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INTRODUÇÃO AO ESTUDO

DO DIREITO
Teoria do Ordenamento ou dogmática das
fontes de direito

Prof. M.e Luiz P. Paula Filho


NORMA E ORDENAMENTO
■ A noção de ordenamento é complexa. Em princípio, um ordenamento é um conjunto de
normas. O ordenamento jurídico brasileiro é o conjunto de todas as suas normas, em que
estão incluídas todas as espécies que mencionamos ao classificá-las. Nele estão contidos
critérios de classificação, como é o caso das classificações legais das coisas (Código Civil
Brasileiro de 1916, arts. 43 ss e Código Civil de 2002, arts. 79 ss) que organizam a matéria,
esclarecem as relações de integração, mas não são normas, não constituem imposição
vinculante e institucionalizada.

■ Há ainda os preâmbulos, exposições oficiais de motivos, em que o legislador esclarece as


razões e as intenções pelas quais as normas foram estabelecidas. Nos preâmbulos,
aparecem considerações de ordem avaliativa, nomeiam-se valores, indicam-se situações de
fato etc. (veja, por exemplo o Preâmbulo da Constituição de 1988). A própria ordem em que
os conceitos aparecem em uma norma é um elemento não normativo, indicando,
eventualmente, uma preferência que não precisa ser vinculante. Por exemplo, o art. 4º da
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve: “Quando a lei for omissa, o juiz
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.’’ A
ordem, na enunciação, pode ser uma orientação – primeiro se tenta a analogia, depois, os
costumes e por último, os princípios –, mas ela não é compulsória, não estabelece
impositivamente uma relação de superioridade da analogia sobre os costumes e destes
sobre os princípios.
ORDENAMENTO COMO SISTEMA DINÂMICO
■ Um ordenamento, como sistema, contém um repertório, contém também uma estrutura. Elementos
normativos e não normativos (repertório) guardam relações entre si. Por exemplo, quando dizemos
que as normas estão dispostas hierarquicamente, umas são superiores, outras inferiores, estamos
pensando em sua estrutura.

■ Exemplo de regra estrutural é o princípio da lex superior (regra segundo a qual a norma que dispõe,
formal e materialmente, sobre a edição de outras normas prevalece sobre estas em caso de
contradição: as normas constitucionais prevalecem sobre as leis ordinárias), ou o da lex posterior
(havendo normas do mesmo escalão em contradição, prevalece a que, no tempo, apareceu por
último), ou o da lex specialis (a norma especial revoga a geral no que esta dispõe especificamente).

■ Para a dogmática analítica, ordenamento é um conceito operacional que permite a integração das
normas num conjunto, dentro do qual é possível identificá-las como normas jurídicas válidas.

■ Essas considerações iniciais permitem-nos a seguinte conclusão: o conceito de ordenamento é


operacionalmente importante para a dogmática; nele se incluem elementos normativos (as normas)
que são os principais, e não normativos (definições, critérios classificatórios, preâmbulos etc.); sua
estrutura revela regras de vários tipos; no direito contemporâneo, a dogmática tende a vê-lo como
um conjunto sistemático: quem fala em ordenamento pensa logo em sistema.
NORMA FUNDAMENTAL OU NORMA-ORIGEM, UNIDADE OU
COESÃO DO ORDENAMENTO
■ Para Kelsen, só pode haver, por isso, uma única norma fundamental, sob pena de não termos um
sistema.

■ Para ele, se toda norma ou vale ou não é norma, a norma fundamental tem de possuir uma qualidade
diferente. Ela não pode ser válida no mesmo sentido das demais. Se validade é conceito relacional, a
primeira norma não pode relacionar-se a outra, pois não seria então a primeira.

■ As normas constitucionais, como as demais, são postas por uma autoridade competente, diz ele.
Contudo, para explicar sua validade, é preciso admitir uma norma que não é posta e que, por isso,
não exige outra norma. Assim, a norma fundamental, diz ele, é pressuposta. Ela é pressuposta pela
razão (dogmática), isto é, ela encarna, diríamos nós, o próprio princípio da inegabilidade dos pontos
de partida. Essa norma aparece, então, como uma condição do pensar dogmaticamente o direito. A
norma fundamental “prescreve’’, assim, que o jurista reconheça uma primeira norma posta como
fundamento das demais normas postas e raciocine baseado nela (por exemplo, a norma estabelecida
por revolução ou pelo povo ou pela tradição etc.).

■ Em consequência, a norma fundamental pressuposta passa a ter uma espécie de validade que não é
relacional: a validade das condições do próprio pensamento (Kelsen diz que ela é uma condição
transcendental do pensar).
■ Bobbio (1960:51) nos dá ainda outra explicação. Observando que Kelsen, com sua norma fundamental
pressuposta, está buscando o impossível (uma validade não relacional), propõe ele que a norma última
identifique-se com um ato de poder. A norma fundamental é a que é posta por poder fundante da ordem
jurídica e sua característica é a efetividade: ou o poder se impõe, ou não é poder fundante e não teremos
norma fundamental.

■ Desse ponto de vista, justifica Bobbio que, se qualquer norma é posta, nem toda norma é válida. Se um
juiz estabelece uma norma, uma sentença, fora de sua competência, houve positivação, mas a norma não
é válida. Quando subimos na hierarquia, porém, a distância entre a positividade e a validade vai
estreitando-se até chegarmos àquele primeiro ato do poder, por exemplo, o poder constituinte, que, ao
positivar a norma, já a estabelece como válida: não há mais distância entre uma coisa e outra.

■ Do ponto de vista pragmático, é preciso considerar validade e imperatividade como conceitos diferentes,
não redutíveis um ao outro, e o conceito de ordenamento como um sistema que admite não uma, mas
várias hierarquias, o que elimina a hipótese de uma (única) norma fundamental e a correspondente
concepção de unidade. A posição pragmática é de que uma norma pode ser válida e, não obstante isso,
não ter império, isto é, força de obrigatoriedade, e vice-versa, ter império e não ser válida.

■ A posição pragmática é de que o sistema do ordenamento, não se reduzindo a uma (única) unidade
hierárquica, não tem estrutura de pirâmide, mas estrutura circular de competências referidas mutuamente,
dotada de coesão. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal recebe do poder constituinte originário sua
competência para determinar em última instância o sentido normativo das normas constitucionais. Desse
modo, seus acórdãos são válidos, com base em uma norma constitucional de competência, configurando
uma subordinação do STF ao poder constituinte originário. No entanto, como o STF pode determinar o
sentido de validade da própria norma que lhe dá aquela competência, de certo modo, a validade da norma
constitucional de competência do STF também depende de seus acórdãos (norma), configurando uma
subordinação do poder constituinte originário ao STF.
■ Isso nos leva ao conceito de normas-origem. Normas-origem são normas efetivas (ocorrem numa situação
de fato favorável), dotadas de império e primeiras de uma série. Como não guardam nenhuma relação com
qualquer norma antecedente, não são válidas, apenas imperativas, isto é, têm força impositiva. E as regras
responsáveis por sua imperatividade são regras estruturais do sistema ou regras de calibração. Daí
podermos dizer que a imperatividade expressa uma relação de calibração, ou seja, uma relação não com
outra norma, mas com uma regra de ajustamento.

■ A expressão regra de calibração provém da Cibernética (Cube, 1967:23). Ferraz Jr. defende que os
ordenamentos ou sistemas normativos jurídicos são constituídos primariamente por normas (repertório do
sistema) que guardam entre si relações de validade reguladas por regras de calibração (estrutura do
sistema). Como sistema, eles atuam num meio ambiente, a vida social, que lhes impõe demandas (pede
decisão de conflitos). Para essa atuação ou funcionamento, as normas têm de estar imunizadas contra a
indiferença, o que ocorre pela constituição de séries hierárquicas de validade, que culminam em uma
norma-origem. Quando, porém, uma série não dá conta das demandas, o sistema exige uma mudança em
seu padrão de funcionamento, o que ocorre pela criação de nova norma-origem e, em consequência, de
nova série hierárquica. O que regula essa criação e, portanto, a mudança de padrão, são suas regras de
calibração. Graças a elas, o sistema muda de padrão, mas não se desintegra: continua funcionando.

■ Os sistemas normativos jurídicos conhecem inúmeras regras de calibração, que não chegam a formar um
conjunto lógico. Mesmo porque algumas constituem valores de dever ser, outras valores de ser. Portanto,
postas umas ao lado das outras, mostram oposições de incompatibilidade. O princípio do nullum crimen
significa: nenhum crime sem norma legal prévia; o princípio das exigências fundamentais: algum crime sem
norma prévia. As regras jurídicas de calibração não só estatuem relações dinâmicas de imperatividade, mas
também surgem e desaparecem na História, e têm por fonte a jurisprudência dos tribunais (regras
jurisprudenciais: a prova cabe a quem alega), a doutrina (regras doutrinárias: normas jurídicas constituem
uma ordem escalonada), a política (regras políticas: o princípio da maioria), a moral (regras morais: o
princípio da boa-fé), a religião (regras religiosas: o princípio cristão da dignidade da pessoa humana) etc.
CONCEPTUALIZAÇÃO DOGMÁTICA DO ORDENAMENTO:
VALIDADE, VIGÊNCIA, EFICÁCIA E FORÇA
■ Validade é uma qualidade da norma que designa sua pertinência ao ordenamento, por
terem sido obedecidas as condições formais e materiais de sua produção e consequente
integração no sistema;

■ Vigência é uma qualidade da norma que diz respeito ao tempo de validade, ao período
que vai do momento em que ela entra em vigor (passa a ter força vinculante) até o
momento em que é revogada, ou em que se esgota o prazo prescrito para sua duração;

■ Eficácia é uma qualidade da norma que se refere à possibilidade de produção concreta de


efeitos, porque estão presentes as condições fáticas exigíveis para sua observância,
espontânea ou imposta, ou para a satisfação dos objetivos visados (efetividade ou eficácia
social), ou porque estão presentes as condições técnico-normativas exigíveis para sua
aplicação (eficácia técnica);

■ Vigor é uma qualidade da norma que diz respeito a sua força vinculante, isto é,
impossibilidade de os sujeitos subtraírem-se a seu império, independentemente da
verificação de sua vigência ou de sua eficácia.
DINÂMICA DO SISTEMA: NORMA DE REVOGAÇÃO,
CADUCIDADE, COSTUME NEGATIVO E DESUSO
■ Num sistema, dinâmico por definição, normas deixam de valer. A questão de saber-se
quando uma norma perde a validade, quando deixa de pertencer ao sistema ou é
substituída por outra, tem uma relevância especial para a dogmática. É preciso
conceituar operacionalmente a dinâmica.

■ Já mencionamos duas regras estruturais que regulam a dinâmica: a mais importante


diz que uma norma perde a validade se revogada por outra. Essa regra especifica-se
em três outras: a lex superior (a norma superior revoga a inferior na hierarquia), a lex
posterior (a que vem por último, no tempo, revoga a anterior) e a lex specialis (a
norma especial revoga a geral no que esta tem de especial, a geral só revoga a
especial se alterar totalmente o regime no qual está aquela incluída).

■ Revogar significa retirar a validade por meio de outra norma. A norma revogada não
vale mais, não faz mais parte do sistema. Não fazendo mais parte, deixa de ser
vigente. Revogar é, pois, fazer cessar interrompendo, definitivamente, o curso de sua
vigência.
■ A norma revogadora pode ser manifesta ou implícita. Ela é manifesta quando nela a
autoridade determina a norma revogada declaradamente. É implícita, quando, numa nova
disposição da matéria, não se determina a norma revogada declaradamente.

■ Segue-se daí que a revogação pode ser (a) ou expressa, (b) ou tácita, (c) ou global. A
revogação expressa exige uma norma revogadora manifesta que determina
declaradamente qual a norma revogada: “fica revogado o art. x da lei z”, ou “fica revogada
a lei tal’’, isto é, todas as suas normas.

■ Revogação tácita ocorre quando a norma revogadora é implícita e a revogação resulta da


incompatibilidade entre a matéria regulada e as disposições antes vigentes: por exemplo,
editam-se as normas a, b, c cujos dispositivos são incompatíveis com o das normas x, v, z ,
sendo as primeiras normas revogadoras implícitas dessas últimas; muitas leis costumam
terminar com o conhecido dispositivo: “revogam-se as disposições em contrário’’, fórmula
desnecessária, embora usual, que não se confunde com uma norma revogadora manifesta,
tratando-se de norma revogadora implícita, pois não se indica a norma revogada.

■ Por fim, a revogação global ocorre por meio de uma norma revogadora implícita, sem a
necessidade de incompatibilidade, bastando que a nova norma, por exemplo, discipline
integralmente uma matéria, mesmo repetindo certas disciplinas da norma antiga.
■ As distinções são importantes para a decidibilidade de conflitos, pois a dogmática reconhece, como regra
estrutural do sistema, que as revogações expressas e globais não precisam ser demonstradas, mas a
revogação tácita não se presume, exigindo-se a demonstração da incompatibilidade por quem a alega.

■ A norma revogadora, manifesta ou implícita, pode revogar todas as normas de um diploma normativo, por
exemplo, de uma lei, ou apenas parte delas. No primeiro caso, ocorre revogação total; no segundo, parcial.
Para distinguir os dois casos a dogmática fala em ab-rogação (revogação total) e derrogação (revogação
parcial).

■ Uma segunda regra estrutural que regula a dinâmica diz que uma norma perde validade por ineficácia. Aqui
é preciso distinguir diferentes casos. O primeiro é o da caducidade. Esta ocorre pela superveniência de
uma situação, cuja ocorrência torna a norma inválida sem que ela precise ser revogada (por norma
revogadora implícita ou manifesta). Essa situação pode se referir ao tempo: uma norma fixa o prazo
terminal de sua vigência; quando este é completado, ela deixa de valer. Pode referir-se a condição de fato:
uma norma é editada para fazer frente à calamidade que, deixando de existir, torna inválida a norma.

■ Diferente da caducidade é o desuso. Desuso não tem a ver diretamente com a superveniência de nova
situação, mas com o comportamento dos destinatários da norma. A norma caduca porque as condições de
aplicação por ela previstas não mais existem. Ela entra em desuso porque os destinatários não a cumprem,
pois, diante da nova situação, não se sentem mais obrigados. O fundamento da caducidade é objetivo (a
condição fática prevista cessou de existir). O do desuso é subjetivo (os sujeitos ignoram a norma).

■ Por fim, temos o costume negativo. Cuida-se de omissões que ocorrem diante de fatos que seriam
condição de aplicação da norma.
CONSISTÊNCIA DO SISTEMA
■ Quando falamos da revogação por incompatibilidade, tocamos num dos
temas centrais da teoria do ordenamento: sua consistência. Por
consistência deve ser entendida a inocorrência ou a extirpação de
antinomias, isto é, da presença simultânea de normas válidas que se
excluem mutuamente.

■ Antinomia jurídica = Podemos definir, portanto, antinomia jurídica como a


oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou
parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito
normativo, que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência
ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de
um ordenamento dado.

■ Definida a antinomia jurídica, é necessário classificá-la. Temos, pois:


a ) Antinomias reais e aparentes: antinomias reais seriam aquelas para as quais não há, no
ordenamento, regras normativas de solução, sendo aparentes aquelas para as quais existem critérios
normativos. Contudo, uma melhor distinção entre antinomias reais e aparentes, fundada na existência
ou não de critérios normativos positivos para sua solução pode e deve, pois, ser substituída por outra
em que antinomia real é definida como aquela em que a posição do sujeito é insustentável porque não
há critérios para sua solução, ou porque entre os critérios existentes há conflito, e é aparente em caso
contrário. Por exemplo, duas normas constitucionais (mesmo nível), igualmente gerais (mesma
extensão), promulgadas ao mesmo tempo (simultâneas) configurariam caso de antinomia real.

b) Antinomias próprias e impróprias: Chamam-se antinomias próprias aquelas que ocorrem por
motivos formais (por exemplo, uma norma permite o que outra obriga), e são impróprias as que se dão
em virtude do conteúdo material das normas. Entre estas, incluem-se as antinomias de princípios
(quando as normas de um ordenamento protegem valores opostos, como liberdade e segurança),
antinomias de valoração (quando, por exemplo, atribui-se pena mais leve para um delito mais grave),
antinomias teleológicas (quando há incompatibilidade entre os fins propostos por certas normas e os
meios propostos por outras para a consecução daqueles fins).

c ) Classificação quanto ao âmbito: Fala-se, nesse caso, em antinomias de direito interno, de direito
internacional, de direito interno-internacional. As primeiras são as que ocorrem dentro de um
ordenamento estatal e podem ser dentro de um ramo do direito (direito civil, constitucional etc.), ou
entre normas de diferentes ramos. As segundas ocorrem entre normas de direito internacional. As
terceiras referem-se a conflitos de normas de direito interno com as de outro direito interno ou entre
normas de um direito interno e as de direito internacional.
NULIDADE, ANULABILIDADE E INEXISTÊNCIA DE NORMAS
■ Normas produzem efeitos. São dotadas de eficácia técnica. Essa capacidade de produzir efeitos, contudo,
quando a norma não tem validade, pode ser-lhe recusada desde o momento em que passaria a ter
vigência, sendo-lhe a capacidade de produzir efeitos negada ex tunc (desde então). Falamos, nesse caso,
de nulidade. Assim, por exemplo, uma lei aprovada e promulgada contra os ditames constitucionais diz-se
nula no sentido de que seus efeitos são desconsiderados desde o momento em que começou a viger.

■ A norma inexistente é a que, por pressuposto, foi posta com a intenção subjetiva de valer, mas, por um
vício gravíssimo, não se considera objetivamente como válida em nenhum momento. Por exemplo, a
sentença prolatada por alguém que não é juiz, mas que se apresenta como tal, e a sentença de um juiz
que, no entanto, não era absolutamente competente para sentenciar sobre determinada matéria. No
primeiro caso, a sentença é inexistente, isto é, nunca foi válida. No segundo, ela é nula, ou seja, seus
efeitos são desconsiderados desde o início de sua vigência.

■ O terceiro conceito é o de anulabilidde. A anulação depende da manifestação do sujeito que se vê atingido


pelos efeitos da norma. Assim, por exemplo, há casos em que a norma entra em vigor, produz efeitos que
poderão ser desconsiderados a partir do momento em que é pedida sua anulação (ex nunc – desde
agora).

■ Em resumo: inexistência é um conceito que se aplica à norma que não chega a entrar no sistema, pois
seu centro emanador não é aceito absolutamente como fonte do direito do sistema; nulidade, à norma
que, tendo entrado no sistema (o centro emanador é aceito como fonte), por um vício essencial de
formação, não produz nenhum efeito desde o início de sua vigência, independentemente de qualquer
requerimento dos atingidos; anulabilidade, à norma que, tendo entrado em vigor, produz e continua
produzindo efeitos, até o momento em que, em certo prazo, for pedida e obtida a anulação.
COMPLETUDE DO SISTEMA: LACUNAS
■ A concepção do ordenamento como sistema dinâmico envolve, por fim, o
problema de saber se este tem a propriedade peculiar de qualificar
normativamente todos os comportamentos possíveis ou se, eventualmente,
podem ocorrer condutas para as quais o ordenamento não oferece qualificação.

■ Nos quadros da dogmática analítica, que elabora a sistematização do


ordenamento, a questão é controvertida. Há autores que afirmam ser a plenitude
lógica dos ordenamentos uma ficção doutrinária de ordem prática, que permite ao
jurista enfrentar os problemas de decidibilidade com um máximo de segurança.
Trata-se de uma ficção porque o ordenamento de fato é reconhecido como
lacunoso (cf. Geny, 1925:193).

■ Há outros que afirmam ser a incompletude uma ficção prática, que permite ao juiz
criar direito quando o ordenamento, que, por princípio, é completo, parece-lhe
insatisfatório no caso em questão (Kelsen, 1960:35).
FONTES DO DIREITO
■ A questão da consistência (antinomias) e da completude (lacunas) do ordenamento visto como
sistema aponta para o problema dos centros produtores de normas e sua unidade ou
pluralidade. Se, num sistema, podem surgir conflitos normativos, temos que admitir que as
normas entram no sistema a partir de diferentes canais, que, com relativa independência,
estabelecem suas prescrições. Se são admitidas lacunas, é porque se aceita que o sistema, a
partir de um centro produtor unificado, não cobre o universo dos comportamentos, exigindo-se
outros centros produtores. São essas suposições que estão por detrás das discussões em torno
das chamadas fontes do direito.

■ Legislação = Na dogmática analítica contemporânea, tem relevância especial, no que


concerne às fontes, a noção de legislação. Isso ocorre sobretudo no direito de origem
romanística, como é o caso do direito europeu continental e dos países latino-americanos de
modo geral. Legislação, lato sensu, é modo de formação de normas jurídicas por meio de atos
competentes. O reconhecimento da legislação como fonte de direito baseia-se necessariamente
numa hipótese racionalizadora: um ato fundante que produz um conjunto de normas primárias,
a Constituição.

a) Constituição = Entendemos usualmente por Constituição a lei fundamental de um país, que


contém normas respeitantes à organização básica do Estado, ao reconhecimento e à garantia dos
direitos fundamentais do ser humano e do cidadão, às formas, aos limites e às competências do
exercício do Poder Público (legislar, julgar, governar).
b) Leis = Nos regimes constitucionais, com base na Constituição, são elaboradas leis, que, no quadro
geral da legislação como fonte, são de especial importância. A lei é a forma de que se reveste a norma
ou um conjunto de normas dentro do ordenamento. Nesse sentido, a lei é fonte do direito, isto é, o
revestimento estrutural da norma que lhe dá a condição de norma jurídica.

c) Hierarquia das fontes legais = leis, decretos, regulamentos, portarias = No sentido amplo de
legislação como fonte do direito devem ser incluídos, além das citadas medidas provisórias, outros atos
normativos do Poder Executivo. Especial destaque merecem os decretos, cuja fonte emanadora é o
Presidente da República (Constituição Federal de 1988, art. 84, IV) e que, entre outras funções,
estabelecem os regulamentos das leis. Por conterem normas gerais, muitas leis, para adquirirem eficácia
técnica, exigem detalhamentos. Os regulamentos, assim, explicitam as normas legais, tendo em vista sua
execução.

■ Há ainda as portarias (atos administrativos ministeriais que estabelecem normas, em princípio, de


eficácia individual e apenas para os órgãos da administração), instruções (atos administrativos
internos que vinculam no âmbito de órgãos) etc.

d) Códigos, consolidações e compilações = Códigos são conjuntos de normas estabelecidos por lei.
Às vezes, esta vem separada do código, num diploma especial (lei que estatui o código tal), às vezes
estão ambos contidos no mesmo diploma. O que caracteriza o código é a regulação unitária de um ramo
do direito (Código Civil, Comercial, Penal etc.), estabelecendo-se para ele uma disciplina fundamental,
atendendo a critérios técnicos não necessariamente lógicos, mas tópicos.
■ Ao lado dos códigos, devem ser mencionadas as consolidações, como é exemplo padrão, no
Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, estabelecida por decretos ou, no caso
exemplificado, por decreto-lei, é uma espécie de compilação de leis preexistentes, mas
retirando-lhes as normas de seu contexto, reformulando-as num todo. Em princípio, à
diferença de um código, uma consolidação não é uma inovação legal, mas uma espécie de
confirmação unitária de matéria legal preexistente.

e) Tratados e convenções internacionais = Neste quadro esquemático das fontes legais


circunscrevemo-nos até o momento ao âmbito do Estado em sua organização interna. Resta-nos,
pois, mencionar o papel das fontes internacionais.

■ Os tratados são fontes cujo centro irradiador é o acordo entre as vontades soberanas dos
Estados. As convenções são celebradas no âmbito dos organismos internacionais que,
reconhecidos, vêem seus atos normativos repercutirem no âmbito interno dos Estados. Este é
o caso, por exemplo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cujas convenções
aprovadas são submetidas às autoridades competentes dos Estados participantes (por
exemplo, devem ser ratificadas pelo Congresso), passando a ter força legal.

f) Costume e jurisprudência = O costume é uma forma típica de fonte do direito nos quadros
da chamada dominação tradicional no sentido de Weber. Baseia-se, nesses termos, na crença e
na tradição, sob a qual está o argumento de que algo deve ser feito, e deve sê-lo porque sempre
o foi. A autoridade do costume repousa, pois, nessa força conferida ao tempo e ao uso contínuo
como reveladores de normas, as normas consuetudinárias.
■ O costume, como fonte de normas consuetudinárias, possui em sua
estrutura, um elemento substancial – o uso reiterado no tempo – e um
elemento relacional – o processo de institucionalização que explica a
formação da convicção da obrigatoriedade e que se explicita em
procedimentos, rituais ou silêncios presumidamente aprovadores.

■ A jurisprudência, no sistema romanístico, é, sem dúvida, “fonte’’


interpretativa da lei, mas não chega a ser fonte do direito. No caso da
criação normativa praeter legem, quando se suprem lacunas e se
constituem normas gerais, temos antes um caso especial de costume.
Restariam, talvez, como exemplos de fonte genuinamente jurisprudencial,
alguns casos de decisões contra legem que existem, sobretudo na área do
Direito do Trabalho; este, por sua natureza específica, voltada não tanto à
regulação de conflitos, mas a uma verdadeira proteção ao trabalhador,
permite a constituição de normas gerais com base na equidade.
FONTES NEGOCIAIS, RAZÃO JURÍDICA (DOUTRINA,
PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO, EQUIDADE)
■ Em sentido estrito, posições doutrinárias dominantes (doutrina dominante) não chega, no sistema
romanístico, a ser fonte do direito. Sua autoridade, porém, como base de orientação para a interpretação
do direito, é irrecusável. Há, porém, casos de verdadeira construção doutrinária do direito que, embora
não possam ser generalizados, apontam para exemplos em que a doutrina chega a funcionar como
verdadeira fonte. Mesmo assim, são antes fontes mediatas, pois nenhum tribunal sente-se formalmente
obrigado a acatá-las.

■ À razão jurídica pertencem as questões referentes à analogia e aos princípios gerais de direito. Ambos são
expressamente mencionados pelo art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro como meios
supletivos em caso de lacuna da lei. A analogia é forma típica de raciocínio jurídico pelo qual se estende a
facti species de uma norma a situações semelhantes para as quais, em princípio, não havia sido
estabelecida. Não é, propriamente, fonte do direito, mas instrumento técnico de que se vale o juiz para
suprir a lacuna. A norma dele resultante é, então, norma jurisprudencial praeter legem.

■ Já os princípios gerais de direito constituem reminiscência do direito natural como fonte. De qualquer
modo, ainda que se entenda que possam ser aplicados diretamente na solução de conflitos, trata-se não
de normas, mas de princípios. Ou seja, não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de
suas regras estruturais, dizem respeito à relação entre as normas no sistema, ao qual conferem coesão.
Eles não são fonte do direito no mesmo sentido da legislação ou do costume ou das normas
jurisprudenciais, pois são metalinguagem em relação àquelas fontes.

■ Por último, no conjunto da razão jurídica, costuma-se mencionar a equidade. A solução de litígios por
equidade é a que se obtém pela consideração harmônica das circunstâncias concretas, do que pode
resultar um ajuste da norma à especificidade da situação a fim de que a solução seja justa.
DOUTRINA DA IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: DIREITO
ADQUIRIDO, ATO JURÍDICO PERFEITO, COISA JULGADA
■ Em princípio, as normas têm vigência e eficácia futura a partir de certo momento. A eficácia da
norma, porém, pode ser retroativa. Embora destinada à vigência para o futuro, nada impede
que, em tese, a norma possa produzir efeitos no passado. Ou seja, a vigência é sempre desde
já para o futuro; a eficácia é desde já para o futuro ou para o passado.

■ Diz-se que o direito está adquirido, isto é, ocorreu a incidência no sentido de que o adquirente
está apto a exercê-lo (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 6º, § 2º). Assim,
se alguém compra uma propriedade, tendo cumprido todas as exigências da lei e suas normas
de conduta, uma lei posterior que venha a alterar as condições para alguém ser considerado
proprietário (ser proprietário) não pode ter eficácia sobre o direito adquirido anteriormente
(alguém que já é proprietário).

■ O princípio do ato jurídico perfeito significa o preceito segundo o qual o ato exercitado e
consumado sob a norma de conduta da lei antiga não pode ser atingido pela lei posterior.

■ O princípio do direito adquirido protege a situação de titular já adquirida. Já o princípio do ato


jurídico perfeito protege o titular que exerceu seu direito conforme normas de conduta (por
exemplo, a locação consumada em um contrato perfeito e acabado).
■ Diz-se que a sentença faz coisa julgada. O princípio da coisa julgada
protege a relação controvertida e decidida contra a incidência da lei nova.
Alterando-se por essa quer as condições de ser titular, quer de exercer os
atos correspondentes, o que foi fixado perante o tribunal não pode ser
mais atingido retroativamente.

■ No Brasil, o princípio da irretroatividade é delimitado constitucionalmente


(Constituição de 1988, art. 5º, XXXVI, XL – lei penal –, art. 150, III, da lei
tributária) e os §§ 1º, 2º e 3º do art. 6º da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro definem as noções de direito adquirido, ato jurídico
perfeito e coisa julgada.
REFERÊNCIAS
■ Ferraz Junior, Tercio Sampaio. ,Introdução ao estudo do direito : técnica, decisão,
dominação. – 11. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2019.

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