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QUINTA ESSÊNCIA
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uma empresa do grupo LeYa
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2610-038 Alfragide – Portugal
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Fax. (+351) 21 427 22 01
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, locais, episódios resultam
da imaginação da autora ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas, vivas ou falecidas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou locais é
pura coincidência.
Índice
Capa
Ficha Técnica
I
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Epílogo
Agradecimentos
Rachel Lynn Solomon
FALA COM O EX
Tradução
Raquel Dutra Lopes
Para Ivan
Obrigada por teres embarcado comigo nesta aventura, pelo
teu apoio incessante e por gostares tanto de histórias quanto
eu. Contigo sinto-me sempre em casa.
Não ando à procura de histórias com a ideia fixa de haver algum
engano, não. Mas a verdade é que muitas histórias surgem porque
alguém se engana.
IRA GLASS
I
Apesar de nunca ter estado no ar, o meu pai tinha uma ótima voz de rádio.
Era forte mas suave, uma fogueira a crepitar na noite mais fria do ano.
Consertava rádios desde pequeno e tinha uma loja de reparações
eletrónicas, embora tivesse obviamente acabado por também aprender a
arranjar portáteis e telemóveis. Goldstein Gadgets: o meu lugar favorito no
mundo inteiro.
Quanto a mim, herdei a sua paixão pela rádio pública, mas não a sua voz.
A minha voz é do género agudo que os homens adoram usar como arma
contra as mulheres. Estridente. Pouco inteligente. Menineira, como se ser
menina fosse o pior insulto possível. Fui gozada durante toda a vida e ainda
me preparo para insultos astuciosamente dissimulados quando falo com
alguém pela primeira vez.
O meu pai nunca se importou com isso. Apresentávamos programas na
cozinha («Conte-me, Shay Goldstein, que tipo de cereais vai comer esta
manhã?») e em viagens de carro («Poderá descrever o cenário nesta estação
de serviço no meio de nenhures?»). Eu passava tardes inteiras com ele na
Goldstein Gadgets, a fazer os trabalhos de casa e a ouvir programas
desportivos, Car Talk, This American Life. Tudo o que precisávamos era de
uma boa história.
Eu queria tanto que ele me ouvisse na rádio, mesmo que mais ninguém o
fizesse.
Quando ele morreu no meu último ano da escola secundária depois de
uma paragem cardíaca súbita, isso deu cabo de mim. As aulas perderam
qualquer importância. Os amigos perderam qualquer importância. Passei
semanas sem ligar o rádio. Não sei como, consegui uma média de 14 para
entrar na Universidade de Washington, mas não fui capaz sequer de o
celebrar. Ainda estava submersa na depressão quando consegui o estágio na
Pacific Public Radio e devagar, devagar, fui saindo da escuridão e ganhando
a convicção de que a única forma de avançar era tentar reconstruir o que
tinha perdido. E aqui estou, aos vinte e nove anos, agarrada a esse sonho
infantil.
– Faz as pessoas chorar e depois fá-las rir – dizia o meu pai. – Mas,
sobretudo, assegura-te de que estás a contar uma boa história.
Não sei ao certo o que ele teria pensado de Pergunta a Uma Treinadora.
*
Assim que chego a casa, ligo todas as luzes e ponho a dar o episódio mais
recente do meu podcast de comédia favorito. São quase nove da noite e
passei demasiado tempo longe do email, apesar das poucas vezes que o
verifiquei na casa de banho. (Suficientes para a minha mãe me perguntar se
eu estava bem, o que é um tudo-nada embaraçoso quando se é adulto,
pensar que a nossa mãe se preocupa com os nossos intestinos.)
Preparo chá e instalo-me no sofá com o portátil do trabalho. Realmente
fico satisfeita a ajudar outros a contar histórias, por oposição a contá-las eu.
Paloma fá-lo melhor do que eu alguma vez seria capaz, ainda que por vezes
não contemos o tipo de histórias que adoro, epopeias avassaladoras sobre a
experiência humana que só se ouvem em estações com um orçamento
maior. Por vezes pergunto-me se satisfeita será na verdade um sinónimo de
resignada.
Mas tento não pensar nisso.
Depois de o meu pai morrer, procurei consolo onde quer que pudesse
encontrá-lo. Fumava ganzas com Ameena, curtia com o tipo giro do quarto
em frente ao meu no primeiro ano da faculdade, tive uma má experiência
que me ensinou quanto álcool o meu corpo aguentava. Não fiz nada de
extraordinariamente mau para a saúde; não perdi o controlo, mas queria
aproximar-me o suficiente disso para ver o que haveria do outro lado.
A única coisa que fez com que voltasse a sentir-me eu mesma foi o
estágio na PPR. Foi então que percebi que a solução não era impulsividade,
mas sim consistência. E claro que sim; a rádio sempre me tinha feito sentir
mais próxima do meu pai. Conseguiria o emprego estável, a casa num
bairro onde era possível passear, e o namorado devotado, que um dia seria
marido. Ameena continuava a ser a minha melhor amiga; a minha mãe
continuava sozinha. À exceção da minha vida amorosa, tudo o resto correra
basicamente de acordo com o plano.
Mas que Phil passe a ser meu padrasto – isso vai mudar as coisas.
E, historicamente, eu não tenho lidado lá muito bem com a mudança.
Uma casa sempre fez parte do meu plano e devia parecer-me um feito
tremendo. Já a tenho há seis meses, mas estou sempre no processo de a
tornar minha. Passo horas a vasculhar lojas de antiguidades em busca do
tipo certo de arte antes de comprar no Target alguns borrões abstratos
produzidos em massa, ou experimento uma dúzia de amostras de tinta para
a sala antes de me dar conta de que nenhuma me parece bem, sem nunca ter
energia para pintar por cima. Quando tínhamos vinte e poucos anos, eu e
Ameena sonhávamos com os jantares que daríamos quando tivéssemos
espaço, mas agora estamos sempre exaustas. Na maior parte do tempo,
acabo a cozinhar qualquer coisa com ingredientes pré-embalados que me
aparecem à porta duas vezes por semana.
Sempre que imaginei a idade adulta, era algo diferente desta realidade.
Todas as pessoas importantes na minha vida têm alguém. Eu tenho uma
casa vazia e o meu suposto emprego de sonho, que nem sempre me
corresponde ao afeto.
Apesar do que a sensatez me aconselha, volto a ouvir o programa de hoje.
Quando comecei, estava sempre a fazer isto, ávida por formas de melhorar,
mas há algum tempo que não o faço. Vezes sem conta, ouço as respostas de
Dominic, a tentar perceber o que terá sido, ao certo, que os ouvintes
acharam tão cativante. Ele demora alguns minutos a equilibrar-se; a
cadência da sua voz altera-se e as suas palavras tornam-se suaves, como
uma cobertura cremosa sobre um bolo red velvet. Não é um robô, como eu
poderia ter julgado que seria antes de o ter ouvido no ar. É quase como se
não quisesse que alguém descobrisse que ele estava a fazer alguma coisa
ilegal, diz num tom fingido de surpresa que me provoca um sorriso.
Responde às perguntas dos ouvintes como se se preocupasse genuinamente
com as suas preocupações e, mesmo quando não sabe a resposta, dá o seu
melhor por convencê-los de que vai descobrir.
Por mais que deteste admiti-lo, Dominic Yun em Puget Sounds foi boa
rádio.
Até o meu pai teria concordado.
3
Elimino-a e arrasto a aplicação para o lixo. É a única ação que tenho tido
ultimamente: o Tinder e o Bumble a esforçarem-se desesperadamente por
me conquistar de novo.
A nossa redação funciona em open space, com gabinetes reservados para
os mais seniores do pessoal sénior. O meu espaço está pejado de canecas de
café vazias que mais logo, sem falta, hei de pôr na máquina de lavar a loiça.
O pessoal vai-se revezando na cozinha e, durante os meus primeiros dois
anos na PPR, calhava-me sempre limpá-la à sexta-feira. Pensava que estava
apenas a pagar as favas de ser novata, mas nunca vi Griffin, o nosso
estagiário do Puget Sounds, no horário que é organizado semanalmente pelo
nosso gestor. Nunca me pareceu suficientemente importante para apresentar
o problema ao departamento de RH.
Depois há o meu sistema intrincado de arquivamento de resumos
passados e, afixado ao lado do meu computador, um cartaz da PodCon
autografado pelos apresentadores do meu podcast preferido sobre cinema.
A PodCon é uma convenção anual de rádio e podcasting, o que, se parece
coisa de cromos, é porque é, mas também é o melhor. Fui lá há uns anos
quando teve lugar em Seattle e, embora fosse um sonho ir na qualidade de
apresentadora, obviamente uma rádio local não tem interesse nacional.
Na secretária em frente à minha, Paloma está a juntar sementes de linhaça
e chia a um iogurte islandês. Ela chega todos os dias às oito da manhã e sai
às quatro, imediatamente a seguir a terminarmos a reunião do programa da
tarde.
– Reunião de emergência? – pergunto-lhe.
Estamos com as contratações congeladas; Dominic foi a última pessoa a
entrar antes de isso ser implementado. Pergunto-me se a reunião terá algo
que ver com as finanças da estação. Ela mistura o iogurte.
– É só o Kent a ser dramático. Sabes que adora um bom espetáculo.
Provavelmente vamos fazer uma angariação de fundos ou qualquer coisa do
género. – A Paloma está cá há mais de duas décadas, pelo que, se ela não
está preocupada, talvez eu não deva estar. – Por acaso não tens por aí umas
sementes de chia, não? As minhas acabaram agora.
E embora nunca tenha comido uma semente de chia na vida, levo a mão à
gaveta da secretária e tiro de lá um pacote cheio.
É o que faz um bom produtor. Treinei-me para saber o que Paloma quer
antes de ela própria saber, para antecipar todas as suas necessidades. Se o
apresentador não estiver feliz, o programa não pode ser ótimo. É por causa
de Paloma que as pessoas adoram o Puget Sounds, e é por minha causa que
Paloma consegue apresentar um programa tão bom.
– És um amor – diz ela, e aponta para o iogurte. – A sério. O que faria eu
sem ti?
– Comerias iogurte medíocre, obviamente.
Eu costumava morrer de medo dela. Cresci a ouvi-la apresentar as
notícias da manhã e, quando a conheci no primeiro dia do meu estágio,
engasguei-me com as palavras, incapaz de acreditar que ela fosse real.
Puget Sounds foi ideia dela e, mesmo hoje, não há muitas locutoras na rádio
pública, e ainda menos que sejam queer.
Paloma tem quarenta e muitos anos, não tem filhos, e ela e a mulher, que
é professora de história de arte, passam duas semanas todos os verões num
local remoto de que eu nunca ouvi falar, voltando com histórias acerca de
como se perderam, ficaram sem comida ou escaparam por pouco a algum
animal selvagem. No entanto, enquanto aqui está, opera segundo um
horário tão específico que, se eu alguma vez me fosse embora, seriam
necessárias semanas para treinar alguém só para responder a todas as suas
idiossincrasias.
Paloma reajusta o xaile de malha azul-escura e verde e leva o iogurte pelo
corredor fora até à sala de conferências, onde se torna evidente de imediato
que aquilo é um Assunto Muito Sério. Todos têm um ar sombrio e ninguém
está a olhar para o telemóvel. Até as pessoas dos programas da manhã, que
costumam ser mais animadas do que deveriam, mostram ligeiramente
menos ânimo do que é habitual.
Paloma poderá não estar preocupada, mas eu hesito à entrada,
subitamente avassalada pela sensação de onde é que eu me sento? que
conhecia tão bem na secundária quando a minha hora de almoço não
coincidia com a de Ameena. Uma reunião do pessoal sénior continua a
parecer um clube para o qual entrei enganando alguém.
Uma figura alta de camisa azul-celeste às riscas aproxima-se, vindo do
outro lado do corredor, e eu aperto o bloco de notas com mais força. Hoje
Dominic está de calças de ganga, uma raridade para ele. Estão
perfeitamente engomadas, sem uma marca à vista. Esse é mais um motivo
para a sua altura ser tão frustrante: se ele não fosse um gigante, ser-me-ia
mais fácil olhá-lo nos olhos, em vez de catalogar a sua escolha de calças.
– A reunião é só para o pessoal sénior – digo-lhe, esboçando um sorriso
de falsa compaixão. Um sítio onde eu me enquadro e ele não. – Lamento.
– Dom! Entra – chama-o Kent, à cabeceira da mesa, a acenar-lhe para que
avance.
E, sem mais, ele passa por mim com o seu termo de café, já empossado
no clube de que eu demorei anos a fazer parte. Espero que o café lhe
queime a língua.
– Uma reportagem excelente – diz o editor-sénior, Paul Wagner. – E o
presidente da câmara demitiu-se? – Deixa escapar um assobio baixo.
– Obrigado, Paul – responde Dominic, passando a mão livre pelo cabelo,
que está com um ar um pouco mais descaído do que é habitual. – Compensa
ter de chegar aqui às cinco da manhã, isso é certo. – Ah. Isso explica tudo.
Paul solta uma gargalhada sincera.
– As notícias não dormem.
Eu costumo vir a ouvir a PPR a caminho do trabalho, mas hoje de manhã
estive a acabar de ouvir um podcast. A investigação de Dominic levou o
presidente da câmara a pedir a demissão. Não admira que tenha obtido
entrada livre nesta reunião. Não que isso me vá impedir de continuar a
insurgir-me mentalmente.
Sento-me ao lado de Paloma e abro o bloco de notas numa página em
branco. Reunião de Emergência, escrevo no cimo da página, a sentir-me um
pouco menos importante por Dominic também estar presente.
– Bom dia – exclama Kent quando já todos estamos sentados. – É sempre
um prazer ver os rostos sorridentes de todos de manhã bem cedo. – A sua
gravata com um padrão de M. C. Escher é hipnótica e por vezes esqueço-
me de como consegue ser apelativo em frente a um grupo. Faz lembrar a
personagem de Rob Lowe em Parks and Rec: positivo até mais não. – Shay,
não te importas de tomar notas? Tens tanta atenção aos pormenores.
– Oh... claro – digo eu, já a riscar Reunião de Emergência e a virar para a
página seguinte, onde o reescrevo de uma forma mais legível. Não esperava
que me pusessem a trabalhar na primeira reunião do pessoal sénior em que
participo, mas suponho que tenha atenção aos pormenores. E não vou
contestar um elogio de Kent.
– Para começar – continua ele –, gostaria de dar os parabéns ao Dominic
pela sua exposição de ontem, tanto ao vivo no Puget Sounds como ao longo
da noite, quando deu seguimento à história.
Contenho a vontade de revirar os olhos e tomo a decisão executiva de não
registar aquele momento particular. Dominic parece fazer uma tentativa de
se mostrar humilde e as suas faces coram antes de ele levantar uma mão,
como se quisesse lembrar-nos a todos quem é.
– Vai lá direto ao assunto, Kent – diz Isabel Fernandez, a produtora do
programa matinal. Sempre tivemos apenas uma relação cordial, nunca
fomos amigas, mas, de repente, adoro-a. – Vamos fazer uma angariação de
fundos para conseguirmos mais dinheiro, ou quê?
– Não acabámos agora mesmo de fazer uma? – pergunta Marlene
Harrison-Yates.
– Estamos sempre ou a acabar de fazer uma angariação de fundos, ou a
começar outra – resmunga Paloma a meu lado e eu contenho o riso, porque
ela não está errada.
– Não, não, nada disso. Bom. – Kent pigarreira e endireita uma pilha de
papéis. – Vamos reordenar a nossa programação.
Bem, aquilo é que é um eufemismo.
– Por favor, não me ponhas outra vez a fazer as manhãs – diz Paloma.
– E eu não quero as tardes – diz o apresentador matinal do trânsito, Mike
Russo.
– Deixem-no falar – peço eu e Kent dirige-me um sorriso agradecido que
acalma, só um pouco, a agitação que me vai no estômago.
– Eu e a direção estávamos a pensar... em algo como um programa novo.
A sala volta a mergulhar no caos. Do outro lado da mesa, Dominic olha
para mim, com uma das sobrancelhas escuras a arquear-se de uma forma
que não sei exatamente interpretar. Não sei porque é que continuamos a
estabelecer contacto visual assim, quando passo grande parte do meu dia a
esperar não ter de me cruzar com ele. Devolvo o olhar às minhas notas.
– Temos o nosso programa da manhã, o nosso programa do meio-dia e o
nosso programa da noite – diz Kent. – E o feedback que temos recebido dos
ouvintes é que são demasiado parecidos. – Ele carrega num botão e vários
gráficos coloridos aparecem no ecrã do projetor. – Não se identificam com
os apresentadores como antigamente, não como o fazem a nível nacional ou
com alguns dos podcasts mais populares.
– Desculpa lá – intervém Paloma num tom altivo –, mas o Pudget Sounds
não tem nada que ver com o At the Moment.
– E não podemos propriamente convidar um comediante para apresentar
as notícias da manhã – atalha Isabel.
Porém, Kent não está errado. Como somos uma estação que faz parte da
rede da NPR, controlamos a nossa programação e podemos emitir qualquer
um dos programas nacionais. Naturalmente, estes têm mais audiências do
que os nossos programas locais. O seu nome é mais reconhecido e, como
passo a vida a dizer a Dominic, é uma batalha perdida à partida levar as
pessoas a interessarem-se por notícias locais.
– Um programa novo significa livrarmo-nos de algum dos nossos
programas emblemáticos?
Kent abana a cabeça.
– Não quero que ninguém tire conclusões precipitadas. Esta reunião é só
para gerarmos ideias.
Uma sessão de brainstorming com produtores, apresentadores e
repórteres costuma funcionar da seguinte forma: os apresentadores e os
repórteres assumem o controlo. Os produtores ficam calados. Não é fácil
opinar numa sala cheia de gente cujo trabalho consiste em falar.
– E se fosse uma mesa-redonda para comentar as notícias? – sugere
Dominic. – Podíamos convidar políticos locais e outros líderes todas as
semanas para nos porem a par do que se passa no trabalho que
desenvolvem.
Que seca.
Isabel, abençoada seja, enterra essa ideia, coisa que eu sublinho nas
minhas notas.
– Já tentámos isso há quinze anos. Durou o quê, uns meses?
– Há quinze anos, o mercado era diferente – argumenta Dominic.
– Exatamente. Era mais fácil. – Isabel estica o braço na direção do ecrã e
do gráfico que mostra como o público ouvinte de Puget Sounds tem vindo a
diminuir ao longo dos anos. Não é um gráfico simpático: o Puget Sounds
foi o programa emblemático da estação com a queda mais acentuada. –
Agora toda a gente tem um podcast, e os seus netos também. Há demasiada
oferta. É impossível destacarmo-nos.
– Qualquer coisa que se foque no ambiente – sugere Marlene. – No
Noroeste, toda a gente se preocupa com o ambiente. Cada programa poderia
concentrar-se em pequenas ações que as pessoas podem levar a cabo para
reduzir a pegada de carbono. Já tenho uma data de gravações sobre
agricultura sustentável.
– Não estamos a pensar em grande – queixa-se Kent. – Já somos
hiperlocais, não é isso que se quer.
Mike sugere um programa de culinária e Paul um de ficção, coisa que
adoro. Mas Kent diz que isso é demasiado colado ao The Moth, e
provavelmente é por isso que adoro a ideia. Dominic apresenta mais umas
quantas ideias relacionadas com notícias, que, sem que eu perceba como,
conseguem parecer ainda menos interessantes do que a primeira. Um
verdadeiro triunfo.
– E se fosse um programa sobre encontros? – murmuro, mais para um
botão da minha saia de bombazina do que para o grupo, partindo do
princípio de que ninguém prestará atenção à produtora-sénior menos
calejada da PPR. Não é algo de que alguém já tenha falado e, depois do
noivado da minha mãe e de o telemóvel a recordar-me que continuo
solteira, está bem presente na minha mente.
Porém, Marlene ouve-me.
– A rádio pública não se mete nisso. E por bons motivos: os regulamentos
da Comissão Federal de Comunicações. Qualquer coisa quente seria difícil
de ser aprovada.
– Mas é possível fazer algo sobre encontros sem provocar a CFC – diz
Paloma, e sinto um arroubo de orgulho por ela vir em minha defesa. – No
ano passado tivemos um segmento sobre saúde reprodutiva e outro sobre
educação sexual nas escolas secundárias.
– Sim! – exclama Isabel. – Mas qualquer coisa nova. Qualquer coisa fora
do comum.
Do outro lado da mesa, Dominic revira os olhos com tanta força que até
tenho medo que fique a ver mal. Decerto um programa de encontros não
cabe na sua ideia de fiz-um-mestrado-em-jornalismo-e-sei-o-que-deve-ser-
a-rádio-pública.
– E se fosse um programa sobre encontros apresentado por um casal de
namorados? – sugere Paloma.
– Isso já foi feito – diz Kent. – Uma dúzia de vezes, numa dúzia de outros
podcasts.
– Um programa sobre encontros apresentado por ex-namorados – digo eu,
meio a brincar.
Todos se calam.
– Continua – incentiva-me Paloma. – Um programa sobre encontros
apresentado por ex-namorados?
Não era minha intenção fazê-lo parecer tão interessante – é apenas uma
potencial abordagem nova para um programa sobre encontros. Mas talvez
não seja má ideia.
– Hã – digo, a sentir o rosto aquecer, como sempre que fico no centro das
atenções. Apesar de estar numa sala só com gente que conheço, todos eles
têm vozes incríveis, o que me deixa ainda mais consciente do som da
minha. Esta torna-se mais aguda e nasalada do que é habitual. Estas pessoas
não dizem hã, nem tipo. Não se engasgam com as palavras.
Dominic observa-me intensamente, como se eu fosse a barra de notícias a
passar num canal de televisão por cabo. Mesmo sentado, tem uma postura
tão rígida, os ombros tão direitos, que só pode chegar a casa com dores nos
músculos. Não pela primeira vez desde o início da reunião, dou por mim a
desejar que não se tivesse sentado mesmo à minha frente.
– Bem. – Um excelente começo. Isto é tal e qual como propor um
segmento na reunião semanal da minha equipa. Sou capaz. Já todos me
ouviram falar. Ninguém está a julgar a minha voz e, se estiverem, não farão
comentários trocistas. – Um programa sobre encontros apresentado por ex-
namorados. É... exatamente aquilo que parece, na verdade. Interessávamos
os ouvintes na relação deles, em como se tinham aproximado e no que
levou ao fim da relação. E interessávamo-los neles como amigos, como
coapresentadores, como o que quer que sejam agora que a relação terminou.
Seria parte narrativa, parte informativo. Em cada episódio, poderiam revelar
mais acerca do seu passado e também poderiam explorar tendências nos
encontros atuais, ou entrevistar especialistas em relacionamentos, ou até dar
conselhos em direto para ajudar os ouvintes a perceber o que correu mal.
E fico surpreendida, enquanto me ouço falar, por estar a descrever algo
que adoraria ouvir. Por vezes, a rádio pública é avessa à diversão, mas uma
coisa assim – o meu pai teria ficado entusiasmado. Seria como uma mistura
de This American Life com Modern Love. Poderíamos fazer um programa
que seguisse cada um dos lados de um encontro marcado através do Tinder,
ou outro a seguir pessoas que tivessem deixado de responder a mensagens
de outras.
É então que tenho de parar. Mentalmente, estou a dizer nós, como se eu
fosse a produtora desse programa. Eu já tenho um programa.
– Como o Kent disse, há montes de programas sobre relações, muitos
deles apresentados por casais – digo, a ganhar mais confiança. Os meus
colegas, o resto do pessoal sénior e Dominic, continuam a ouvir-me. –
Mas... e se tentássemos perceber realmente o que corre mal nas relações,
pondo dois «ex» a apresentá-lo e a falar sobre os seus problemas? Porque é
isso que as pessoas querem saber, não é? O que fizeram mal?
É uma pergunta que me fiz muitas vezes. Permito-me sorrir e descontrair
de novo na cadeira.
– Eu adoro essa ideia – diz a repórter Jacqueline Guillaumont, depois de a
conversa na sala se silenciar de novo. – Eu ouviria esse programa.
– É pouco convencional – comenta Mike –, mas tenho de dizer que me
agrada a forma como a Shay pensa. Se calhar é disso que precisamos, de
uma coisa assim, fora da caixa.
– Precisaríamos de dois «ex» para o apresentar – diz Isabel. – Mas acho
que isso se arranja.
Paloma estende a mão e rabisca no meu bloco de notas: Bom trabalho, eu
sinto-me a inchar de orgulho.
– Lamento, mas não estou a ver como é que isso poderia funcionar – diz
Dominic, rebentando-me essa bolha de orgulho. Surge-lhe uma ruga entre
as sobrancelhas.
– Porque não?
Estou tão concentrada nele, naquele desejo súbito de carregar com força
naquele vinco entre as suas sobrancelhas, que praticamente nem oiço
Paloma a raspar o fundo da embalagem de iogurte. A única vez que reúno
coragem para falar numa reunião destas – uma reunião para que ele nem
deveria ter sido convidado – e ele ataca a minha ideia.
– Não é propriamente um trabalho investigativo inovador.
– E desde quando é que tudo precisa de o ser? Poria as pessoas a falar e
atrairia ouvintes fora da nossa audiência habitual. Talvez até aumentasse as
contribuições para a estação. – Olho diretamente para Kent ao dizê-lo. –
Não podemos denunciar presidentes da câmara todos os dias.
– Não, mas pelo menos deveríamos comportar-nos com um mínimo de
decoro – riposta Dominic, como se cuspisse aquela última palavra ao
inclinar-se para a frente, agarrado à beira da mesa. – «Ex» a criticarem-se
sobre o que os levou a acabar? A darem conselhos amorosos? – troça ele. –
Isso mais parece qualquer coisa de rádio por satélite, ou, Deus nos livre,
rádio comercial. Parece... sórdido.
– E expor a vida privada do presidente da câmara não?
– Se é notícia, não.
O resto da sala parece estranhamente interessada no que estamos a dizer.
Kent tem estado a escrevinhar no seu bloco de notas, invulgarmente calado.
Nunca vi ninguém discutir assim numa reunião, e estou convencida de que
ele vai mandar-nos parar. Quando não o faz, continuo.
– Tu achas que a rádio pública é só uma coisa, mas não é – digo, a apertar
a caneta com toda a força que tenho. Imagino que a tampa voa e lhe mancha
o peito de tinta negra, dando-lhe cabo da camisa que ele deve ter escolhido
com imenso cuidado hoje de manhã. Pinga por aquelas riscas azuis e suja-
lhe também as calças. – E é esse o seu encanto. Pode ser educativa, mas
também pode ser comovente, emocionante ou divertida. Não nos limitamos
a comunicar factos, contamos histórias. Tu trabalhas cá há quatro meses e
achas que tens o setor todo dominado?
– Bem, é verdade que tenho um mestrado em jornalismo. Da
Northwestern. – Diz o nome da escola com imensa descontração, como se
não fosse muito difícil entrar ou as propinas não custassem sessenta mil
dólares. – Por isso até acho que o diploma pendurado em cima da minha
secretária me dá as qualificações necessárias para falar de jornalismo.
Por fim, Kent levanta uma mão, indicando-nos que nos acalmemos.
– Há aqui muito em que pensar – diz ele e, com duas palavras, faz-me
perder toda a esperança. – Mais ideias?
*
Passo um pincel por uma tela, semicerrando os olhos para ver um pomar e
depois a minha representação. Uns quantos borrões vermelhos, uns quantos
borrões verdes. Não é propriamente uma obra de arte.
– E depois basicamente insinuou que perderiam o emprego se não
fizessem o programa? – pergunta Ameena, ao mesmo tempo que mergulha
o pincel em verde-floresta.
– Pois. Brutal, não é?
Ela solta um assobio baixo.
– A mim parece-me que raia o ilegal. Devia falar com alguns dos meus
amigos dos Recursos Humanos.
Estamos na Blush ‘n Brush, a noite mensal de pintura do bar de vinhos da
zona. Já há algum tempo que frequentamos estas noites depois do trabalho,
como forma de aliviar o stress, se bem que Ameena é muito mais talentosa
do que eu. Em resultado, tenho uma mancheia de pinturas medíocres de
árvores a ocupar espaço no meu quarto de hóspedes. Mas quem é que me
visita? Porque é que tenho um quarto de hóspedes? Toda a gente que
conheço vive em Seattle, mas não sabia que mais havia de fazer com o
terceiro quarto da minha casa.
– Não é nada disso – insisto. – Ele só se preocupa com a estação. Mas
nada disso importa, já que o Dominic disse que não vai fazer o programa. O
que quer dizer que, a menos que mude de ideias nos próximos dez dias,
vamos os dois perder o emprego.
– Que merda. Lamento imenso.
A realidade dos despedimentos ainda não me atingiu. Só se passaram
umas horas desde a reunião com Kent e devo estar a agarrar-me ao Fala
Com o Ex como a uma jangada de salvação. A minha oportunidade de ir
para o ar, de explorar algo novo, excitante e diferente, está nas mãos de
alguém que deixou bem claro que não sou a sua pessoa favorita. E claro, ele
também nunca foi a minha, mas suponho que pudesse tolerá-lo, se isso
significasse apresentar o meu próprio programa.
– Eu conheço-te – continua Ameena. – Queres mesmo fazer isso, não
queres?
– Quero mesmo. – Deixo escapar um suspiro e levo o pincel à água para o
limpar antes de passar para tinta azul-clara. Um céu... certamente serei
capaz de não o estragar por completo. Só quando o deslizo pela tela é que
me dou conta de que é do mesmo tom da camisa que Dominic estava a usar
hoje. – É uma estupidez, eu sei. Já me ocorreram ideias para episódios,
depois comecei a imaginar o logótipo enquanto conduzia até aqui... mas não
vale a pena.
– Então. Não é estúpido. – Ela morde o lábio inferior. – Mas,
hipoteticamente falando, estariam a mentir, não? Isso não é um pouco...
antijornalístico?
Uso o argumento de Kent.
– É ficção. De certa forma, seria como representar. A maioria dos
locutores tem uma personalidade diferente com o microfone à frente.
Ninguém é exatamente como parece na rádio... grande parte é fachada.
Cria-se uma personalidade especificamente para que as pessoas sintam uma
ligação.
– Suponho que, visto assim, faça sentido – diz ela, mas não parece
convencida. – Então. O Dominic. Vais pelo menos tentar persuadi-lo, certo?
– Não faço ideia de como, mas sim.
– Porque é que não gostas nada dele?
Gemo, tanto em resposta à pergunta dela como à forma como consegui
transformar o céu do meu quadro numa mixórdia enlameada e castanha.
– Ele acha que sabe tudo acerca de rádio, passa a vida a ostentar o
mestrado como se isso o tornasse alguma autoridade na área do jornalismo,
e a ideia de coapresentar um programa com ele, de ficar em pé de
igualdade... bem, sempre é melhor do que ele achar que lhe sou inferior.
– Ele é giro?
– O quê? – Engasgo-me com o Pinot Noir. – O que é que isso tem que
ver?
Ameena encolhe os ombros e desvia o olhar, a disfarçar.
– Nada, na verdade. Estou só curiosa.
– Bem... em termos objetivos... não é feio – consigo dizer, ao mesmo
tempo que tento não pensar nos seus antebraços ou na sua altura,
concentrando-me antes na sensação que tenho quando ele precisa de
inclinar o pescoço para olhar para mim. Seria realmente capaz de aturar isso
cinco dias por semana?
Um sorriso ligeiro curva os lábios da minha amiga enquanto ela beberica
o seu copo de rosé.
– Cala-te – digo-lhe.
– Não disse nada.
A formadora passa pela nossa fila e fica extasiada com a pintura de
Ameena.
– Uma bela obra, como de costume, Ameena – diz ela. Vira-se para mim
e o seu sorriso fica mais tenso. – Está a avançar. Está mesmo a melhorar.
Ameena sorri de orelha a orelha. Eu reviro os olhos.
– O que me parece mais estranho é o seguinte – diz Ameena. – Tens a
certeza de que estarias à vontade a falar das tuas relações anteriores na
rádio? A lavar a roupa suja em público?
Considero a sua pergunta.
– Suponho que teria de estar. E a minha roupa não é assim tão suja, pois
não? Desde o Trent que não tive nenhuma relação séria.
Trent: um programador de olhos meigos e cabelo prematuramente
grisalho com quem andei durante três meses no início do ano passado. Era
um doador habitual nas angariações de fundos, o que me fez querer deslizar
o ecrã para a direita. No nosso primeiro encontro, confessou-me que queria
imenso formar uma família. Passávamos todos os fins de semana juntos e
eu apeguei-me depressa. Íamos a mercados de produtores locais, a parques
estatais e a peças muito sérias. Eu gostava da força como ele me abraçava
na cama, de como enterrava a cara na minha nuca e me dizia o quanto
gostava de acordar a meu lado. Parti do princípio de que amar seria o passo
a seguir a gostar, mas, quando lho disse a caminho de um brunch com a
minha mãe num domingo, ele quase despistou o carro.
– Não sei se já estou nesse ponto – disse ele.
Estávamos a ouvir o Wait Wait... Don’t Tell Me! e a fazer o nosso próprio
concurso, somando pontos segundo o número de respostas corretas antes de
os membros do júri o fazerem. Desliguei a rádio de imediato, pois não
queria que aquela experiência me estragasse o programa.
Ainda assim, poderíamos divertir-nos juntos. Não tornaria as coisas
esquisitas, saber que eu o amava e ele não me amava. No entanto, nessa
noite acabou comigo, depois dos ovos Benedict mais constrangedores da
minha vida.
Eu sempre fui resolutamente antibrunch, e Trent confirmou a minha
opinião.
As pessoas dizem que querem algo sério, mas, assim que a coisa começa
a encaminhar-se nesse sentido, põem-se a andar. Ou estão a mentir, ou
percebem que não querem algo sério comigo. Daí o meu hiato. Isso não me
impede de querer casar-me, um dia. É só que «um dia» me parecia muito
mais longínquo quando eu tinha vinte e quatro anos do que agora, aos vinte
e nove.
– Já me ofereci para clonar o TJ – diz Ameena, com um encolher de
ombros. – Não tenho culpa se a tecnologia ainda não avançou o suficiente.
– És mesmo incrivelmente generosa. – Acrescento mais vermelho à
minha árvore. Parece gravemente ferida, caramba. Vou ter pesadelos, se
algum dia a pendurar em casa. – Sinceramente, a minha maior preocupação,
mais do que o Dominic ou o conteúdo, é a minha voz.
– Shay – diz ela com carinho, pois está a par do meu historial. Eu até
costumava implorar-lhe que atendesse por mim as chamadas mais
importantes.
– A sério, Ameena. Quem é que quer a Kristen Schaal quando poderia ter,
tipo, a Emily Blunt?
– Eu gosto de vozes únicas. A maioria dos velhos brancos da NPR
parecem-me todos iguais. E também detesto o som da minha voz. O voice
mail é o pior.
– Mas aqui não seria só uma mensagem de voz. Seria uma hora, todas as
semanas. E um podcast, também.
– O que faria um homem branco medíocre? – pergunta ela.
Começámos a dizer isto há uns anos, depois de ela ter assistido a um
seminário sobre diversidade no local de emprego. Ameena é indiana e
contou-me que as mulheres, sobretudo de cor, têm uma menor
probabilidade estatística de pedir coisas em relação às quais os homens nem
sequer hesitam. OQFUHBM, escreve uma de nós numa mensagem para a
outra quando precisamos de apoio.
– Um homem branco medíocre provavelmente teria uma voz de rádio
perfeita – replico. – Mas chega de falar de mim. Em que é que ficou o tal
trabalho de proteção ambiental?
Ameena tenta mostrar-se descontraída.
– Passaram-me para a fase seguinte. Tenho mais uma entrevista telefónica
para a semana.
Deixo escapar um gritinho.
– Parabéns!
– Obrigada – diz ela e depois obriga-se a rir. – Ainda estou convencida de
que foi só por cortesia, mas tenho de admitir que me fez bem ao ego.
– E achas mesmo que podes deixar Seattle?
– Eu gosto de Seattle – responde, depois de uma breve hesitação –, mas
sou capaz de estar pronta para uma mudança.
Pronta para uma mudança. Ameena talvez consiga aquele emprego, a
minha mãe vai casar-se e o meu programa vai desaparecer no final da
próxima semana. Uma mudança tão drástica como deixar a PPR – tenho a
certeza de que não estou pronta para isso.
– Ao que parece, a minha mãe também.
– Como... como é que te sentes acerca disso?
Passaram-se vinte e quatro horas e eles já marcaram uma data: 14 de
julho. Vai ser sobretudo para a família, embora a família da minha mãe seja
composta por mim e, por acrescento, Ameena e TJ, enquanto Phil tem os
filhos casados e os netos. Calculo que em breve passem a ser também parte
da minha família.
– Isso é uma boa pergunta – digo. – Acho que me parece muito repentino.
– Talvez, mas já têm cinquenta e muitos. Não faz grande sentido
esperarem.
– Vais comigo, certo? Mesmo que... – falha-me a voz –, mesmo que
tenhas de vir da Virgínia?
Ameena passa-me a ponta do pincel pelo nariz.
– Claro que sim. Não perderia isso por nada.
*
Em casa: luzes acesas, podcast bem alto. Verifico todas as divisões, para
me assegurar de que estou sozinha. Não é que tenha medo de que alguém
tenha forçado a entrada e esteja escondido atrás de uma porta, à espera para
me assassinar, é só que... bem, ter a certeza não faz mal nenhum.
Isto é normal. Toda a gente que vive sozinha deve fazer isto.
Depois de ter determinado que a casa está livre de assassinos, instalo-me
no resto da minha rotina noturna: pijama, portátil, sofá. Tenho um
escritório, mas prefiro a sala de estar. O televisor faz com que a divisão
pareça um pouco menos solitária, mesmo quando está desligado.
Provavelmente vou passar algum tempo com o meu novo vibrador daqui a
bocado, mais não seja porque a conversa com Ameena me fez aperceber de
que já se passou quase um ano desde que tive relações sexuais. A solo não é
bem a mesma coisa, mas tenho uma rotina. Sabe Deus que tive mais do que
tempo suficiente para a aperfeiçoar.
É quando abro o fecho-éclair da pasta do portátil que a realidade me cai
em cima – no final da próxima semana, talvez já não tenha um emprego
pelo qual me mate a trabalhar.
Em vez de abrir o email do trabalho, entro na conta bancária. Tenho
poupanças suficientes para uns meses e calculo que receberia subsídio de
desemprego. Seja lá como for que isso funcione – não sei ao certo. Parece
ser algo que eu deveria saber, mas este é o único emprego que alguma vez
tive. Será que o governo simplesmente nos... dá dinheiro? Meu Deus, sou
uma millenial desastrosa. Abro os arquivos do Puget Sounds, convencida de
que a dada altura fizemos um programa acerca disto, mas a nossa função de
busca está dolorosamente obsoleta e frustro-me antes de encontrar a
informação que procurava.
A paragem seguinte é o site de empregos de comunicação social pública
de que alguns dos meus colegas da PPR têm falado. Há um emprego de
produtor no Alasca. Um de repórter no Colorado. Um de redator-chefe em
St. Louis.
Nada em todo o estado de Washington.
Eu sabia que era difícil encontrar emprego na rádio pública, mas não
tinha noção de que fosse tão mau. Levo uma mão ao peito, a tentar acalmar
a respiração cada vez mais assustada. Se não estiver na rádio pública, não
faço ideia do que farei. Isto é tudo o que conheço, tudo o que alguma vez
conheci. E, claro, algumas das competências que tenho serão transferíveis,
mas não estou preparada para deixar esta área. Adoro demasiado a rádio
para abrir mão dela.
Tenho de convencer Dominic a fazer este programa comigo. E, para o
convencer, tenho de o conhecer, coisa que até agora não fiz. Por sorte, ser
produtora tornou-me ótima a fazer investigação bisbilhotando nas redes
sociais.
O seu perfil do Facebook é público. Abençoada esta geração e a nossa
falta de limites. Mas pensando bem... merda, será que sou de uma geração
diferente da dele? Apesar de o perfil dele não revelar o ano de nascimento,
diz que passou diretamente da licenciatura para o mestrado. Isso quer dizer
que terá vinte e três ou vinte e quatro anos. Quanto a mim, sou uma
millenial sem tirar nem pôr, mas ele está entre duas gerações: a minha e a
Geração Z.
Estranhamente, não temos quaisquer amigos em comum, o que significa
que ainda não deverá ter adicionado ninguém da estação. Aqui está ele, o
meu potencial ex-namorado, com cortes de cabelo infelizes, acne
adolescente e a posar para fotografias familiares embaraçosas. O seu rosto
aqui parece mais suave, embora mantenha aquele maxilar duro. Eu tenho
andado tão concentrada em sentir-me irritada por causa de ele que nem
assimilei que é giro. Sobretudo depois de ter passado aquela fase dos cortes
de cabelo infelizes. Um barbeiro que merecia ter sido despedido.
Eu podia ter andado com um tipo assim, penso, a demorar-me numa
fotografia dele a fazer uma apresentação em frente à turma, com os braços
esticados nalguma espécie de gesto enfático. A fotografia foi postada por
outra pessoa, com a legenda: Uma apresentação típica do Dominic Yun: por
favor, manter os braços e as pernas dentro do veículo. Isso faz-me sorrir.
Devia ser uma piada privada.
Nunca andei com alguém mais novo; todos os namorados que tive eram
da minha idade ou ligeiramente mais velhos. E apesar de não irmos
realmente namorar, não posso negar que me causa uma certa emoção, por
baixo da angústia geracional.
Continuo a descer, acabando numa série de fotografias – montes delas –
de Dominic com uma ruiva, algumas ainda de junho passado, na sua
cerimónia de fim de curso na Northwestern. Mia Dabrowski, diz a
identificação da fotografia. É extremamente bonita, com sardas no nariz e
uma queda por cores vivas. Vejo-os a rejuvenescer. Os dois numa festa, na
praia, no barco de alguém. Na maior parte do tempo, estão rodeados por um
grupo de amigos, mas por vezes estão sozinhos, de bochechas encostadas e
a posar para a câmara. Ali estão eles na cerimónia do fim da licenciatura,
com capas a condizer. Ficam adoráveis juntos. Clico no nome dela, mas tem
um perfil privado.
O estatuto de relação dele é solteiro, pelo que deduzo que deve ter sido
um fim recente. Pergunto-me se isso terá algo que ver com a relutância de
Dominic quanto a fazer o programa ou com a sua mudança para Seattle.
Realmente não sei nada acerca deste tipo, e de súbito sinto uma pontada
invulgar: quero conhecê-lo. Quero conhecer este tipo que tinha uma vida
inteira no Illinois, que não só sorria mas se via positivamente feliz em todas
a fotografias, e que ainda não se fez amigo no Facebook de nenhum dos
seus colegas.
Será que tem amigos na PPR? Não sei se alguma vez o vi a ir beber um
copo com alguém depois do trabalho. Uma vez Jason almoçou com ele,
logo nas primeiras semanas, mas depois passaram-no para as tardes. Só o
tenho visto sair da estação de uma maneira: sozinho.
Estou a subir de novo para o início das fotografias quando se dá uma
tragédia.
A minha mão escorrega pelo portátil e, sem querer, carrego no botão de
«gosto». Numa fotografia antiquíssima onde ele aparece com a ex-
namorada.
A única solução racional é autoimolar-me, juntamente com o portátil.
– Merda – exclamo em voz alta, atirando o computador para cima da
almofada do sofá. – Merda, merda, merda.
Ponho-me de pé num pulo e sacudo as mãos traiçoeiras. Ele vai saber que
eu andei a bisbilhotar-lhe o perfil. E isso pode trazer-lhe de novo à tona
sentimentos estranhos acerca da ex-namorada, e depois nunca há de querer
apresentar o programa comigo, e foda-se, foda-se, como é possível ter sido
tão estúpida?
Respira fundo. Basta tirar o «gosto». Ele nem há de receber uma
notificação. Pego no portátil e dou-me conta de que, com o pânico, fechei a
janela. Por isso, tenho de encontrar a página dele outra vez e voltar a ver as
fotografias, só que já não me lembro de quando era aquela em particular e...
Aparece-me uma nova notificação:
*
1 novo pedido de amizade: Dominic Yun.
6
Nenhum dos ouvintes irá ver-me, mas decido vestir-me com cuidado no
dia da estreia. Uso um minivestido cinzento estruturado, colãs estampados e
umas sandálias Mary Jane lilases de salto alto que encontrei numa venda de
garagem a que fui com Ameena no ano passado. Apanho o cabelo grosso no
rabo de cavalo do costume, mas aliso a franja, deixando-a suave e lustrosa.
Ainda penso usar lentes de contacto, mas já não o faço há séculos e estou
tão afeiçoada aos meus óculos de armação de tartaruga que não quero
arriscar a mais pequena alteração da minha visão.
Tens um rosto bom para a rádio, dizia-me o meu pai a sorrir. Uma bela
piada de pai. Meu Deus, ainda sinto a falta dessas.
A manhã arrasta-se. O nível de angústia é equiparável ao de fazer uma
desvitalização dentária seguida de uma citologia. Ao almoço, o meu
estômago só aguenta um terço de uma sanduíche da loja no piso térreo,
enquanto Ruthie revê o resumo a meu lado. Acabo com mostarda na saia e
passo quinze minutos na casa de banho a esfregar a nódoa.
Kent vem ter connosco enquanto ensaiamos a introdução.
– O meu casal preferido – diz ele, a apontar sem grande subtileza para a
gravata com cupidos que escolheu em nossa honra. – Ou ex-casal preferido.
Vocês vão ser o máximo. Estamos todos mesmo entusiasmados com isto.
No entanto, por baixo daquelas palavras, eu ouço outra coisa:
Não façam asneira.
Ruthie imprime os guiões mais atualizados. Este primeiro episódio não
tem convidado. Sou só eu e Dominic, a contar as nossas histórias falsas e a
esperar que comecem a cair chamadas.
No corredor a caminho do estúdio, tropeço no tapete.
– Estás bem? – pergunta-me ele, estendendo a mão para me agarrar o
cotovelo e ajudar a recuperar o equilíbrio. O meu vestido é de manga curta
e sinto os seus dedos quentes na minha pele.
Bem, agora não estou.
– Five by five – consigo dizer.
Ruthie entra no estúdio e pousa um copo de água à minha frente e outro
em frente a Dominic.
– Água para os meus apresentadores preferidos – cantarola.
– Obrigada. Eu ter-me-ia esquecido. – Embora eu o tenha feito montes de
vezes por Paloma, não quero que Ruthie sinta que precisa de nos servir. –
Como é que pareces tão calma? Voltei a pôr desodorizante há meia hora e
continuo a suar horrores.
– Sou a vossa produtora – diz ela. – Compete-me manter a calma.
E tem razão – seria muito pior se ela também estivesse a passar-se.
Pergunto-me quão pior seria se ela soubesse que nunca namorámos.
Por sorte, os nervos não me deixam espaço para a culpa. Pelo menos hoje
não. Pelo menos não quando estou a cinco minutos de concretizar o sonho
de toda a vida. Ruthie desaparece para o estúdio adjacente e eu e Dominic
ficamos de um lado da mesa, com os copos de água à nossa frente e as
cadeiras giratórias, e pomos os auscultadores.
O sinal A GRAVAR acende-se.
– Já a seguir, a estreia do nosso novíssimo programa, Fala Com o Ex –
diz Jason Burns. – Mas, primeiro, as notícias da NPR.
Está a acontecer. Vamos mesmo fazer isto.
O meu próprio programa.
– Tenho um desodorizante fortíssimo no meu saco de ginástica – diz
Dominic. – Posso pedir à Ruthie que vá buscá-lo.
Lanço-lhe um olhar horrorizado. Estamos num pequeno espaço fechado.
Morro, se ele acha que eu cheiro mal. E se ficar com manchas de suor,
morro mesmo.
– Preciso?
– Oh... merda. Não. Não. Parecia era que estavas a stressar por causa
disso, por isso lembrei-me de oferecer. Tens uns cheiro normal. Tipo...
cítrico. É agradável.
É agradável. Ele não disse cheiras bem. Uma distinção importante.
– Obrigada – digo com alguma hesitação, aceitando o elogio pelo meu
champô da Burt’s Bees.
A perna dele abana debaixo da mesa. Hoje está de calças de ganga escura.
– E aí o que é que se passa? – pergunto, a apontar.
Volto a lembrar-me da sua confissão de ter medo do palco. Ele disse que
estaria bem na rádio, sem uma audiência visível. Meu Deus, espero bem
que assim seja.
– Ah. Sou eu a tentar disfarçar o nervosismo. Como é que estou a sair-
me?
– Terrivelmente mal – respondo. – Tal como eu.
O canto da sua boca agita-se. Como se não quisesse que eu soubesse que
algo lhe parece divertido, ou como se um riso a sério pudesse dar-lhe cabo
da fachada estoica.
– Então há alguma coisa que fazemos bem juntos – comenta. Bebe um
gole de água e o meu coração acelera por uma razão totalmente diferente.
Concentra-te. Folheio a minha pilha de papéis. Como conseguiria Paloma
fazer com que tudo parecesse tão simples? A nossa introdução
coreografada, as histórias fictícias, os intervalos para anúncios... Mas é
impossível prepararmo-nos para tudo. E se alguém liga com uma pergunta
que não conste das minhas notas, será que vou ter resposta?
OQFUHBM?
Ruthie fala pelos nossos auscultadores.
– Trinta segundos – diz-nos, um pouco ofegante.
Cruzo e descruzo as pernas. Raspo a nódoa de mostarda. Tento beber
água e escorre-me um bocado pelo queixo.
– Olha – diz Dominic, mesmo antes da contagem decrescente a partir de
dez. Por fim, a sua perna deixa de abanar e ele encosta o joelho ao meu. –
Shay. É só como se fôssemos nós os dois a ter uma conversa.
– Certo. Certo. Podemos fazer isso.
O seu olhar fixa o meu.
– E estou mesmo contente por me teres convencido a fazê-lo.
Depois Ruthie aponta para nós.
E entramos em direto.
Fala Com o Ex, Episódio 1: Porque é que Acabámos
Transcrição
@amandaosullivan
Quem mais anda obcecado com #FalaComoEx? O Dominic e a Shay são tão fofos que não
se aguenta. Se algum dos meus ex fosse como o Dom, eu nunca o teria largado!
@elttaes_amadeus
adoro tanto @goldsteinshayyy e @dominicyun em #FalaComoEx, será podem voltar pf???
#ConversadeEx #shayminic
@MsMollieRae17
posso só dizer que é altamente ouvir alguém com um voz A SÉRIO na NPR?
#FalaComoEx
@most_dolphinately_
O Dominic Yun parece um otário pomposo em #FalaComoEx
@photography_by_shaunahauna
OMG acabei agora de ouvir #FalaComoEx e PRECISO do 2º episódio! mais alguém a
torcer para que a shay e o dominic voltem a andar?
@StanleyPowellPhDwewel
Mas o que é que se passa com a NPR? Quem me dera poder reaver um donativo de uma
angariação de fundos #FalaComoEx #naoobrigado
@itsmenikkimartinez
A voz dele é sexy. Já VIRAM a foto dele? Olhem, @GiracosdaNPR, espreitem.
#FalaComoEx #vozdesonho #desejo
@_dontquotemeonthis
@itsmenikkimartinez @GiracosdaNPR acrescentem @goldsteinshayyy também
12
– Não tinhas de vir – diz ele quando o encontro debruçado sobre o balcão
do bar, a provar exatamente porque é que eu tinha de fazer isto. Há uns
quantos copos de shots alinhados a seu lado. Tem uma bochecha colada ao
balcão e não quero nem pensar em como a sua cara vai estar pegajosa
quando ele se sentar. Meu Deus, é estranho vê-lo assim fora do trabalho, é
como ver o diretor da nossa escola no supermercado com um carrinho cheio
de refeições prontas.
– Talvez não – respondo, ao mesmo tempo que evito pisar uma poça de
cerveja. – Mas como não posso apresentar o programa sozinha se tu caíres
numa vala a caminho de casa, aqui estou.
Ele não podia ter escolhido um sítio mais manhoso para vir afogar as
mágoas, se é que foi isso que ele veio fazer. Se calhar estava só a ser jovem
e enérgico. O bar é pequeno e escuro e tem Nickelback a tocar, o que, só
por si, deveria ser uma razão para o fecharem. Para além disso, todo o
ambiente parece húmido.
– Shay. – Todas as suas feições formam uma expressão de concentração
absoluta. Com uma mão, afaga o balcão, com a orelha tão próxima que é
capaz de contrair uma DST. – Shay. Chiu. Acho que ouço o mar.
– Claro que sim, amigo.
Dou-lhe uma palmadinha nas costas e a minha intenção é tranquilizá-lo,
talvez até com alguma condescendência. É raro sentir alguma espécie de
autoridade junto de Dominic e não posso dizer que não esteja a gostar. Mas
sinto os seus ombros a contrair-se debaixo da camisa, a firmeza dos seus
músculos. Como está quente.
Baixo a mão.
– Cuidado. Posso ter piolhos. – E ri-se.
A minha cabeça começa a latejar. Devia ter bebido só um copo de vinho,
mas pelo menos não estou tão perdida quanto ele. Se tivesse aceitado ir
tomar um copo com ele, estaríamos os dois tão bezanos?
– Peço imensa desculpa – digo à emprega do bar, que tem os braços
cheios de tatuagens e um ar de quem provavelmente conseguiria levantar
não um, mas dois Dominics. – Quando vim buscá-lo não me apercebi de
que ia ter de tomar conta de um miúdo de seis anos.
– Não se preocupe. Já vi bem pior.
Enche um copo de água e pousa-o à frente dele.
– Bebe – ordeno-lhe e, embora resmungue, ele dá uns quantos goles. –
Comeste alguma coisa? – Interpreto o seu encolher de ombros com um não.
– Servem comida? – pergunto à empregada.
– Só batatas fritas e bolinhos de batata – diz ela, pelo que peço uma dose
de cada.
Como não quero ir embora até ele ter alguma comida no estômago,
empoleiro-me no banco demasiado alto ao lado dele. Os nossos cestos de
fritos chegam, juntamente com um frasco de ketchup que tem lá dentro
apenas o suficiente para que eu me ponha a fazer o que parece ser um gesto
obsceno quando o bato contra a palma da mão.
– Ena. Não perdes tempo – diz Dominic.
Sacudo outra vez a embalagem até que o ketchup sai.
Apesar de o bar dar a impressão de que não se pode confiar em nada que
saia da cozinha, a comida está estaladiça e com a quantidade perfeita de sal.
Estou a comer bolinhos de batata com a minha antiga némesis num antro às
onze da noite de uma segunda-feira. A minha vida deixou de fazer sentido.
Depois de ele ter comido o suficiente para parar de vacilar no lugar,
parece-me que será seguro irmos embora. No entanto, tirar a carteira do
bolso de trás das calças dele é difícil, pelo que pego na minha.
– Depois pago-te – diz ele.
– Oh, eu sei que pagas.
A empregada devolve-me o cartão de crédito.
– Tenham uma boa noite, vocês os dois.
Os dois. Não é uma insinuação de que sejamos um casal, apenas indica
que somos dois seres humanos a deixar um bar ao mesmo tempo.
Poderá ser segunda-feira, mas isso não para o Capitol Hill. Hipsters
juntam-se em frente a bares, deixando o ar frio de abril carregado de fumo
de cigarro e erva. Dominic não está a usar um casaco, apenas a camisa
cinzento-escura que usou no trabalho, mas que entretanto ficou desfraldada.
Passa um braço à volta dos meus ombros e apoia-se em mim, o que, dada
a nossa diferença de alturas, deve parecer cómico. Passado um momento de
hesitação, passo o braço à volta da sua cintura para o amparar. É o mais
próximo que alguma vez estivemos – e ainda mais quando a sua camisa
sobe e, por um momento brevíssimo, os meus dedos lhe rasam a pele quente
do fundo das costas.
Retiro a mão tão repentinamente que ele tenta endireitar-se, valendo-se
mais das suas próprias pernas do que do meu metro e cinquenta e sete.
– Desculpa. Devia estar a fazer-te demasiado peso. – Dá-me uma
palmadinha no ombro do casaco. – És minúscula.
– O mínimo que podes fazer é tentar não me insultar, depois de te ter
salvado de Nickelback e Jägermeister.
– Não era um insulto. – Ele fita-me com um olhar tão impossível de
decifrar como sempre. Não me sinto apenas minúscula, mas como se
estivesse a fazer uma apresentação numa reunião de seniores a usar apenas
umas tachas a tapar-me os mamilos e as minhas meias favoritas de rádio
(não seria Shay Goldstein se não tivesse vários pares) com um peixe a
segurar o microfone e as palavras Ira Bass. – Quanto media o tipo mais alto
com quem já andaste?
– Não vejo que relevância isso possa ter. – E, não obstante, enquanto
começo a pensar no meu historial de encontros, a minha mente embotada
pelo vinho estaca na memória de quando estivemos na copa da estação. Na
forma como ele se impunha sobre mim, impedindo-me de sair. A encostar o
copo de água à minha cara. Na forma como me senti pequena mas segura,
para além de uma data de outras sensações que nunca dei ao meu corpo
permissão para sentir. Sensações que, definitivamente, não estou a ter
agora.
Suponho que não tenha problema fazer-lhe a vontade.
– Há uns anos andei com um rapaz que media um metro e oitenta e cinco.
– Tonta – diz ele, e dá-me um piparote no nariz. Vai morrer de vergonha
amanhã, quando lhe esfregar tudo isto na cara. – Devias ter respondido que
o mais alto fui eu. Onde é que está o carro?
– Como ia a meio de um copo de vinho quando começaste a mandar-me
mensagens, apanhei um Lyft.
Pego no telemóvel para pedir outro e depois encaminhamo-nos para um
banco virado para a rua. Ele deixa-se cair no banco a meu lado e encosta a
cabeça ao meu ombro. Com a sua falta de controlo dos membros, parece
uma daquelas criaturas de balões infláveis nos concessionários automóveis.
Só que mais pesado. E a cheirar um bocadinho a álcool – bem menos do
que eu acharia que aconteceria depois de passar umas horas naquele bar – e
um bocadinho a suor, mas sobretudo a Dominic. Algo como madeira e
limpo.
– Porque é que bebeste tanto? – pergunto.
– Issémaboahistória – diz ele como se fosse só uma palavra longa e
bêbeda. – Já estava tocado quando saí do Mahoney’s. Tive de afogar as
mágoas depois de me contares uma treta sobre um cão a fingir só para não
teres de passar tempo comigo.
– Ele existe! Chama-se Steve! Tenho fotografias!
Preparo-me para pegar outra vez no telemóvel, mas Dominic limita-se a
levantar uma mão, a rir.
– Eu sei. Eu sei. Depois cheguei a casa e tu estavas a usar um fato sexy do
Gritty e acho que ainda não tinha acabado de celebrar o programa. E sabes
como é. Ser jovem e enérgico e isso tudo. – Sacode uma mão. – E depois
comecei a pensar que não havia ninguém que pudesse convidar para sair
comigo. Nem sequer gosto assim tanto de sair à noite. Não o suficiente para
me habituar a fazê-lo sozinho. Mas lá estava eu. A beber sozinho num bar
numa segunda à noite, e achei que beber mais me ajudaria a sentir-me
menos na merda por causa disso.
Ao início, nem consigo formular palavras. Este não é o Dominic que
gozava comigo por causa do Puget Sounds, nem sequer o Dominic que me
deu trufas à boca às escuras, cujos dentes rasaram as pontas dos meus
dedos. Tento imaginar uma versão dele, deitado num sofá, de calças de fato
de treino, a tentar escolher algo para ver na Netflix sem encontrar nada que
lhe apetecesse e a trocar mensagens comigo porque não tinha mais ninguém
com quem o fazer. A sair sozinho porque não tinha mais ninguém para
convidar. Cresceu aqui, por isso ainda fico mais curiosa em relação ao seu
passado. Ele contou-me que é o mais novo de cinco irmãos e eu nem sei
onde é que eles vivem, ou se são próximos. Não sei que Dominic é este e
isso deixa-me tanto hesitante quanto curiosa.
A sua confissão também me faz ficar séria e leva-me a partilhar um dos
meus segredos.
– Eu às vezes também me sinto sozinha – digo em voz baixa. –
Basicamente só tenho uma amiga, que é capaz de ir arranjar um emprego do
outro lado do país.
– Lamento – diz ele, e parece sincero. Depois anima-se e endireita a
postura. – Eu vou ser teu amigo!
– Isso parece o álcool a falar.
– Não somos amigos? – Há ali uma estranha vulnerabilidade. Até parece
ficar magoado por eu não nos considerar amigos.
– Não, não – apresso-me a dizer. Seremos amigos? – Podemos ser
amigos. Somos amigos.
Ele volta a encostar a cabeça ao meu ombro e eu obrigo-me a ficar muito,
muito quieta.
– Bom.
O carro da Lyft aparece então, para meu grande alívio, e lá consigo enfiar
aquele gigante num Prius sem me magoar com o esforço.
Depois de entrarmos, o condutor confirma a morada antes de retomar
uma discussão acalorada sobre futebol com quem quer que esteja a falar
através do kit mãos livres. A minha cabeça lateja tanto que é um martelar
enlouquecedor e insistente. Solto uma expiração longa e descontraio-me
contra o assento, aproveitando para fechar os olhos por um instante.
– Cheiras bem – diz Dominic, ao que os meus olhos se abrem de supetão.
– Oh... eu, hã, tomei um banho de imersão há bocado. Deve ser do gel de
espuma de alfazema.
– Quando estávamos a trocar mensagens?
– Hã-hã – consigo dizer. Pois, vai ser isso a impedir-me de dormir esta
noite. – Uma típica noite tresloucada de segunda-feira. A par e passo com
beber sozinho.
– Já te agradeci?
– Não.
– Obrigado – diz num tom enfático, parecendo-se mais consigo mesmo,
pelo menos com a parte de si que é genuína. A parte que tem espreitado
umas quantas vezes desde que começámos toda esta charada. – A sério. Sei
que teria sido capaz de chegar a casa sozinho, mas provavelmente vou
sentir-me bastante menos terrível amanhã, graças a ti.
– Não tens de quê. Fui eu que te encorajei a sair, por isso... Senti-me
culpada.
– Talvez, mas fui eu que decidi pedir Jägerbombs.
Quando a luz de um candeeiro lhe incide no rosto, salienta-lhe o contorno
do maxilar, a curva da boca. É uma grosseria, que tenha tão bom aspeto
mesmo com os copos. Mesmo com – sobretudo com – o cabelo
desgrenhado. Gosto do Dominic desalinhado, do Dominic literalmente
menos aprumado do que no trabalho.
– Espero não me ter intrometido quando estavas a tentar conseguir o
número de alguém.
Merda. Detesto-me assim que o digo. Porquê porquê porquê porquê
porquê.
Ele arqueia uma sobrancelha.
– Não. Tem sido um longo período de seca.
– A tua última relação acabou há cerca de um ano? – pergunto, e ele
assente com a cabeça. – Para mim passou-se mais ou menos o mesmo
tempo.
Um longo período de seca. Será que quer dizer que não foi para a cama
com ninguém desde que a sua relação acabou, ou que só não tem saído com
ninguém? Não é irrealista, claro. Se calhar ele não é do género de sexo
descomprometido. Eu tendo a apegar-me muito mais cedo do que devia,
uma lição que aprendi no início da casa dos vinte. Que é onde ele ainda
está.
– Não tens saído com ninguém? – pergunta ele.
– Estou num hiato de encontros. – Fito o chão, apercebendo-me de que,
com a pressa para sair, calcei um sapato preto e outro castanho. Jesus, por
falar em desalinhado. – Entretanto... há sempre a gaveta da diversão. Nunca
me falha e nunca quer um brunch de manhã.
– Há uma gaveta inteira?
Eu nunca mais volto a beber. Dominic vai achar que a minha mesa de
cabeceira está a abarrotar de dildos.
Olho de relance para a frente, para me assegurar de que o condutor
continua imerso no seu telefonema.
– Bem, meia gaveta. – Ainda estou tocada, certo? Ou fiquei bêbeda por
osmose perto dele. Só pode ser por isso que estou a falar assim com ele.
– Podias arranjar alguém, se quisesses. – Um revirar ocioso da cabeça na
minha direção, com as pálpebras a meia-haste. – Alguém que não fosse a
pilhas, quero dizer. És gira.
É a primeira vez que me faz um elogio direto, e não faço ideia do que isso
queira dizer. Palavras bêbedas, pensamentos sóbrios? Mesmo que isso seja
verdade, não deveria importar-me se Dominic acha que sou gira. Eu sou
gira. Ele está simplesmente a constatar um facto.
É claro que não vou dizer-lhe que arranjar não é o problema... o afugentar
depois de inevitavelmente me apaixonar mais depressa do que a outra
pessoa é que é.
– Achava que era «fixe» – digo, a tentar projetar uma calma que não
sinto. Uma distância. Uma indiferença. Sou Meryl Streep a fazer de
Margaret Thatcher! Sou Meryl Streep naquele filme com as freiras. O meu
olhar recai na sua boca, na curva do seu pescoço, no triângulo de pele
exposto pelos seus botões desapertados, e toda a reivindicação de calma
desaparece. Sou Meryl Streep em Mamma Mia! Here We Go Again.
– As duas coisas.
– E, mais uma vez, o Dominic Bêbedo é muito mais divertido do que o
Dominic Sóbrio.
– O Dominic Sóbrio quer dizer-te que também é divertido, mas está
demasiado ocupado a abanar a cabeça com um ar reprovador ao Dominic
Bêbedo.
Ainda estou a rir, com o coração ainda acelerado, quando o carro para em
frente à casa dele. O bar não ficava muito longe do seu apartamento na
baixa, mas, estranhamente, a viagem pareceu-me mais curta do que teria
julgado que fosse.
– Gosto desta área – comento enquanto saímos do carro e eu dou cinco
estrelas a Julius, o condutor. Sentir o ar fresco no rosto é um contraste bem-
vindo depois do calor do assento traseiro.
Ele encolhe os ombros.
– Não é ótima. Não tens de fingir que é. Só a escolhi por ficar perto do
trabalho.
Cada passo que damos é mais pesado que o anterior. Estou só a levá-lo à
porta. Decerto não vou ajudá-lo a entrar. Ele já parece muito menos perdido
do que estava no bar. Ainda tocado, mas perfeitamente capaz de entrar num
edifício sem que eu tema pela sua vida.
– Obrigado – diz-me quando chegamos aos degraus do seu prédio, um
edifício mais recente que parece idêntico a todos os outros desta rua. Ele
encosta-se à porta, na sua postura característica. Não sei porquê, não me
incomoda tanto como habitualmente. – Mais uma vez. De certeza que eu
teria chegado bem, mas é bom saber, acho, que... que te preocupaste.
Isso atinge-me o coração de uma forma que eu não esperava de todo.
– É claro que me preocupo. – Mudo o peso do corpo de um lado para o
outro, subo e desço a mão pela alça da mala. – Termos acabado não quer
dizer que eu tenha deixado de me preocupar. Preocupo-me com todos os
meus ex-namorados.
Isso vale-me meio sorriso. Ele gosta que eu alinhe na brincadeira. Faz um
movimento para procurar as chaves – pelo menos, é o que eu acho que ele
está a fazer, até sentir a sua mão aterrar antes no meu pulso. Juro que
acontece em câmara lenta, quando ele puxa o elástico de cabelo que tenho
aí, retesando-o contra a minha pele.
O sussurro de uma picada desaparece num instante, mas as ondas de
choque que se repetem são tremendas. Engulo em seco. Usaria elásticos a
cobrir-me os braços de cima a baixo se ele voltasse a fazer aquilo. Quando
fala, é em voz baixa.
– Gosto de te ver com o cabelo solto – diz ele, o que me leva a agarrar o
cabelo por instinto. Saí tão à pressa que nem me lembrei de o apanhar. – Sei
que o usas sempre apanhado, e gosto, mas assim... gosto mesmo muito.
– É muito crespo – digo em voz baixa, espantada por conseguir que me
saiam sons de todo. – Nunca consigo decidir se é encaracolado ou liso. É
por isso que costumo usá-lo apanhado.
A sua mão sobe até ao meu cabelo, desliza por ele e... oh. Aproximo-me
mais dele enquanto os seus dedos se perdem na minha melena
encaracolada-lisa e me afagam o couro cabeludo. Inspiro o seu odor terroso
e estonteante. Meu Deus, há tanto tempo que ninguém me toca assim,
mesmo que não conte, dado que ele é o meu coapresentador barra falso ex-
namorado barra possível amigo. E que está bêbedo. Dominic Sóbrio talvez
seja divertido, segundo ele, mas nunca faria isso.
– A mim parece-me bastante suave – diz ele, e é então que morro.
Com a mesma mão, puxa-me mais para si. Depois inclina-se e, antes que
eu tenha tempo de processar o que está a acontecer, tem a boca na minha.
E eu estou a corresponder-lhe.
A pressão dos seus lábios é firme mas curiosa, uma explosão de calor
numa noite fria de primavera. Não sei o que fazer com as mãos, ainda não,
quando isto já é uma sobrecarga sensorial. A forma maravilhosa como a
sombra da sua barba me rasa no queixo. A forma como os dedos dele
seguram madeixas do meu cabelo. Um gemido murmurado na sua garganta.
Não devíamos fazer isto, grita o meu cérebro.
Talvez só ele ouça, porque, de repente, se afasta, deixando-me
desesperada por ar, a arquejar na baixa escura. O beijo deve ter durado
menos de três segundos. Três segundos que me roubaram os ossos e me
deixaram a pairar.
A sua expressão é de horror abjeto.
– Merda. Merda. Lamento imenso. Não devia...
– Não, está... – interrompo-me, sem saber o que ia dizer. Que estava bem?
Porque definitivamente não está. Porque agora estou a perguntar-me como
seria um beijo sóbrio, o que poderia ter acontecido se eu tivesse aberto a
boca. Se ele me tivesse empurrado contra a porta da sua casa. – Quero dizer,
eu também ainda estou bastante tocada, por isso...
– Foda-se, isto é embaraçoso – diz ele, a abanar a cabeça e a passar uma
mão pela cara. Onde está gravada a palavra Erro. – É óbvio que ainda estou
bastante mais bêbedo do que julgava. Vamos só...
– Fingir que nunca aconteceu? – Solto um som que poderia ser uma
gargalhada, mas que é muito mais agudo do que aquilo que estou habituada
a ouvir. Levo as pontas dos dedos à boca, como se procurasse a memória
dos seus lábios ali.
Os ombros dele curvam-se. De alívio – é isso.
– Por favor. Lamento mesmo muito.
– Eu também – digo, porque ele não se apercebeu de que eu estava a
corresponder-lhe? Se calhar não. Se calhar é melhor assim. Se calhar eu
devia deixar o Fala Com o Ex. Parece-me tão racional como qualquer um
dos outros pensamentos que me correm pela mente. – Então é melhor eu...
Inclino a cabeça na direção da rua, acrescentando o gesto mais cromo de
todos, de apontar com os polegares.
– Certo. Pois. Obrigado. Outra vez. Depois diz-me quando te devo das
bebidas e do Lyft e...
– Não te preocupes.
– OK. Se tens a certeza. – Coça o cotovelo, incapaz de me olhar nos
olhos. Há um minuto, aquela mão estava no meu cabelo. – Queres que eu...
hã... espere aqui até o teu carro chegar?
– Não! – guincho em resposta. Sou uma personagem da Disney. Um rato.
– Estou bem. Obrigada.
– Bem... está bem – diz ele, a procurar as chaves antes de as pôr na
fechadura. – Até amanhã?
Se entretanto não me atirar ao Puget Sound.
– Até amanhã – ecoo e, quando a porta dele se fecha, deixo-me deslizar
até ao chão e juro que nunca mais na vida volto a beber.
16
Franzo o sobrolho. Dom. O diminutivo de que ele não gosta, mas sobre o
qual não diz nada a Kent. Também não adoro que só me tenha perguntado a
mim, como se eu fosse responsável por Dominic. Como se eu continuasse a
ser só uma produtora e não alguém com as mesmas responsabilidades que
Dominic.
Só uma produtora. Preciso de deixar de dizer isso, caso contrário sou tão
má como qualquer outra pessoa que dê crédito à hierarquia disparatada da
rádio pública, que põe os apresentadores num pedestal acima de todos os
outros. A Ruthie não é só uma produtora. É... bem, é Ruthie.
Mostro-lhes a mensagem.
– O Kent quer falar connosco amanhã.
– Será acerca do ouvinte? – pergunta Dominic.
– Deve ser. – E, como Ruthie não tem qualquer razão para achar que
poderíamos estar em pânico perante a possibilidade de alguém descobrir a
verdade, acrescento: – Deve querer só assegurar-se de que não ficámos
demasiado abalados ou isso.
Os olhos de Dominic encontram os meus por um instante, por cima da
cabeça de Ruthie. É estranho estar do mesmo lado que ele, na mesma
equipa. Ambos queremos que isto corra bem. Ambos queremos não ter
arruinado o programa.
– É melhor ir andando – diz ele. – Hoje janto com os meus pais.
Quero escrutinar-lhe o tom de voz, perceber como é ao certo a sua relação
com os pais. Mas ele di-lo num tom descontraído e o seu rosto também não
revela nada. Despedimo-nos e ele paga a sua parte, após o que o vejo a sair
do bar, com a pasta a tiracolo a bater-lhe na anca.
– Um bocado lixado, isso do Kent te mandar uma mensagem a ti e não ao
Dominic – comenta Ruthie.
– Não é? – pergunto, grata por poder desviar os olhos de Dominic. Depois
de ele desaparecer, volto a poder respirar.
Ruthie percebe. Claro que percebe.
– É quase como se o Dominic tivesse pénis e tu não. Quero dizer...
desculpa. Eu não devia dizer isso.
– Não te enganas. Às vezes o Kent parece ter os seus favoritos e muitos
deles são gajos – digo, encolhendo os ombros, como se o facto de mais
alguém ter reparado o validasse.
– Mas está a correr bem? O programa? Tirando o John de South Lake
Union.
Se ignorar o meu coapresentador, sim.
– Está a correr surpreendentemente bem. Adoro estar no ar. Depois de ter
ultrapassado a coisa da voz, passou a parecer-me natural. Parece estranho
dizer que adoro falar, porque provavelmente isso não é aparente para quem
acabe de me conhecer, mas... – Interrompo-me, a tentar perceber como hei
de pôr isto em palavras. – Gosto de ter o controlo da conversa e de
estabelecer ligações com os ouvintes, de ouvir as suas histórias. Isso tem
qualquer coisa de incrível. Para além disso, o frasco do mestrado deste mês
já tem quase cinquenta dólares e não posso dizer que não adoro limpar a
conta bancária do Dominic. – Faço uma pausa, a perguntar-me se estarei
preparada para lhe contar a próxima parte. – Também tive uma ideia. Para
um programa sobre perda.
Explico-a a Ruthie. Eu e a minha mãe falámos disso ao telefone ontem à
noite e ela aceitou ir ao programa desde que eu estivesse lá ao lado dela. Eu
disse-lhe que não havia lugar onde eu mais quisesse estar que não fosse a
ouvir a sua história.
– Sim – diz Ruthie automaticamente. – Eu gosto. É melhor verificarmos
com o Kent, porque é um bocado diferente do que temos feito, mas já está a
partir-me o coração e a remendá-lo de novo.
– Já te disse que és a minha produtora preferida?
– Não vezes suficientes – replica ela. – Nem acredito que esteja a
produzir o meu próprio programa, para ser sincera. Não achei que fosse
estar a fazer isto, aos vinte e cinco anos. – Ela estica o braço por cima da
pequena mesa e põe a mão por cima da minha. – A sério, Shay. Obrigada. O
Kent podia ter-me mandado embora e sei que tu lutaste por mim.
– Não foi uma luta – digo. – Nunca houve dúvidas em relação a isso. Só
fazia o programa se te tivesse a produzi-lo.
– Para, que vou mesmo chorar! – Bebe mais um gole da sua bebida e faz
sinal ao barman para lhe servir outra.
Entretanto, estou a dar voltas à cabeça, a tentar lembrar-me se alguma vez
tínhamos passado algum tempo só as duas.
Nunca o fizemos.
– Como é que vieste parar à rádio? – pergunto, subitamente curiosa.
– Oh, está na altura de contar histórias? – Ruthie cruza uma perna por
cima da outra, a fingir afetação. – Está bem. Estudei marketing e trabalhei
na parte comercial da KZYO durante uns meses. Depois houve um verão
em que todos os produtores foram de férias ao mesmo tempo, por isso toda
a gente fazia falta e eu meti mãos à obra e ajudei-os. E fiz um bom trabalho.
E o mais importante foi que adorei. Gostava de puxar cordelinhos e compor
o programa, sabes? Por isso, quando abriu uma vaga, consegui trocar. Havia
sempre montes de vagas a abrir... é a vantagem da rádio comercial.
– Não fazia ideia – digo.
– E tive mesmo sorte com este trabalho. O Kent gostou que eu tivesse
experiência na rádio comercial e eu estava mortinha por trabalhar nalgum
sítio onde não fosse torturada sem cessar por musiquinhas publicitárias a
oficinas de reparações e fábricas de picles. – Estremece. – Nunca comeria
um picle Nalley.
– Esse refrão é o pior. Crocantes, estaladiços e deliciosos...
– Picles Nalley! – gritamos as duas, antes de desatarmos a rir.
– Mas, tirando isso – diz ela quando recuperamos –, a estação comercial
dava muito tempo de antena a coisas mais ou menos sensacionalistas. Que
alguém tivesse um acidente de viação era uma grande notícia e isso era
sempre muito perturbador. A rádio pública é muito melhor em investigações
de fundo e a falar das questões de uma forma mais equilibrada.
«Eu sei que montes de pessoas vão para a rádio pública a pensar que vão
trabalhar algum tempo como produtores até serem repórteres ou locutores,
mas eu adoro ser produtora. Sou feliz aqui. Posso fazer rádio fixe todos os
dias e faço o que adoro, com gente que adoro. Talvez um dia queira fazer
outra coisa, mas, por agora, sinto que é isto que devo ser.»
– Isso é mesmo à maneira – digo-lhe. – Quando comecei a trabalhar como
produtora-júnior da Paloma, o meu produtor-sénior disse-me que tínhamos
de fazer tudo o que a Paloma quisesse, assegurar-nos de que ela tinha a sua
kombucha e as suas sementes de chia, de que o estúdio não estava
demasiado quente ou demasiado frio, e fiquei tipo... a sério? Somos
colegas. Não escravos. Eu sei que a Paloma me respeitava, mas foi nisso
que me tornei.
– Nunca me fizeste sentir assim. Para o caso de estares preocupada.
– Ainda bem. Se alguma vez te disser que preciso da kombucha
exatamente a seis graus, por favor manda-me calar.
Ruthie inclina o copo para mim.
– Fica registado.
Continuamos a falar do trabalho até a conversa se tornar mais pessoal.
Ruthie conta-me que saiu algumas vezes com um tipo chamado Marco e
que é capaz de estar preparada para tornar a relação oficial. Eu falo-lhe da
minha mãe e do casamento iminente.
Durante todo esse tempo, a verdade vai dando voltas dentro da minha
cabeça.
Ela merece saber.
E, no entanto, o meu desejo de autopreservação sai a ganhar.
– Porque é que não fazemos isto mais vezes? – pergunta ela quando nos
damos conta de que estamos aqui sentadas há duas horas sem olharmos para
os telemóveis.
– Devíamos fazer – respondo, enquanto tento ignorar a culpa amarga que
me sobe pela garganta. – Vamos fazer.
Fala Com o Ex, Episódio 5: Treinador de Fantasmas
Transcrição
A primeira coisa que sinto quando acordo é calor. A luz do sol entra no
quarto e está um tipo muito alto e muito hirsuto a meu lado. Tem um braço
debaixo da almofada, o outro esticado na cama entre nós. E meu deus, como
está giro. Eu sempre tive um fraco por sonolência matinal masculina. Ficam
tão suaves, tão inocentes, de uma forma que raramente se mostram na vida
real.
O Steve está aos pés da cama, a gemer baixinho para ser passeado, como
se também não quisesse acordar Dominic. A cama range quando me levanto
e Dominic agita-se.
– Desculpa, acordei-te? – pergunto.
– Não, não – diz ele, com os olhos ainda fechados.
Não posso deixar de sorrir.
– Podes continuar a dormir, se quiseres. Eu vou passear o Steve e tomar
um duche.
– Vou levantar-me – diz ele, já a virar-se, com a cara esmagada contra a
almofada.
Depois de eu levar o Steve a passear, Dominic toma um duche no piso
térreo e eu no primeiro andar. Visto algo muito menos sofisticado do que
aquilo que costumo usar no trabalho: umas leggings pretas, uma T-shirt
estampada, uma camisola com capuz. Ele apresenta-se também com um
estilo atlético-casual, de calças de ganga, uma camisola da Northwestern – a
sério, mas quanta roupa universitária é que uma pessoa pode ter? – e um
boné dos Mariners.
A aplicação do tempo prevê chuviscos matinais e sol à tarde, pelo que
decidimos ir primeiro à caça de velharias e caminhar depois. Passamos a
manhã num mercado de produtores locais, a deitar a mão a bolinhos e fruta
fresca. Talvez Kent tivesse razão quanto a criarmos laços, porque isto
parece realmente algo que eu faria com um namorado. Levamos o Steve
connosco e ele reage a todos os desconhecidos como se quisesse que o
levassem para casa.
– Steve, onde está a tua lealdade? – pergunto, a fingir-me ofendida.
Depois de estarmos adequadamente cheios de hidratos de carbono,
metemo-nos no meu carro para procurar no mapa as lojas de antiguidades
que Dominic quer visitar.
– Toma – digo-lhe, passando-lhe o meu telemóvel enquanto coloco o
Steve na sua transportadora. – Procura os sítios onde queres ir.
Quando me sento ao volante, ele está a olhar para o meu telemóvel e a
sorrir.
– Estou a ver que tens andado a ouvir um certo podcast sobre o sistema
judicial.
Tento apanhar o telemóvel, mas ele mantém-no longe do meu alcance.
– Era só... pesquisa. Sabes. Tinha de ficar a saber mais sobre ti.
– Hã-hã. – Ele continua a descer na lista, com um sorriso trocista. – Então
porque é que diz aqui que ouviste... os doze episódios mais recentes?
– Eu e o Steve damos muitos passeios longos – insisto, e ele faz o resto da
viagem a sorrir.
Estou mais interessada em observar Dominic numa loja de antiguidades
dos que nas antiguidades propriamente ditas. É como se ele soubesse
automaticamente onde ir, apesar de nunca ter estado ali. Sigo-o até um
corredor cheio de utensílios de cozinha.
Ele desencanta uma frigideira de ferro fundido e inspeciona-a.
– Uma Griswold número sete. Boa. – Ao ver a minha expressão perplexa,
fica envergonhado. – É um vício. Devo ter umas vinte destas no meu
apartamento.
– E cozinhas com todas elas?
– Primeiro, restauro-as – diz ele. – É preciso tirar toda a ferrugem com
um pouco de palha-d’aço, antes de as temperar.
– Temperar? Tipo... acrescentas-lhes orégãos, alecrim ou quê?
– Não é dar tempero, vem de têmpera. Esfrega-se o material com óleo e
depois deixa-se num forno quente durante cerca de uma hora e, depois
disso, fica pronto para ser usado na cozinha.
– Ena – digo, genuinamente impressionada. – Eu e a Ameena às vezes
vamos a vendas de garagem, mas sobretudo para comprar roupas.
– Ai sim? – Um dos cantos da sua boca curva-se para cima enquanto ele
vai passando tachos e panelas em revista. Ajoelho-me a seu lado, para
tentar ajudar, embora não faça ideia do que é que procuro. – Gosto de como
te vestes.
A minha cara aquece mais do que aquela frigideira deveria ser capaz.
– Achava que não eras fã da T-shirt do taco.
– Oh, essa devias queimar, não faças confusões. Estava a falar do que
usas para trabalhar. – E mergulha noutra pilha, escondendo o rosto.
– Oh. Hã... obrigada – digo eu e depois, numa tentativa de mudar de
assunto, pergunto: – Mostras-me de que estamos à procura?
E assim tem início a minha aprendizagem no mundo do ferro fundido.
Dominic está bastante satisfeito com o seu saque: aquela Griswold
número sete e uma Wagner número cinco. Depois de um almoço rápido
num café, começamos a nossa caminhada. Por sorte, é uma caminhada fácil,
que nos permite andar sem ficarmos demasiado ofegantes. O que é bom,
porque essa é uma sensação que tenho tendência a ter quando estou perto de
Dominic, independentemente da atividade física. O Steve vai trotando a
meu lado, como se estivesse simplesmente satisfeito por estar aqui.
– Há séculos que não fazia uma caminhada – diz Dominic. As suas
passadas são muito mais largas do que as minhas e eu percebo que ele vai
propositadamente mais devagar para que eu o acompanhe. Isso é
simultaneamente querido e enfurecedor. – Adoro ter tempo para
simplesmente pensar.
– Eu e a minha mãe caminhámos muito nos anos depois de o meu pai ter
morrido. – A terapeuta sugeriu que podia ser uma atividade para nos
sentirmos próximas uma da outra. Nunca falávamos muito nessas
caminhadas, mas acho que ajudou.
– O teu pai gostava de fazer caminhadas?
Resfolego.
– Meu Deus, não. Detestava o ar livre. Era mais uma questão de ser
terapêutico para mim e para a minha mãe. O meu pai até costumava dizer a
brincar que era uma loucura ter acabado na costa noroeste do Pacífico, já
que ele e a natureza não se davam. Quero dizer, sim, claro, era capaz de
apreciar um pôr do sol ou uma árvore particularmente bonita, mas era
branquíssimo e tinha de usar fator de proteção noventa ou coisa que o
valha, e dizia que os mosquitos adoravam o seu sangue, porque acabava
sempre todo mordido.
– Era ruivo?
– Não, era louro. Mas a minha mãe é ruiva. Porquê?
– O teu cabelo – aponta ele –, não é completamente castanho. À luz certa,
veem-se reflexos avermelhados. Ou será que são madeixas?
– Oh. – Passo as mãos pelo rabo de cavalo. – Não, nunca pintei o cabelo.
Mas costumo dizer que é apenas castanho. Não é assim tão interessante. O
arruivado é muito subtil. Seja como for – digo, a querer desviar a conversa
do meu cabelo –, há muito tempo que não fazia uma caminhada. Tenho
andado ocupada. Sabes, a namorar contigo.
Quando ele sorri, parece sincero.
– Eu realmente monopolizava-te muito o tempo. Todos aqueles jantares
fora, todas as parvoíces que te obrigava a ver na Netflix comigo, estar
sempre a insistir que passássemos os fins de semana em lojas de
antiguidades. E depois... depois havia aquelas manhãs de fim de semana em
que passávamos horas na cama. – E o seu sorriso torna-se torto.
– Horas? – pergunto, com o coração a acelerar enquanto os meus ténis
batem no caminho de terra.
– Às vezes era o fim de semana inteiro. Mandávamos vir comida para não
termos de sair da cama.
Não sei o que é que ele está a tentar fazer ao certo. Deve estar só a meter-
se comigo. Outra vez.
– Tu às vezes até ligavas para o trabalho a dizer que estavas doente –
digo. – Porque me querias tanto que terias passado o dia todo distraído se
fosses trabalhar.
– Exceto daquela vez no Estúdio C.
Toco no queixo, a tentar parecer descontraída e indiferente. É ridículo
querer tanto que isto tenha sido verdade.
– Refrescas-me a memória?
– Tu lembras-te. – Ele dá-me com o cotovelo no braço e, por um instante,
fico convencida de que tenho essa falsa memória bloqueada nalgum lugar. –
Mandaste-me um email, a pedir-me que fosse ter contigo ao Estúdio C. Eu
achava que querias a minha opinião sobre qualquer coisa que estavas a
gravar, mas tu limitaste-te a trancar a porta e... bem, digamos apenas que eu
nunca tinha feito aquilo numa cabina insonorizada.
As palavras dele desconcertam-me por completo. Isto só pode ser uma
piada para ele... não é? Ou será que está a meter-se comigo porque também
quer que tudo tenha sido a sério?
– Pois – digo. – Isso foi... hã... Uma loucura.
Ficamos em silêncio durante uns dez minutos. Eu tento concentrar-me no
ritmo da minha respiração, no tilintar da coleira do Steve. Não é imaginação
minha, Dominic está a flirtar comigo – pelo menos, acho que não é. Mas
não consigo distinguir o que é real do que não é, o que inventámos no
estúdio e o que se desenvolveu desde então. Meu Deus. Dominic Yun, que
eu detestei assim que começou a trabalhar na Pacific Public Radio. O tipo
de quem começo a gostar mais do que alguma vez tinha planeado.
Quando chegamos ao cume, sinto-me mais em casa entre as nuvens de
algodão e as árvores intermináveis do que muitas vezes em Seattle. O Steve
escolhe uma rocha para um chichi triunfante.
Dominic puxa-me para um abraço vitorioso e é um crime que continue a
cheirar tão bem depois de uma hora a subir uma montanha.
– Tiras uma fotografia comigo? – pede-me, pegando no telemóvel.
Faço uma careta.
– Estou com um ar horrível agora. – Toda suada e suja, com o cabelo a
fugir do rabo de cavalo.
– Tenho a certeza de que eu também.
Estendo a mão para limpar uma mancha imaginária da cara dele.
– Absolutamente nojento.
Ele fita-me e eu pergunto-me se este será o tipo de luz que faz o meu
cabelo parecer mais ruivo do que castanho.
– Acabaste de subir a porra de uma montanha. És linda, Shay. No
trabalho, de pijama ou no cimo de uma montanha.
– Eu... – começo, mas fico-me por aí, porque estou sem palavras. Ele
disse-o de uma forma tão simples que não deveria afetar-me tanto. – Está
bem. Tira lá a fotografia.
Pego no Steve e Dominic aproxima-se e estende o braço para a selfie.
Inspiro outra lufada de sabonete e suor e de repente isso torna-se tão
inebriante que tenho de encostar o corpo ao seu para que ele me ampare.
Quando ele vira o telemóvel para eu ver como ficou a fotografia, tudo o
que eu vejo é o seu rosto sorridente, a sua mão no meu ombro e a covinha
na sua face esquerda. Que parece realmente feliz.
Acho que nunca o tinha visto assim.
21
Quando acordo, o lado dele da cama está vazio. Tateio-o primeiro com a
mão, de olhos fechados, a tentar ignorar o nó de desapontamento que se me
instala no estômago quando o que encontro são lençóis frios e uma cova na
almofada, e de Dominic nem sinal.
A noite passada é capaz de ter sido a mais ardente que tive em muito
tempo, ou talvez sempre, e não me lembro da última vez que dormi tão
profundamente. Apesar disso... acordar sozinha faz com que tudo pareça
não ter passado de um sonho. Distante.
No entanto, não me esqueço do que ele disse sobre ser uma coisa pessoal
e íntima, nem a possibilidade de isto querer dizer algo para ele, ainda que
não consiga descortinar bem o que quer dizer para mim.
Ouço ruídos de alguém a preparar o pequeno-almoço na cozinha e depois
os sons fungados do Steve. Visto uma camisola com capuz e vou lá ter com
eles.
Dominic está ao lado do fogão, completamente vestido e de duche
tomado, a passar uma panela de um bico do fogão para o lava-loiça. Não sei
se se esqueceu de trazer uma lâmina de barbear ou se não a trouxe de
propósito, mas a sua barba a crescer deixa-me cheia de vontade de voltar a
passar-lhe as mãos pela cara. Só que já se passou muito tempo desde que
passei por um pequeno-almoço pós-sexo, e nunca o fiz com um colega.
É com pés inseguros que chego à mesa.
– Bom dia – diz Dominic, num tom muitíssimo animado. – Panquecas?
E ali está, uma pilha de panquecas de mirtilos, uma cafeteira cheia e dois
pratos.
– Fizeste panquecas? – Baixo-me para coçar o Steve atrás das orelhas.
– Já acordei há umas horas – admite ele. – Dei um salto à loja para
comprar umas coisas. E levei o Steve a dar uma volta. Espero que não te
importes. Queria que começássemos o dia cedo, se possível. – E olha
intensamente para o meu pijama.
Paro com a mão a caminho do frasco de xarope de ácer. Ele fez
panquecas, o que parece um ponto a incluir na coluna do «vamos voltar a
fazer isto em breve». Mas quer voltar para Seattle o mais depressa possível,
que não parece. Não sei bem como conciliar essas duas coisas.
– Oh... sim, está bem. Obrigada. Tomo duche e faço a mala assim que
acabarmos.
Ele sorri, mas um pouco tenso, o que faz com que o pequeno-almoço
açucarado se transforme em giz na minha boca. Será que está...
arrependido?
As coisas que me disse ontem à noite não combinam com aquele sorriso.
Não fazes ideia de como estás sexy agora. Quero que te venhas comigo.
Um emaranhado de suspiros e membros e desespero.
De repente, não tenho fome, mas obrigo-me a comer as panquecas.
*
– Aconteceu qualquer coisa – diz Ameena, e ainda bem que não fui para
telejornalismo, porque o meu rosto é absolutamente incapaz de esconder um
segredo. A minha boca agita-se, ou as minhas narinas abrem-se, ou o meu
olhar não para de dardejar.
Eu e Dominic chegámos a Seattle no início da tarde, por isso, quando
Ameena me mandou uma mensagem de texto sobre uma venda de garagem,
aproveitei logo a oportunidade de a ver. E, quando me perguntou como
correu, não consegui manter uma cara séria.
– Aconteceu mesmo qualquer coisa – concorda TJ, a segurar numa fronha
que tem um palhaço bordado.
– Nem penses – declara Ameena, e ele pousa-a devagar.
Vou até ao fim de uma fileira de utensílios de cozinha. Claro que isso me
faz pensar nas lojas de antiguidades a que fomos e dou por mim a
perguntar-me se haverá ali algo de ferro fundido.
– Está bem, está bem, aconteceu uma coisa e sou capaz de estar a meio de
uma crise – digo, e esforço-me ao máximo por pôr tudo aquilo em palavras.
Não só as partes que tiveram lugar sem roupa, mas também a conversa na
sexta à noite, e a caminhada, e a forma como tranquilizou o meu cão. Ao
fim de cinco anos, já me habituei a falar das minhas relações com Ameena
estando TJ por perto, o que, claro, quer dizer que ele também sabe que eu e
Dominic estamos a mentir no programa.
– É verdade que tu tens queda para gajos com animais – comenta
Ameena. – Lembras-te daquele tipo, o Rodrigo, e dos gatinhos?
Ah, pois: Rodrigo, o analista de dados, cuja gata tinha acabado de ter uma
ninhada de seis bolas de pelo fofo. Passado algum tempo, tive de
reconhecer que estava mais interessada em aninhar-me com os gatinhos do
que com ele.
– Ainda nem sequer conseguiam abrir os olhos, Ameena. Não
conseguiam abrir os olhos.
Ela resfolega e detém-se a inspecionar o conteúdo de uma caixa de
sapatos. É esta semana que vai ficar a saber se fica com o emprego na
Virgínia, e a forma como ignora um par de sandálias de tiras amarelas diz-
me como está enervada.
– Mas isso agora é um problema – digo. – Porque quero mesmo que volte
a acontecer.
– Há alguma razão para não poder acontecer? Ou para não dever
acontecer? – pergunta TJ.
Ameena aponta para ele.
– Idem.
– Então, todo o programa assenta no facto de não andarmos... E, para
além disso, se calhar só gosto dele porque não devia gostar. Se calhar é isso
que torna a coisa excitante.
– As pessoas podem voltar a andar – diz TJ. – Os ouvintes até eram
capazes de adorar.
– Já pensei nisso – reconheço. Por alto, durante a viagem de regresso,
enquanto repuxava o segundo espigão. – Mas o programa está a ir
demasiado bem para o pormos em risco. Fazer alguma coisa com o
Dominic... ser um casal a sério. Não vejo como é que isso não daria cabo de
tudo. A menos... a menos que, de alguma maneira, conseguíssemos manter
as coisas casuais.
Casuais – justamente o que Dominic não faz. E, tendo em conta o meu
historial, corremos o risco de eu me apegar, e ele só tem vinte e quatro anos.
As estatísticas simples das relações, muitas das quais me enchem o
histórico de buscas do computador – ossos do ofício de apresentar um
programa sobre encontros – indicam que ele não se apegaria de volta.
– E tu tens tanto jeito para isso. – Ameena franze o sobrolho, a passar
uma madeixa de cabelo escuro e comprido para trás da orelha. – Se calhar é
uma pergunta estúpida, mas será possível vocês confessarem a verdade?
– Não. Isso seria um desastre. Já conseguimos uns quantos patrocinadores
e o Kent insinuou que somos capazes... – Engulo em seco, a tentar não me
entusiasmar demasiado. – Que somos capazes de conseguir chegar à
PodCon.
TJ solta um assobio.
– Ena, isso é tremendo. Achas que consegues arranjar um autógrafo do
Marc Maron3?
Ameena bate-lhe no braço com uma saia circular.
– Há muito tempo que não falavas de alguém assim – diz-me em voz
baixa. – Eu sei que a situação é inconveniente, mas vocês já andam a fingir
que namoraram. Parece demasiado continuares a fingir que não sentes o que
sentes por ele. – O seu tom parece um pouco crítico.
– É a minha carreira – replico, num tom mais duro do que pretendia. –
Não posso mandar tudo às urtigas por um tipo.
– Tens razão – diz ela, com as palavras carregadas de frustração e,
embora eu e TJ nos esforcemos por distraí-la com vestidos vintage, ela
mantém-se alheada durante o resto da tarde.
*
Quando chego a casa, o Steve está à espera à porta. Mesmo depois de ter
passado o fim de semana com ele, agrada-me a sua excitação de não me
abandonaste. Ele corre à volta da sala e demora umas quantas voltas a
acalmar o suficiente para que eu lhe faça festas.
Instalo-me no sofá a coçá-lo atrás das orelhas e só depois de estar assim
algum tempo é que me dou conta de que já não anseio por barulho em pano
de fundo. Algumas almofadas novas que comprei na semana passada dão
graça à sala e até desfiz as malas quando cheguei a casa e pus as roupas
sujas na máquina de lavar. Já para não dizer que ter as coisas do Steve por
todo o lado faz com que a casa pareça mais vivida, menos estéril. De súbito,
já não odeio estar aqui.
Se calhar estava mesmo sozinha.
É claro que isso me faz pensar em Dominic. Custa-me imaginá-lo no seu
próprio apartamento, a comer sozinho, a beber sozinho e a ver televisão
sozinho. A meter-se na cama e a dormir sozinho, depois de duas noites a
meu lado.
Determinada a não pensar na noite passada, atiro-me à investigação para
os nossos próximos episódios. Estamos a planear um sobre embelezar perfis
em sites de encontros, outro sobre a distribuição de géneros nas grandes
cidades, outro ainda sobre ter encontros quando se é mãe ou pai solteiro,
cada um com convidados especialistas nas suas áreas. Tenho de me
concentrar no programa. Como disse a Ameena, não posso pôr em causa o
meu trabalho, depois de finalmente ter tido a oportunidade de ir para o ar.
Durante pelo menos mais três meses e meio, que foi o acordo inicial com
Dominic. No fundo, é claro que espero que ele goste o suficiente do
programa para querer continuar mais tempo, sobretudo se conseguirmos
patrocínios ainda melhores.
E, no entanto, quanto mais olho para as minhas notas, mais dou por mim
a pensar no episódio que ainda não foi aprovado. Já fiz pesquisa suficiente
para saber que nenhum tópico na área dos encontros está realmente por
explorar. Somos apenas um de muitos, muitos podcasts que a atravessaram.
Mas o que sempre fez com que a rádio me parecesse tão especial é a sua
capacidade de transformar algo intangível em algo pessoal. Deixar que
alguém conte uma história à sua maneira.
Este episódio sobre luto não constituiria rádio inovadora, eu sei – mas
seria meu.
SHAY GOLDSTEIN: Esta é boa. Uma pessoa num fato de mergulho azul-
claro, com uma legenda que diz apenas: «Tens coragem suficiente para
descobrir o que há por baixo?»
DOMINIC YUN: E esta? «Sou espontânea e impulsiva. Tenho os lábios do
meu ‘ex’ tatuados algures no corpo. Só te mostro no nosso terceiro
encontro.»
SHAY GOLDSTEIN: E depois um emoji a piscar o olho?
DOMINIC YUN: Há sempre um emoji a piscar o olho.
SHAY GOLDSTEIN: A menos que seja um emoji com um sorriso trocista.
DOMINIC YUN: Será má altura para referir a tatuagem do teu nome que
fiz no fundo das costas? É de um bom gosto incrível.
25
Vou já.
26
– Não tinhas de trazer nada – digo quando Dominic chega, com roupas de
fim de semana, uma T-shirt preta e umas calças de ganga deslavadas, e um
saco de plástico de takeaway. O meu estômago dá horas, lembrando-me de
que deixei o jantar com Ameena sem ter comido nada.
Ele faz uma careta.
– Merda, que vergonha. Não é para ti.
Puxo-o para dentro e o Steve arranha-lhe os tornozelos até que ele se
baixa para o coçar atrás das orelhas.
– Não sabia se tinhas jantado – diz ele, ao passar-me o saco –, mas achei
que, no mínimo, podias comer o que sobrar amanhã de manhã. Ou à tarde,
se por acaso não achas que as sobras sabem melhor frias às dez da manhã
de um domingo.
– Espera. Tu achas?
– Claro, porque não sou um monstro que queira obliterar o sabor da
comida de restaurante com um micro-ondas.
– Piza fria, sim. Mas estás a dizer-me que comerias de bom grado, tipo,
lasanha fria? Ou um prato frio de enchiladas?
– Comeria, e já o tenho feito.
Abro o saco.
– Comida tailandesa? Do Bangkok Bistro? Está tudo perdoado.
– Há umas semanas disseste que era o teu takeaway preferido – diz ele
com um encolher de ombros, como se não fosse nada de mais.
Ele trouxe comida para mim. Para nós. É querido, talvez demasiado para
o que quer que seja esta situação de amigos coloridos. Por outro lado, talvez
a minha mensagem desesperada já tenha esbatido essa linha. Neste
momento, estou demasiado esfomeada e emocional para me preocupar com
isso.
Vamos até à cozinha, onde tiro os pratos e os talheres enquanto ele
desembrulha pad thai de frango, caril verde e sopa tom yum.
– Era capaz de tomar banho nesta sopa – digo-lhe. – Obrigada por teres
feito isto. Estou cheia de fome.
Ele afaga-me o braço com as pontas dos dedos enquanto eu empilho
pratos perto dos recipientes da comida.
– Não tem problema.
Como a comida continua quente, faço-lhe uma visita guiada rápida à casa,
indicando-lhe todos os lugares acolhedores que o Steve reclamou como
seus. Dominic encosta-se à ombreira do meu quarto enquanto lhe mostro as
paredes que finalmente decidi pintar de verde-menta no fim de semana
passado, e tem um ar tão natural ali que nem consigo corresponder-lhe ao
olhar.
– Queres beber alguma coisa? – pergunto, enquanto o levo de novo para a
cozinha. – Água, cerveja, vinho? Lamento, mas não tenho vinhos de marca
branca. São um bocadinho refinados de mais para o meu gosto.
Em resposta, ele esboça um pequeno sorriso, mas parece incomodado.
– Pode ser água – diz ele. – E a tua casa é fantástica. Devias estar
orgulhosa. Tens uma casa em Seattle e ainda nem fizeste trinta anos. O
mercado imobiliário anda...
– Eu estou orgulhosa – digo, interrompendo-o antes que se aproxime
demasiado das queixas de Ameena. Enquanto lhe sirvo um copo de água,
apercebo-me de que é verdade: tenho orgulho deste espaço que consegui
tornar meu.
Levamos os pratos para a sala de estar, onde me deixo cair no sofá ao
lado dele. A sua presença faz-me sentir um pouco menos pesada do que
com Ameena. É demasiado fácil descalçar-me e cruzar as pernas, ficando
com os joelhos a tocar nos dele. E pergunto-me se para ele será fácil pousar
uma mão no meu joelho, com o polegar a acariciá-lo. Pergunto-me se sabe
sequer como isso me tranquiliza.
– O Steve está bem? – pergunta-me.
Aponta com o garfo para o sítio onde Steve se encontra, do outro lado da
sala de estar, a fitar intensamente a parede.
Contenho-me para não devorar a sopa de um só trago.
– Oh, isso. Agora faz essa coisa como se tivesse uma anomalia técnica.
Não consigo descrevê-lo de outra maneira. Fica com a perna parada
enquanto se coça, a olhar para o nada durante algum tempo. Ou entra na
casa de banho e fixa a parede durante dez minutos. É absurdo.
– Que cãozinho mais bizarro.
– Que cãozinho mais bizarro e perfeito – corrijo, e depois chamo-o. O
Steve sai do transe e salta para o sofá entre nós, a empurrar-me para
conseguir alguns dos carinhos aparentemente superiores que Dominic lhe
faz na cabeça. Que cãozinho mais bizarro e desleal.
– E tu estás bem? – pergunta-me Dominic enquanto o coça. O Steve
entrou noutra espécie de transe. – Podemos falar, se quiseres. Na tua
mensagem parecias um bocado...
– Em pânico?
– Bem... sim.
Bebo um grande gole de água antes de pousar o copo na mesa de centro.
– Sabes que algumas escolas têm aqueles concursos de superlativos no
último ano? Maior sedutor, melhor vestido, essas coisas?
Dominic esfrega a nuca, com um ar envergonhado.
– Votaram em mim para, hã, quem tinha maior probabilidade de ser bem-
sucedido.
Bato-lhe com uma almofada.
– Oh, meu Deus, é claro que sim. Bem. Então, contei-te que o meu pai
morreu quando eu estava no décimo segundo. E, oficiosamente, mas
suficientemente oficial para eu saber que toda a gente falava disso, tornei-
me a Rapariga Cujo Pai Morreu Quando Ela Andava no Décimo Segundo
Ano. É assim que toda a gente da escola secundária se lembra de mim, com
essa história triste. Eu sei que não sou a única pessoa a ter perdido o pai ou
a mãe, mas parece que nunca consegui livrar-me desse rótulo.
– Lamento – diz ele. – Não vou fingir que sei como seja isso. Mas porque
é que isto vem à baila agora? O que aconteceu?
Conto-lhe o que se passou no que devia ter sido o jantar de celebração de
Ameena e ele inspira longa e lentamente.
– Ela não pode culpar-te por isso – diz ele. – Tu sabes, não sabes?
– Logicamente, sim. Mas... – Inspiro fundo, a admitir o que me tem
preocupado desde que Ameena mo atirou à cara, ou talvez até já durante
mais tempo do que gostaria de admitir. – Às vezes pergunto-me se estou
demasiado ligada à rádio. Para o caso de não teres reparado, é basicamente
a minha vida inteira.
Mas não me parece trabalho, quando preparo o nosso episódio sobre luto,
agendado para daqui a duas semanas.
Ele fica calado durante um momento.
– Mas tu adoras apresentar. E tens jeito.
– Já andamos enrolados. Não tens de me dar graxa.
– Não era graxa. Tens mesmo. És capaz de reagir depressa, és divertida
sem esforço e é simplesmente... é engraçado ouvir-te.
Quero desfrutar daqueles elogios, mas não consigo deixar de pensar no
que aconteceu no bar com Ameena e TJ.
– É verdade que adoro estar em direto. Não é tanto a questão de
apresentar, mas mais de ter tido o mesmo emprego desde que acabei o
curso. Isso é normal?
– Se encontras a coisa certa, claro. – Fita-me intensamente. – Eu vou ser o
teu «ex» durante todo o tempo que queiras. Eu sei que dissemos seis meses,
mas estou contigo até ao fim. Espero que saibas isso.
– Eu... não sabia. – O alívio é morno e imediato. – Mas obrigada. Acho
que pensava apenas que, por esta altura, já teria tudo resolvido. Tenho quase
trinta anos e não sei se me sinto mais perto disso do que quando tinha vinte
e um ou vinte e cinco. Há tanta pressão para ter estas merdas todas
resolvidas e eu não faço ideia do que ando a fazer. Queria o tipo de
casamento que os meus pais tiveram, e se calhar até queria uma família,
mas isso ainda nem é uma coisa que eu consiga imaginar. Só há, tipo, duas
coisas que eu sou capaz de cozinhar como deve ser. A maior parte das
coisas que como vem de kits pré-preparados. Sou sócia de um ginásio, mas
nunca lá vou. Passo a maior parte dos fins de semana a trabalhar. Às vezes
parece-me que estou a fazer de conta que sou adulta, como se estivesse
sempre a olhar à volta, à espera de que um verdadeiro adulto me diga o que
fazer se o triturador de lixo começar a fazer um barulho esquisito ou se
devo pôr mais dinheiro no meu fundo de poupança para a reforma. Só que...
sinto-me completamente perdida.
Rio-me, apesar do que sinto, mesmo com lágrimas a arderem-me nos
olhos.
Tiro os óculos e passo a mão pela cara, a tentar que ele não repare. Chorar
em frente ao tipo com quem se tem uma relação descomprometida – é capaz
de também não ser permitido. Mas é claro que ele vê e, quando me puxa
para si no sofá, deixo que o faça.
– Eu acho que tu és incrível – diz ele. – Intimidas-me desde que comecei
a trabalhar na PPR.
– Pois.
– A sério. – Passa os dedos pelo meu cabelo e eu sinto, com um aperto no
peito, que está a desenredá-lo delicadamente. – Eras tão confiante, falavas a
linguagem da rádio com tanta fluência que me fazias parecer um idiota por
não perceber.
– Desculpa – digo, e encolho-me.
– Mas eu era um idiota – continua ele. – Havia tanta coisa que não sabia
e, apesar disso, vinha cheio de mim só por ter um curso avançado. E, para
além disso, estás a manter um cão de quatro quilos vivo. Eu acho que isso é
um certo sucesso. Eu mal me lembro de dar água às minhas plantas, e elas
só precisam de ser regadas uma vez por semana.
– Três quilos. Mas tem energia de cão grande.
Ele limita-se a rir e a abraçar-me com mais força, enquanto os seus dedos
me massajam o couro cabeludo. É cruel que saiba tão bem – porque é claro
que é passageiro. Não sei qual será a nossa data de validade, mas, nalgum
futuro próximo, ele vai deixar de ser meu. Mal o é, agora.
– Eu também achava que tinha as coisas resolvidas – diz ele. – O
mestrado, a namorada de há muito tempo. Pensava que íamos viver juntos
para algum sítio, que ela continuaria a estudar medicina e eu faria
reportagens nobres, para abater uma empresa malvada, e que depois a
pediria em casamento e teríamos uma cerimónia grande e cara.
– Gostavas de ter isso? – pergunto.
Ele hesita apenas um momento antes de responder:
– Não. Não gostava. Durante os primeiros meses depois de termos
acabado, sim, absolutamente. Isso era quem eu era. Não sei se teria acabado
de crescer sem conhecer essa dor. E agora é apenas algo que trago comigo,
assim como tu trazes o teu pai.
Estendo a mão para lhe afagar a face. A barba já começou a crescer –
sentia-lhe a falta. Ele não tem todas as respostas porque ninguém poderia
tê-las, mas pelo menos faz com que tudo pareça mais leve.
Eu estava convencida de que sem compromissos seria seguro, por ele ser
tão diferente de qualquer outra pessoa com quem eu tenha andado antes;
todos eles pareciam ter as suas vidas resolvidas. É absurdo que este tipo, o
meu suposto ex-namorado, pudesse ter sido um grande namorado. Eu
achava que gostava do perigo de estar com ele, do segredo que escondemos
de toda a gente no trabalho há duas semanas, mas sou capaz de gostar mais
disto.
Preciso de parar de pensar estas coisas.
– Hoje almocei com um velho amigo, um rapaz chamado Eddie – diz
Dominic de súbito. – Éramos os únicos coreanos na nossa turma do sexto
ano e eu achava que isso nos uniria para sempre, mas perdemos o contacto
um com o outro depois da secundária. Ele trabalha numa startup
ultramoderna e provavelmente vai ficar milionário assim que forem
comprados. Ainda agora acabou com a namorada e também precisava de
falar com alguém. E foi ótimo. Até somos capazes de repetir.
– Ganhaste-me. Tenho andado a pensar convidar a Ruthie para bebermos
um copo depois do trabalho um dia destes, mas acho que tenho tido... outras
coisas em mente.
Ele acena com a cabeça e depois beija-me, e eu consigo bocejar a meio.
– Desculpa – digo, e tapo a boca. – Prometo que beijar-te não me dá sono.
Vejo as horas no telemóvel: é quase meia-noite. Não me tinha apercebido
de que tínhamos estado tanto tempo à conversa.
Ele aponta para a porta.
– É melhor...?
– Não – digo de imediato, ciente de que isso vai contra as regras do nosso
acordo, mas não me importa. – Detestaria que tivesses de conduzir a estas
horas. Se calhar podias... passar cá a noite?
– Tens a certeza? – O peso do seu olhar prende-me ao sofá.
– És capaz de ter de lutar com o Steve para conseguires um lugar na
cama, mas sim. Se quiseres.
– Eu gostava – diz ele.
Ao que parece, também não se importa que tenhamos acordado que não
dormiríamos em casa um do outro.
Tenho lembranças de Orcas assim que lhe passo uma escova de dentes
nova. Nada do que tenho lhe serviria, pelo que ele dobra as roupas com
cuidado antes de as deixar em cima da minha cómoda e mete-se na cama a
meu lado só de boxers.
– Estou mesmo cansada – digo, virando-me para ele. O cansaço dá cabo
de mim. Se calhar estou mesmo a ficar velha. – Se preferires ir embora, não
faz mal.
– Achas que me vou embora porque não vamos fazer sexo esta noite?
– Bem... sim.
Isso parece perturbá-lo.
– Podíamos estar a ouvir gravações antigas do Kent que eu continuaria a
querer ficar aqui contigo – diz ele. – Estou aqui por tua causa.
Mas as preocupações voltam a martelar-me o cérebro. Agora que optámos
por esta coisa descomprometida, ele deve querer explorar algo mais. Deixa-
me um bocado maldisposta, a ideia de Dominic ir à descoberta de outras
mulheres.
Penso de novo no que Ameena disse, acerca de que me agarrar ao meu
trabalho e aos meus confortos para que nada tenha de mudar. Isso não é
verdade. Neste momento, sinto-me absolutamente desesperada por uma
mudança. Se assim não fosse, não teria adotado o Steve, começado a
apresentar o programa ou a ir para a cama com Dominic. Ao manter isto
descomprometido – estou a proteger o programa, sim, mas, acima de tudo,
estou a proteger-me a mim mesma.
– Isto pode parecer ridículo, mas... queres conhecer a minha família? –
pergunta Dominic na penumbra. O candeeiro da minha mesa de cabeceira
ainda está aceso e agradam-me as sombras que projeta no seu rosto.
– O quê?
– Andam um bocado preocupados comigo. Por causa da história toda de
não ter amigos. Por isso, perguntaram-me se eu queria convidar a minha
coapresentadora para jantar.
– Mas não podem saber que nós...
– Não. Não podem.
Má ideia. Má ideia. E, apesar disso, não consigo impedir-me de
concordar.
– Claro – digo. – Não posso dizer que não esteja curiosa quanto à origem
de tudo isto. – Aponto para todo o seu corpo e ele sorri antes de se pôr em
cima de mim, pressionando-me contra o colchão.
Só nos beijamos, parando de vez em quando para nos rirmos, para
conversar ou para nos maravilharmos com o talento que o Steve tem para
nos empurrar aos dois para arranjar espaço para si mesmo. Amanhã vou
estar exausta, mas não me importa. Talvez seja masoquista, por gostar de o
ter aqui na minha cama, sabendo que não podemos ser mais do que isto.
Que até isto é esticar os limites do que somos e que é apenas uma questão
de tempo antes de estalarmos.
Não é a sério.
Mas não deixo de pensar: se não é, porque é que adormecemos com a
cara dele aninhada na parte de trás do meu pescoço e a sua mão na minha
anca?
DE: Yun, Dominic <d.yun@pacificpublicradio.org>
PARA: Goldstein, Shay <s.goldstein@pacificpublicradio.org>
DATA: 14 de maio, 15:52
ASSUNTO: Estúdio C
Olá, Shay,
Como verás no nosso calendário partilhado, reservei o Estúdio C das 16h às 16h15. Há
uma coisa que quero que oiças. Acho que vais gostar bastante.
Cumprimentos,
Dominic
Caro Dominic,
Ouvi cada episódio três vezes e não consigo parar de trautear a música do genérico. Os
meus amigos já estão fartos. A minha família já está farta. Será que preciso de ajuda?
Talvez! Deem-me só mais Shay + Dom.
Não sei o que adoro mais: se o otimismo cauteloso de Shay, se o cinismo enternecedor de
Dominic. Seja como for são perfeitos juntos *beijo de chef nos dedos*. Quinhentas estrelas.
Perspicaz e empoderador
Lixo
Esforcei-me mesmo por gostar disto, mas os temas são superficiais e os apresentadores
não são tão encantadores como se julgam. Serei o único que quer lá saber se já andaram
um com o outro? Porque é que isso interessa? Passo.
tlm
A meio da semana seguinte, Dominic não está com bom ar. Quero dizer,
sim, continua a ser um exemplar muito atraente do sexo masculino, mas há
dois dias em que chega depois das nove e meia, praticamente não faz a
barba e, quando sorri – coisa rara –, o sorriso mal lhe chega aos olhos. A
sua bola Koosh permanece imóvel sobre a secretária, triste e sozinha.
Sinceramente, eu também não ando fantástica. Sinto-me acabada, deitada
abaixo pela combinação de demasiado trabalho, dos preparativos para a
PodCon e de passar a vida à procura das mensagens de texto que nem ele
nem Ameena me mandam.
Voltei ao hábito de ficar a trabalhar até tarde, pois não quero correr o
risco de acabar sozinha com ele no elevador. Por isso, quando ele vem ter
comigo às seis e meia de uma quarta-feira e me toca ao de leve no ombro
com as pontas dos dedos depois de toda a gente se ter ido embora, quase
grito.
– Merda, pensava que já te tinhas ido embora – digo, com uma mão no
peito. – Tens mesmo pezinhos de lã.
– Desculpa. – Ele encosta-se à sua secretária. E parece mesmo
arrependido.
– Eu sei que as nossas secretária ficam lado a lado – digo-lhe. – Mas às
vezes gosto de fingir que há uma linha invisível entre elas, e tu acabaste de
entrar na minha bolha. Gosto da minha bolha.
– Mais uma vez, desculpa – pede ele, com um suspiro. – Ena, pronto, isto
não está a correr como eu esperava. Olha, só quero mesmo falar comigo.
– OK. Fala – digo, virada para o meu ecrã.
– Não aqui.
A dor nas suas palavras obriga-me a olhar para ele.
Não se parece nada com a fotografia de arquivo de «business casual» que
eu costumava idealizar. A sua camisa habitualmente impecável tem pelo
menos três vincos inteiros. Se eu ficar a olhar muito tempo para ele, vou
começar a rever o que fizemos na ilha, na cama dele, na minha, no meu
sofá... A minha força de vontade é limitada. E, quando ele olha para mim
assim, sinto a determinação a fraquejar.
– Se vamos estar em palco na PodCon daqui a umas semanas, gostava de
que pelo menos falássemos um com o outro – diz ele. – Por favor, ouve-me
desta vez e, se não quiseres voltar a falar depois disso, prometo que não
torno a insistir.
É difícil recusar um pedido assim – pelo que não o faço.
Estão quase vinte e cinco graus – uma vaga de calor para Seattle –, pelo
que arrumamos as coisas e vamos até ao Green Lake. Parece que toda a
gente de Seattle teve a mesma ideia, dada a quantidade de pessoas a passear
cães, a andar de patins e a correr com carrinhos de bebé por que passamos a
caminho de um banco virado para o lago.
– Hoje está toda a gente tão bem-disposta – diz Dominic, sentando-se no
banco a meu lado. – Mal passa dos vinte graus, todos começam a sorrir.
Sempre gostei disso.
Ele tem razão – o bom tempo muda as pessoas. A introversão sombria
está-nos tão enraizada no ADN que basta um pouco de vitamina D para
transformar os habitantes de Seattle em criaturas estranhamente gregárias.
– Estás a empatar – digo com ligeireza.
– Será empatar dizer-te que adorei mesmo fazer aquele episódio com a
tua mãe? Ela parece ser muito fixe.
– É mesmo. Obrigada. E sim.
A perna dele não para de abanar, como costuma acontecer quando está
nervoso.
– Tenho andado tão confuso ultimamente – diz ele, depois de cerca de um
minuto em silêncio, enquanto observamos um bando de patos a afastar-se
pela água azul e turva. – Já revi mentalmente aquela noite em casa dos
meus pais muitas vezes, a tentar perceber o que fiz mal.
– Não fizeste nada de mal.
Não percebo ao certo o que ele quer – se pretende convencer-me de que
devíamos retomar a relação descomprometida, ou se devíamos esquecer que
tudo aquilo aconteceu, começar do zero. Não pode sentir assim tanto a falta
do sexo, pois não? Não vou dar assim tanto crédito às minhas capacidades
no quarto.
– Não fui completamente honesto contigo – diz ele. – Quando te disse
que sexo era algo muito sério para mim... não era só o sexo. É todo o
conceito de uma relação.
– Eu... eu percebi isso.
Faz sentido, embora não explique ao certo porque é que estamos a ter esta
conversa.
– E não só em termos românticos. Sabes que não tenho muitos amigos
aqui. Quero dizer, dou graças pelo Eddie, que ainda é mais espetacular em
adulto do que quando éramos miúdos. Mas... a ideia de me aproximar tanto
de alguém outra vez... é aterradora.
– Não era esse o objetivo de ter uma relação descomprometida? – Cruzo
uma perna por cima da outra, como se, ao mostrar-me apropriadamente
casual, seja capaz de falar disto como se não fosse nada de mais. – Olha, se
me trouxeste até aqui para me dizeres que sentes falta de ir para a cama com
alguém com uma certa regularidade, faz-me um favor e passa já para essa
parte, que é para não termos de arrastar isto.
A sua expressão altera-se para uma de horror.
– Espera. O quê? Era isso que achavas que isto era?
– Bem... pois. Mais ou menos.
– Estaria a mentir se dissesse que não sinto falta disso – diz ele, com os
lábios a curvarem-se num sorriso que me provoca um choque elétrico de
satisfação –, mas não. Não era disso que eu queria falar.
– Então não percebo! – Atiro as mãos ao ar, com a frustração a aumentar.
– Tu disseste que querias uma coisa descomprometida. Por isso, não vejo
qual é o problema de passar de sem compromissos para nada. Porque é que
não podemos não ser nada e pronto, Dominic?
Mesmo enquanto o digo, soa-me mal. Falha-me a voz e estremece-me o
coração, e a palavra nada ressoa-me dentro da cabeça. Também estou a
mentir agora. Há muito tempo que «nada» não é o que quero.
Dominic comprime os lábios antes de deixar escapar um suspiro.
– O que estou a tentar dizer-te é que, quando começámos isto... nunca foi
descomprometido para mim.
E é claro que isso despoleta a repetição em câmara lenta por trás das
minhas pálpebras. A excitação da adrenalina provocada por aqueles toques
novos, o facto inegável de nunca ter tido um orgasmo tão bom como com
Dominic.
O facto inegável de nunca ter falado tão francamente com um homem
como com Dominic.
– Só sugeri que assim fosse porque tu insistias em falar do assunto e eu
achei que era porque não querias que eu ficasse com a ideia errada. E sabia
que o programa era... é muito importante para ti – continua. – Não queria
correr o risco de arruinar o programa, se tu não sentisses o mesmo que eu.
– O mesmo?
– Para mim isto nunca foi descomprometido. – Os dedos dele dançam
pelo rebordo do banco, a poucos centímetros da minha coxa. – Nem na ilha,
nem aqui. É uma tortura, estar sentado aqui ao teu lado e não poder tocar-te.
Tu és esperta como tudo, sexy e divertida, e passar tempo contigo torna
tudo... um pouco menos difícil.
Agora sinto a pulsação a latejar-me nos ouvidos. Procuro agarrar-me a
qualquer ponta de lógica, com todas as defesas erguidas. Quero tanto
acreditar nele.
– Mas daquela vez no programa, com aquela ouvinte... disseste que
estavas interessado em alguém.
Ele revira os olhos como se eu fosse o ser humano mais estúpido do
planeta, e talvez seja.
– Pois. Em ti.
Rebenta um dique dentro de mim. Escapa-se numa grande enchente
emocional tudo que tenho andado a conter. Estou tão farta – de arranjar
desculpas, de mentir, de tentar convencer-me de que sou capaz de ignorar o
que sinto por ele.
– Oh – digo, a sentir-me uma idiota chapada. – Ena, é mesmo difícil
decifrar-te.
Isso fá-lo rir, mas é um riso nervoso. Os dedos dele sobem para o meu
joelho, o polegar descreve um círculo lento.
– Levei-te a conhecer a minha família – continua ele. – És a primeira
pessoa com quem estou desde a Mia. A única desde a Mia. Tenho-te dado
sinal atrás de sinal.
– Eu disse-te que tenho tendência a apegar-me demasiado. E sou mais
velha do que tu, e não sabia se querias algo sério. Não queria encher-me de
esperança, acho. Convenci-me de que, se tivéssemos apenas algo
descomprometido, não me magoaria quando me dissesses que não querias
estar mesmo comigo.
– Shay. Mostrei-te a porra dos meus Beanie Babies.
Não posso deixar de rir.
– Não sei o que dizer.
– Ajudaria muito se me dissesses que também gostas de mim.
Contenho um sorriso e aproximo-me mais, inclinando-me para lhe
segurar o rosto na palma da minha mão.
– Dominic. Gosto tanto de ti. Achava que era óbvio. Gosto de que a
pessoa que me mostras não seja a mesma que todos os outros veem. Já
deves saber que me sinto ridiculamente atraída por ti. E cuidas tanto das
coisas importantes na tua vida... o trabalho, a tua família, o Steve Rogers
Goldstein.
– E a Shay Goldstein – diz ele, acrescentando o meu nome à lista, e eu
sou capaz de nunca querer sair deste banco.
– Pareceu-me demasiado real, estar na tua casa. – Passo o polegar pela
barba que lhe cresce na face. – Foi por isso que tive de acabar. Não queria
estar lá sem ser tua namorada.
Um dos cantos da sua boca arrebita-se. Senti a falta daquela covinha.
– Queres ser minha namorada.
– Mais do que quero um convite pessoal do Ira Glass para o substituir no
This American Life.
Então, ele sorri a sério. E beijamo-nos e é como se eu tivesse passado a
vida inteira sem chocolate e só agora, aos vinte e nove anos, descobrisse a
sua doçura.
As mãos dele sobem até ao meu cabelo, desfazem-me o rabo de cavalo.
– Meu Deus, como senti a tua falta – diz-me enquanto me encosto ao seu
peito, com um ouvido junto ao seu coração forte a bater.
30
O episódio vai ficando cada vez mais estranho. Em palco, tudo corre bem
– Dominic parece à vontade, talvez um tudo-nada menos confiante do que
no estúdio, e os nossos convidados, incluindo um crítico gastronómico que
se apaixonou por uma chef depois de escrever uma crítica arrasadora do
restaurante dela, são perfeitamente encantadores. Mas alguns membros do
público vão-se embora a meio – limitam-se a levantar-se e sair, embora eu
ache que estamos a apresentar algum do nosso melhor material. Outros
continuam a ver os telemóveis, como se isso não fosse a coisa mais mal-
educada que se possa fazer num evento ao vivo como este.
Antes, eu e Dominic decidimos anunciar a nossa relação mesmo no final.
Vamos dizer que passámos tantos longos dias juntos, a trabalhar no
programa, que isso nos recordou de como gostávamos um no outro. E que
apreciamos o apoio dos nossos ouvintes, mas que queremos esforçar-nos ao
máximo por manter a relação privada que temos separada do programa.
Agora não faço ideia de como o público irá reagir.
Quando convidamos o público a usar o microfone para partilhar as suas
histórias e fazer perguntas, o nó de pavor já se instalou na minha garganta e
as mãos de Dominic tremem visivelmente.
Uma mulher salta do seu lugar na terceira fila e avança rumo ao
microfone como se essa fosse a sua missão.
– Sim, eu tenho uma pergunta – diz ela. – Acham que foi engraçado
enganarem assim os vossos ouvintes?
Uma onda de murmúrios percorre o público. Não conheço a mulher, tem
trinta e tantos anos e usa uma T-shirt do podcast Welcome to Night Vale.
Dominic parece tão perdido quanto eu.
– Desculpe, o que disse? – pergunto, com a voz a falhar-me. Espero que
ela não dê por isso. Espero que nenhum deles dê por isso.
Ela mostra-me o telemóvel e acena com ele, embora eu obviamente não
consiga ver o ecrã a esta distância.
– Está por todo o lado nas redes sociais. O vosso embuste. Vocês nunca
andaram... eram só colegas que se juntaram para uma patranha.
Os espectadores que não estavam já agarrados aos telemóveis atiram-se
às malas e aos bolsos, centenas de pessoas a mexer furiosamente nos seus
aparelhos.
Nunca andaram.
Só colegas.
Uma patranha.
Agarro-me aos braços da cadeira. Se não o fizer, sou bem capaz de
desatar a fugir. Tenho de me ancorar, de lhe dizer que não é verdade, não é
verdade, não é...
– Nós... hã... – tenta Dominic, mas não consegue formar uma frase
inteira. Nem todos os exercícios respiratórios do mundo poderiam ter-nos
preparado para isto.
Como raio é que isto aconteceu?
Olho para as laterais, para Ruthie. Para a nossa produtora inabalável.
Espero que ela nos diga o que fazer, como eu fiz sinal a Paloma Powers
tantas vezes quando nos calhava um ouvinte hostil ou um convidado
enfadonho. Mas ela parece abalada a olhar para o seu telemóvel e eu
percebo que o que quer que tenha sido publicado, o que quer que esteja a
expor-nos... ela também está a descobri-lo pela primeira vez.
O público está um caos, com outros a correr para o microfone. A primeira
mulher, claramente satisfeita depois do ataque público, volta para o seu
lugar.
Um tipo que parece ter vinte e muitos anos é o seguinte a ocupar o
microfone.
– Eu também tenho uma pergunta – diz ele, e eu descontraio um pouco,
com uma parte ridícula de mim a preparar-se para uma pergunta legítima,
como se ainda houvesse forma de salvar isto. – Estou curioso, foi pelo
dinheiro? Ou foi alguma espécie de experiência social bizarra?
O público volta a enlouquecer.
Kent.
Só pode ter sido ele. Não sei porquê, e não sei o que fez, mas a única
outra pessoa que sabe é Ameena e, por extensão, TJ. Mesmo que não nos
falemos agora, ela nunca faria uma coisa destas. E, tanto quanto sei,
Dominic ainda não contou a ninguém.
– Será que podemos, hã, repor a ordem nas perguntas – digo, mas
ninguém me ouve. Estão a falar connosco, mas não esperam respostas.
Querem a controvérsia, o ultraje... mas não a explicação. É assustador vê-
los a virarem-se contra nós.
– E nós caímos na vossa esparrela – diz a pessoa a seguir –, acreditámos
que eram privados nas redes sociais. E que tinham imenso medo de
começar uma relação nova.
– Isso é verdade! – exclamo, perguntando-me se isto quererá dizer que
admito que o resto não.
– Mas que importa que tenham distorcido a verdade? – pergunta a
rapariga a seguir. – Era boa rádio, certo? Mantinha-nos entretidos durante
uma hora por semana, ajudava-nos a esquecer, pelo menos durante algum
tempo, que o mundo está a arder.
Sim, pessoa aleatória, obrigada.
– Nós ouvíamos o programa por causa deles e da relação que tinham – diz
outra pessoa. – Imaginam como seria descobrir que a Karen Kilgariff e a
Georgia Hardstark não eram mesmo amigas?
Não aguento isto. Não posso deixar que sejam eles a controlar a narrativa.
Arranco o microfone ao suporte e avanço para o meio do palco.
– OK – começo. – OK. Têm razão. Antes de termos começado a trabalhar
neste programa, na verdade nunca tínhamos namorado.
Quando me viro para Dominic, ele está pálido e colado à cadeira, incapaz
de estabelecer contacto visual. Ajuda-me, imploro-lhe, mas o meu pedido
não o alcança e não posso deixar de pensar não só no seu medo do palco,
mas também na sua moral jornalística, que nos últimos meses foi arrasada e
pulverizada. Isto tem de ser o seu pior pesadelo.
Inspiro devagar e tremulamente. Se o meu destino realmente é contar
histórias, talvez ainda seja possível dar a volta a isto.
Não... já chega de dar voltas.
– No início, éramos apenas dois colegas que não gostavam muito um do
outro, e a premissa do programa parecia ótima. Dois ex-namorados a dar
conselhos sobre relações. – Solto uma pequena gargalhada, a lembrar-me da
reunião onde apresentei a proposta. – Nunca nos agradou a componente da
mentira. Mas o que vimos foi uma oportunidade de fazer algo diferente na
rádio pública e de salvar a nossa estação.
Talvez, talvez esteja a reconquistá-los. Algumas das pessoas que já iam a
caminho da porta pararam e voltaram para os seus lugares.
– E depois, à medida que começámos a trabalhar juntos, bem... – Estou a
suar em cem sítios diferentes, mas sinto-me animada por uns quantos gritos
e assobios do público. – Apercebemo-nos de que gostávamos um do outro.
Foi uma situação difícil, mas, ao fim de uns meses a andar à volta do
assunto, agora estamos juntos. Oficialmente.
Isso vale-nos mais aplausos. São poucos, mas audíveis. Algumas pessoas
estão do nosso lado... isso parece bastar.
Dominic estava tão convencido de que os nossos ouvintes ficariam felizes
por nós. Eu não estou preparada para a alternativa: a de que isto tenha
acabado.
– É verdade, Dominic? – pergunta alguém ao microfone, e é então que me
apercebo de que ele ainda não disse nada. Eu queria resolver isto, mas não
posso fazê-lo sozinha. A história não funciona se eu for a única a contá-la.
Faço-lhe sinal para que se junte a mim.
– Dominic? – chamo-o, a obrigar a voz a ser mais calorosa do que o que
sinto. A ansiedade é brutal, mas eu também estou a sofrer aqui. Devíamos
ser uma equipa. Ele tem de perceber como isto é importante. Afinal, foi ele
quem sugeriu revelar que estamos juntos porque já não aguentava guardar
segredo.
Diz qualquer coisa, imploro.
– Ela... nós... – tenta ele. Abana a cabeça, como se estivesse a tentar
acalmar-se. – Eu... – Uma tentativa de uma inspiração profunda, a mão a
fazer pressão contra o peito. – O programa...
O público desata aos gritos, mais acusações. Perdemo-los.
Por fim, Dominic levanta-se. Sem microfone, pronuncia apenas uma
palavra, tão baixinho que só eu ouço:
– Desculpa.
E depois foge do palco.
32
Há meses, eu convenci-me de que não fazia mal mentir. Era apenas contar
uma história, não era? E agora a verdade apanhou-nos. Não sei ao certo o
que é pior: que toda a gente saiba que somos uma fraude, ou que isso tenha
arrasado Dominic de tal maneira que ele nem sequer tenha conseguido fazer
parte da conversa.
Tínhamos um plano. Éramos coapresentadores, parceiros, aliados.
Em palco, não fomos.
Estou sentada numa das camas de casal do quarto enquanto Kent se
encosta à secretária ao canto, com o Twitter a atualizar-se freneticamente no
ecrã de computador atrás dele.
– Olhem – diz, fechando por fim o portátil. – Só preciso de um momento
para explicar.
Aceno com o braço.
– Força. Começa a falar.
Como que a sopesar como explicar a sua traição, ele puxa a gravata, que
hoje é de um padrão de microfones minúsculos, cada um deles a gozar
comigo. Ruthie está de pernas cruzadas na outra cama, agarrada à sua mala
à tiracolo.
– O programa tem sido um sucesso – diz ele. – Tu e o Dominic são
ótimos e é óbvio que os ouvintes vos adoram.
Não me dou ao trabalho de lhe dizer que devia ter dito tudo aquilo no
pretérito.
– Há algum tempo que a direção se tem mostrado preocupada. Foi preciso
bastante persuasão para os interessar, ao início, mas consegui. Acabaram
por ficar entusiasmados por terem uma coisa nova no ar, sobretudo algo
cujo interesse ia para além da nossa pequena estação. – Suspira e volta a
ajeitar a gravata. – Mas, ultimamente, a direção tem começado a sentir que
o programa é um pouco... sugestivo de mais para a estação, para a rádio
pública em geral. Que é muito mais adequado para um podcast. Não
podemos arriscar-nos a violar uma norma da Comissão Federal de
Comunicações.
– Nesse caso – atalho –, porque é que não se limitaram a acabar com o
programa em direto e em fazer só um podcast? – Custa-me acreditar que a
direção não seja composta sobretudo por velhos brancos heterossexuais.
Ele abana a cabeça.
– Também não queriam isso. Para eles, a única opção era dissociar por
completo Fala Com o Ex da Pacific Public Radio.
Ruthie intervém.
– Mas porquê... – Ela olha de relance para mim, com um olhar incerto por
trás dos óculos de armação transparente. – Não consigo deixar de pensar
que a Shay e o Dominic aceitaram mentir desde o início. Que todos vocês
me trouxeram para este programa sem me contar.
– Ruthie, lamento imenso – digo. – Eu sei que não há desculpa, mas... eu
quis contar-te. Tantas vezes.
– Éramos amigas – diz ela, o que me magoa mais do que qualquer coisa
que Kent tenha dito.
E, no entanto, qualquer coisa não bate certo ali.
– Mas porque haveriam de nos sabotar? Porque é que não se limitaram a
tirar-nos do ar? A deixar que o Dominic voltasse a ser só um repórter? – O
nome dele deixa-me um sabor amargo na língua.
– Havia... interesse. De uns grandes distribuidores de podcasts. Eu sabia
que eles viriam buscar-vos, que vos ofereceriam dinheiro com que não
poderíamos competir. – Passa a mão pela cara enrugada e envelhecida. –
Vejo agora que foi um erro terrível, mas não queria que a estação vos
perdesse. Faças o que fizeres na estação, Shay, seja produzir ou apresentar,
és uma funcionária excecional. Não temos mais ninguém como tu.
Engraçado que nunca me tenha dito isto antes, nem quando lhe propus o
meu episódio sobre luto, nem quando o Puget Sounds foi para o galheiro.
Que conveniente que venha agora à baila.
Pergunto-me se, na verdade, excecional quererá dizer obediente.
– E querias ficar com o Dominic.
Um sorriso culpado.
– Bem... claro.
– Então sabotaste-nos, mesmo antes do episódio mais importante das
nossas carreiras. Fizeste as coisas de maneira a que, se a PPR não pudesse
ficar connosco, mais ninguém ficaria? Essa decisão não devia ter sido tua! –
Pus-me de pé num pulo, com a raiva a pulsar-me nas veias. Nunca senti
uma fúria assim. – Como podes ser tão vingativo?
– Não sabia que as coisas seriam assim – insiste. Tem a lata de parecer
arrependido. – Shay, lamento mesmo muito. Nunca pensei que o público
fosse reagir desta maneira.
Não acredito nele. Acho que planeou as coisas para acontecerem
exatamente assim. Sempre o tinha julgado bem-intencionado – um pouco
insistente, mas, no fundo, um bom tipo. Um bom tipo que queria o melhor
para a sua estação e para o seu pessoal. No entanto, ei-lo, capaz de me
destruir a carreira com um só clique.
Um só clique depois de meses a mentir sem que eu o pusesse em causa.
– Não sabes como é difícil manter esta estação à tona – diz Kent. – Achas
que todos os meios de comunicação são tão nobres como o Dominic julga?
Achas que toda a gente nesta área tem como motivação fazer o bem? O que
as pessoas querem são cliques. Já ninguém quer conteúdo. É assim que nos
mantemos vivos, Shay.
Avanço na direção dele, a desejar ter pelo menos uns centímetros da
altura de Dominic.
– Não. Nem toda a gente. Recuso-me a acreditar nisso. O jornalismo não
é isso.
– Tu aceitaste fazer isto. Se ainda tens alguma ideia altiva do que é o
jornalismo, estás a contar-te uma mentira, tal como fizeste com o teu
público. Isto é uma selva, e nós estamos todos só a tentar sobreviver.
O programa também extirpou essa integridade a Dominic. E talvez ele
tenha sido cúmplice, talvez tenha sido encurralado, mas alinhou. Alinhámos
os dois.
– E agora o que fazemos? – pergunta Ruthie. Quase me tinha esquecido
de que ela continua aqui, e detesto-me por isso.
Kent puxa uma cadeira e senta-se o mais calmamente possível debaixo de
uma paisagem serena pintada a aguarela. Se eu pudesse redecorar este
quarto, punha-lhe cortinados vermelhos e cor de laranja e esfaqueava as
almofadas fofas. Dava cabo disto tudo.
– É aqui que a coisa se complica e, acreditem, detesto fazer isto, mas são
ordens da direção. Eu sou só o mensageiro. – Mais a porra de uma mentira
transparente. – Não posso manter-vos os três na folha de pagamentos, agora
que o programa foi ao ar. Sou capaz de arranjar maneira de manter o
Dominic como pesquisador, pelo menos até isto tudo amainar, e depois
posso voltar a pô-lo no ar como repórter. Mas provavelmente só poderia
ficar com uma de vocês como produtora em part-time... – Os seus olhos
expectantes dardejam para nós.
A minha vontade é pegar fogo a tudo. Ao que parece, não sou
«excecional» que chegue.
– Claro, tens espaço para o Dominic – atiro-lhe. – Estás a falar a sério?
Estás a dizer que eu e a Ruthie podemos escolher quem fica com a tua
oferta especial de produtora a tempo parcial? Eu dei dez anos à merda da
estação e tu achas bem dares-me um prémio de consolação, enquanto o
Dominic fica com um emprego jeitoso pelo qual centenas de pessoas
matariam? Alguma vez te passou pela cabeça que se calhar a estação passa
mal por causa de ti, Kent, e da forma como a geres?
– Eu sei que estás um pouco fragilizada – diz Kent numa voz calma,
como se estivesse a tentar acalmar uma criança que está a fazer uma birra. –
Estamos todos a sentir-nos emocionados...
– Eu não estou nada fragilizada, e tu podes ir para o inferno com a tua
conversa sexista codificada. – Avanço para a porta. – Para mim chega.
Mesmo que tivesses mais do que meio emprego para mim, eu não o
quereria.
Dez anos, e já não interesso à estação. Kent nunca me teve qualquer
espécie de lealdade.
Saio do quarto, pronta para despejar a fúria na única pessoa que me
deveria alguma lealdade.
*
Quero compensar-te.
*
Podemos falar?
*
A minha mãe casa-se no pátio da casa onde cresci, num dia soalheiro de
julho.
Estão quase vinte e cinco graus, perfeito para um verão em Seattle, e ela
está radiante no seu macacão azul-escuro, com o cabelo ruivo arranjado
num coque sofisticado com alguns cabelos a cair-lhe pelos ombros. Phil usa
um fato de linho cinzento-antracite e uma gravata azul-escura, e nenhum
deles consegue parar de sorrir.
O casamento é pequeno, há apenas uns trinta convidados. Os meus pais
sempre tiveram orgulho no nosso jardim das traseiras – sabe Deus que o
meu pai passava imenso tempo a cuidar dele. Afinal, tem espaço suficiente
para uma chuppah, várias filas de cadeiras e uma pequena pista de dança.
Tudo está adornado com rosas amarelas, jarros elegantes, uma união das
flores preferidas da minha mãe e de Phil, e acendemos velas ao longo do
muro. Um quarteto de cordas de amigos deles da orquestra sinfónica está
presente e, mais tarde, eles também vão tocar.
Apercebo-me de que nem toda a gente tem a oportunidade de ver um pai
ou uma mãe tão profundamente apaixonado e isso faz-me sentir afortunada,
poder ter acesso a este lado da minha mãe.
Tê-la visto tão apaixonada não uma vez, mas duas.
Os meus novos meios-irmãos e os filhos são suficientes para que uma
pequena festa ganhe vida e energia e, embora sinta saudades das
celebrações serenas que tinha com os meus pais, acho que podia habituar-
me, bem, à diversão.
Há tanto para preparar que nem tenho uma oportunidade para falar com
Ameena e TJ, que chegam quando a cerimónia está quase a começar. Sei
que, a dada altura, terei de falar com eles, mas estou a adiar isso ao
máximo. A minha mãe é a minha prioridade máxima.
A cerimónia propriamente dita é curta e enternecedora. A minha mãe e
Phil escreveram os seus próprios votos, ambos adequadamente lamechas.
Incorporam a tradição judaica de partir um copo – após a qual todos
gritamos Mazel tov! – e uma tradição nigeriana em que os convidados
fazem chover dinheiro sobre os noivos, que escolhem doá-lo a uma
fundação de apoio a pacientes oncológicos, numa homenagem à primeira
mulher de Phil.
– Como tens passado? – pergunta-me a minha nova meia-irmã, Diana,
depois da cerimónia, quando estamos em fila para o pequeno bufete ao lado
da pista de dança.
– Oh... bem – respondo, pois ainda não temos a intimidade necessária
para que eu seja completamente franca quanto ao facto de andar a afogar-
me em autocompaixão com uma dose saudável de autodesprezo. Mas talvez
um dia venhamos a ter. – Só... à procura de emprego. Por estranho que
pareça, ninguém me tem vindo bater à porta a oferecer-se para me contratar.
– É um mundo duro. Olha, se quiseres tomar conta de crianças – diz, a
agitar as sobrancelhas –, andamos à procura de uma ama.
Obrigo-me a sorrir. Ainda que goste dos filhos dela, não sei se aguentaria
tantas horas com eles. Ainda nem sequer sei se quero ter filhos.
– Oferta tentadora, mas vou ter de recusar – digo, ao que ela estala os
dedos.
– Raios. Estava mesmo com esperança de conseguir um desconto
familiar. As amas não saem baratas.
– Estás a tentar convencer a Shay a ser a nossa ama? – pergunta o marido
dela, Eric, ao aproximar-se com um copo de vinho branco.
– Sim, e não está a funcionar. Quem é que os miúdos estão a aterrorizar
agora?
– Estão sossegadinhos a comer ravioli. Pelo menos durante os próximos
minutos. – Inclina o copo para mim. – Shay, posso trazer-te alguma coisa?
Na última semana, bebi o vinho equivalente ao de ir a dez casamentos,
por isso se calhar é melhor não.
– Estou bem – digo. Meu Deus, são mesmo tão simpáticos. Não sei
porque é que alguma vez me senti relutante em relação a isto. – Obrigada.
Como esperei que toda a gente se servisse do bufete antes de mim, levo o
meu prato com comida para a única mesa que tem cadeiras vazias. Claro
que é aquela a que Ameena e TJ estão sentados. Ela está a usar um vestido
lilás que me lembro de que comprámos numa venda de garagem no ano
passado, e pergunto-me se se lembrará da butique em Capitol Hill onde
comprei o meu azul-claro. Tudo o resto nela me parece tão familiar que
nem dá para acreditar que se passaram meses desde a última vez que
falámos.
TJ dá-lhe um toque delicado para que ela avance.
E eu... vou-me abaixo.
*
Encontramo-nos num restaurante novo que ela diz que faz a melhor
panzanella de Seattle. É uma coisa tão típica de ela dizer que me sinto logo
reconfortada.
Está a usar um dos seus xailes mais ligeiros, para o verão, e tem o cabelo
mais comprido, a rasar-lhe os ombros.
– Parece que não consigo encontrar um produtor tão atento como tu eras –
diz ela com um suspiro enquanto bebe o seu sumo de curcuma. – Mas está a
correr bem. Pensava que não gostava de jazz e, afinal, adoro. Portanto, isso
foi um alívio. E é muito menos stressante do que o que fazia no Puget
Sounds. Stress é a última coisa que quero agora na minha vida.
– É bom ouvir isso – digo. É estranho, este almoço com ela. Quando
trabalhávamos juntas, nunca nos tinha considerado amigas. Nunca fomos
almoçar juntas. Não era que não gostasse de trabalhar para ela. Respeitava-a
e havia uma hierarquia. Ou parecia-me que havia.
Ambas pedimos a panzanella, que eu fico encantada ao descobrir que é
uma salada de pão. Torna-se de imediato o meu tipo preferido de salada.
Ela conduz a conversa como se fosse um programa de rádio.
– O Kent sempre foi um merdoso sexista, desde que o conheço – diz ela.
– Disfarça bem.
– Acho que sempre fui muito rápida a arranjar-lhe desculpas, ou então
tinha medo de dizer o que quer que fosse, porque, bem, ele era o meu chefe.
– Penso na forma como ele dava prioridade à opinião de Dominic sobre a
minha, ou como pedia a uma mulher que tomasse notas numa reunião,
nunca a um homem. Porque a mulher tinha «muito jeito para os
pormenores». Era como se fosse um tratamento especial que nos dava. –
Mas era óbvio que ele adorava o Dominic e eu sentia-me como se fosse de
uma casta abaixo, apesar de estar há imenso tempo na estação.
– É assim que ele age, o sacana matreiro. É muitíssimo simpático para
compensar o facto de não ter o mínimo respeito pelas mulheres. É capaz de
nem se aperceber disso... a misoginia interiorizada é uma droga poderosa.
Mas isso não o desculpa. Também o ouvi gabar-se de contratar pessoas de
cor, como se estivesse a resolver sozinho os problemas de diversidade deste
setor. – Inclina-se para mim com um ar conspirador. – E sabes que uma vez
me convidou a sair com ele?
– O quê?
– Pois. Eu ainda não me tinha assumido no trabalho e, quando lhe disse
que não estava interessada, reagiu como se não tivesse importância. Na
altura ele era o diretor de um departamento noticioso e eu era repórter, e
então começou a atribuir-me as histórias que mais ninguém queria cobrir.
Histórias tão insípidas que a estação nem sequer devia dar-lhes atenção e,
por vezes, ele nem as punha no ar. Tentei falar com ele sobre isso, mas ele
insistia que eu tinha de cumprir a minha parte. Isto durou um ano, até me
chamarem para apresentar o Puget Sounds.
– Meu Deus – digo. – Paloma, lamento imenso.
– O que tornou tudo pior foi que todas as outras pessoas pareciam adorá-
lo tanto, respeitá-lo tanto – continua ela. – E, por causa dessa hierarquia
tácita, eu não podia dizer nada.
A nossa comida chega e ficamos caladas durante alguns minutos, só a
comer.
Por fim, encontro as palavras necessárias para lhe falar das minhas
próprias inseguranças.
– Eu senti um bocado essa hierarquia quando trabalhava contigo –
admito.
– Sim? Por minha causa?
E ela parece tão abalada que tenho vontade de dar o dito por não dito,
mas obrigo-me a continuar:
– É a dinâmica estranha que há entre produtores e locutores, acho. Vocês
são o «talento» e o nosso trabalho é facilitar-vos o vosso.
Apercebo-me de que digo «nosso» como se ainda fosse uma produtora,
como se não tivesse apresentado um programa de sucesso, ainda que depois
fracassado. Talvez, no fundo, ainda o seja.
– Lamento – diz Paloma depois de uma pausa. A seguir, sorri. – Se ajuda,
agora sou eu quem compra as minhas próprias sementes de chia. Uma lição
de humildade.
– Foi difícil deixar a rádio pública?
– Foi difícil ser mandada embora – diz ela. – Tenho a certeza de que o
Kent andava há anos à procura de uma razão para se livrar de mim. Mas
acho que estava na hora de mudar, mesmo que, na altura, me tenha sentido
relutante. Uma coisa é certa, não sinto falta das angariações de fundos.
– Espera, não gostas de implorar a desconhecidos que te deem dinheiro? –
digo eu, e ela ri.
– A rádio pública não tem de ser a tua identidade – diz ela. – Bem, isto
vindo de alguém que se definia completamente dessa maneira. Mas tu ainda
estás no início da tua carreira, e as pessoas têm uma capacidade de atenção
reduzida. Se queres voltar a fazer rádio, podes. Isto não tem de te ser
roubado. Terei todo o gosto em escrever-te uma carta de recomendação, se
achares que isso ajuda. Mas, se não tens a certeza, e se podes... não tem mal
nenhum demorares algum tempo a ponderar sobre qual será o teu próximo
passo.
– É que faço rádio há tanto tempo que não sei para que mais terei jeito.
Ela lança-me um olhar estranho.
– Shay Goldstein – diz ela –, se é isso que achas de ti, não és a pessoa que
eu pensava.
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