Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Para Que Investigamos
Para Que Investigamos
A ideia d e s s a d i s c u s s ã o surgiu de u m a r e c o r r e n t e
p r e o c u p a ç ã o de p e s q u i s a d o r e s e pesquisadoras e m e d u c a -
ção, e n t r e os q u a i s m e incluo, c o m o destino de n o s s a s
p e s q u i s a s e de n o s s o s escritos. Se a escola é o fim de n o s -
sas p e s q u i s a s e de t u d o o q u e escrevemos, o r e s u l t a d o de
e, portanto, i n d e p e n d e n t e daquele(s) que faz a descrição q u e m c h e g a e, por t e r m o s vindo, quase todas as compa-
de tal atividade". E a i n d a c o m Maturana: "Não é possível n h e i r a s de m e u grupo de pesquisa de u m a experiência de
c o n h e c e r ' o b j e t i v a m e n t e ' fenómenos (sociais) nos quais o escola primária, t e n d o vivido a situação de r e c e b e r u m a
próprio observador-pesquisador q u e descreve o fenómeno p e s q u i s a d o r a s e m a t e r m o s convidado, refletimos m u i t o
está envolvido", a i n d a q u e n ã o o creia. sobre a dificuldade deste m o m e n t o de e n t r a d a na escola: o
Livres da a r m a d i l h a da verdade objetiva e real, eis-nos indispensável cuidado, a atenção, a delicadeza, a sensibili-
e n t r e g u e s a dúvidas e incertezas, que, afinal, são u m a boa dade p a r a o outro, a aceitação do outro como legítimo outro,
razão para p e s q u i s a r m o s , pois, c o m o já disse, q u e m t e m c o n f o r m e M a t u r a n a , o q u e significa ouvir o outro n o q u e o
certezas n ã o t e m m o t i v o s para pesquisar. Daí porque esta- outro diz e n ã o n o q u e já trazemos c o m o sua resposta. O
m o s s e m p r e envolvidas, eu e m e u grupo, e m pesquisar, que se t o r n a m a i s e m a i s difícil, se Lacan está certo, e m sua
n u m a busca p e r m a n e n t e por m e l h o r c o m p r e e n d e r a com- radical leitura de Freud. Para ele, estamos s e m p r e e m bipo-
plexidade da escola, d o processo de ensinar/aprender, do laridade c o m o outro — o eu é antes de tudo um outro; é igual
fracasso de t a n t o s e d o sucesso de alguns que n ã o seria a mim e por ser igual é meu rival. O q u e fica m a i s complica-
e s p e r a d o q u e o c o n s e g u i s s e m (o q u e Cyrulnik d e n o m i n a do q u a n d o o outro, o q u e chega, traz consigo u m a posição
résilience). Neste instigante processo de investigação, ve- de p o d e r q u e m e ameaça.. O outro que traz u m a d e m a n d a
m o - n o s a cada d e s c o b e r t a a n t e u m novo desafio, pois a cada que eu n ã o estou disposta a atender. O ego é alter — alter
novo saber (resultado s e m p r e provisório da pesquisa) u m ego — o ego alterado. H e t e r o n o m i a radical.
novo ainda não saber (convite à ampliação ou redireciona- E o q u e v a m o s encontrar e m Bhabha q u a n d o afirma a
m e n t o da p e s q u i s a ) q u e se mostra. E sempre, ao entrar c o m p l e x i d a d e da relação ambivalente e n t r e o colonizador
n u m a escola, o s e n t i m e n t o de ser uma estranha que chega e o colonizado, q u a n d o o desejo pelo outro assim c o m o o medo
e q u e n ã o foi c o n v i d a d a . do outro os c o n s t i t u e m . Para Bhabha "a identidade só é pos-
Talvez p o r ter vivido esta desagradável experiência de^ sível n a negação de qualquer sentido de originalidade ou
r e c e b e r e s t r a n h o s e de m e sentir estranha, m e identifique, plenitude, através do princípio de deslocamento e diferencia-
tanto c o m a discussão de José de Sousa Martins sobre a; ção ... q u e a coloca s e m p r e n u m limite da realidade".
chegada do estranho. A p e s q u i s a d o r a que chegava à nossa Pois é d e s s a s nossas p r e o c u p a ç õ e s / b u s c a s c o m u n s ,
escola era, p a r a nós, u m a estranha, que ia chegando, en- solidariedade de preocupações, c o m o diria Milton Santos, q u e
t r a n d o e o c u p a n d o espaços p a r a os quais não a havíamos surge a ideia de u m colóquio, resultado da parceria A N P E d /
convidado. Hoje p o s s o saber, pois vivo a situação de ser eu CLACSO, o 3 o Colóquio Produção de C o n h e c i m e n t o e Res-
a estranha q u e c h e g a à escola — o s e n t i m e n t o de insegu- ponsabilidade Social do Pesquisador — e m q u e traríamos à
rança, de c o n s t r a n g i m e n t o , de m e d o que sente também discussão de nossos pares as questões q u e n o s i n q u i e t a m :
24 MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 25
r
26 MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 27
to do vernáculo negro. Só m u i t o r e c e n t e m e n t e e c o m o re- antigos colegas que, p o r l e v a r e m tão a sério a sua condição
sultado de muita luta, o Black English a p a r e c e c o m o u m a de INTELECTUAIS, se h o r r o r i z a m c o m o sujar as m ã o s
variedade linguística da língua inglesa. A f r o d e s c e n d e n t e participando das m a z e l a s das lutas travadas na sociedade.
que é, hooks sabe o q u e significa t e n t a r falar e ser silencia- Lembro-me, p o r e x e m p l o , do comentário, entre irónico e
da. E ela encontra e m Paulo Freire a resposta para a sua enfurecido, de Basil Bernstein sobre seu velho amigo Mi-
busca de u m a linguagem política de resistência. E escreve: chael Apple, e m c o n v e r s a comigo. Dizia ele: "Mike já foi
"há u m a fala de Paulo Freire q u e se t o r n o u u m m a n t r a re- u m intelectual i m p o r t a n t e , hoje é apenas u m militante".
volucionário para m i m — 'Não se p o d e e n t r a r n a luta c o m o Para Bernstein, c o m o p a r a tantos, o papel do intelectual é
objetos, para mais tarde n o s t o r n a r m o s sujeitos'." E continua: b e m outro — p e n s a r o m u n d o , pesquisar, escrever, fazer
"Esta experiência colocou Freire e m m i n h a m e n t e e coração conferências. "A militância para os militantes".
O fato é q u e a militância de Michael Apple foi provo-
c o m o u m professor desafiador". E é p o r esta razão q u e ela
cando mudanças e m s u a escrita, cada vez mais clara, dire-
afirma a educação, q u a n d o m e r e c e esta d e n o m i n a ç ã o , como
ta, fácil de ser c o m p r e e n d i d a p o r q u e m quer que o leia,
transgressão, pois, se n ã o transgride, n ã o é v e r d a d e i r a m e n - u m a escrita de q u e m está a c o s t u m a d o a falar e escrever
te educação. para g r a n d e s g r u p o s heterogéneos, muitos oriundos das
Michael Apple seria m i n h a s e g u n d a lembrança. Já o classes p o p u l a r e s ou c o m elas comprometidos. Tudo o q u e
vi falar inúmeras vezes, e m d i f e r e n t e s lugares, p a r a dife- diz revela o s e u c o m p r o m i s s o c o m a escola pública, c o m
rentes grupos e pude confirmar o q u e ele s e m p r e m e disse os profissionais q u e n e l a a t u a m , c o m a sua própria história
— do seu compromisso c o m a mudança da sociedade e da de filho de i m i g r a n t e s j u d e u s comunistas, solidário a todos
escola, de seu compromisso c o m as professoras e professo- aqueles e a q u e l a s q u e de a l g u m a forma são discriminados
res seja de que nível de e n s i n o for, d e suas pesquisas sem- e subalternizados, tanto q u e além de seu filho b r a n c o na-
p r e voltadas para as classes s u b a l t e r n a s v i s a n d o à sua tural t e m u m filho n e g r o adotado, a m b o s considerados
emancipação. Jamais deixou de a t e n d e r a u m p e d i d o m e u , legítimos.
ou de qualquer militante, c o m o ele diz, p a r a participar de | Seu e n g a j a m e n t o apaixonado, sua exposição p e r m a -
algum evento ligado a u m sindicato, a u m g r u p o de profes- nente, sua b u s c a de coerência, seu envolvimento nas ques-
sores e professoras, a u m partido político progressista, a u m tões que assolam o m u n d o e seu compromisso c o m princí-
grupo ligado a u m m o v i m e n t o social libertário. Sua respos- pios, fazem-me considerá-lo o q u e Edward Said d e n o m i n a
ta é s e m p r e a m e s m a — "Se é militância, conta comigo. o "intelectual amateur — a q u e l e q u e é movido não por re-
Estamos juntos neste barco". c o m p e n s a s ou prémios ou pela satisfação de u m plano de
A militância de Apple, e m b o r a a tantos e tantas t e n h a carreira, m a s p o r u m e n g a j a m e n t o c o m p r o m e t i d o c o m
ajudado pelo m u n d o , foi i n c o m o d a n d o a alguns de seus ideias, causas e valores n a esfera pública".
32 MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 33
E, já q u e citei Said, não posso deixar d e trazer a sua ciando as discussões e as ações revolucionárias. O n d e haja
i m p o r t a n t e fala q u a n d o agraciado c o m o Reifh Lectures de opressão, exploração, discriminação, aí a p a r e c e a sua voz
1993, série de conferências i n a u g u r a d a s e m 1948 por Ber- q u e potencializa as lutas emancipatórias. E isso t u d o s e m
trand Russell, h o n r a que foi s e n d o c o n c e d i d a a intelectuais p e r d e r a doçura, u m a delicadeza ímpar.
c o m o Robert Oppenheimer, J o h n K e n n e t h Galbraith, J o h n Para m i m e para Célia L i n h a r e s é inesquecível o n o s s o
Searle, Tbynbee e outros de igual valor. O s e u t e m a n a con- e n c o n t r o c o m ele, n u m a fria m a n h ã de i n v e r n o e m Boston.
ferência — Representações do Intelectual — tese q u e gira e m Duas m u l h e r e s para ele d e s c o n h e c i d a s q u e se a p r e s e n t a r a m
torno do papel público do intelectual c o m o u m outsider, c o m o militantes p e s q u i s a d o r a s brasileiras e q u e lhe solici-
amateur e transgressor p e r m a n e n t e do status quo. "Os inte- t a r a m u m a entrevista a ser publicada n u m livro e m q u e se
l e c t u a i s são p r e c i s a m e n t e a q u e l a s figuras cuja a t u a ç ã o p e r g u n t a v a o que pensam os intelectuais face aos dilemas de
pública n ã o p o d e ser prevista ou e n c a i x a d a e m slogans, n a um final de século. No dia a p r a z a d o e n a h o r a marcada, nós
l i n h a de partidos ortodoxos ou e m rígidos dogmas". Sua duas, e n t r e assustadas e excitadas, a d e n t r a m o s e m seu es-
responsabilidade seria de denúncia a q u a l q u e r tipo de dis- critório n o Massachusetts Institute of Technology, o famoso
criminação, segregação e exclusão, de defesa aos oprimidos, MIT, recebidas por sua formal secretária, logo i n t e r r o m p i d a
explorados, desrespeitados. Para d e f e n d e r esta ideia, Said por n o s s o herói que foi n o s r e c e b e r à porta. D u r a n t e o t e m -
se vale de sólidos c o n h e c i m e n t o s teóricos, d e a m p l a cultu- po da entrevista, que d u r o u m a i s d e u m a hora, C h o m s k y
ra, de ímpar qualidade da fala e da escrita, o q u e lhe per- nos dava a impressão de s e r m o s as p e s s o a s m a i s i m p o r t a n -
m i t e ser ouvido e respeitado pelos de cima e pelos de baixo. tes do m u n d o — atento, solícito, c o m o se n o s oferecesse
E sintetiza o q u e para ele seria o p a p e l do intelectual — "O todo o t e m p o do m u n d o . Ao final da entrevista, e só ao final,
propósito da atividade do intelectual é de p r o m o v e r a liber- pois e m m o m e n t o a l g u m fomos i n t e r r o m p i d a s p o r telefo-
d a d e h u m a n a e o conhecimento". n e m a s ou entrada de q u e m fosse n a sala, levantou-se e o
E eu p e r g u n t o — não é isso o q u e N o a m C h o m s k y v e m a c o m p a n h a m o s , pois este era o sinal de q u e nosso t e m p o
fazendo, expondo-se aos ódios dos c o n s e r v a d o r e s america- havia t e r m i n a d o . E eis q u e e n t r a u m íntimo a m i g o seu p a r a
n o s e aos r e c l a m o s dos linguistas p u r o s ? felicitá-lo p o r seu aniversário.
C h o m s k y , além de ser u m dos m a i s i m p o r t a n t e s e res- Aquele h o m e m , u m dos m a i s i m p o r t a n t e s intelectuais
peitados linguistas de nossa época, é u m intelectual que se de nosso século, havia n o s recebido n o dia de s e u aniver-
manifesta corajosamente sobre todas as q u e s t õ e s q u e impe- sário, n o s d a n d o toda a atenção, a p e n a s p o r ter r e c o n h e c i -
d e m o exercício da liberdade e da d e m o c r a c i a , o respeito à do e m nós d u a s m u l h e r e s s u l - a m e r i c a n a s c o m p r o m e t i d a s
diferença, a expressão da pluralidade. S e u s escritos d e n u n - c o m a socialização de u m p e n s a m e n t o revolucionário.
ciadores circulam pela Internet e g a n h a m o m u n d o , m u n i - Diante de nós estava u m intelectual amateur, s e m dúvida,
M MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 35
a q u e l e q u e está ligado organicamente à experiência social Diz ele e m t o m desafiador a seus colegas académicos: "Um
d o s pobres, dos desfavorecidos, dos s e m voz, dos n ã o r e p r e - tipo de geografia d o d e s t i n o está associada a se o c u p a m o s
s e n t a d o s , dos s e m poder. Aquele que, n o dizer d e Said, o terreno do específico da a c a d e m i a c o m o u m académico.
" r e p r e s e n t a a e m a n c i p a ç ã o e a clarificação, m a s n u n c a Nós a d o r a m o s falar de transgressão i n t e l e c t u a l m e n t e , aca-
abstrações ou a u s ê n c i a de sangue e paixão". d e m i c a m e n t e , m a s n ã o q u e r e m o s fazê-lo fisicamente e
Também e m Franz Fanon e A i m ê Césaire, a m b o s ori- epistemologicamente".
g i n a i s da Martinica, eu e n c o n t r a r a essas características Apesar do t o m p e r m a n e n t e m e n t e desafiador e irónico,
a p o n t a d a s por Said. A m b o s escolheram s e m p r e os riscos e Dyson é ouvido e respeitado dentro da a c a d e m i a e fora de
os resultados incertos da esfera pública, e n f r e n t a n d o todas seus muros. E este é seu objetivo, pois e m b o r a considere a
a s dificuldades na luta pelos direitos dos deserdados-da terra, teoria uma avenida pela qual importantes questões são inda-
s e m d e i x a r e m de dar i m p o r t a n t e contribuição teórica à gadas, d e f e n d e q u e e s s a s q u e s t õ e s n ã o n e c e s s i t a m ser
c o m p r e e n s ã o da relação colonizador-colonizado, u m valen- apresentadas de m o d o q u e n e g u e m o acesso n ã o académi-
do-se da arte, p o e t a q u e era, o outro da ciência para d e n u n - co a respostas.
ciar as c o n s e q u ê n c i a s psicológicas do processo de coloniza-
Afirma-se u m intelectual público — u m intelectual
ção, psiquiatra q u e era. A m b o s lidos e citados p o r todos
negro público — cuja função é i n t e r r o m p e r e intervir n a s
a q u e l e s q u e se v i n c u l a m a u m a perspectiva teórica pós-co-
conversações, para i n c o m o d a r e levar à indagação do porquê
lonial. A m b o s leitura obrigatória de q u e m p r e t e n d a m e l h o r
as questões são colocadas de u m a d e t e r m i n a d a forma ou
c o m p r e e n d e r o processo de resistência à ação do coloniza-
por que as análises são feitas de tal forma. Trabalha n u m a
d o r ou d a q u e l e q u e o p r i m e e subalterniza o outro.
perspectiva desconstrutivista para reconstruir u m a história,
E a lista de intelectuais c o m p r o m e t i d o s seria m u i t o a seu ver, m a l contada. Sendo e x t r e m a m e n t e p r e o c u p a d o
g r a n d e e vale a p e n a trazer alguns provocativos intelectuais com a questão da l i n g u a g e m , é consciente do tipo de lin-
militantes que, s e m abrir m ã o do rigor, cultivam u m a lin- guagem q u e p o d e e d e v e u s a r q u a n d o se dirige a diferentes
g u a g e m capaz de atingir a grande m a s s a de subalternos q u e auditórios. Sabe q u e a l i n g u a g e m p o d e potencializar ou
e n g r o s s a m a cada dia, n u m m u n d o e m que o projeto h e g e - enfraquecer de a c o r d o c o m o é usada, seja n a s relações de
mónico é inevitável e c r e s c e n t e m e n t e excludente. trabalho académico, seja n a s vidas das pessoas fora de suas
Michael Eric D y s o n — intelectual n o r t e - a m e r i c a n o fronteiras. Está engajado n u m projeto de tornar acessível
negro, militante, q u e procura levar o trabalho i n t e l e c t u a l às massas o projeto intelectual da a c a d e m i a de m o d o que
d a a c a d e m i a p a r a a cultura de massas, de m o d o a p o t e n - provoque mudanças e reconsideração de c o m o o m u n d o vê
cializá-las para a luta emancipatória. C o n s e g u e m o b i l i z a r raça, classe social, género, e outros construtos que m o d e l a m
p a r a a ação política, m a n t e n d o a integridade académica. o nosso p e n s a m e n t o sobre diferença.
36 MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 37
apagar tudo o que trazíamos de nossa cultura. Assim, aqui relação r a c i o n a l i d a d e e irracionalidade, já hoje b a s t a n t e
estou eu, uma espécie de cidadã internacional cuja vida e estudada.
privilégios não são iguais aos direitos e privilégios de pes-
soas comuns anglo, brancas, euro-americanas. Minhas B o a v e n t u r a está p r o p o n d o
narrativas sempre levam em consideração estas outras
etnicidades, estas outras raças, estas outras culturas, estas ... uma transformação tanto da ciência quanto do senso co-
outras histórias. mum, pois enquanto a primeira ruptura é imprescindível
para constituir a ciência, mas deixa o senso comum tal como
estava antes dela, a segunda ruptura transforma o senso
Muitos outros autores e autoras t ê m a m e s m a preocupa- s comum com base na ciência. Com esta dupla transformação
ção q u e os autores e autoras q u e apresentei n e s t e p e q u e n o pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência
texto. O q u e m e p a r e c e i m p o r t a n t e é q u e p o s s a m o s refletir prudente ... uma configuração de conhecimentos que, sendo
n o espaço académico sobre qual o lugar da teoria n u m pro- prática, não deixa de ser esclarecida e, sendo sábia, não
jeto emancipatório e c o m o se p o d e r e a p r o x i m a r a teoria da deixe de estar democraticamente distribuída.
prática e a prática d a teoria, p o t e n c i a l i z a n d o a q u e l e s e
aquelas q u e v ê m s e n d o excluídos e i m p e d i d o s d e a p r e n d e r É preciso l e m b r a r q u e o paradigma da m o d e r n i d a d e
a dizer a sua própria palavra de m o d o q u e m u d e m as suas foi o p a r a d i g m a da m o d e r n i d a d e ocidental q u e , p a r a se
próprias vidas e c o m p r o m e t a m - s e n u m processo de m u d a n - tornar hegemónico, silenciou outras epistemologias, tradi-
ça social. ções culturais, projetos de sociedade alternativos. Essas
Para isso, e n c o n t r o respaldo e m B o a v e n t u r a d e Sousa vozes s i l e n c i a d a s começam a se fazer ouvir, tradições e
Santos q u a n d o p r o c l a m a u m a s e g u n d a r u p t u r a epistemoló- projetos alternativos reaparecem, povos u m dia colonizados
gica, e m q u e ciência e senso c o m u m , s e p a r a d o s n a primei- r e e s c r e v e m a s u a história, o neocolonialismo é d e n u n c i a d o ,
ra r u p t u r a epistemológica, se r e a p r o x i m e m . grupos se organizam, criando novas formas de relações m a i s
É preciso ir a Bachelard p a r a c o m p r e e n d e r d o q u e fala solidárias e igualitárias, velhas utopias se atualizam. À glo-
Boaventura. Para Bachelard, "a ciência se opõe à opinião, balização p o r c i m a os de baixo r e a g e m e começam a se
construindo-se, portanto, c o n t r a o senso c o m u m e r e c u s a n - organizar e m propostas de u m a globalização contra-hege-
do as orientações d a vida prática dele d e c o r r e n t e s , o q u e mônica, aos d e f e n s o r e s do p e n s a m e n t o único o p e n s a m e n -
exige u m a p e r m a n e n t e vigilância epistemológica". Este o to múltiplo r e s p o n d e e m sua pluralidade.
m o d e l o de racionalidade, a r a c i o n a l i d a d e formal ou ins- Novos ventos a n u n c i a m a possibilidade de novos tempos.
t r u m e n t a l , s u b j a c e n t e ao p a r a d i g m a da ciência m o d e r n a Será q u e neste m o m e n t o de crise global, q u e pode levar
e q u e se opõe a q u a l q u e r m a n i f e s t a ç ã o do q u e p o s s a pa- até à d e s t r u i ç ã o do planeta Terra, m a s q u e também p o d e
recer irracionalidade, d e s c o n h e c e n d o a c o m p l e x i d a d e da ser o prenúncio d e n o v a s formas autoeco-organizativas,
40 MOREIRA • SOARES • FOLLARI • GARCIA
PARA QUEM PESQUISAMOS PARA QUEM ESCREVEMOS 41