres-
tada. Como navegar essa confusão?
As empresas aéreas podem nos ajudar a resol-
ver esse dilema. No cartão com as instruções do
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que fazer em caso de emergência, a ilustração é
clara: coloque a sua própria máscara de oxigênio
primeiro antes de tentar ajudar outra pessoa a
colocar a dela.
Em resumo: se colocar em primeiro lugar é
uma necessidade.
Este conceito simples viola muitas das nossas
regras implícitas de convivência, e por isso mes-
mo existe a necessidade de colocar ele em um
cartão de instruções de emergência, de preferên-
cia com uma ilustração simples e cores bem vi-
vas, para ver se assim a gente entende. Uma pes-
soa que se coloca em primeiro lugar não está
sendo egoísta?
Vamos imaginar que tem uma criança peque-
na sentada do seu lado quando o avião perde a
pressão da cabine. Altruisticamente, você ajuda
a criança a colocar a máscara dela primeiro. Po-
rém, você desmaia antes de conseguir colocar a
sua e, pouco depois, a criança, nervosa e des-
confortável, retira a dela. Tragédia.
Por outro lado, se você coloca a sua máscara
primeiro, você pode ajudar a criança mesmo
que ela já tenha desmaiado. Se a situação se
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complicar ainda mais, você estará desperto e
pronto para reagir. Podendo, por exemplo, le-
vantar e carregar a criança até a saída de emer-
gência em caso de incêndio.
Pondo de outra forma: sacrifícios não ajudam
ninguém. Não de verdade, e não a longo prazo.
Ajuda, por outro lado, faz com que todos os en-
volvidos tenham mais capacidade para enfrentar
as dificuldades futuras.
A ajuda genuína não pode ser um dreno sig-
nificativo dos seus recursos, sejam eles financei-
ros, cognitivos ou emocionais. Se você realmen-
te gostaria de ajudar uma pessoa mas não tem
os recursos para fazer isso sem se prejudicar,
considere ajudar de outra forma - a ajuda, assim
como a retribuição, pode ser ainda mais valiosa
quando simbólica.
Uma vez que tenha ajudado, porém, existem
duas ressalvas importantes sobre a retribuição
que você pode esperar. A primeira é que a outra
pessoa não é obrigada a retribuir. Claro, você
pode então decidir que essa é uma relação desi-
gual e sem reciprocidade, parar de ajudar e se-
guir com a sua vida. A segunda ressalva é que
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você não pode exigir a forma dessa retribuição.
Ainda que tenha salvo uma pessoa das garras de
um feiticeiro maligno, ela não é obrigada a se
apaixonar por você. Agora, um cartão de agra-
decimento vai bem.
Voltando à questão de ajuda versus sacrifício,
se a ajuda é algo que multiplica os recursos, o
sacrifício causa um transtorno considerável para
a pessoa que está oferecendo. Quando uma ati-
tude envolve uma grande quantia de dinheiro,
exige uma mudança considerável da rotina ou
causa angústia emocional, esses são todos sinais
de que estamos falando de sacrifício e não de
ajuda.
Em oposição à natureza recíproca da ajuda, o
sacrifício tende a ser unilateral. Em muitos ca-
sos, a pessoa que recebe esse tipo de “ajuda” se-
quer pediu em primeiro lugar, ou não foi con-
sultada sobre a forma e dimensão que esse auxí-
lio iria tomar. É o caso da mãe que faz dívidas
para comprar uma bolsa de marca para a filha,
quando a filha nem gosta de sair de bolsa. Ou
do namorado que passa meses fazendo hora ex-
tra para comprar um anel de diamantes para pe-
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dir sua namorada em noivado, quando ela nem
deu sinais de que gostaria de se casar.
O sacrifício raramente espera recompensas
proporcionais: ou a pessoa se sacrificando não
espera por recompensa nenhuma (destacando
portanto a suposta superioridade moral do seu
ato), ou exige uma recompensa específica e ab-
surda, como o cavaleiro que espera a mão da
princesa por tê-la resgatado do dragão. Afinal,
depois de tanto sacrifício a pessoa tem que se
apaixonar de volta por você, certo? Errado, um
sacrifício não retira o direito de escolha dos ou-
tros.
O sacrifício também tem uma narrativa con-
descendente: eu vou ajudar essa pessoa a ponto
de me prejudicar porque ela é tão incapaz e in-
defesa que não conseguiria se virar sozinha. Na
ajuda, frequentemente reconhecemos que a pes-
soa poderia resolver o problema por conta pró-
pria, mas que é mais conveniente e eficaz traba-
lhar em equipe. Já no sacrifício, é essa suposta
incapacidade que justifica o uso de ações drásti-
cas para resolver a situação. Se um amigo per-
deu as chaves do carro, ajudar a procurar é uma
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reação proporcional. Já na mentalidade do sacri-
fício você poderia oferecer o próprio carro em-
prestado e passar a semana andando de ônibus,
algo completamente desnecessário, afinal, se
você consegue pegar ônibus, seu amigo prova-
velmente também conseguiria. O sacrifício rou-
ba o protagonismo da situação para você, fican-
do agora como o herói, e deixa a pessoa em um
papel secundário na própria vida dela.
Imagine que seu parceiro ou parceira decidiu
se sacrificar pelo seu bem, e sem te consultar fez
um empréstimo para poder pagar pelo celular
que você queria. Isso põe você em uma situação
desconfortável de se sentir em dívida, e significa
que o casal terá menos recursos - financeiros e
emocionais - no futuro. Talvez o celular não
fosse a sua prioridade. O stress financeiro pode
muito bem abalar a relação dos dois, e os paga-
mentos do empréstimo geram uma fonte men-
sal de ressentimento mútuo. O que acontece se
o pagamento da fatura cair justamente em um
dia que vocês brigaram? Chamar atenção para o
fato ainda poderá fazer a presenteada ser taxada
como ingrata. Ainda que o relacionamento não
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seja frágil a ponto de se desfazer por isso, não há
por que passar por transtornos desnecessários.
Uma solução mais adequada seria ambos con-
versarem sobre como economizar e atingir esse
objetivo juntos, de forma combinada de co-
mum acordo.
Um outro exemplo seria uma amiga que está
em um relacionamento tóxico com o namora-
do. Você percebe que ela não vai conseguir sair
dessa sozinha e decide bancar o príncipe em um
cavalo branco, indo confrontar o namorado di-
retamente. No fim das contas, como não foi
uma decisão tomada pela pessoa, é provável que
ela não termine com o namorado e ainda deixe
você como o vilão na história. Não só ela não
pediu por ajuda dessa forma, como é possível
que ela se afaste de você, terminando com uma
pessoa a menos na rede de apoio dela, se tor-
nando assim ainda mais isolada e presa ao rela-
cionamento tóxico.
A narrativa da donzela que precisa ser resgata-
da das terríveis garras do vilão faz parecer que
intervir imediatamente e de maneira drástica é a
escolha correta e acertada moralmente. Como
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sugestão, gosto de substituir essa narrativa de
“certo” e “errado” e pensar em termos do que
“funciona” e “não funciona”. O senso comum
vai argumentar que é certo obrigá-la a terminar
o namoro. Mas funciona? Provavelmente não.
Se ela voltar com o namorado e se afastar de
você, esse é um dos piores cenários possíveis.
Pensando em termos do que funciona e reco-
nhecendo que problemas são estruturais – e
portanto levam tempo para serem corrigidos –
uma intervenção mais branda, empoderando
sua amiga, não julgando, fazendo parte da sua
rede de apoio, ajudando no crescimento da sua
autoestima, costuma ter uma chance maior de
funcionar.
Perceba que todos os exemplos acima falam
de uma ajuda muito mais passiva e não roman-
tizada. Quando você retira seu ego de precisar
salvar alguém e desconstrói a narrativa de uma
pessoa indefesa, tirando a urgência do discurso,
você ganha tempo para pensar em intervenções
mais eficazes.

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Uma crítica à caridade

Na sociedade ocidental a caridade é uma das


mais altas virtudes, exemplificada em figuras tão
exaltadas quanto a Madre Teresa de Calcutá, li-
teralmente uma santa, e Bill Gates, o bilionário
que dedicou sua fortuna para eliminar a malá-
ria.
Entretanto, essas não são figuras isentas de
polêmica. A Madre Teresa foi acusada de inten-
cionalmente deixar pacientes sofrerem por acre-
ditar que o sofrimento os aproximaria de Deus
[26]. Bill Gates ativamente boicotou a quebra
de patente para a vacina do Covid-19 [27], pro-
longando a pandemia para proteger os lucros
das grandes empresas farmacêuticas.
Assim como esses representantes, a caridade
em si vem sendo alvo de críticas severas. Uma
das formas mais impactantes de caridade é a
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ajuda humanitária enviada a países em desen-
volvimento, com valor estimado de mais de
US$ 160 bilhões por ano [28]. Embora essa
ajuda possa aliviar a tragédia causada por even-
tos temporários como uma seca, ativistas apon-
tam que a longo prazo essas políticas têm conse-
quências negativas.
Na África, uma das regiões que mais recebe
fundos de caridade, ativistas [29] apontam pelo
menos três problemas causados pela ajuda hu-
manitária: primeiro, o fornecimento gratuito de
comida alivia a fome a curto prazo, mas tam-
bém faz com que plantar não seja uma atividade
rentável, tornando o suprimento de comida ain-
da mais precário a longo prazo. Outras indústri-
as também são afetadas, como por exemplo a
indústria têxtil, perpetuando um ciclo de de-
pendência econômica. Segundo, ONGs fre-
quentemente se envolvem na política local,
como ocorre na Somália, onde entidades estran-
geiras controlando o fluxo das doações efetiva-
mente substituíram o governo local, resultando
em instituições corruptas e antidemocráticas.
Terceiro, a ajuda internacional pode agravar
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conflitos, como no Sudão, onde as doações per-
mitiram que ambos os exércitos usassem esses
recursos na guerra civil, prolongando e intensifi-
cando um conflito que resultou na morte de
cerca de dois milhões de pessoas. A lógica aqui
de simplesmente dar o que eles precisam sem
nenhuma autocrítica ou senso estratégico clara-
mente não funcionou.
Na América Latina, a interferência dos Esta-
dos Unidos historicamente significou o apoio a
ditaduras e o assassinato de políticos. Em docu-
mentos tornados públicos em 2004 [30], foi
confirmado que o golpe militar de 1964 no
Brasil foi realizado com o expresso apoio do go-
verno americano, que não só armou e financiou
as forças do general Castello Branco como che-
gou a enviar um porta-aviões e uma frota naval
para apoiar os golpistas se necessário.
Outra das políticas oficiais dos nossos vizi-
nhos ao norte foi a Operação Condor [31]. En-
tre 1968 e 1989 o governo americano promo-
veu ações de repressão contra manifestantes e
pensadores de esquerda na América Latina, ma-
tando cerca de 60 mil pessoas e prendendo ou-
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tras 400 mil. Durante essa operação, a agência
central de inteligência americana atuava em par-
ceria com as várias ditaduras militares do conti-
nente, coordenando e planejando ações de ter-
ror e assassinatos políticos contra oponentes do
regime, além de treinar agentes locais em técni-
cas de tortura [32]. Apesar dos documentos da
operação terem sido desclassificados e disponi-
bilizados ao público em 1999, ninguém foi con-
denado por seu envolvimento nessas ações ile-
gais, nem no Brasil nem nos EUA.
Embora as ferramentas da Operação Condor
ainda estejam em uso, ocasionalmente o gover-
no americano decide usar da ajuda humanitária
como uma arma adicional contra os governos
que enxerga como inimigos. Em 2019, o gover-
no Trump coordenou o envio de ajuda humani-
tária para a Venezuela, que passava por uma cri-
se de abastecimento de comida e remédios. O
verdadeiro objetivo da ação, conforme a própria
agência americana de ajuda admitiu em um re-
latório de auditoria interna [33], era dar legiti-
midade a Juan Guaidó em sua tentativa de der-
rubar o governo de Nicolás Maduro. Os supri-
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mentos foram impedidos de entrar no país por
forças leais ao governo, e o golpe de Juan Guai-
dó até o momento fracassou. Estrategicamente,
foi preferível recusar esse tipo de “ajuda huma-
nitária” do que pagar pelo preço dessa ajuda
com um golpe. Essa ajuda tinha um custo que
eles não quiseram pagar.
Mas talvez em nenhum outro país os efeitos
nocivos da caridade sejam mais visíveis que no
Haiti. Depois de um terremoto devastador em
2010, o país caribenho se viu efetivamente inva-
dido por tropas estrangeiras ansiosas para aju-
dar. Só o Brasil enviou 37 mil soldados, chefia-
dos pelo agora famoso General Heleno [34], na
maior mobilização das nossas forças armadas
desde a Guerra do Paraguai. Após um período
inicial de colaboração e ajuda para lidar com as
consequências da catástrofe, esse poderio militar
rapidamente se voltou contra os haitianos. A
ONU e as forças armadas americanas assumi-
ram a administração do país, eventualmente
executando um golpe contra o presidente René
Préval. A multidão de soldados introduziu na
ilha doenças que estavam extintas, como a cóle-
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ra [35], e gerou uma epidemia de crimes sexuais
e crianças sem pais, muitas filhas de soldados
brasileiros [36]. Até hoje o Haiti não recuperou
sua soberania, e estava sendo governado até re-
centemente por um ditador apoiado pelos EUA,
que terminou assassinado em circunstâncias
misteriosas [37].
Outro exemplo particularmente sinistro é a
rede de orfanatos administrados pela Igreja Ca-
tólica ao redor do mundo, estabelecidos em
nome da caridade. Em um desses orfanatos na
Irlanda, foram descobertos os restos mortais de
quase 800 crianças [38], descartados em uma
fossa séptica. O escândalo levou a uma investi-
gação governamental que concluiu, em um de-
vastador relatório com mais de três mil páginas
[39], que o problema era generalizado: entre
1922 e 1998, o protocolo nestas instituições era
separar mães solteiras de seus filhos, enviando as
mães para campos de trabalho forçado e as cri-
anças para orfanatos. As crianças mais bonitas e
comportadas eram vendidas para adoção, e as
que sobravam eram então sujeitas a abusos coti-

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dianos desses orfanatos, onde a taxa de mortali-
dade infantil era o dobro da média nacional.
Já no Canadá, crianças dos povos nativos
eram retiradas da sua tribo contra a vontade dos
pais e enviadas para orfanatos religiosos onde
sua cultura era apagada. Sujeitas a condições
inadequadas e torturadas por não se adequar,
mais de seis mil crianças morreram aos cuidados
dessas instituições [40]. Não estamos falando do
passado longínquo: o último desses internatos
fechou em 1997. E claro, Irlanda e Canadá são
apenas dois lugares em que o governo decidiu
investigar esses abusos, mas é difícil imaginar
que não aconteceu o mesmo ou pior aqui no
Brasil.
Outro grupo de pessoas que vem à mente
quando o assunto é caridade são pessoas em si-
tuação de rua. É difícil estimar os efeitos da ca-
ridade nessas pessoas, e não há consenso entre
os pesquisadores. A esmola, em particular, é po-
lêmica. Embora qualquer pessoa prefira a versa-
tilidade de ter dinheiro em mãos, os governos
tendem a sugerir que essas pessoas sejam enca-
minhadas para os serviços oficiais de assistência,
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onde elas podem ser ajudadas de forma mais
completa e sistêmica - mas também, crucial-
mente, escondidas dos olhos do restante da po-
pulação e dos turistas. É claro que individual-
mente existe um potencial transformador no
acolhimento dessas pessoas. Porém, ao esconder
o problema em instituições distantes e pouco
transparentes, o governo também esconde o
problema sistêmico da pobreza e da miséria.
Especialmente no caso de usuários de drogas,
há uma pressão por parte de igrejas evangélicas
para que estas pessoas possam ser sequestradas -
a eufemística “internação compulsória” - e sub-
metidas contra sua vontade a terapias duvidosas
e à doutrinação religiosa, tudo em nome da sua
recuperação e da caridade divina. Em 2016,
uma revisão de literatura publicada no Interna-
tional Journal of Drug Policy concluiu que não
há evidência de que a internação compulsória
funcione [41], e a política é considerada uma
violação dos direitos do paciente pela Organiza-
ção Mundial de Saúde [42]. Apesar disso, essa
prática abominável se tornou legal no Brasil em
2019, sancionada pelo governo Bolsonaro.
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Tudo isso significa então que nunca devemos
fazer caridade ou estender a mão para aqueles
em necessidade? Não. Existem boas ONGs e
instituições às quais vale a pena doar dinheiro
ou tempo. Mas precisamos ter uma intensa re-
flexão para considerar as verdadeiras motivações
para este ato, e se as consequências realmente
serão positivas a longo prazo, tanto para você
quanto para o alvo da sua caridade. É simplista
pensar que porque algo se chama “caridade” ou
“ajuda” ela é intrinsecamente boa e positiva. E
no caso de grandes instituições como igrejas e
países, a evidência histórica é que a caridade
tende a custar muito caro. Quando a esmola é
demais, a psicóloga desconfia.

[26] THE NEW YORK TIMES. A Critic’s Lo-


nely Quest: Revealing the Whole Truth About
Mother Teresa. Disponível em: https://www.ny-
times.com/2016/08/27/world/asia/mother-tere-
sa-critic.html. ↩
[27] QUEALLY, Jon. Bill Gates says no to sha-
ring vaccine formulas with global poor to end

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pandemic. 2021. Disponível em:
https://www.salon.com/2021/04/26/bill-gates-
says-no-to-sharing-vaccine-formulas-with-glo-
bal-poor-to-end-pandemic_partner/. ↩
[28] OECD. COVID-19 spending helped to
lift foreign aid to an all-time high in 2020 but
more effort needed. 2021. Disponível em:
https://www.oecd.org/newsroom/covid-19-
spending-helped-to-lift-foreign-aid-to-an-all-
time-high-in-2020-but-more-effort-nee-
ded.htm. ↩
[29] MOYO, Dambisa F.. Dead Aid: why aid is
not working and how there is a better way for
Africa. Farrar Straus Giroux, 2010. ↩
[30] KORNBLUH, Peter (ed.). BRAZIL
MARKS 40th ANNIVERSARY OF MILI-
TARY COUP. 2004. Disponível em:
https://nsarchive2.gwu.edu/NSAEBB/NSA-
EBB118/. ↩
[31] ROSSI, Marina. A regra de sangue da
Operação Condor, a aliança mortífera das dita-
duras do Cone Sul. 2019. Disponível em:

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https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/29/po-
litica/1553895462_193096.html. ↩
[32] Dalenogare Neto, Waldemar. 2020. Os Es-
tados Unidos e a Operação Condor. ↩
[33] REUTERS. EUA admitem que ajuda hu-
manitária à Venezuela buscava apoiar Guaidó.
2021. Disponível em: https://www1.fo-
lha.uol.com.br/mundo/2021/04/operacao-de-
ajuda-dos-eua-a-venezuela-nao-seguiu-principi-
os-humanitarios-conclui-auditoria.shtml. ↩
[34] STARGARDTER, Gabriel. General Au-
gusto Heleno, futuro ministro, liderou missão
polêmica no Haiti. 2018. Disponível em:
https://exame.com/brasil/general-augusto-hele-
no-futuro-ministro-liderou-missao-polemica-
no-haiti/. ↩
[35] ZANELLA, Cristine Koehler; BERALDO,
Maria Carolina Silveira. ONU introduz epide-
mia de cólera no Haiti. 2012. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/onu-introduz-epi-
demia-de-colera-no-haiti/. ↩
[36] BARTELS, Sabine Lee e Susan. Os filhos
abandonados da ONU no Haiti. 2019. Dispo-
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nível em: https://brasil.elpais.com/internacio-
nal/2019-12-27/os-filhos-abandonados-da-onu-
no-haiti.html. ↩
[37] BBC. Jovenel Moïse: 4 incógnitas sobre o
assassinato do presidente do Haiti. 2021. Dis-
ponível em: https://www.bbc.com/portugue-
se/internacional-57875162. ↩
[38] GRIERSON, Jamie. Mass grave of babies
and children found at Tuam care home in Ire-
land. 2017. Disponível em: https://www.the-
guardian.com/world/2017/mar/03/mass-grave-
of-babies-and-children-found-at-tuam-orphana-
ge-in-ireland. ↩
[39] DEPARTMENT OF CHILDREN,
EQUALITY, DISABILITY, INTEGRATION
AND YOUTH. Final Report of the Commissi-
on of Investigation into Mother and Baby Ho-
mes. 2021. Disponível em:
https://www.gov.ie/en/publication/d4b3d-final-
report-of-the-commission-of-investigation-into-
mother-and-baby-homes/?refer-
rer=http://www.gov.ie/en/campaigns/2f291-fi-

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nal-report-of-the-commission-of-investigation-
into-mother-and-baby-homes/. ↩
[40] BBC. Canada: 751 unmarked graves found
at residential school. 2021. Disponível em:
https://www.bbc.com/news/world-us-canada-
57592243. ↩
[41] Werb D, Kamarulzaman A, Meacham
MC, Rafful C, Fischer B, Strathdee SA, et al.
e effectiveness of compulsory drug treatment:
a systematic review. Int J Drug Policy 2016;
28:1-9. ↩
[42] UNODC. Da coerção à coesão: tratamen-
to da dependência de drogas por meio de cuida-
dos em saúde e não da punição. 2009. Disponí-
vel em: https://www.unodc.org/documents/lpo-
brazil/noticias/2013/09/Da_coercao_a_coesa-
o_portugues.pdf. ↩

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Autonomia e responsabilização

Um erro comum no processo de tentar ajudar é


acabar removendo a autonomia da pessoa.
Como o herói de um filme, você retira comple-
tamente a pessoa da situação e resolve o proble-
ma no lugar dela. A dívida está paga, o inseto
está morto, o dever de casa está feito: o proble-
ma foi resolvido, mas no processo a pessoa foi
reduzida a coadjuvante da própria história. Se a
situação se repetir, ela estará igualmente incapaz
de se virar, e se essa for uma dinâmica recorren-
te, a pessoa se tornará cada vez mais dependente
e vulnerável.
Por isso, o processo de ajuda deve começar
com a responsabilização, ou seja, identificar que
a pessoa é, pelo menos em parte, responsável
pela situação em que se encontra e, no mínimo,
responsável se quiser sair dela.
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Polêmico! Mas calma: responsabilidade não é
a mesma coisa que culpa. Ao invés de enxergar a
situação por um viés moral procurando quem é
o vilão e quem é o mocinho, o objetivo da res-
ponsabilização é identificar, entre os fatores en-
volvidos, o que estava sob seu controle e pode
ser alterado caso uma situação parecida aconteça
no futuro.
Digamos que seu relacionamento terminou.
É possível que haja um interesse jurídico em en-
contrar culpados e vítimas na situação. Moral-
mente, pode ser que alguns atos tenham sido
corretos ou errados. Mas psicologicamente,
nada disso importa. Responsabilização é analisar
qual parcela do término estava na sua esfera de
influência e o que pode ser feito para que no fu-
turo os resultados sejam mais próximos do que
você deseja. Por exemplo, digamos que uma
pessoa saiu de um relacionamento abusivo. Não
é necessariamente culpa dela que o relaciona-
mento era abusivo, porém ajudá-la a analisar o
que poderia ter sido feito para evitar entrar nes-
se tipo de relacionamento possivelmente será

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útil para que ela não caia em uma relação abusi-
va novamente.
É um conceito complexo, então vamos tentar
mais um exemplo: suponha que você não tem
um bom relacionamento com os seus pais. Na
perspectiva da responsabilização, o foco seria
identificar quais componentes deste relaciona-
mento você consegue mudar. Certamente a per-
sonalidade dos seus pais não está sob seu con-
trole, mas você pode escolher com que frequên-
cia você os visita, quais assuntos você escolhe ou
se leva alguém junto para ter apoio moral. Não
é que a psicologia acha que tudo é sua responsa-
bilidade, mas sim que se o objetivo é transfor-
mar a realidade, é mais produtivo se concentrar
nos fatores que estão ao seu alcance.
Responsabilizar não é culpar a vítima. Há si-
tuações em que temos pouquíssimo controle.
Porém, não devemos enxergar as pessoas como
completamente indefesas. Além de condescen-
dente, essa atitude prejudica a recuperação psi-
cológica e material de quem precisa de ajuda.
Focar no que pode ser feito é colocar o poder,
aos poucos, de volta nas mãos de quem precisa.
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Se você perdeu o emprego, podemos exami-
nar a culpa das políticas econômicas do gover-
no, da ganância do dono da empresa ou das in-
justiças do capitalismo, todos fatores sobre os
quais você tinha pouco poder de decisão sobre.
Mas o que você vai fazer a respeito? De renovar
o seu currículo a se juntar a um movimento de
justiça social, tudo que faz parte da sua esfera de
possíveis ações é alvo dessa responsabilização.
O oposto de responsabilização é tratar a pes-
soa como coitada, uma personagem de uma tra-
gédia grega vítima da vontade dos deuses e das
vicissitudes do destino. O problema de ser uma
personagem de tragédia grega é que não impor-
ta o que você faça, a história vai terminar mal.
Se enxergar como vítima é fechar os olhos para
possíveis saídas de situações ruins, e para manei-
ras de não entrar em situações piores no futuro.
Ainda que a pessoa seja, no sentido jurídico,
uma vítima, a responsabilização é parte funda-
mental da sua agência, da sua autonomia e do
seu processo de superação de traumas.
Em um dos estudos mais desalmados da his-
tória da psicologia, os pesquisadores S. F. Maier
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e M. E. Seligman [43] demonstraram que ao
deixar um cachorro em uma sala em que o chão
aplicava choques elétricos aleatórios, este ca-
chorro eventualmente deixa de tentar evitar os
choques, mesmo quando colocado depois em
outra sala na qual os choques são facilmente evi-
táveis. Os dois chamaram o fenômeno de “de-
samparo aprendido”: ao serem confrontados
com uma situação desagradável fora do seu con-
trole, organismos tendem a deixar de evitar esse
estímulo desagradável no futuro, mesmo quan-
do seria possível escapar.
As aplicações do conceito de desamparo
aprendido à psicologia humana tendem a ser
exageradas, e mesmo em animais esse fenômeno
é mais uma tendência do que uma lei inescapá-
vel. Dito isso, esse é um lembrete poderoso da
importância psicológica de acreditar que é sem-
pre possível transformar o mundo ao nosso re-
dor, ainda que de maneira pequena ou incom-
pleta. Responsabilização é a aplicação prática
dessa ideia.
Portanto, ao ajudar alguém, é preciso reco-
nhecer que ela é capaz de tomar suas próprias
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decisões, e que provavelmente algumas dessas
decisões contribuíram para ela precisar pedir
ajuda em primeiro lugar. Idealmente, se puder-
mos identificar e corrigir essas decisões, ela será
capaz de ajudar a si própria no futuro. Claro, fa-
lar é fácil. Na verdade as pessoas tendem a ser
extremamente defensivas sobre seus erros, e é
muito fácil parecer que você está simplesmente
jogando toda a culpa da situação nela. Ainda as-
sim, mesmo que não seja oportuno discutir isso
com a pessoa na hora, mantenha na sua própria
cabeça que precisar de ajuda não é a mesma coi-
sa que ser uma vítima indefesa, e mantenha os
olhos abertos por uma oportunidade de ajudar a
pessoa a resolver a causa, e não só o problema.
Mais uma vez para quem estava dormindo no
fundo da sala: isso não quer dizer que a pessoa é
culpada por todas as coisas ruins que acontece-
ram na vida dela. O ponto é que, sendo uma
pessoa dotada de autonomia, provavelmente
existem coisas que ela mesma pode fazer para
melhorar a situação atual.
Provavelmente o jeito mais simples de preser-
var a autonomia da pessoa sendo ajudada é en-
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volvê-la no processo de ajuda. Converse com ela
sobre quais são as dificuldades e como ela acha
que podem ser superadas. Pergunte como ela
gostaria de ser ajudada. Evite, se possível, resol-
ver o problema você mesmo, e ao invés disso
forneça as ferramentas e condições para que a
própria pessoa resolva. Alternativamente, divida
o problema em tarefas e garanta que a pessoa
faça algumas delas sozinha. Quanto mais a pes-
soa participar do processo, mais ela se sentirá
responsável por ele, e mais recursos cognitivos
ela terá para lidar com problemas futuros. Aju-
dar é algo que se faz com a pessoa, e não no lu-
gar dela. Como um benefício colateral, você
também contribuirá para que ela possa oferecer
uma retribuição mais rica quando você também
precisar de ajuda, o que faz parte do processo de
expandir sua rede de apoio.
Todo mundo sabe que não se deve resolver o
dever de casa pelo seu filho. Mas muitas vezes
nós acabamos fazendo o dever de casa emocio-
nal das pessoas ao nosso redor. Ajudar não é re-
mover obstáculos pela pessoa, e sim oferecer
uma alavanca.
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Pode ser algo simples. Seu amigo precisa de
uma carona? Peça para ele cuidar do som ou do
GPS do carro durante o trajeto. Desde que a
pessoa tenha um papel a desempenhar, e não
simplesmente seja o receptáculo passivo da sua
ajuda divina, a ajuda terá chances melhores de
se tornar uma troca recíproca. A longo prazo,
essa é a melhor forma de ajudar.
Provavelmente você já ouviu o provérbio
“não se deve dar um peixe ao homem, e sim en-
siná-lo a pescar”. Apesar de seu uso recorrente
por economistas liberais e políticos de direita
para justificar cortes em programas sociais, exis-
te sim um fundinho de sabedoria nesse ditado.
O problema, parafraseando o ex-presidente do
Uruguai José Mujica, é quando destroçamos o
barco, roubamos a vara e tiramos os anzóis. Aí
realmente é melhor começar dando o peixe
mesmo.

[43] Maier, S. F., & Seligman, M. E. (1976).


Learned helplessness: eory and evidence.
Journal of Experimental Psychology: General,

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105(1), 3–46. https://doi.org/10.1037/0096-
3445.105.1.3. ↩

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Consentimento

Quando vamos oferecer ajuda, muitas vezes en-


tendemos que quem queremos ajudar pode ter
dificuldade em pedir. Com todo o preconceito
cultural em torno de não conseguir fazer tudo
sozinho, é até esperado. Entretanto, mesmo as-
sim é importante que você tente conseguir o
consentimento expresso da pessoa antes de aju-
dar. Do contrário, estaremos desrespeitando os
princípios de autonomia e responsabilização de
que falamos no capítulo anterior.
A depender da personalidade da pessoa você
pode tentar diferentes abordagens, mas de ma-
neira geral é importante ser genuíno nas suas in-
tenções e transmitir convicção em realmente
ajudar. De qualquer forma, devemos evitar o
impulso de já ir se intrometendo e tomando
ações pelos outros. Ao invés disso, considere
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perguntar: “amiga, você quer que eu te ajude?”,
“você quer a minha opinião?”, “você quer que
eu esteja lá com você?”. Atropelar os desejos dos
outros e se envolver onde não é bem-vindo para
se fazer de herói não é ajuda, é egomania: a ati-
tude de engrandecer a si próprio às custas das
pessoas ao seu redor.
Essa atitude de não perguntar e já ir ajudan-
do é condescendente por insinuar que a pessoa
não seria capaz de pedir ajuda, e por não levar
em conta tudo que ela já pode ter tentado ou
pensado por conta própria para resolver o pro-
blema. Ao se intrometer sem ter todas as infor-
mações, é provável que você simplesmente repi-
ta as soluções óbvias que a própria pessoa já
deve ter tentado ou acabe agravando a situação
por conta de circunstâncias das quais você não
tinha conhecimento.
O consentimento ativo não para no momen-
to em que a pessoa concordou em ser ajudada.
Faça dela uma participante. O que ela já fez?
No que ela já pensou? O que ela está confortá-
vel em fazer, e o que ela não gostaria de fazer
mesmo se fosse resolver o problema? Muitas ve-
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zes só servir para que a pessoa possa organizar os
pensamentos dela pode ser uma ajuda mais vali-
osa que sair cavalgando pelos problemas alheios.
Mesmo que a pessoa não esteja sendo total-
mente sincera e diga que quer sim ouvir sua
opinião só para não ferir os seus sentimentos, ao
pedir por consentimento no mínimo você já
preparou as expectativas dela sobre qual será o
teor da sua fala, o que é melhor do que ser pega
de surpresa. Por outro lado, é claro que vão exis-
tir situações em que a pessoa na verdade queria
ajuda mas acabou recusando por não querer dar
trabalho. Tudo bem, esses erros acontecem. A
gente espera que conforme a relação entre vocês
for amadurecendo, as coisas se tornem aos pou-
cos mais claras e intencionais, isto é, se vocês
trabalharem nessa construção.
Se você quiser pensar em situações extremas
nas quais não seria possível conseguir o consen-
timento para ajudar alguém, essas destacam a
importância do diálogo franco e aberto com as
pessoas ao seu redor. Digamos que você está em
coma, com uma chance de acordar muito pe-
quena, e os médicos têm a opção de manter a
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sua vida com o uso de aparelhos ou desligar
tudo. Não tem como perguntar o que você gos-
taria que fizessem. Então pergunto, você já con-
versou com seu parceiro ou parceira sobre isso?
Sua família sabe sua opinião sobre o assunto?
Nesse caso, existe uma espécie de consentimen-
to prévio, que deve ser construído por meio de
conversas honestas sobre assuntos difíceis com
as pessoas que são mais próximas de você.
Existem casos ainda mais desafiadores, em
que a pessoa não está completamente incapaz de
oferecer consentimento mas está em uma situa-
ção de grande vulnerabilidade, como é o caso de
pessoas em abuso de substâncias ou violência
doméstica. Circunstâncias como essas fogem do
escopo desse livro, e seria irresponsável prescre-
ver uma breve solução para casos tão comple-
xos. Ao invés disso, recomendo que nessas situa-
ções seja procurado um profissional, que poderá
avaliar os detalhes do caso específico e a melhor
forma de ajudar. Também existem situações em
que não intervir seria negligência criminosa,
como por exemplo quando há menores envolvi-

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dos em uma situação de abuso dentro de casa,
entre outros.
Mas nos casos cotidianos mais comuns, é
possível estabelecer consentimento a partir do
diálogo. E vale lembrar que diálogo é uma habi-
lidade, e portanto não é algo que você nasce sa-
bendo. É algo que você precisa praticar e trei-
nar, e que envolve erros no caminho. Para cada
relação haverá uma fase de descobrir onde a pes-
soa quer ajuda e onde ela não quer, é um pro-
cesso de descoberta mútua. Por isso é tão im-
portante ter paciência tanto com a outra pessoa
quanto com você mesmo na construção desse
consenso.

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Como ser um bom ouvinte

No capítulo anterior falamos sobre a importân-


cia de exercitar o diálogo, uma habilidade que
envolve tanto saber falar quanto saber ouvir. Po-
rém, a segunda parte dessa habilidade costuma
ser esquecida.
Os estresses do dia a dia, a avalanche de in-
formações negativas, a cobrança interna e exter-
na, tentar dar conta das atividades cotidianas
como trabalhar, comer direito, cuidar dos filhos,
cuidar da saúde mental; tudo é simplesmente
demais para nossas cabeças. Nessas horas é co-
mum só precisarmos desabafar, falar dos proble-
mas como uma tentativa de tentar absorver o
que está ao nosso redor e colocar um pouco
para fora tudo que foi forçado no nosso psicoló-
gico.

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Os efeitos de conversar sobre nossos proble-
mas são surpreendentemente profundos. Em
um estudo de 1988, o psicólogo James Penne-
baker e seus colegas demonstraram que falar so-
bre seus traumas tinha um efeito positivo no sis-
tema imunológico e na saúde geral dos partici-
pantes do estudo [44]. Uma das teorias para ex-
plicar esse efeito é que guardar segredos doloro-
sos é uma atividade que causa stress, e portanto
problemas de saúde. Simplesmente abrir o peito
pode ter um efeito benéfico significativo.
Mais recentemente, em 2007, uma equipe de
pesquisadores armados com equipamentos mo-
dernos de neurociência demonstrou que nome-
ar nossas emoções reduz a ativação da amígdala,
a área do cérebro responsável pela reação de lu-
tar ou fugir [45]. Ao conversar sobre nossos sen-
timentos, nós envolvemos as áreas do cérebro
envolvidas com palavras e significados, e nos
tornamos menos reativos e mais conscientes.
Conversar sobre seus problemas pode ser uma
forma concreta de resolvê-los.
Os obstáculos do cotidiano se acumulam e
nos cansam, mas normalmente conseguimos li-
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dar com eles. Na maior parte dos dias, o que re-
almente precisamos é de alguém para escutar
nossos problemas, e muitos de nós não querem
que eles sejam resolvidos por outra pessoa.
Pessoas se comunicam de maneiras diferentes.
Simplificando, digamos que existem dois gran-
des grupos, que vamos chamar de grupo A e
grupo B. O grupo A quer conversar, colocar
para fora, se sentir levado a sério e ter validação.
Normalmente não é um grupo que quer muita
intervenção, ele não quer soluções, mas sim um
local mais íntimo de acolhimento. O grupo A,
ao contar sobre um problema, quer um abraço,
um “eu só consigo imaginar” ou “poxa se eu es-
tivesse no seu lugar também teria me sentido as-
sim”.
Já o grupo B tende a ser um grupo mais prá-
tico, um grupo que quer sugestões, soluções,
proatividade e brainstorm. A maneira mais fácil
de diferenciar os dois grupos é o fato do grupo
B ser um grupo que normalmente coloca após
os desabafos perguntas como: “o que você faria
no meu lugar?, “você acha que eu fiz certo?” ou
“você tem alguma ideia do que eu possa fazer?”.
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O problema normalmente acontece quando
pessoas A e B tentam se acolher. Quando A ten-
ta acolher B, com seu “deve ser difícil mesmo”
ou “putz, tenso”, B sente como se A não estives-
se levando a sério e que não está realmente inte-
ressado em participar da conversa. Já quando B
tenta acolher A, A fica sentindo como se B esti-
vesse tentando resolver seus problemas e sendo
condescendente, ficando frustrado por não ser
validado.
Essas não são regras rígidas, mas sim tendên-
cias, e é possível que dependendo do dia e/ou
da situação você transite entre os dois grupos.
Por isso estabelecer vínculos, uma comunicação
clara e aprimorar suas habilidades de escuta são
coisas que vão cair bem aqui.
No acolhimento, apenas ouvir ativamente
outra pessoa pode ser bem difícil. É desconfor-
tável ouvir sobre o sofrimento de uma pessoa
querida sem poder fazer nada concreto para re-
solver a situação. Não gostamos de nos sentir
inúteis. Nosso impulso é tentar “consertar” a
dor do outro ao invés de permitir que eles sin-
tam seus próprios sentimentos. Indo mais lon-
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ge, podemos acabar nos envolvendo muito
emocionalmente no desabafo, trazendo uma
carga negativa para dentro de nós. Como supe-
rar esses impulsos e conseguir oferecer para a
pessoa a ajuda da forma que ela precisa?
A primeira habilidade a se desenvolver para se
tornar um bom ouvinte é aprender a ficar con-
fortável com o desconforto. No começo de uma
relação é normal ficar ansioso com os momen-
tos de silêncio e tentar preenchê-los com con-
versa miúda. Por outro lado, ficar confortável
no silêncio é justamente uma das marcas de
uma relação mais profunda, onde ambos se sen-
tem confortáveis em coexistir sem precisar inte-
ragir. O mesmo se aplica ao desconforto de ou-
vir um desabafo: quanto mais você conhece a
pessoa, menos motivo você tem para sentir que
precisa se intrometer nos problemas que ela está
contando. Não seja condescendente! Mesmo se
estiver lidando com uma pessoa do grupo B,
tente esperar que ela peça por contribuições.
Outro fator que nos leva a ser ouvintes ruins
é o desconforto com emoções “negativas”. Um
bebê chorando na cabine de um avião gera uma
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bolha ao seu redor, dentro da qual a prioridade
número um de todos os outros seres humanos
presentes é fazer com que o bebê pare de chorar.
Pais constrangidos pedem desculpas enquanto
estranhos decidem testar suas habilidades como
palhaços amadores. Comissários de bordo são
despachados para lidar com a emergência. Des-
confio que até a torre de voo seja avisada.
Um adulto chorando é ainda mais constran-
gedor, e nossa reação é tratar a pessoa como se
fosse um cano estourado e correr para tapar o
vazamento assim que possível. Nossos estereóti-
pos de gênero também vêm prejudicar a situa-
ção: um homem chorando em público é consi-
derado patético, enquanto uma mulher não
pode chorar sem atrair a atenção de estranhos
querendo saber o que aconteceu.
A dimensão de raça também é relevante: a
jornalista Reni Eddo-Lodge conta [46] que du-
rante um evento de divulgação do seu livro “Por
que eu não converso mais com pessoas brancas
sobre raça”, uma mulher branca na plateia caiu
em prantos enquanto Reni lia um capítulo do
livro. Para Reni, esse choro era reflexo de um fe-
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nômeno mais amplo em que quando pessoas
brancas escutam falar sobre racismo, elas inter-
pretam essa informação como se fosse projetada
para fazer elas se sentirem pessoas más. Simples-
mente refletir sobre racismo é percebido como
se fosse um ataque pessoal a qualquer pessoa
branca na vizinhança. Muitas vezes essas pessoas
reagem com raiva ou de maneira defensiva, mas
em espaços progressistas como os movimentos
feministas e antirracistas, a reação mais comum
de pessoas brancas a discursos sobre raça é sentir
culpa - e chorar. E aí, desabafa Reni, as ativistas
negras se encontram obrigadas a abandonar a
conversa sobre poder estrutural para então pas-
sar a cuidar dos sentimentos feridos daquela
pessoa branca, providenciar um lenço e um
abraço, dizer que ela não é uma pessoa ruim. E
assim o que deveria ser um espaço para discutir
questões de pessoas negras passa a girar em tor-
no de uma pessoa branca. Ou, nas palavras de
outra ativista entrevistada pela Reni, “mulheres
brancas chorando é racista” [47].
No caso de homens negros, o choro de uma
mulher branca pode ser simplesmente letal,
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como no livro O Sol É Para Todos. Nessa histó-
ria inspirada em casos reais, Tom Robinson, um
homem negro, é falsamente acusado de estuprar
uma mulher branca. Em seu julgamento, apesar
do advogado provar que a história é mentira, o
júri branco decide condenar Tom mesmo assim,
e ele acaba morrendo tentando escapar da pri-
são. Narrativas falsas de que homens negros ou
imigrantes pretendem estuprar mulheres bran-
cas são um clássico racista [48], e continuam
populares ainda hoje [49]. Em um vídeo viral
de 2020, a nova-iorquina Amy Cooper, irritada
porque um homem negro havia pedido que ela
colocasse seu cachorro em uma coleira em seu
passeio pelo Central Park, chamou a polícia e
falsamente acusou o homem de tentar atacá-la.
No caso, a mentira foi descoberta e o homem
foi liberado [50]. Nem todo caso termina tão
bem [51].
Além do choro, outro sentimento que causa
fortes reações é a raiva. Assim como outros sen-
timentos vistos como negativos, a raiva também
pode ser difícil de se presenciar, ainda mais por-
que é fácil se sentir ameaçado mesmo quando
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ela não é direcionada para nós. Homens com
raiva são vistos como uma ameaça física iminen-
te, enquanto mulheres com raiva são histéricas e
fora do controle. E aqui também há um compo-
nente racial, em que pessoas negras têm uma
probabilidade maior de serem julgadas por esse
estereótipo mesmo quando estão reagindo de
maneira proporcional e apropriada.
A raiva também tende a ser contagiosa, e ra-
pidamente nos vemos abandonando o papel de
ouvintes. Quando nós somos o objeto da raiva,
sentimos a necessidade de elevar o nosso tom e
responder à altura. E quando a raiva é direcio-
nada em outra direção, temos o impulso de
compartilhar dessa raiva, de tomar para nós a
causa do outro. A raiva é um sentimento de alta
energia que estimula a ação imediata. Não por
acaso, raiva tende a ser o motor por trás de boa
parte do conteúdo viral em mídias sociais [52]:
seja porque você está furioso com o conteúdo
em si ou com o que o conteúdo está denuncian-
do, sua raiva estimula a interação, o que faz
com que aquele conteúdo atinja ainda mais pes-
soas.
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Claro, tanto raiva quanto tristeza são senti-
mentos perfeitamente naturais, e o choro uma
reação saudável. Nosso desconforto vem a partir
de questões sociais - o medo de demonstrar vul-
nerabilidade em público ou de causar transtor-
no para as pessoas ao seu redor - e não deveriam
nos impedir de experimentar nossos sentimen-
tos em sua plenitude. Não existem emoções
“negativas” ou “erradas”, embora possam existir
comportamentos negativos motivados por uma
emoção. Gostaria de destacar a raiva, que consi-
dero uma emoção injustiçada. Afinal, raiva não
é a mesma coisa que violência. Se você aprender
a expressar sua raiva sem machucar os outros ou
a si mesmo, esse é um dos primeiros passos para
começar a honrar sua própria história.
Mas se você está tentando ajudar alguém, não
sufoque os sentimentos dela. Deixe que ela cho-
re, desabafe e coloque para fora de forma segura
e sem julgamentos, tudo isso faz parte de verda-
deiramente abraçar o que se sente e aprender a
lidar com as suas emoções. Essa atitude de “dei-
xa chorar” também é útil para evitar que esses
sentimentos sejam usados como arma por pes-
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soas ignorantes ou mal intencionadas: se o cho-
ro fosse encarado de maneira mais natural, não
seria tão comum que ele causasse problemas
como roubar o destaque em uma reunião ou
instigar violência racial.
Relacionado ao nosso desconforto com emo-
ções negativas e com o silêncio, existe também o
impulso de sempre querer dar conselhos. Se tra-
ta de um impulso perigoso. É fácil ofender a in-
teligência da pessoa com um conselho óbvio
(“você já tentou ser mais positivo? Sorrir
mais?”), ou oferecer um conselho que pode aba-
lar a relação entre vocês (“por que você não ter-
mina com esse namorado lixo?”). Muitas vezes a
pessoa já tem uma resposta e precisa apenas de
suporte emocional para colocá-la em prática.
Oferecer um conselho não solicitado pode mi-
nar a autoconfiança dela aos poucos, plantando
a ideia de que ela não consegue fazer ou pensar
em nada sozinha.
Porém, às vezes a pessoa de fato quer um con-
selho, seja por que ela não pensou em nada ou
porque ela confia em você a ponto de achar que
você pode ter uma ideia melhor. Nesses casos,
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tente esperar ela pedir. Segure a sua ideia bri-
lhante na cabeça e aguarde pela oportunidade
certa. Se você realmente não consegue diferenci-
ar entre as duas situações, não hesite em per-
guntar diretamente: “eu não sei exatamente o
que te falar ou fazer, quero muito te ajudar, mas
então gostaria de saber se você só quer que eu te
ouça ou se você quer que eu ajude a pensar no
que pode ser feito?”. A comunicação clara rara-
mente é mal recebida.
A primeira habilidade para ser um bom ou-
vinte é, portanto, estar confortável com o des-
conforto. A segunda habilidade é… ouvir. Nor-
malmente em uma conversa nosso cérebro está
dividido entre prestar atenção no que a outra
pessoa está dizendo e preparar a sua resposta.
Essas tarefas nem sempre estão balanceadas, e é
comum que a maior parte do seu esforço men-
tal esteja em pensar em uma citação inteligente
ou uma piada engraçada para preencher o silên-
cio quando a outra pessoa parar de falar. Experi-
mente o que acontece quando você ignora essa
parte e dedica a sua atenção completa ao que a
pessoa está falando. Você não só vai compreen-
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der muito melhor o significado do que está sen-
do dito, como também pode perceber nuances
de expressão facial, mudanças sutis no tom de
voz, e de maneira geral ter uma imagem muito
mais completa do estado emocional das pessoas.
Com esse entendimento aprofundado do que
a pessoa está dizendo, como está dizendo e por
que está dizendo, se torna muito mais simples
identificar uma maneira de realmente ajudá-la.
Será que ela precisa de consolo ou de estímulo?
Devo oferecer um conselho ou um abraço? Es-
cute com atenção que as respostas podem vir
mais facilmente.

[44] Pennebaker, J. W., Kiecolt-Glaser, J. K., &


Glaser, R. (1988). Disclosure of traumas and
immune function: Health implications for psy-
chotherapy. Journal of Consulting and Clinical
Psychology, 56(2), 239–245.
https://doi.org/10.1037/0022-006X.56.2.239.

[45] LIEBERMAN, Matthew D.; EISENBER-
GER, Naomi I.; CROCKETT, Molly J.; TOM,

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Sabrina M.; PFEIFER, Jennifer H.; WAY,
Baldwin M.. Putting Feelings Into Words. An-
nual Review Of Psychology, v. 58, n. 1, p. 259-
289, fev. 2007. ↩
[46] EDDO-LODGE, Reni. About Race. Epi-
sódio 7. Disponível em: https://www.aboutrace-
podcast.com/7-white-women-crying-is-racist.

[47] MORTLOCK, Alanah. Why white wo-
men crying is still racist: e work of trauma
narratives in self-stories of transracialism. Dis-
ponível em: https://blogs.lse.ac.uk/gen-
der/2020/12/09/why-white-women-crying-is-
still-racist-the-work-of-trauma-narratives-in-
self-stories-of-transracialism/. ↩
[48] FERRARI, Wallacy. CASO SCOTTSBO-
RO BOYS: O BIZARRO EPISÓDIO DE RA-
CISMO NA JUSTIÇA AMERICANA. 2021.
Disponível em: https://aventurasnahisto-
ria.uol.com.br/noticias/reportagem/scottsboro-
boys-o-mais-insano-caso-de-racismo-no-juri-
americano.phtml. ↩

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[49] FEDER, J. Lester; ANSELMI, Pascal. e
Real Story Behind e Anti-Immigrant Riots
Rocking Germany. Disponível em:
https://www.buzzfeednews.com/article/lesterfe-
der/germany-chemnitz-far-right-neo-nazis. ↩
[50] FRANCE PRESSE. Mulher branca que
denunciou falsamente homem negro em NY
responderá a processo. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noti-
cia/2020/07/06/mulher-branca-que-denunciou-
falsamente-homem-negro-no-central-park-em-
ny-respondera-a-processo.ghtml. ↩
[51] G1 RS. João Beto, morto por dois seguran-
ças em um supermercado no RS. 2020. Dispo-
nível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-
do-sul/noticia/2020/12/30/como-esta-aquele-
caso-joao-beto-morto-por-dois-segurancas-em-
um-supermercado-no-rs.ghtml. ↩
[52] is Video Will Make You Angry. 10 mar.
2015. YouTube: CGP Grey. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?
v=rE3jRHkqJc. ↩

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O que dizer quando não há
nada que possa ser dito

O mundo pode ser um lugar inacreditavelmente


cruel. Tragédia e sofrimento acompanham a
passagem de todos nós por esse vale de lágrimas,
e às vezes não existem palavras capazes de dimi-
nuir a dor que alguém está sentindo.
Nesses momentos, o mais importante é não
piorar a situação. Tanto nosso desconforto com
o silêncio quanto o desconforto com emoções
negativas vão trabalhar contra você, então é
bom ter prática lutando contra esses impulsos
em situações mais simples.
Mas há um terceiro inimigo, ainda mais terrí-
vel: a falácia do mundo justo. Como vimos, esse
viés cognitivo é a crença de que pessoas boas se-
rão recompensadas e pessoas más serão punidas.
Ele tende a ser uma crença introduzida ainda
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quando somos crianças, e reforçada ao longo
das nossas vidas por conceitos como carma e
justiça divina; e ditados como “você colhe o que
você planta” e “aqui se faz, aqui se paga”.
Normalmente, a falácia do mundo justo age
no nosso inconsciente, sutilmente nos garantin-
do que Papai Noel eventualmente virá se nos
comportarmos direitinho. Em momentos de
tragédia, porém, a verdadeira face dessa falácia
se revela.
Para a maior parte das pessoas é muito difícil
admitir que o mundo não é justo. Coisas boas e
ruins acontecem independentemente da sua
moralidade, e ser uma pessoa boa não serve
como proteção nenhuma. Ao invés de confron-
tar essa verdade incômoda, é mais confortável
concluir que as vítimas de uma tragédia devem
ter feito algo para merecer o que aconteceu com
elas.
Uma expressão comum dessa falácia é o que
chamamos de “culpar a vítima”. Se alguém mor-
re em um acidente de carro, nosso primeiro ins-
tinto é assumir que ela estava no celular, bêbada
ou distraída. Vítimas de estupro são questiona-
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das sobre as roupas que estavam usando, o bair-
ro por onde resolveram andar e quão fortes fo-
ram as suas negativas.
Quando algo terrível acontece, ainda que não
nos envolva diretamente, aquilo nos assusta.
Nosso cérebro busca uma narrativa reconfortan-
te, uma garantia de que algo assim jamais acon-
teceria conosco. A falácia do mundo justo sus-
surra gentilmente que não, certamente isso só
acontece com pessoas ruins, descuidadas, des-
preparadas. Você é diferente.
Essa reação psicológica, embora compreensí-
vel, pode nos levar a comportamentos mons-
truosos se não for impedida. Reconhecer que
coisas ruins acontecem a pessoas boas é uma
parte crucial da construção da nossa empatia, e
portanto fundamental para ajudar pessoas nes-
sas situações. E, na possibilidade desagradável
de nós mesmos cairmos vítima do destino indi-
ferente, pelo menos saberemos que isso não será
a punição do universo por nossas falhas morais.
O que dizer então nessas horas? A primeira
opção a se considerar é não falar nada. Se dispor
com uma ajuda silenciosa com as tarefas mun-
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danas pode ajudar a pessoa a ter um pouco mais
de energia mental para processar o que aconte-
ceu. Lavar a louça, preparar algumas marmitas
ou entregar uma modesta compra de mercado
são todos pequenos gestos que pessoas sobrecar-
regadas podem apreciar, com consentimento
claro. Gosto muito desses exemplos pois ne-
nhum deles é um ato muito grandioso, e perce-
bo que temos uma tendência de minimizar os
pequenos gestos, colocando valor apenas em ati-
tudes extraordinárias.
Mas caso a comunicação verbal seja necessá-
ria, considere as seguintes frases: “eu só consigo
imaginar o que você está passando”. Aqui você
não está tentando consertar nada nem interferir
na situação. É uma variante de “eu sei como
você se sente”, mas sem insinuar que os senti-
mentos de duas pessoas podem ser iguais. Essa
frase indica empatia sem buscar um consolo fá-
cil, e reconhece a validade das emoções que a
pessoa está sentindo. No fundo, é simplesmente
um reconhecimento de que apesar de toda a
dor, a pessoa ainda existe e que você a está ven-
do.
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Outra opção é “por favor, me avise se tiver
algo que eu possa fazer, eu ficaria feliz em lhe
ser útil”. A frase oferece ajuda sem ser invasiva,
reconhecendo que talvez a pessoa não esteja
pronta para sequer falar a respeito do que acon-
teceu ou que simplesmente pode não querer
companhia. A chave aqui é soar autêntico, e es-
tar realmente pronto para ajudar se for necessá-
rio. Claro, também vai funcionar melhor se
você já for, de fato, parte da rede de apoio; e
com pessoas que conseguem pedir ajuda quan-
do precisam, como falado em capítulos anterio-
res. Se colocar repetidamente à disposição pode
amenizar, mas, novamente, você não tem con-
trole sobre o outro.
Em última análise, o que realmente importa é
ser capaz de reconhecer quando estamos impo-
tentes e não há realmente nada de significativo a
ser feito. Essa humildade evitará tornar uma si-
tuação ruim ainda pior, e pode abrir caminho
para a demonstração simples e poderosa de em-
patia que é simplesmente estar ao lado de al-
guém em um momento difícil.

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Pais e filhos

Se a ajuda deve ser uma relação recíproca, então


como retribuir tudo que seus pais fizeram por
você? Sua mãe te carregou na barriga por nove
meses, afinal. Certamente você sequer existiria
se não fosse pelos seus pais. Como quitar uma
dívida existencial? Mesmo se você vivesse apenas
para fazer as vontades dessas pessoas, não seria o
suficiente. Certo?
Certamente muitos pais pensam dessa forma,
e não esperam nada menos que a obediência to-
tal da sua prole. Nesses casos, o papel de ensinar
disciplina para os filhos se mistura com a expec-
tativa de subserviência, e a tarefa de estabelecer
limites acaba virando o ensino de uma obediên-
cia cega. Esses possíveis ditadores domésticos
consideram que qualquer tarefa desempenhada
pelos filhos não passa do cumprimento de um
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contrato assinado in utero, segundo o qual os fi-
lhos devem tudo a seus pais. Arrumar a casa é o
mínimo, passar na faculdade não é mais que a
obrigação e cuidar dos pais na velhice é apenas
o esperado. No extremo, pais assim podem usar
o nome dos filhos para criar dívidas, decidir
com quem eles vão se casar, escolher qual facul-
dade eles vão fazer ou até mesmo matar um fi-
lho caso ele desobedeça: “fui eu que botei no
mundo então eu posso tirar também”.
Assim, o pai de Romina Ashrafi justificou ter
matado sua filha em 2020. Com apenas 14
anos, Romina foi levada de sua casa na provín-
cia iraniana de Guilán pelo seu “namorado”, um
homem de 35 anos. Quando a polícia localizou
a garota e a devolveu para sua família, o pai de-
cidiu que, pelo crime de ter desobedecido sua
autoridade e desonrado a família, ela merecia
morrer. Ashrafi foi degolada com uma foice
pelo seu próprio pai [53].
No Brasil, o argumento jurídico de “legítima
defesa da honra” foi usado para evitar condena-
ções e diminuir sentenças em casos de feminicí-
dio desde o período colonial, e só foi explicita-
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mente rejeitado pelo STF em 2021 [54]. Além
de mulheres em geral, essa atitude tende a pre-
judicar especialmente jovens LGBTQIA+: em
um estudo feito pela Secretaria Nacional de Di-
reitos Humanos em 2012 sobre mais de sete mil
incidentes de agressão homofóbica, a maioria
dos casos ocorreu dentro de casa, nas mãos dos
próprios pais [55].
Se os pais tiranos são um extremo, a outra
ponta é habitada por pais que abdicam de todos
os seus desejos terrenos e vivem apenas para
proporcionar aos seus filhos uma existência livre
de dificuldades e desconforto. Aqui o papel de
proteger os filhos se torna a única identidade da
pessoa, e a partir daí nenhum sacrifício é grande
demais se feito pelo seu próprio sangue. Nunca
perder uma reunião de escola é o mínimo, pagar
um carro quando passar na faculdade não é
mais que a obrigação e não deixar que eles se
cansem com tarefas domésticas é apenas o espe-
rado.
Pais com esse perfil acabam sacrificando não
apenas seu bem-estar, mas também sua saúde fí-
sica e mental em troca de benefícios decrescen-
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tes para seus filhos. Certamente ninguém quer
que uma criança passe fome, mas preparar todo
dia o prato favorito dela pode ter efeitos deleté-
rios a longo prazo. Desconforto, frustração e até
sofrimento são partes inevitáveis da existência
humana, e é bom que crianças possam ter con-
tato gradual com essas emoções no ambiente se-
guro da família. O problema não é experienciar
emoções negativas, o problema é não ter suas
emoções acolhidas e aprender que o que você
sente é errado. Nessa narrativa é muito comum
os filhos sentirem que tem algo de errado com
eles, afinal, eles “têm tudo” e mesmo assim se
sentem tristes. O problema aqui é uma ignorân-
cia das próprias emoções, causada pela tentativa
de criar uma vida perfeita para os filhos. No ex-
tremo, esses pais efetivamente impedem seus fi-
lhos de viver, envolvidos por uma bolha que
protege e sufoca em igual medida.
Conforme as famílias têm cada vez menos fi-
lhos, até pela dificuldade econômica de se ter fi-
lhos cedo na carreira ou de pagar pelas despesas
de mais de um, o peso psicológico de cada cri-
ança cresce. Isso curiosamente gera uma percep-
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ção de que crimes contra crianças estão aumen-
tando, reforçada pela ampla cobertura midiática
de casos como o do menino Henry ou do assas-
sino da creche em Santa Catarina. O resultado é
um caldo social que fornece nutrientes ricos
para aqueles que já têm uma predisposição à pa-
ranoia. Os filhos se tornam investimentos úni-
cos que devem ser afastados de qualquer risco,
por menor que seja.
A relação entre pais e filhos é extremamente
complexa e sua dimensão completa não pode
ser abarcada nessas breves páginas. Por enquan-
to basta dizer que mesmo em uma relação mo-
delo há um enorme desequilíbrio entre as par-
tes, especialmente no começo da vida. Pais de
fato têm controle absoluto sobre a vida do seu
bebê, e para alguns é difícil perder esse hábito.
Exatamente por eles passarem vários anos sendo
os responsáveis pela sobrevivência da criança
isso mexe com suas percepções, tornando-os al-
tamente condescendentes com seus filhos. Por
terem tido suas visões condicionadas durante
um longo período a enxergar os filhos como in-
capazes, girar a chave e passar a vê-los como se-
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res humanos dignos e responsáveis costuma ser
uma tarefa complicada. Sejam tiranos impiedo-
sos ou ditadores benevolentes, tentar manter
esse nível de controle deixará marcas indeléveis
na psique de seus filhos, possivelmente crescen-
do com grandes dificuldades para se tornarem
pessoas independentes. Porém, não é a minha
intenção criar mais um motivo de preocupação
para futuros pais, sempre assombrados pelo jul-
gamento de todos ao seu redor. Ninguém é ca-
paz de ser um pai perfeito, e nem toda falha dos
nossos pais é a raiz dos nossos traumas.
Mas por esses motivos e outros, é preciso um
cuidado extra para pedir e receber ajuda como
parte de uma relação parental. Porém essa tam-
bém é uma oportunidade excelente para recali-
brar as percepções de ambos os lados, estabele-
cendo uma relação mais igualitária onde na in-
fância existia a dependência.
Primeiro, o senso comum diz que quando
pais ou filhos pedem ajuda, nenhum dos lados
pode negar ajuda nem esperar recompensa. A
ajuda vinda da família é tida como algo garanti-
do, e só um monstro negaria um favor a seus
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próprios pais. Pensar em recusar ajuda ao seu
próprio sangue é no mínimo desconfortável.
Como de costume, o senso comum está erra-
do. É justamente esse desconforto que precisa-
mos enfrentar para manter uma relação saudável
a longo prazo. O primeiro passo, portanto, é es-
tar confortável para dizer não se necessário. Os
critérios que listamos para saber quando pedir,
quando oferecer e quando negar ajuda são os
mesmos aqui. Se tratar de um parente não é
uma licença automática para sempre conseguir
ajuda, embora a convivência frequente crie um
incentivo maior para que seja cultivada uma re-
lação recíproca.
Em particular, cabe ressaltar que ajuda é algo
que se pede e se dá voluntariamente. Seus pais
não fizeram favor nenhum ao colocar você no
mundo e garantir casa e comida; e seus filhos
não merecem automaticamente a sua devoção
completa.
Sobre o primeiro ponto: você não consentiu
em nascer, e por isso a ideia de que você deve
algo a seus pais pela simples circunstância do
seu nascimento é absurda. Ainda que você seja
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grato pela vida que tem, ela é resultado de ações
sobre as quais você não tinha controle, e portan-
to não tem também nenhuma responsabilidade
moral.
Em seu artigo “Uma Defesa do Aborto” [56],
a filósofa Judith Jarvis omson apresenta o se-
guinte cenário: um belo dia você acorda em um
hospital e descobre que há um homem inscons-
ciente ao seu lado. O homem é um famoso vio-
linista, sofrendo de uma rara doença nos rins, e
fãs do violinista te sequestraram e ligaram o seu
sistema circulatório ao dele, de forma que seus
rins agora purificam o sangue dele. Eles garan-
tem que em nove meses o violinista irá se recu-
perar e você vai poder voltar para casa. Porém,
se vocês forem desconectados antes, o violinista
morrerá. Nesse cenário, omson defende que é
moralmente justificável se desligar do violinista,
uma vez que ele não tem direito ao uso do seu
corpo. Optar por ficar seria um favor, e não
uma obrigação moral. Mais: o violinista nem
mesmo deveria um favor de volta, já que ele es-
tava inconsciente e foi igualmente vítima de
seus fãs desvairados.
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Ainda que não se concorde com todas as con-
clusões que omson tira desse exercício, o ce-
nário evidencia a dificuldade de estabelecer uma
obrigação moral onde não há escolha. Filhos,
nesse raciocínio, não têm uma obrigação moral
intrínseca em relação aos seus pais. Mas e o con-
trário? Pais são legalmente responsáveis pelos
seus filhos, e falhar em cuidar adequadamente
deles carrega penalidades severas. Por exemplo,
na Austrália um casal foi preso por homicídio
culposo quando sua filha Glória morreu de des-
nutrição e infecções que o casal tentou tratar
com homeopatia [57].
De fato, essa obrigação existe. Porém, é preci-
so também compreender os limites dela. Os
pais (e o governo) são obrigados a garantir a se-
gurança física das crianças e as condições para
seu desenvolvimento adequado. O que os pais
não são obrigados a fazer é ceder a todas as de-
mandas, a fornecer luxos aos quais eles próprios
não têm acesso, nem abrir mão de sua existência
como algo além de pais. Assim como existem fi-
lhos que deixam de falar com os pais, é sur-
preendentemente comum e perfeitamente nor-
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mal que pais fiquem insatisfeitos com a pessoa
que seus filhos se tornaram e não queiram mais
ter um contato próximo, em um fenômeno re-
sumido na frase “eu amo meu filho, mas eu não
gosto dele”.
Uma vez desabusados desses conceitos de
obrigação, podemos criar uma relação mais sin-
cera e profunda com nossos familiares, fundada
na escolha e no consentimento ao invés do sim-
ples acaso de ter nascido nessa família.
Em termos de ajuda não deve haver privilé-
gios especiais entre pais e filhos. Mas se fizer
sentido ajudar (ou pedir ajuda), é preciso pensar
com cuidado extra sobre como funciona a retri-
buição em uma relação parental.
Nós vimos que a retribuição simbólica é par-
ticularmente importante em relações com um
grande diferencial financeiro, de idade ou de
poder. Ora, é exatamente o caso da relação entre
pais e filhos. Seria absurdo esperar que um filho
retribua tudo que recebeu dos pais na mesma
moeda, mas gratidão, respeito e atenção são al-
gumas das formas de retribuição simbólica que

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pais costumam apreciar. E se isso falhar, tente
uma garrafa de vinho.
No cenário em que é o filho ajudando os
pais, o mais importante é que os pais não to-
mem essa ajuda como garantida. Existe uma
etapa do desenvolvimento em que a criança
aprende, geralmente com muito conflito, a dife-
rença entre o que é uma responsabilidade dela
(ir para a escola, arrumar o próprio quarto) e o
que é uma ajuda (lavar o carro, cuidar do irmão
enquanto os pais vão ao cinema). Os pais tam-
bém não devem esquecer essa distinção, em par-
ticular quando o filho se torna um adulto inde-
pendente. Na dúvida, um “muito obrigado” cai
bem em todos os casos.

[53] BBC. Romina Ashrafi: o assassinato de


menina de 14 anos pelo próprio pai em ‘crime
de honra’ que choca o Irã. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacio-
nal-52847568. ↩
[54] JORNAL NACIONAL. STF proíbe por
unanimidade uso do argumento da legítima de-

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fesa da honra por réus de feminicídio. Disponí-
vel em: https://g1.globo.com/jornal-nacio-
nal/noticia/2021/03/13/stf-proibe-por-unani-
midade-uso-do-argumento-da-legitima-defesa-
da-honra-por-reus-de-feminicidio.ghtml. ↩
[55] Secretaria de Direitos Humanos. RELA-
TÓRIO SOBRE VIOLÊNCIA HOMOFÓBI-
CA NO BRASIL. 2012. Disponível em:
https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/Rela-
torioViolenciaHomofobicaBR2012.pdf. ↩
[56] THOMSON, Judith Jarvis. A Defense of
Abortion. Philosophy & Public Affairs, v. 1, n.
1, p. 47-66, Disponível em: https://www.world-
cat.org/issn/0048-3915. ↩
[57] ALEXANDER, Harriet. Parents guilty of
manslaughter over daughter’s eczema death.
2009. Disponível em:
https://www.smh.com.au/national/parents-
guilty-of-manslaughter-over-daughters-eczema-
death-20090605-bxvx.html. ↩

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Os limites da ajuda

Infelizmente, há muitos problemas que não po-


dem ser resolvidos só com uma atitude positiva
e boas intenções.
Digamos que sua amiga esteja em um relacio-
namento abusivo. Vocês passam semanas con-
versando, ela parece ouvir seus conselhos e jun-
tos vocês elaboram um plano de ação. Ela ter-
mina. Porém, pouco tempo depois, ela apresen-
ta o novo namorado e você enxerga imediata-
mente todos os sinais vermelhos do relaciona-
mento anterior. O que aconteceu?
A verdade é que somos frutos das nossas cir-
cunstâncias. Sem uma mudança nas nossas con-
dições sociais, materiais e/ou psicológicas, a ten-
dência é que qualquer ajuda tenha efeito tem-
porário. Sem lidar adequadamente com as cau-
sas que fizeram sua amiga entrar em uma rela-
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ção abusiva em primeiro lugar, o mais provável
é que ela simplesmente pule da frigideira para o
fogo, e do fogo para a frigideira.
É por isso que ajuda financeira, em particular,
é tão complicada. É possível que a pessoa real-
mente tenha tido um inconveniente temporário
e uma ajuda pontual seja tudo que ela precise.
Mas é provável que as causas sejam mais pro-
fundas, com uma raiz estrutural e histórica.
Vamos pensar em um exemplo. É bastante
comum para uma geração mais velha ter uma
relação péssima com dinheiro. Não é à toa:
quem nasceu em 1960 passou por sete mudan-
ças de moeda e pelo período de hiperinflação
sem ter nem de perto o nível de acesso a infor-
mação que temos hoje em dia. Saber quanto seu
dinheiro valia não era algo trivial de mensurar, e
podia mudar significativamente em poucas ho-
ras. Nesse cenário o importante era sobreviver,
nas possíveis dívidas se pensa depois. Como
consequência, é comum a relação dessa geração
com dinheiro transitar entre os extremos, sendo
ou extremamente cautelosos, beirando a para-
noia; ou então irresponsáveis, gastando dinheiro
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que não têm como se não houvesse um amanhã
para se pensar. Evidentemente, emprestar pon-
tualmente dinheiro para nossos pais ou avós
pode ajudar, mas não vai resolver o problema
mais profundo da relação problemática que eles
têm com dinheiro, herança de tempos econômi-
cos conturbados.
A menos que sua ajuda envolva uma fonte re-
corrente de renda ou um bilhete premiado da
loteria, a pessoa provavelmente vai precisar pe-
dir ajuda novamente em breve. No pior dos ca-
sos, isso pode resultar em uma relação de de-
pendência, onde a sua ajuda isola a pessoa das
consequências da sua própria irresponsabilidade
financeira, e portanto não sente verdadeira ne-
cessidade de mudar esse comportamento. No
exemplo específico é ainda pior, pois afinal são
nossos pais, que nos deram tanto, quem somos
nós para negar qualquer coisa a eles quando
existe uma dívida implícita a ser quitada. Dian-
te desse dilema moral, muitos acabam sacrifi-
cando não só sua saúde financeira como tam-
bém sua saúde mental tentando lidar com os
problemas dos outros. Esses tipos de ajuda são
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os mais traiçoeiros: aquela ajuda para uma pes-
soa em necessidade que acaba gerando mais
uma pessoa em necessidade.
Isso não quer dizer que ajuda não tem valor
nesses casos. Significa que só a ajuda não é sufi-
ciente. Uma transformação verdadeira envolve-
ria uma mudança de contexto, e raramente va-
mos conseguir oferecer isso para outra pessoa.
Poucos de nós temos tantos recursos sobrando a
ponto de sermos capazes de realmente transfor-
mar a vida de alguém de maneira duradoura, a
menos que você seja herdeiro ou um magnata
rico de outro continente pronto para reivindicar
seus parentes perdidos.
O mais comum, e não menos nobre, é que a
gente consiga aliviar brevemente as circunstân-
cias temporárias que estão afetando alguém, e a
partir daí confiar ou ajudar para que ela seja ca-
paz de implementar uma mudança mais pro-
funda na própria vida.
Esses desafios também não significam que o
melhor é sempre recusar ajuda para evitar que a
pessoa se torne dependente. O nome desse fe-
nômeno é o paradoxo da dependência: existe a
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ideia errada de que quanto mais você força uma
pessoa a “se virar sozinha” mais independente
ela vai ser. Pelo contrário, estudos mostram que
aceitar a sua dependência de maneira pontual e
saber que você tem para quem pedir ajuda leva
a mais independência de uma maneira geral
[58], e que uma criança criada em um ambiente
seguro para pedir por apoio tende a se tornar
um adulto mais independente. Como já defen-
dido ao longo do livro, lidar com desafios deve
ser um trabalho em equipe. A ajuda cooperativa
e a rede de apoio geram os recursos para que a
pessoa possa cultivar sua própria autonomia. O
correto também não é necessariamente ajudar
sempre, mas sim estimular que a pessoa sinta
que tem um porto seguro para retornar caso ela
se arrisque ou algo dê errado.
A própria psicologia funciona assim, e é por
isso que na terapia não falamos de cura, mas
sim de melhora. Se você vê seu psicólogo só
uma vez por semana e a sessão tem só uma
hora, é evidente que só isso não vai transformar
radicalmente a sua vida. Nosso objetivo é ajudar
a apagar os incêndios imediatos e ensinar aos
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pacientes as ferramentas para que eles próprios
possam cuidar do resto e evitar inflamáveis no
futuro. A psicoterapia não vai transformar você
em uma pessoa diferente, mas talvez possa te
ajudar a lidar melhor com a pessoa que você é.
É preciso aceitar nossos limites com humilda-
de. Nenhuma ajuda, não importa quão nobre
ou grandiosa, vai realmente salvar ninguém. No
máximo é possível ser um degrau, uma forci-
nha, uma mão amiga. E isso é o suficiente. Você
não precisa ser o herói da história de outra pes-
soa.
De fato, tentar ser esse herói é muitas vezes
como surge uma relação de codependência. A
codependência é um transtorno em que uma
pessoa se torna incapaz de se separar de outra,
geralmente alguém com uma dependência quí-
mica ou outro tipo de comportamento proble-
mático. Nesse quadro, muitas vezes o primeiro
estímulo é justamente a tentativa de “salvar” a
pessoa das drogas e transformar o seu compor-
tamento. Esse aparente altruísmo gera uma
grande satisfação moral e, inebriado pela sensa-
ção de ser uma boa pessoa, o codependente pas-
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sa a se envolver cada vez mais na vida do outro,
sentindo-se a responsável pela sobrevivência da-
quela pessoa e enxergando essa relação como a
razão da sua própria existência. No fim, muitos
codependentes acabam incentivando o compor-
tamento que no começo tentavam inibir, afinal
se a pessoa mudasse de verdade ela não precisa-
ria mais dessa relação, tornando seu salvador
sem propósito.

[58] FEENEY, Brooke C. e dependency pa-


radox in close relationships: accepting depen-
dence promotes independence. Disponível em:
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/17279849/.

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Ajuda que não ajuda

Por fim, existem alguns erros comuns quando as


pessoas vão tentar ajudar. O primeiro deles é
tentar ajudar quem não pediu ajuda. Esse pode
ser um ato extremamente invasivo, já que o sub-
texto é “você dá tanta dó que eu quis ajudar sem
você nem falar nada”. Na prática, você está atro-
pelando a autonomia da pessoa e fazendo com
que ela se sinta incapaz. Lembre que envolver a
pessoa no processo de ajuda inclui o ato de pe-
dir ajuda. Tente facilitar que a pessoa expresse o
que ela precisa, e sempre peça permissão antes
de interferir. Além disso, podemos novamente
gerar uma relação de dependência: já que você
adivinhou o que a pessoa precisava sem ela nem
falar nada, você está ensinando que pedir não é
necessário, basta parecer em apuros que alguém
virá ao resgate. Isso é péssimo para você tam-
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bém, pois uma vez que se cria essa relação se
cria também uma paranoia de “preciso ficar
sempre de olho pra saber se está tudo bem, pois
essa pessoa não vai me falar”. Esse estado de vi-
gília e alerta suga nossas forças e recursos, uma
vez que a narrativa do eu se perde para se trans-
formar na narrativa do outro. Talvez alguns de
vocês saibam a terrível sensação que é sentir que
não há tempo para pensar em si mesmo porque
você precisa sempre estar cuidando de outra
pessoa.
Ficar de fora pode ser muito doloroso quando
estamos assistindo uma pessoa querida em uma
espiral de autodestruição. Porém, uma interven-
ção indesejada tem baixíssima chance de suces-
so. Uma das perguntas que eu mais recebo é
“como eu faço outra pessoa ir para a terapia?”, e
a resposta é: você não faz. Ainda que você tenha
poder para obrigar a pessoa a ver um psicólogo
contra a vontade, muito provavelmente não
existirá o vínculo de confiança necessário para o
sucesso da terapia.
Existem também pessoas que não querem ser
ajudadas, ou até pessoas que não querem a sua
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ajuda especificamente. Comprar uma briga para
convencê-la de que, na verdade, você está certo
sobre ela precisar de ajuda só vai prejudicar a re-
lação de vocês e fazer vocês se afastarem, além
de talvez fazer a pessoa ficar ainda mais apegada
ao comportamento nocivo que ela já tem.
Outras pessoas querem o direito de cometer
os próprios erros e viver a própria vida. Às vezes
a sua experiência já revelou que uma determina-
da situação é furada, e você quer levar essa sabe-
doria para outras pessoas. Porém, não é possível
obrigá-las a seguir as suas instruções. Certas li-
ções a gente só aprende na prática. E se a pessoa
de fato quebrar a cara exatamente como você sa-
bia que aconteceria, não seja daqueles que di-
zem “eu avisei”, a menos que seu objetivo seja
afastá-la de você.
Ao invés disso, gosto de sugerir a técnica de
ensinar pelo exemplo. Se você também se mos-
trar vulnerável, pedir ajuda para a pessoa e que-
brar a narrativa do individualismo, é provável
que a pessoa vá se sentir mais confortável em
pedir ajuda de volta. Se você comenta positiva-
mente da sua terapia, talvez a pessoa crie inte-
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resse em ir ao psicólogo. É possível até tentar
uma abordagem mais paciente como “eu sei que
posso estar soando repetitivo, mas gostaria que
você considerasse fazer terapia com um pouco
mais de carinho”. É muito comum que esse lu-
gar de “você precisa de ajuda” surja em um con-
texto agressivo, no meio de uma briga ou desen-
tendimento. Trazer à tona o discurso de buscar
ajuda nesse momento só distancia a pessoa desse
caminho, uma vez que existe um subtexto de
“você está louca”.
No fim, porém, a vida é da pessoa. Se ela re-
almente não quer ajuda, é direito dela. Sei que
crescemos com diversos exemplos de pessoas
que não respeitam a autonomia dos outros, e
talvez você se lembre do quão desagradável era
quando sua mãe queria que você fosse tomar
banho naquele exato instante e do jeito dela
quando você estava no meio de uma tarefa im-
portante para você. Entre adultos, ninguém
manda em ninguém.
Um outro erro muito comum e diretamente
relacionado é exigir que a pessoa siga os seus
conselhos. Afinal, você se deu a todo o trabalho
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de ajudar, só para a pessoa ignorar a sua sabedo-
ria e continuar cometendo os mesmos erros?
Aqui também é preciso respeitar a autonomia
dos outros. Por mais que você queira ajudar,
cada um é responsável pelas próprias decisões. E
isso vale para os dois lados: se a pessoa sente que
tomou aquela decisão “por sua causa” e no fim
se deu mal, a pessoa não tem direito de culpar
você por isso. Se ela tem autonomia, então ela
não era obrigada a seguir o seu conselho.
Ninguém vai sentir mais as consequências
dos seus atos que a própria pessoa, então é evi-
dente que a decisão final deve ser sempre dela.
Considere ainda que você não tem todas as in-
formações: o estado interno de outra pessoa
nunca é perfeitamente claro para nós, e ele pode
conter motivos para que ela tome decisões que
não fazem sentido nenhum de uma perspectiva
externa. Ainda que seja de fato um erro, respeite
o direito que todos temos de errar.
Também já ouvi muito frases na linha de “a
pessoa não faz sentido, uma hora diz que quer
uma coisa e outra hora diz que quer outra, fico
sem entender”. Bom, as pessoas não fazem mui-
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to sentido mesmo. Meu trabalho é difícil, viu?
Quantas vezes você achava que queria algo, mas
se arrependeu no instante em que conseguiu?
Quantas vezes faltou sinceridade ou conforto
para falar para a pessoa na sua frente que na ver-
dade você queria outra coisa? Nós vamos tão
além da nossa fala, querer analisar os outros ba-
seado apenas nessa fonte de informação só vai
levar a conclusões precipitadas.
O caso arquetípico é a pessoa que fica termi-
nando e voltando com o ex tóxico, contra o
conselho dos amigos. Eventualmente os amigos
se ressentem de ter os seus conselhos ignorados
e acabam se afastando da pessoa, deixando o ex
tóxico ser a única pessoa para quem ela pode re-
correr. É irônico: os amigos partem desse lugar
de ajuda benevolente para, no fim, abandonar a
pessoa sozinha com seu suposto algoz, só por-
que seu ego ficou ferido por ter seus conselhos
ignorados. Me pergunto: o ponto é ser útil ou
apenas se sentir útil? Para evitar esse ressenti-
mento é importante ser humilde e reconhecer
que jamais saberemos mais da vida de alguém
do que a própria pessoa, e que ela não é obriga-
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da a nos obedecer. Ajudar, muitas vezes, não é
garantir que a pessoa vai tomar a decisão perfei-
ta, mas sim mitigar os danos das suas escolhas
reais.
O último erro que gostaria de abordar é o de
oferecer soluções mirabolantes para os proble-
mas da pessoa. Em ficção, a solução para um
conflito sempre tem uma complexidade propor-
cional ao tamanho do problema. Destruir o
anel de Sauron não foi simplesmente uma ques-
tão de pegar carona com uma águia até o vulcão
mais próximo. Voldemort não foi derrotado
porque alguém chamou a polícia, e Hércules
teve que executar nada menos que 12 trabalhos
impossíveis antes de se redimir. Em romances, o
mocinho conquista a donzela com uma declara-
ção pública envolvendo trilha sonora original e
coreografia. Quando os dois inevitavelmente se
separam, a reconquista é feita com um gesto
ainda mais mirabolante, provavelmente envol-
vendo dezenas de buquês, jóias milionárias ou
colocando a própria vida em risco pela sua ama-
da.

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Essa regra dramática cria boas histórias, mas
também bagunça nossas expectativas. Na reali-
dade, a solução para problemas complexos está
quase sempre em pequenos atos feitos de ma-
neira consistente e continuada. Um exemplo é
perder peso: uma dieta radical pode até trazer
resultados passageiros, mas a longo prazo a úni-
ca solução real é mudar os seus hábitos por
meio da reeducação alimentar. Pequenas mu-
danças, todo dia.
Da mesma forma, nenhum grande gesto será
capaz de consertar um relacionamento, curar a
ansiedade ou restaurar a autoestima. Em todos
esses casos, a verdadeira solução se encontra em
um processo gradual e contínuo de melhora.
Quando estamos lidando com um problema
grande, é tentador buscar uma solução do mes-
mo tamanho, seja terminar o namoro, trocar de
faculdade ou mudar de país. Essas atitudes po-
dem até resolver questões práticas, mas não as
internas. Não é raro passar por todo o transtor-
no de uma mudança radical apenas para desco-
brir que, no fim, seus problemas seguiram você
na bagagem.
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Especialmente no contexto de oferecer ajuda
para outra pessoa, portanto, devemos ser res-
ponsáveis e resistir à tentação de tratar a vida
dela como a season finale de uma série. Pequenos
atos podem não ser tão dramaticamente satisfa-
tórios, mas costumam funcionar muito melhor.
Nesse ponto do livro já está claro o quanto se
relacionar com pessoas é uma tarefa complexa, e
tal complexidade evoca uma angústia enorme.
Sim, criar laços dá muito trabalho e a realidade
é que temos a tendência de fazer isso de qual-
quer jeito, pois se tornou uma tarefa banal e co-
tidiana. Acho uma reação compreensível estar
diante de toda essa complexidade e querer se fe-
char completamente do mundo. A vida é sua, o
problema é seu, você tem esse direito. Mas
como eu repeti ao longo do livro, tudo é uma
habilidade, tudo é passível de treinamento e
melhora. De fato, em muitas habilidades você
precisa ser muito ruim antes de se tornar muito
bom. Algumas pessoas fazem parecer mais fácil,
e outras nem sabem o que elas estão fazendo di-
reito ou não. Mas eu espero que esse livro seja
uma boa ferramenta de auxílio no seu processo
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de aprender e aperfeiçoar as habilidades de pe-
dir, oferecer e receber ajuda.

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Agradecimentos

Eu não poderia falar de rede de apoio ao lon-


go de todo o livro e esquecer de agradecer todas
as pessoas que me ajudaram no processo de fa-
zer essa obra ficar pronta.
Primeiramente, quero começar com o meu
editor e marido Pedro. Obrigada por ser um ob-
servador silencioso que não errou uma única vez
tentando me ajudar sem me perguntar antes.
De tantos processos, pensamentos e emoções
que me invadiram e me desorganizaram ao lon-
go da escrita desse livro, você não foi uma delas,
sendo sempre o mais sóbrio dos portos seguros.
Por isso eu te agradeço.
Obrigada também Lucas, o melhor e mais
impiedoso revisor de texto que eu conheço. To-
dos os seus insights foram muito valiosos para

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mim e me trouxeram a paz de saber que não es-
tou em uma bolha.
Quero agradecer a Rebeca, Nagy, Giovanna e
Bianca por também terem feito a revisão do li-
vro e, mais que isso, por terem me colocado pra
cima todas às vezes que duvidei de mim mesma,
dando o último pontapé necessário para colocar
esse ebook no mundo.

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