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Ficha Técnica

Título: Fala com o Ex


Título original: The Ex Talk
Autor: Rachel Lynn Solomon
Tradução: Raquel Dutra Lopes
ISBN: 9789896612825

QUINTA ESSÊNCIA
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Esta edição segue a grafia do novo acordo ortográfico.

Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, locais, episódios resultam
da imaginação da autora ou são usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas, vivas ou falecidas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou locais é
pura coincidência.
Índice

Capa
Ficha Técnica
I
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Epílogo
Agradecimentos
Rachel Lynn Solomon

FALA COM O EX
Tradução
Raquel Dutra Lopes
Para Ivan
Obrigada por teres embarcado comigo nesta aventura, pelo
teu apoio incessante e por gostares tanto de histórias quanto
eu. Contigo sinto-me sempre em casa.
Não ando à procura de histórias com a ideia fixa de haver algum
engano, não. Mas a verdade é que muitas histórias surgem porque
alguém se engana.
IRA GLASS
I

Dominic Yun está no meu estúdio de gravação.


Ele sabe que é o meu estúdio de gravação. Está cá há quatro meses e é
impossível que não saiba. Consta do calendário partilhado da estação, o que
está ligado ao nosso email, numa bolha azul que diz estúdio c: goldstein,
shay. repete de segunda a sexta, das 11 ao meio-dia. fim: nunca.
Eu podia bater à porta, mas... bem, a característica definidora de um
estúdio de gravação é ser insonorizado. E embora tenha a certeza de que
uma lista dos meus defeitos daria para ocupar uma meia hora de rádio sem
publicidade, não sou assim tão terrível que fosse entrar por ali adentro e
arriscar-me a estragar o que quer que Dominic esteja a gravar. Mesmo que
ele seja o repórter menos qualificado da Pacific Public Radio, eu tenho
demasiado respeito pela arte da mixagem para fazer isso. O que acontece
dentro daquele estúdio deve ser sagrado.
Em vez disso, encosto-me à parede em frente ao Estúdio C, a bufar
silenciosamente, enquanto o sinal vermelho de gravação por cima da
cabina vai piscando.
– Usa outro estúdio, Shay! – diz-me a apresentadora do meu programa,
Paloma Powers, a caminho do almoço. (Yakisoba vegetariano do restaurante
de takeaway do outro lado da rua, todas as terças e quintas dos últimos sete
anos. Fim: Nunca.)
Podia usar outro estúdio. Mas ser passivo-agressiva é muito mais
divertido.
A rádio pública não é ocupada apenas pelo tipo de intelectuais de voz
melosa que pedem dinheiro durante campanhas de angariação de fundos.
Para cada emprego nesta área, deve haver uma centena de licenciados em
comunicação social que «simplesmente adoram o programa This American
Life», e por vezes, para se sobreviver, é preciso ser-se feroz.
Eu sou capaz de ser mais teimosa do que feroz. Essa teimosia conseguiu-
me um estágio aqui há dez anos, e agora, aos vinte e nove, sou a produtora-
sénior mais jovem da estação. Era o que queria fazer desde criança, ainda
que, nessa altura, sonhasse estar em frente a um microfone, em vez de atrás
de um computador.
São onze e vinte quando o estúdio de gravação finalmente se abre, depois
de eu ter garantido a Ruthie Liao, a minha produtora-júnior, que as
promoções entrarão antes do meio-dia, e depois de a jornalista ambiental
Marlene Harrison-Yates me lançar um olhar e desatar a rir, antes de
desaparecer para o interior do consideravelmente inferior Estúdio B.
O que vejo primeiro é o seu sapato, um Oxford preto bem engraxado.
Segue-se o resto do seu metro e oitenta e tal, umas calças cinzento-antracite
e uma camisa cor de vinho com o primeiro botão desabotoado. Emoldurado
pela ombreira do Estúdio C e de sobrolho franzido a rever o guião, poderia
ser uma fotografia de arquivo de business casual.
– Disseste as palavras todas pela ordem certa? – pergunto.
– Acho que sim – responde ele ao guião e não a mim, completamente
sério. – Posso ajudar-te com alguma coisa?
Imbuo a voz de tanta doçura quanto sou capaz.
– Estou só à espera do meu estúdio.
Como ele me bloqueia a passagem, continuo a escrutiná-lo. Tem as
mangas arregaçadas até aos cotovelos e o cabelo preto ligeiramente
despenteado. Se calhar passou as mãos pela cabeça, frustrado quando a
história não lhe saiu exatamente como queria. Seria um contraste
revigorante com as suas histórias mais recentes, que dominam o nosso
website e que obtêm mais cliques por causa de parangonas chamativas,
embora lhes falte qualquer profundidade emocional. Durante os fatídicos
vinte minutos que passou no Estúdio C, talvez se tenha fartado de tal
maneira da rádio pública que em seguida vá dizer a Kent que lamenta
muito, mas não foi feito para este trabalho.
Ele nem sequer está cá há tempo suficiente para compreender as nuances
que distinguem os Estúdio A e B do meu adorado C: o facto de os
auscultadores do Estúdio C terem o desgaste perfeito, de o peso dos
controlos de som na placa os tornar mais fáceis de manipular. Ele também
não está a par da importância do Estúdio C – foi onde misturei pistas para o
primeiro programa que produzi completamente sozinha, sobre ser órfã de
pai no Dia do Pai, que nos deixou as linhas ocupadas durante horas. Escutar
aquelas histórias tinha-me feito sentir, pela primeira vez em anos, um pouco
menos sozinha; recordara-me a razão para ter seguido uma carreira na
rádio.
Eu diria que a questão não se resume ao Estúdio C, sendo igualmente
possível que eu tenha desenvolvido um apego pouco saudável àqueles sete
metros cúbicos de cabos e botões.
– É todo teu – diz ele, mas não se mexe, nem desvia o olhar do guião.
– Deve ser. Todos os dias úteis, das onze ao meio-dia. Se o teu calendário
não está a funcionar, é melhor falares com o apoio informático.
Por fim, ele digna-se a erguer o olhar e a fitar-me. Intensamente. Encosta-
se à ombreira da porta, com os ombros ligeiramente curvados. Passa a vida
a fazer isto e eu suponho que seja porque edifícios de tamanho normal
sejam demasiado pequenos para o confinar. Eu meço um metro e cinquenta
e sete e nunca me sinto tão ciente da minha altura como quando me
encontro perto dele.
Quando a nossa rececionista, Emma, lhe tirou uma fotografia para o
website, passou o tempo todo a corar, provavelmente por ele ser o único
tipo aqui com menos de trinta anos que não é um estagiário. Na foto, ele
tem um ar sério, à exceção de um canto da boca, um minúsculo parêntese a
puxar-lhe os lábios para um lado. Fitei esse canto durante muito tempo
quando a fotografia foi publicada, perguntando-me por que razão Kent teria
contratado alguém que nunca pisara uma estação de rádio. Tinha-se
maravilhado com o mestrado em jornalismo que Dominic tirara na
Northwestern – consistentemente considerado o melhor programa
académico do país – e com a forma como ele açambarcara os prémios do
circuito de jornalismo universitário.
Dominic dirige-me uma versão mais tensa e contida do sorriso da
fotografia do pessoal.
– Eram onze e cinco e não estava cá ninguém. E sou capaz de ter um
grande furo para mais logo. Estou à espera de confirmação de mais uma
fonte.
– Ótimo. Tenho de ir misturar as introduções da Paloma, por isso... – Dou
um passo para entrar no estúdio, mas ele não se mexe, com a sua estatura
impossivelmente alta a bloquear-me a passagem. Sou um cachorrinho a
tentar chamar a atenção de um urso-pardo.
Aquele parêntese repuxa-lhe um pouco mais a boca.
– Não vais perguntar-me o que é o furo?
– Tenho a certeza de que vou ler tudo acerca disso no Seattle Times de
amanhã.
– Oh, onde é que está o teu espírito de equipa? A rádio pública pode dar
notícias – insiste ele. Já tivemos esta discussão uma dúzia de vezes, o que
começou na sua primeira semana, quando ele perguntou porque é que
nenhum dos nossos repórteres frequentava as reuniões do conselho
municipal. – Não seria ótimo adiantarmo-nos a uma história, para variar, em
vez de andarmos sempre a tentar recuperar o tempo perdido?
Dominic parece incapaz de perceber que as notícias de última hora não
são o nosso ponto fonte. Quando lhe disse, durante a formação, que por
vezes os nossos repórteres se limitam a rescrever comunicados noticiosos
do Times, ele olhou para mim como se eu tivesse acabado de dizer que não
íamos distribuir sacos de pano na próxima angariação de fundos. Os nossos
repórteres fazem um ótimo trabalho – um trabalho importante –, mas eu
sempre acreditei que a rádio pública é melhor quando se concentra em
reportagens mais longas, em questões de fundo, em peças de interesse
humano. É isso que faz o meu programa, chamado Puget Sounds, e somos
muito bons nisso. Foi Paloma quem teve a ideia do nome, um jogo de
palavras com Puget Sound, uma enseada estuarina na costa noroeste do
estado de Washington.
– As pessoas não sintonizam a nossa estação à procura de notícias de
última hora – digo, tentando manter a voz baixa. – Já fizemos inquéritos. E
não interessa de onde vem a notícia local de última hora. Amanhã já estará
em todas as estações, blogues e contas de Twitter com vinte e sete
seguidores e ninguém vai querer saber onde a viu primeiro.
Ele cruza os braços, o que chama mais atenção para os seus antebraços à
mostra e para o padrão de pelos pretos que continua pelas mangas acima.
Eu sempre fui uma apreciadora de antebraços – para mim, um homem a
enrolar as mangas até aos cotovelos corresponde praticamente a
preliminares – e acho que é um crime que uns assim tão benfeitos sejam
desperdiçados nele.
– Certo, certo – diz ele. – Tenho de ter presente que a rádio a sério se
concentra em... de que é que trata o teu segmento de hoje?
– Pergunte a Uma Treinadora – respondo erguendo o queixo de uma
maneira que espero que projete confiança. Recuso-me a ficar envergonhada.
É um dos nossos segmentos mais populares, um programa com chamadas
em direto onde a afamada especialista em comportamento animal Mary
Beth Barkley (há uma probabilidade de noventa e oito por cento de que esse
não seja o seu verdadeiro nome) responde a perguntas dos ouvintes. Ela
leva sempre o seu corgi e é um facto inquestionável que os cães tornam
tudo melhor.
– Estás a proporcionar um verdadeiro serviço público, quando analisas
vómito de gato em direto. – Ele afasta-se do estúdio e a porta fecha-se com
um baque. – Devia estar doente em casa nesse dia durante o mestrado. Não
há muita gente capaz de captar essa nuance como o teu programa o faz.
Antes que eu possa responder-lhe, Kent avança pelo corredor, com a sua
indumentária característica de suspensórios e uma gravata garrida. Hoje tem
um padrão de piza de pepperoni. Kent O’Grady: o diretor de programas da
estação e senhor de uma voz de rádio que o tornou uma lenda em Seattle há
décadas.
Tenta dar uma palmada no ombro de Dominic, mas, como é apenas uns
centímetros mais alto do que eu, acerta-lhe no bíceps.
– Era mesmo convosco que eu queria falar. Dom, como vai essa história?
Temos um escândalo em mãos?
Dom. Em dez anos, eu nunca tinha visto Kent a sacar de um diminutivo
tão depressa.
– Escândalo? – pergunto eu, com o interesse espicaçado.
– É bem possível – diz Dominic. – Estou à espera de mais um telefonema
para confirmar.
– Excelente. – Kent passa uma mão pela barba que vai ficando grisalha. –
Shay, a Paloma tem tempo no início do programa para uma entrevista em
direto com o Dom?
– Em direto? – repete Dominic. – Quer dizer... sem ser pré-gravada?
– Claro – diz Kent. – Queremos ser os primeiros a apresentar esta
história.
– É preciso apressarmo-nos para as notícias de última hora – digo eu
enquanto Dominic empalidece. Embora não adore a ideia de lhe ceder
tempo, se ele fica desconfortável, então alinho. – Suponho que possamos
ceder uns minutos do Pergunte a Uma Treinadora.
Kent estala os dedos.
– Lembrem-me de falar com a Mary Beth antes que se vá embora.
Ultimamente a Meatball só come se passar cada pedacinho da tigela para o
chão.
– São só uns minutos, certo? – A voz de Dominic treme.
– Cinco, no máximo. Vai ser fantástico.
Kent lança-nos um sorriso e volta para o seu gabinete.
– Por favor, não me estragues o programa – digo a Dominic antes de me
escapar para o Estúdio C.
*

Dominic Yun está no meu estúdio.


Tecnicamente, são três estúdios adjacentes: aquele em que estou com a
consola de locução e mixagem – isto é, «a mesa» –, o pequeno estúdio de
chamadas e o Estúdio A, onde Paloma se encontra neste momento com as
suas notas do programa, uma garrafa de kombucha e uma garrafa de água
vazia. Dominic está sentado ao lado dela, a retorcer as mãos depois de
entornar a dita garrafa em cima das notas de Paloma. Ruthie teve de ir a
correr imprimir outra cópia.
– A Mary Beth já chegou – anuncia Ruthie, que entra no estúdio atrás de
mim depois limpar a porcaria que Dominic fez. – E sim, tem água, e o cão
dela também tem água.
– Perfeito. Obrigada.
Ponho os auscultadores e passo os olhos pelo resumo do programa, com o
coração a latejar ao ritmo familiar do genérico.
Puget Sounds é uma explosão de adrenalina todos os dias da semana, das
duas às três da tarde. Sendo a produtora-sénior, dirijo o programa em direto:
dou indicações a Paloma, chamo convidados e ponho-os no ar, controlo o
tempo despendido em cada segmento e apago um sem-número de fogos.
Ruthie traz os convidados e o nosso estagiário, Griffin, opera a linha de
chamadas no estúdio adjacente.
Por vezes, nem acredito que posso fazer isto cinco vezes por semana.
Milhares de pessoas por toda a cidade sintonizam o rádio, ligam as
aplicações e abrem os navegadores de internet na frequência 88.3 FM, e
algumas sentem-se tão inspiradas, divertidas ou até furiosas que nos ligam
para partilhar uma história ou fazer uma pergunta. Esse elemento interativo
– ouvir Paloma pelas colunas num momento e conversar com ela em direto
no momento seguinte – é o que faz da rádio a melhor forma de jornalismo.
Torna o mundo um pouco mais pequeno. Podemos estar a ouvir um
programa com centenas de milhares de fãs espalhados pelo país, mas
continua a parecer que o apresentador fala diretamente connosco. Nalguns
casos, é quase como se fôssemos dois amigos.
Balanço os botins castanhos na trave mais baixa do banco onde costumo
sentar-me. Ao meu lado, Ruthie ajusta os auscultadores por cima do seu
cabelo louro platinado com um corte pixie antes de me pousar uma mão na
perna para que eu pare de me remexer.
– Vai correr bem – diz ela, a indicar Dominic com a cabeça através do
vidro que nos separa. Tentamos ser discretos quanto ao nosso
desentendimento, mas Ruthie, com toda a sua intuição de «à beira da
Geração Z», deu por isso escassas semanas depois de ele ter começado a
trabalhar. – Já lidei com pior.
– É verdade. Vais ser a minha heroína para sempre, depois de teres
reagendado os quatro convidados do nosso programa sobre medos
irracionais à última da hora.
Eu adoro Ruthie, que nos chegou vinda da rádio comercial, que é mais
acelerada, apesar das pausas constantes para anúncios. De vez em quando,
dou por ela a trautear entre dentes o jingle do 1-877-KARS-4-KIDS. Ela diz
que vive atormentada por isso.
No centro do estúdio, Jason Burns levanta-se da sua cadeira de locutor,
uma engenhoca ergonómica que mandou vir especificamente da Suécia. A
mesa alonga-se à sua frente.
– Silêncio no estúdio, por favor – diz ele na sua voz calorosa de xarope de
ácer, com as mãos a pairar sobre um par de controlos. Jason é um tipo
querido na casa dos trinta anos, que nunca vi a usar outra coisa que não
flanela aos quadrados e calças de ganga, a farda de lenhadores e dos
naturais de Seattle.
Ao lado do relógio, o sinal de A GRAVAR acende-se.
– Está a ouvir a 88.3 FM, Pacific Public Radio – diz ele. – Já a seguir,
uma notícia de última hora em Puget Sounds. Depois, Paloma Powers
apresenta a uma treinadora as perguntas mais prementes dos ouvintes sobre
comportamento animal. Mas, primeiro, as notícias do país, da NPR.
O sinal de A GRAVAR desliga-se. E depois: Do Noticiário da NPR em
Washington, DC, o meu nome é Shanti Gupta...
Há poucos sons mais tranquilizadores do que a voz de um locutor de
notícias da NPR, mas Shanti Gupta não me acalma como é habitual. Estou
demasiado concentrada no quão errado é ver Dominic sentado ao lado de
Paloma.
Carrego no botão que me liga a Dominic.
– Não fiques tão perto do microfone – digo-lhe, e ele deve ter-se
assustado com a minha voz nos ouvidos, pois as suas sobrancelhas quase
lhe chegam à linha do cabelo. – Senão tudo o que ouvimos é a tua
respiração pesada.
A boca dele mexe-se, mas eu não ouço nada.
– Tens de carregar no...
– Não queres mesmo que eu me saia bem, pois não?
A pergunta ressoa-me nos ouvidos. Se Paloma está a prestar atenção, não
o demonstra, ocupada a tomar notas nas margens do seu resumo. De
repente, a minha camisola parece-me demasiado quente.
Há dez anos, era eu o prodígio, a estagiária que criava resumos perfeitos e
investigava tópicos cativantes para programas, provando a Paloma e ao seu
antigo produtor, um tipo que se reformou antes de eu ficar com o seu lugar,
que era especial. «Tão boa, e só tem dezanove anos!», bradava Kent. «Um
dia ainda vai mandar nisto tudo.»
Eu não queria mandar naquilo. Só queria contar boas histórias.
E ali está Dominic: a nossa contratação mais recente, acabado de sair de
um mestrado, já no ar.
– Vamos entrar em direto dentro de dez – diz Jason antes que eu possa
responder, pelo que ponho os ciúmes de parte para me concentrar no que
sempre foi a melhor parte do meu trabalho.
Deslizo do banco e estabeleço contacto visual com Paloma, esticando o
braço para cima numas doze horas imaginadas.
– Cinco, quatro, três, dois...
Então baixo o braço, aponto-lhe um dedo e ela está no ar.
– O meu nome é Paloma Powers, e está a ouvir Puget Sounds – diz ela,
com os seus modos experientes. A sua voz parece chocolate preto, grave e
madura com um laivo de feminidade. Há imensa força numa voz assim, na
capacidade de levar as pessoas não só a ouvir, mas a querer saber.
Uma música vai tocando em pano de fundo, uma melodia animada ao
piano que Jason reduzirá e apagará assim que ela acabe a introdução.
– Hoje temos connosco em estúdio a famosa especialista em
comportamento animal, Mary Beth Barkley, para responder a todas as suas
dúvidas sobre animais de estimação. Talvez queira saber como introduzir
um novo gatinho em casa, ou se pode realmente ensinar truques a um cão
velho. Nós queremos ouvi-lo, por isso ligue para o 206-555-8803 e
tentaremos dar-lhe resposta. Mas antes, uma notícia de última hora do
jornalista Dominic Yun, que se junta a nós ao vivo aqui no estúdio.
Dominic, bem-vindo a Puget Sounds.
Dominic não diz nada. Nem sequer está a olhar para ela, limita-se a fitar
as suas notas como se continuasse à espera de uma deixa.
Ar morto não é bom. Por norma, conseguimos sobreviver uns segundos
sem que os ouvintes se queixem, mas, se for mais do que isso, temos um
problema sério.
– Merda – diz Ruthie.
– Diz qualquer coisa – murmuro aos ouvidos dele. Aceno com os braços,
mas ele está completamente paralisado.
Bem, se me destruir o programa, pelo menos há de ir ao fundo também.
– Dominic – insta-o Paloma, ainda perfeitamente animada. – Estamos tão
contentes por te ter cá!
Então algo entra em ação, como se a adrenalina finalmente lhe tivesse
alcançado a corrente sanguínea. Ele pestaneja, volta à vida e inclina-se para
o microfone.
– Obrigado, Paloma – diz ele, primeiro um pouco tremido, mas depois a
estabilizar. – Estou encantado por estar aqui. Na verdade, o teu programa
foi o primeiro que ouvi antes de me mudar para Seattle para este emprego.
– Fantástico – diz Paloma. – O que tens para nos contar?
Ele endireita-se.
– Começou com uma denúncia anónima. E eu sei o que deves estar a
pensar. Por vezes uma denúncia anónima pode ser apenas um rumor, mas,
fazendo as perguntas certas, descobre-se a história verdadeira. Neste caso,
eu tive a sensação... podemos dizer que foi intuição jornalística... de que era
certeira. Investiguei algo similar acerca de um professor quando andava na
Northwestern. – Uma pausa dramática e depois: – O que descobri foi que o
presidente da câmara Scott Healey tem uma segunda família. E, embora ele
tenha direito a uma vida privada, usou fundos de campanha para manter
isso em segredo.
– Meeeeeerda – diz Jason, ao mesmo tempo que vira a cadeira para olhar
para mim e para Ruthie. Nos bastidores, não nos limitamos propriamente a
uma linguagem cuidada.
– Sabia que havia um motivo para não ter votado nele – diz Ruthie. –
Nunca gostei da cara dele.
– Isso... isso é uma acusação forte, Dominic – replica Paloma, claramente
abalada mas a recuperar rapidamente. – O presidente da câmara Healey já
veio várias vezes ao nosso programa. Podes contar-nos como chegaste a
essa conclusão?
– Tudo começou numa reunião municipal no mês passado... – Ele
mergulha na história: como encontrou os registos financeiros e seguiu o
rasto do dinheiro, como acabou por convencer a filha secreta do presidente
da câmara a falar com ele.
Passam-se dois minutos. Três. Quando nos aproximamos dos cinco, tento
fazer sinal a Paloma para que mude de segmento, mas ela está demasiado
concentrada em Dominic. Começo a perguntar-me se será possível cortar o
cabo de um microfone com as unhas.
– Não consigo acompanhar as linhas telefónicas – diz-me a voz de Griffin
ao ouvido.
Carrego no botão para falar diretamente com ele.
– Toma nota das perguntas e diz-lhes que a Mary Beth vai responder a
tantas quantas conseguir.
– Não... são acerca do presidente da câmara. As pessoas querem falar
com o Dominic.
Oh. OK. A ranger os dentes, entro no chat do programa.
*

Estão a entrar chamadas, o D pode responder a ?s?


*

– Parece que estamos a receber muitas perguntas – diz Paloma, depois de


espreitar o ecrã. – Estarias disposto a atender algumas chamadas dos
ouvintes?
– Claro, Paloma – responde ele, com o à-vontade de um jornalista
calejado e não de alguém que brincou com um gravador digital umas
quantas vezes na faculdade e decidiu que trabalhar na rádio até podia ser
boa ideia.
Quando os seus olhos fitam os meus através da barreira de vidro, todo o
desdém que sinto por ele me arde no peito, deixando-me o coração
enlouquecido. O seu maxilar bem definido fá-lo parecer mais resoluto do
que eu alguma vez o tinha visto, como se ele soubesse o quanto eu
antigamente desejava fazer aquilo. A sua boca inclina-se para cima, num
meio sorriso triunfante. Fazer comentários em tempo real: outra coisa em
que Dominic Yun é instantaneamente perfeito.
Kent irrompe pela porta.
– Shay, vamos ter de reagendar a Mary Beth. Isto é rádio da boa, porra.
– Ruthie – digo eu, mas ela já está a sair.
– Belo trabalho, malta – diz Kent, dando uma palmada no ombro de
Jason. – Ainda bem que conseguimos fazer isto hoje.
Entorto os óculos enquanto coço o espaço entre os olhos, onde uma dor
de cabeça começa a crescer.
– Isto não está bem – digo, depois de Kent se ir embora.
– Isto é rádio da boa, porra – cantarola Jason, a imitá-lo.
– Parece invasivo.
– O público não tem o direito de saber que o presidente da câmara é um
canalha dissimulado?
– Tem, mas não no nosso programa.
Jason segue o meu olhar, dividindo o seu entre mim e Dominic. Fomos
contratados com umas semanas de intervalo e ele conhece-me demasiado
bem para não perceber porque é que estou irritada.
– Detestas que o Dominic seja tão bom nisto – diz ele. – Detestas que
tenha um talento inato e que esteja ao vivo no ar uns meses depois de ter
começado a trabalhar aqui.
– Eu... – começo, mas baralho-me com as palavras. Posto assim, faz-me
parecer mesmo merdosa. – Não importa o que eu sinto. Não tenho qualquer
vontade de ir para o ar.
Já me deixei disso, pelo menos. Não serve de nada desejar uma coisa que
sei que nunca vai acontecer.
Ruthie volta, de faces coradas.
– A Mary Beth está lixada. – Põe os auscultadores nas orelhas. – Diz que
teve de cancelar uma sessão privada de treino com um dos filhos do Bill
Gates para vir cá.
– Depois mandamos-lhe um email a implorar-lhe que nos perdoe. Não...
eu telefono-lhe.
– Não temos linhas que cheguem – ouço a voz de Griffin pelo auricular.
– Ruthie, podes ir ajudar o Griffin? Eu também vou se for preciso.
– Estou a ir.
– Obrigada.
Dominic lê cada um dos pagamentos ilícitos. Os números são
impressionantes. Não é que isto seja um programa mau... o problema é que
se transformou no programa de Dominic e eu deixei de o controlar. A
estrela é ele.
Por isso, recosto-me e deixo que Paloma e Dominic assumam o controlo.
Dominic ganhará elogios e audiências e eu ficarei aqui mesmo, nos
bastidores.
Fim: nunca.
2

Apesar de nunca ter estado no ar, o meu pai tinha uma ótima voz de rádio.
Era forte mas suave, uma fogueira a crepitar na noite mais fria do ano.
Consertava rádios desde pequeno e tinha uma loja de reparações
eletrónicas, embora tivesse obviamente acabado por também aprender a
arranjar portáteis e telemóveis. Goldstein Gadgets: o meu lugar favorito no
mundo inteiro.
Quanto a mim, herdei a sua paixão pela rádio pública, mas não a sua voz.
A minha voz é do género agudo que os homens adoram usar como arma
contra as mulheres. Estridente. Pouco inteligente. Menineira, como se ser
menina fosse o pior insulto possível. Fui gozada durante toda a vida e ainda
me preparo para insultos astuciosamente dissimulados quando falo com
alguém pela primeira vez.
O meu pai nunca se importou com isso. Apresentávamos programas na
cozinha («Conte-me, Shay Goldstein, que tipo de cereais vai comer esta
manhã?») e em viagens de carro («Poderá descrever o cenário nesta estação
de serviço no meio de nenhures?»). Eu passava tardes inteiras com ele na
Goldstein Gadgets, a fazer os trabalhos de casa e a ouvir programas
desportivos, Car Talk, This American Life. Tudo o que precisávamos era de
uma boa história.
Eu queria tanto que ele me ouvisse na rádio, mesmo que mais ninguém o
fizesse.
Quando ele morreu no meu último ano da escola secundária depois de
uma paragem cardíaca súbita, isso deu cabo de mim. As aulas perderam
qualquer importância. Os amigos perderam qualquer importância. Passei
semanas sem ligar o rádio. Não sei como, consegui uma média de 14 para
entrar na Universidade de Washington, mas não fui capaz sequer de o
celebrar. Ainda estava submersa na depressão quando consegui o estágio na
Pacific Public Radio e devagar, devagar, fui saindo da escuridão e ganhando
a convicção de que a única forma de avançar era tentar reconstruir o que
tinha perdido. E aqui estou, aos vinte e nove anos, agarrada a esse sonho
infantil.
– Faz as pessoas chorar e depois fá-las rir – dizia o meu pai. – Mas,
sobretudo, assegura-te de que estás a contar uma boa história.
Não sei ao certo o que ele teria pensado de Pergunta a Uma Treinadora.
*

Este noite, sou o pau de cabeleira do jantar. Quando saio do trânsito da


hora de ponta, a minha mãe e o namorado, Phil, e a minha melhor amiga,
Ameena, e o namorado, TJ, já estão sentados no restaurante de fusão
franco-vietnamita perto de Capitol Hill. Eu e Ameena Chaudry crescemos
na mesma rua, uma em frente à outra, e ela é uma presença constante na
minha vida há mais de vinte anos.
– Só estás dez minutos atrasada – diz Ameena, saltando da cadeira para
me dar um abraço. – Deve ser um novo recorde, não?
TJ saca do telemóvel para verificar a aplicação das notas.
– Uma vez em março chegámos todos a horas exceto a Shay, que só se
atrasou três minutos.
Reviro os olhos, mas a culpa dá-me a volta ao estômago.
– Também estou muito contente por vos ver. E lamento mesmo. Estava a
apressar-me para acabar uma última coisa e perdi a noção do tempo.
Tentamos marcar jantares tão frequentemente quanto possível, mas a
minha mãe e Phil são violinistas da Orquestra Sinfónica de Seattle, com
espetáculos noturnos regulares, Ameena é recrutadora da Microsoft e TJ faz
qualquer coisa importante na área das finanças que eu nunca percebi bem.
De vez em quando – pronto, quase sempre –, fico até tarde na estação para
me assegurar de que tudo está preparado para o programa do dia seguinte.
Hoje passei uma hora ao telefone a pedir desculpa a Mary Beth Barkley.
Abraço a minha mãe e TJ e depois aperto a mão a Phil. Ainda não sei
bem como reagir ao facto de a minha mãe ter um namorado. Até conhecer
Phil, ela não parecia interessada em sair com outras pessoas. Mas já eram
amigos há anos, e ele perdera a mulher uns anos depois de nós termos
perdido o meu pai. Apoiaram-se um ao outro no processo do luto, que, na
verdade, nunca acaba, até que se tornaram outro tipo de sistema de apoio.
Já devia estar habituada, mas, quando eles começaram a namorar, no ano
passado, eu tinha acabado de me habituar à ideia de a minha mãe ser viúva.
– Por mais que adore meter-me com a Shay – diz ela com um pequeno
sorriso na minha direção –, estou a morrer de fome. Pedimos entradas?
Phil aponta para o menu.
– Dizem que as costeletas de porco picantes com cominhos são incríveis
– diz ele, no seu sotaque nigeriano.
Depois de fazermos os pedidos e trocarmos os habituais «e como foi o teu
dia», Ameena e TJ entreolham-se rapidamente. Antes de terem começado a
namorar, eu e Ameena é que trocávamos olhares de esguelha e piadas
privadas. Ser o pau de cabeleira só se torna ligeiramente avassalador
quando me apercebo de que não sou a pessoa especial de ninguém. Ameena
e TJ vivem juntos, pelo que é natural que ela partilhe segredos com ele
antes de os partilhar comigo, e a minha mãe tem Phil. Sou uma sólida
segunda escolha, mas não sou a primeira escolha de ninguém.
Também estou num hiato de aplicações para conhecer pessoas, algo que
faço de vez em quando, quando deslizar para a esquerda ou para a direita se
torna particularmente frustrante. As minhas relações parecem condenadas a
nunca durar mais do que uma mancheia de meses. Quero tanto chegar ao
ponto em que Ameena e TJ se encontram, um namoro de cinco anos depois
de lhes terem trocado por acidente os pedidos num café, que é possível que
precipite as coisas. Nunca aconteceu não ser a primeira a dizer amo-te e há
um limite para o número de vezes que é possível aguentar o silêncio total
em resposta.
Mas não vou mentir – quero ser essa primeira pessoa a quem alguém
conta tudo.
– Tenho uma novidade – diz Ameena. – Tenho uma entrevista para a
Nature Conservancy. Portanto não é propriamente uma novidade, mas
quase. É só a primeira entrevista por telefone, mas... – Ela deixa a frase
inacabada e encolhe os ombros, mas os seus olhos escuros brilham de
entusiasmo.
Quando começou a trabalhar na Microsoft, o seu objetivo era ganhar
experiência suficiente para depois poder fazer recrutamento para uma
organização que faz o bem, de preferência com pendor ambientalista. Ela
foi a presidente e fundadora do Clube de Compostagem da nossa
secundária. Como não podia deixar de ser, eu fui a sua vice-presidente. É
uma adepta da slow fashion, compra todas as suas roupas em lojas de roupa
em segunda mão e em feiras de beneficência, e ela e TJ têm um
impressionante jardim de ervas aromáticas na varanda do apartamento.
– A sério? Isso é incrível! – exclamo, ao mesmo tempo que levo a mão a
uma costeleta que o empregado pousa no meio da mesa. – Têm um
escritório em Seattle?
A sua expressão animada fraqueja.
– Bem, não – diz ela. – Estão na Virgínia. Quero dizer, duvido de que
fique com o emprego.
– Não te rejeites a ti mesma antes de teres sido entrevistada, sequer – diz
Phil. – Sabes quantas pessoas vão às audições para a orquestra sinfónica?
As probabilidades também nunca estiveram a nosso favor, se bem que eu
continuo a achar um disparate que a Leanna tenha tido de tentar três vezes.
A minha mãe aperta-lhe o braço, mas o elogio fá-la sorrir de orelha a
orelha.
– A Virgínia fica... longe – é o meu comentário inteligente.
– Ignoremos a parte da Virgínia por ora. – Ameena sacode um fio solto do
blazer antracite vintage pelo qual competimos numa venda de garagem no
mês passado. – Mas não vou mesmo consegui-lo. Sou a recrutadora mais
nova da minha equipa. Provavelmente, vão querer alguém com mais
experiência.
– Sinto falta de ser a mais jovem – digo, levando a sério a sugestão de
«vamos só ignorar a parte da Virgínia». Isso não é algo que eu consiga
sequer começar a compreender. – Parece que os estagiários ficam mais
novos a cada ano que passa. E são todos tão ávidos e com um ar tão fresco.
No outro dia, um deles disse-me mesmo que não sabia como era uma
cassete.
– Como esse repórter de que estás sempre a falar? – pergunta a minha
mãe. – Como é que ele se chama?
– Dominic qualquer coisa, certo? – atalha Phil. – Gostei da peça que ele
apresentou acerca do financiamento das artes em Seattle, comparado com
outras cidades.
– Esse não é um estagiário, é o jornalista preferido do Kent.
E, ao que parece, a nova estrela do Puget Sounds, segundo a busca que fiz
pelas redes sociais depois do programa. O Twitter adorou-o, o que só prova
que o Twitter é um lugar infernal.
– Fala comigo quando fizeres trinta – diz Ameena. Celebrámos o seu
trigésimo aniversário há dois meses, em dezembro, e será a minha vez em
outubro. Ainda estou em negação.
A minha mãe acena com a mão.
– Poupem-me. Vocês as duas ainda são bebés.
Apesar de dizer isto, a minha mãe é linda: cabelo ruivo-escuro, uns
malares acentuados e um armário cheio de vestidos pretos chiques que
fariam Audrey Hepburn chorar silenciosa e belamente. Numa orquestra
sinfónica de cinquenta músicos, as atenções focam-se nela todas as noites.
Solto o cabelo do habitual rabo de cavalo baixo e penteio com os dedos as
madeixas compridas que me rasam a parte de cima dos óculos com
armações de tartaruga. Grosso, castanho e crespo: os únicos adjetivos que
descrevem o meu cabelo, e todos são trágicos. Pensava que por esta altura
já teria aprendido a dar-lhe forma, mas nalguns dias luto com um alisador e
noutros com um ferro modelador, antes de me resignar a mais um rabo de
cavalo.
Só quando examino a minha mãe, em busca de semelhanças físicas entre
nós – aviso à navegação: não há nenhumas – é que reparo que ela está
esquisita. Não para de esfregar a base do pescoço, que é o sinal revelador de
que está nervosa, e, quando a comida chega, empurra-a de um lado para o
outro no prato, em vez de a comer. Ela e Phil costumam ser bastante
afetuosos. Tivemos uma especialista em linguagem corporal no programa
aqui há uns tempos, e a forma como falou de pessoas a apaixonarem-se
descrevia-os na perfeição. Phil está sempre a encostar a mão ao fundo das
costas dela e é frequente ela levar a palma da mão ao rosto dele e acariciá-lo
com o polegar.
Hoje não há nada disso.
– Como vai a casa? – pergunta Phil e eu respondo com um gemido
dramático. Ele levanta as mãos e solta uma gargalhada. – Ah, desculpa. Não
tinha noção de que era um assunto sensível.
– Não, não – digo eu, embora até seja. – A casa está bem, só que gostava
de ter esperado por alguma coisa mais pequena.
– Não tem três quartos? E uma casa de banho?
– Sim, mas...
Durante anos, eu e Ameena partilhámos um apartamento em Ballard,
antes de ela ter ido viver com TJ. Comprar uma casa parecia o passo a dar
em seguida: eu tinha quase trinta anos, poupara dinheiro suficiente e não ia
deixar Seattle tão cedo. Trabalhar para a rádio pública é como servir o
Supremo Tribunal – a maior parte das pessoas fica lá muito tempo. Mesmo
que eu quisesse ir para o ar, não encontraria trabalho noutra estação. É
impossível conseguir um emprego de locutor sem experiência, mas não dá
para obter essa experiência a menos que já se tenha alguma experiência. As
alegrias dos millenials à procura de emprego.
Por isso, porque parecia ser o passo seguinte no manual de «como ser
adulto», comprei uma casa. Uma Wallingford Craftsman a que o meu
agente imobiliário chamava acolhedora, mas que é mais frequente parecer
demasiado grande para uma pessoa. Está sempre fria e, seis meses depois
de ter escolhido o tipo de móveis que achava que queria, continua a parecer
vazia. Solitária.
– Suponho que ainda tenha muito trabalho a fazer – acabo, embora não
saiba ao certo que «trabalho» será esse.
– Foi uma boa decisão financeira – diz Phil. – Comprar uma casa é
sempre um bom investimento. E um dos meus filhos teria todo o gosto em
ajudar-te com pinturas ou reparações de que precises.
Phil tem três filhos e uma filha. Todos os Adeleke são altos, estão em
forma e felizes nos seus casamentos, a maioria já com filhos. Há uns meses,
eu e a minha mãe passámos o nosso primeiro Natal com a grande família de
Phil, abdicando da tradição judaica de comida chinesa e um filme. Ao
início, eu tinha hesitado, mas apenas porque gosto de passar esse tempo
com a minha mãe; no entanto, todos foram afáveis e hospitaleiros e foi
impossível manter qualquer amargura.
– Obrigada – respondo. – Se calhar, ainda aceito.
Um copo de água parte-se e a minha mãe esboça um sorriso
envergonhado.
– Desculpem – diz ela enquanto um empregado se apressa para limpar.
– Estás bem, Leanna? – pergunta Phil.
Ela comprime os lábios cor de rubi e acena com a cabeça.
– Tudo bem. Sim. Estou ótima. – Leva a mão ao pescoço outra vez. –
Phil, eu... preciso de dizer uma coisa.
Oh, não. Ela não acabaria com ele assim, pois não? Não em frente a um
grupo, não em público. A minha mãe é demasiado elegante para fazer uma
coisa dessas.
Ameena parece tão intrigada quanto eu. Todos pousamos os garfos, a ver
a minha mãe afastar a cadeira e levantar-se, a tremer a olhos vistos. Oh,
meu Deus... estará doente? Se calhar foi por isso que quis marcar este
jantar, para poder dizer-nos a todos de uma vez.
Sinto um aperto no estômago e, de repente, tenho a impressão de que vou
vomitar. A minha mãe é tudo o que tenho. Não posso perdê-la também.
Mas ela depois sorri e os meus ombros descaem de alívio enquanto
começa a falar.
– Phil – diz, num tom que acho que nunca lhe ouvi. Ela pousa a mão no
braço dele. – Eu sei que só se passaram onze meses, mas foram os melhores
que tive em muito, muito tempo.
– Para mim também – diz ele. Um sorriso instala-se nas rugas finas da
sua pele escura. Parece que talvez já tenha percebido o que aí vem, e agora
tenho a impressão de que também sei o que será. Ela vai pedir-lhe que vá
viver consigo, tenho a certeza. É estranho que o faça em público, mas a
minha mãe sempre teve uma forma peculiar de fazer as coisas. Isso é
mesmo típico da Leanna, dizia o meu pai com um encolher de ombros
quando ela fazia sopa numa liquidificadora antes de a ferver no micro-
ondas, ou insistia em fazer lanternas com abóboras no início de setembro.
– Depois de o Dan morrer, nunca pensei que fosse ter uma segunda
oportunidade. Pensava que tinha encontrado a pessoa certa e ela morrera,
pelo que para mim tudo tinha acabado. Mas tu estiveste sempre ali, não é
verdade? Sentado ao meu lado, a tocar violino. Apaixonei-me pela tua
música e depois apaixonei-me por ti. Sabes tão bem quanto eu que a dor
nunca nos abandona, mas tu fizeste-me perceber que o amor pode viver ao
lado da dor. Não quero passar mais tempo sem estar casada contigo. Por
isso... – Aqui faz uma pausa, respira fundo. – Philip Adeleke, casas
comigo?
A sala fica num silêncio de morte, todos os olhos estão fixos na nossa
mesa, a assistir a este pedido de casamento. O meu coração bate com mais
força do que antes de um programa e, pelo canto do olho, vejo TJ a agarrar
uma mão de Ameena.
Phil salta da cadeira tão depressa que também entorna o seu copo de
água, pelo que talvez sejam realmente feitos um para o outro.
– Sim, Leanna, sim – diz ele. – Amo-te tanto. Sim, sim, sim.
Quando se beijam, todo o restaurante desata a aplaudir. Um empregado
traz-nos copos de champanhe. Ameena seca os olhos e pergunta-me se eu
sabia que isto ia acontecer, se eu sabia que a minha mãe estava a planear
isto, e não. Não, eu não sabia.
Obrigo-me a levantar-me para lhes dar os parabéns, à minha mãe e ao
meu... padrasto? Há demasiadas emoções a percorrer-me e só consigo
identificar algumas. Estou contente por eles, claro que estou. Quero que a
minha mãe seja feliz. Ela merece.
Mas passei tantos anos convencida de que ninguém poderia substituir o
meu pai que nunca imaginei que alguém viesse a fazê-lo.
Ameena bombardeia-os com perguntas acerca do casamento. Afinal, Phil
estava a planear pedir a minha mãe em casamento no próximo fim de
semana, mas ela conseguiu antecipar-se porque hashtag feminismo.
Querem que aconteça em breve, dizem. Naturalmente, um quarteto da
orquestra sinfónica tocará no copo-d’água.
Por fim, Phil leva a minha mãe do restaurante para «celebrarem» – como
se não soubéssemos todos o que isso quer dizer –, deixando-me com
Ameena e TJ a acabar o champanhe.
– A Leanna Goldstein é a minha heroína – diz Ameena. – Nem consigo
acreditar que pudemos ser parte daquilo.
Eu quero ser capaz de dizer o mesmo, que Leanna Goldstein é a minha
heroína – e é, por muitos motivos. Pela forma como me deixou processar a
morte do meu pai ao meu próprio ritmo, com o meu próprio terapeuta, antes
de as duas fazermos terapia familiar. Por me ter convencido de que
continuávamos a poder ser uma família, mesmo que fôssemos só as duas.
Pequenas mas valentes, dizia ela. Sempre soube que eu viria a trabalhar na
rádio, embora por vezes diga a brincar que pelo menos poderia ter arranjado
um meio-termo e encontrado um emprego numa estação de música clássica.
– Estás bem? – pergunta-me TJ enquanto nos preparamos para ir embora.
Enfia o cabelo louro num gorro tricotado. – É esquisito, eu sei. Tanto o meu
pai como a minha mãe voltaram a casar e não há dúvida de que se demora
algum tempo a ficar habituado.
– Acho que nunca me tinha passado pela cabeça ir ao casamento da
minha mãe antes do meu. – Na minha cabeça, era uma piada. Quando o
digo, não parece.
Ameena aperta-me a mão.
– É intenso. Demora o tempo de que precisares para processar isto, OK?
Aceno com a cabeça.
– Boa sorte para a entrevista – digo-lhe, a dar voltas à mala em busca das
chaves quando passamos para a noite gelada de Seattle. A minha casa vai
estar tão silenciosa quando chegar. Está sempre. – De certeza que não
queres ir lá a casa e ver qualquer coisa má na televisão, ou assim?
– Shay. Adoro-te, mas precisas de aprender a ficar sozinha na tua própria
casa. Precisas de que volte a ver se há monstros debaixo da tua cama?
– Talvez.
Ameena abana a cabeça.
– Arranja um cão.
*

Assim que chego a casa, ligo todas as luzes e ponho a dar o episódio mais
recente do meu podcast de comédia favorito. São quase nove da noite e
passei demasiado tempo longe do email, apesar das poucas vezes que o
verifiquei na casa de banho. (Suficientes para a minha mãe me perguntar se
eu estava bem, o que é um tudo-nada embaraçoso quando se é adulto,
pensar que a nossa mãe se preocupa com os nossos intestinos.)
Preparo chá e instalo-me no sofá com o portátil do trabalho. Realmente
fico satisfeita a ajudar outros a contar histórias, por oposição a contá-las eu.
Paloma fá-lo melhor do que eu alguma vez seria capaz, ainda que por vezes
não contemos o tipo de histórias que adoro, epopeias avassaladoras sobre a
experiência humana que só se ouvem em estações com um orçamento
maior. Por vezes pergunto-me se satisfeita será na verdade um sinónimo de
resignada.
Mas tento não pensar nisso.
Depois de o meu pai morrer, procurei consolo onde quer que pudesse
encontrá-lo. Fumava ganzas com Ameena, curtia com o tipo giro do quarto
em frente ao meu no primeiro ano da faculdade, tive uma má experiência
que me ensinou quanto álcool o meu corpo aguentava. Não fiz nada de
extraordinariamente mau para a saúde; não perdi o controlo, mas queria
aproximar-me o suficiente disso para ver o que haveria do outro lado.
A única coisa que fez com que voltasse a sentir-me eu mesma foi o
estágio na PPR. Foi então que percebi que a solução não era impulsividade,
mas sim consistência. E claro que sim; a rádio sempre me tinha feito sentir
mais próxima do meu pai. Conseguiria o emprego estável, a casa num
bairro onde era possível passear, e o namorado devotado, que um dia seria
marido. Ameena continuava a ser a minha melhor amiga; a minha mãe
continuava sozinha. À exceção da minha vida amorosa, tudo o resto correra
basicamente de acordo com o plano.
Mas que Phil passe a ser meu padrasto – isso vai mudar as coisas.
E, historicamente, eu não tenho lidado lá muito bem com a mudança.
Uma casa sempre fez parte do meu plano e devia parecer-me um feito
tremendo. Já a tenho há seis meses, mas estou sempre no processo de a
tornar minha. Passo horas a vasculhar lojas de antiguidades em busca do
tipo certo de arte antes de comprar no Target alguns borrões abstratos
produzidos em massa, ou experimento uma dúzia de amostras de tinta para
a sala antes de me dar conta de que nenhuma me parece bem, sem nunca ter
energia para pintar por cima. Quando tínhamos vinte e poucos anos, eu e
Ameena sonhávamos com os jantares que daríamos quando tivéssemos
espaço, mas agora estamos sempre exaustas. Na maior parte do tempo,
acabo a cozinhar qualquer coisa com ingredientes pré-embalados que me
aparecem à porta duas vezes por semana.
Sempre que imaginei a idade adulta, era algo diferente desta realidade.
Todas as pessoas importantes na minha vida têm alguém. Eu tenho uma
casa vazia e o meu suposto emprego de sonho, que nem sempre me
corresponde ao afeto.
Apesar do que a sensatez me aconselha, volto a ouvir o programa de hoje.
Quando comecei, estava sempre a fazer isto, ávida por formas de melhorar,
mas há algum tempo que não o faço. Vezes sem conta, ouço as respostas de
Dominic, a tentar perceber o que terá sido, ao certo, que os ouvintes
acharam tão cativante. Ele demora alguns minutos a equilibrar-se; a
cadência da sua voz altera-se e as suas palavras tornam-se suaves, como
uma cobertura cremosa sobre um bolo red velvet. Não é um robô, como eu
poderia ter julgado que seria antes de o ter ouvido no ar. É quase como se
não quisesse que alguém descobrisse que ele estava a fazer alguma coisa
ilegal, diz num tom fingido de surpresa que me provoca um sorriso.
Responde às perguntas dos ouvintes como se se preocupasse genuinamente
com as suas preocupações e, mesmo quando não sabe a resposta, dá o seu
melhor por convencê-los de que vai descobrir.
Por mais que deteste admiti-lo, Dominic Yun em Puget Sounds foi boa
rádio.
Até o meu pai teria concordado.
3

– Reunião de emergência – anuncia Kent O’Grady na manhã seguinte, antes


de eu ter tido tempo sequer de abrir o casaco. – Sala de conferências. Cinco
minutos. Só pessoal sénior.
Eu nunca fui sénior o suficiente para participar numa reunião de
emergência da PPR. A minha promoção, em título e ligeiro aumento
salarial, aconteceu há poucos meses. A forma como Kent traz a gravata com
um padrão de M. C. Escher torta, como se estivesse tão nervoso hoje de
manhã que nem tivesse reparado, é perturbadora, mas continua a ser ótimo
ser incluída.
Penduro o casaco ao lado da secretária e tiro o portátil, o telemóvel e o
bloco de notas da minha mala à tiracolo. O meu telemóvel acende-se com
uma notificação de uma das aplicações de encontros que não cheguei a
apagar.
*

Sentimos a tua falta! 27 correspondências esperam por ti.


*

Elimino-a e arrasto a aplicação para o lixo. É a única ação que tenho tido
ultimamente: o Tinder e o Bumble a esforçarem-se desesperadamente por
me conquistar de novo.
A nossa redação funciona em open space, com gabinetes reservados para
os mais seniores do pessoal sénior. O meu espaço está pejado de canecas de
café vazias que mais logo, sem falta, hei de pôr na máquina de lavar a loiça.
O pessoal vai-se revezando na cozinha e, durante os meus primeiros dois
anos na PPR, calhava-me sempre limpá-la à sexta-feira. Pensava que estava
apenas a pagar as favas de ser novata, mas nunca vi Griffin, o nosso
estagiário do Puget Sounds, no horário que é organizado semanalmente pelo
nosso gestor. Nunca me pareceu suficientemente importante para apresentar
o problema ao departamento de RH.
Depois há o meu sistema intrincado de arquivamento de resumos
passados e, afixado ao lado do meu computador, um cartaz da PodCon
autografado pelos apresentadores do meu podcast preferido sobre cinema.
A PodCon é uma convenção anual de rádio e podcasting, o que, se parece
coisa de cromos, é porque é, mas também é o melhor. Fui lá há uns anos
quando teve lugar em Seattle e, embora fosse um sonho ir na qualidade de
apresentadora, obviamente uma rádio local não tem interesse nacional.
Na secretária em frente à minha, Paloma está a juntar sementes de linhaça
e chia a um iogurte islandês. Ela chega todos os dias às oito da manhã e sai
às quatro, imediatamente a seguir a terminarmos a reunião do programa da
tarde.
– Reunião de emergência? – pergunto-lhe.
Estamos com as contratações congeladas; Dominic foi a última pessoa a
entrar antes de isso ser implementado. Pergunto-me se a reunião terá algo
que ver com as finanças da estação. Ela mistura o iogurte.
– É só o Kent a ser dramático. Sabes que adora um bom espetáculo.
Provavelmente vamos fazer uma angariação de fundos ou qualquer coisa do
género. – A Paloma está cá há mais de duas décadas, pelo que, se ela não
está preocupada, talvez eu não deva estar. – Por acaso não tens por aí umas
sementes de chia, não? As minhas acabaram agora.
E embora nunca tenha comido uma semente de chia na vida, levo a mão à
gaveta da secretária e tiro de lá um pacote cheio.
É o que faz um bom produtor. Treinei-me para saber o que Paloma quer
antes de ela própria saber, para antecipar todas as suas necessidades. Se o
apresentador não estiver feliz, o programa não pode ser ótimo. É por causa
de Paloma que as pessoas adoram o Puget Sounds, e é por minha causa que
Paloma consegue apresentar um programa tão bom.
– És um amor – diz ela, e aponta para o iogurte. – A sério. O que faria eu
sem ti?
– Comerias iogurte medíocre, obviamente.
Eu costumava morrer de medo dela. Cresci a ouvi-la apresentar as
notícias da manhã e, quando a conheci no primeiro dia do meu estágio,
engasguei-me com as palavras, incapaz de acreditar que ela fosse real.
Puget Sounds foi ideia dela e, mesmo hoje, não há muitas locutoras na rádio
pública, e ainda menos que sejam queer.
Paloma tem quarenta e muitos anos, não tem filhos, e ela e a mulher, que
é professora de história de arte, passam duas semanas todos os verões num
local remoto de que eu nunca ouvi falar, voltando com histórias acerca de
como se perderam, ficaram sem comida ou escaparam por pouco a algum
animal selvagem. No entanto, enquanto aqui está, opera segundo um
horário tão específico que, se eu alguma vez me fosse embora, seriam
necessárias semanas para treinar alguém só para responder a todas as suas
idiossincrasias.
Paloma reajusta o xaile de malha azul-escura e verde e leva o iogurte pelo
corredor fora até à sala de conferências, onde se torna evidente de imediato
que aquilo é um Assunto Muito Sério. Todos têm um ar sombrio e ninguém
está a olhar para o telemóvel. Até as pessoas dos programas da manhã, que
costumam ser mais animadas do que deveriam, mostram ligeiramente
menos ânimo do que é habitual.
Paloma poderá não estar preocupada, mas eu hesito à entrada,
subitamente avassalada pela sensação de onde é que eu me sento? que
conhecia tão bem na secundária quando a minha hora de almoço não
coincidia com a de Ameena. Uma reunião do pessoal sénior continua a
parecer um clube para o qual entrei enganando alguém.
Uma figura alta de camisa azul-celeste às riscas aproxima-se, vindo do
outro lado do corredor, e eu aperto o bloco de notas com mais força. Hoje
Dominic está de calças de ganga, uma raridade para ele. Estão
perfeitamente engomadas, sem uma marca à vista. Esse é mais um motivo
para a sua altura ser tão frustrante: se ele não fosse um gigante, ser-me-ia
mais fácil olhá-lo nos olhos, em vez de catalogar a sua escolha de calças.
– A reunião é só para o pessoal sénior – digo-lhe, esboçando um sorriso
de falsa compaixão. Um sítio onde eu me enquadro e ele não. – Lamento.
– Dom! Entra – chama-o Kent, à cabeceira da mesa, a acenar-lhe para que
avance.
E, sem mais, ele passa por mim com o seu termo de café, já empossado
no clube de que eu demorei anos a fazer parte. Espero que o café lhe
queime a língua.
– Uma reportagem excelente – diz o editor-sénior, Paul Wagner. – E o
presidente da câmara demitiu-se? – Deixa escapar um assobio baixo.
– Obrigado, Paul – responde Dominic, passando a mão livre pelo cabelo,
que está com um ar um pouco mais descaído do que é habitual. – Compensa
ter de chegar aqui às cinco da manhã, isso é certo. – Ah. Isso explica tudo.
Paul solta uma gargalhada sincera.
– As notícias não dormem.
Eu costumo vir a ouvir a PPR a caminho do trabalho, mas hoje de manhã
estive a acabar de ouvir um podcast. A investigação de Dominic levou o
presidente da câmara a pedir a demissão. Não admira que tenha obtido
entrada livre nesta reunião. Não que isso me vá impedir de continuar a
insurgir-me mentalmente.
Sento-me ao lado de Paloma e abro o bloco de notas numa página em
branco. Reunião de Emergência, escrevo no cimo da página, a sentir-me um
pouco menos importante por Dominic também estar presente.
– Bom dia – exclama Kent quando já todos estamos sentados. – É sempre
um prazer ver os rostos sorridentes de todos de manhã bem cedo. – A sua
gravata com um padrão de M. C. Escher é hipnótica e por vezes esqueço-
me de como consegue ser apelativo em frente a um grupo. Faz lembrar a
personagem de Rob Lowe em Parks and Rec: positivo até mais não. – Shay,
não te importas de tomar notas? Tens tanta atenção aos pormenores.
– Oh... claro – digo eu, já a riscar Reunião de Emergência e a virar para a
página seguinte, onde o reescrevo de uma forma mais legível. Não esperava
que me pusessem a trabalhar na primeira reunião do pessoal sénior em que
participo, mas suponho que tenha atenção aos pormenores. E não vou
contestar um elogio de Kent.
– Para começar – continua ele –, gostaria de dar os parabéns ao Dominic
pela sua exposição de ontem, tanto ao vivo no Puget Sounds como ao longo
da noite, quando deu seguimento à história.
Contenho a vontade de revirar os olhos e tomo a decisão executiva de não
registar aquele momento particular. Dominic parece fazer uma tentativa de
se mostrar humilde e as suas faces coram antes de ele levantar uma mão,
como se quisesse lembrar-nos a todos quem é.
– Vai lá direto ao assunto, Kent – diz Isabel Fernandez, a produtora do
programa matinal. Sempre tivemos apenas uma relação cordial, nunca
fomos amigas, mas, de repente, adoro-a. – Vamos fazer uma angariação de
fundos para conseguirmos mais dinheiro, ou quê?
– Não acabámos agora mesmo de fazer uma? – pergunta Marlene
Harrison-Yates.
– Estamos sempre ou a acabar de fazer uma angariação de fundos, ou a
começar outra – resmunga Paloma a meu lado e eu contenho o riso, porque
ela não está errada.
– Não, não, nada disso. Bom. – Kent pigarreira e endireita uma pilha de
papéis. – Vamos reordenar a nossa programação.
Bem, aquilo é que é um eufemismo.
– Por favor, não me ponhas outra vez a fazer as manhãs – diz Paloma.
– E eu não quero as tardes – diz o apresentador matinal do trânsito, Mike
Russo.
– Deixem-no falar – peço eu e Kent dirige-me um sorriso agradecido que
acalma, só um pouco, a agitação que me vai no estômago.
– Eu e a direção estávamos a pensar... em algo como um programa novo.
A sala volta a mergulhar no caos. Do outro lado da mesa, Dominic olha
para mim, com uma das sobrancelhas escuras a arquear-se de uma forma
que não sei exatamente interpretar. Não sei porque é que continuamos a
estabelecer contacto visual assim, quando passo grande parte do meu dia a
esperar não ter de me cruzar com ele. Devolvo o olhar às minhas notas.
– Temos o nosso programa da manhã, o nosso programa do meio-dia e o
nosso programa da noite – diz Kent. – E o feedback que temos recebido dos
ouvintes é que são demasiado parecidos. – Ele carrega num botão e vários
gráficos coloridos aparecem no ecrã do projetor. – Não se identificam com
os apresentadores como antigamente, não como o fazem a nível nacional ou
com alguns dos podcasts mais populares.
– Desculpa lá – intervém Paloma num tom altivo –, mas o Pudget Sounds
não tem nada que ver com o At the Moment.
– E não podemos propriamente convidar um comediante para apresentar
as notícias da manhã – atalha Isabel.
Porém, Kent não está errado. Como somos uma estação que faz parte da
rede da NPR, controlamos a nossa programação e podemos emitir qualquer
um dos programas nacionais. Naturalmente, estes têm mais audiências do
que os nossos programas locais. O seu nome é mais reconhecido e, como
passo a vida a dizer a Dominic, é uma batalha perdida à partida levar as
pessoas a interessarem-se por notícias locais.
– Um programa novo significa livrarmo-nos de algum dos nossos
programas emblemáticos?
Kent abana a cabeça.
– Não quero que ninguém tire conclusões precipitadas. Esta reunião é só
para gerarmos ideias.
Uma sessão de brainstorming com produtores, apresentadores e
repórteres costuma funcionar da seguinte forma: os apresentadores e os
repórteres assumem o controlo. Os produtores ficam calados. Não é fácil
opinar numa sala cheia de gente cujo trabalho consiste em falar.
– E se fosse uma mesa-redonda para comentar as notícias? – sugere
Dominic. – Podíamos convidar políticos locais e outros líderes todas as
semanas para nos porem a par do que se passa no trabalho que
desenvolvem.
Que seca.
Isabel, abençoada seja, enterra essa ideia, coisa que eu sublinho nas
minhas notas.
– Já tentámos isso há quinze anos. Durou o quê, uns meses?
– Há quinze anos, o mercado era diferente – argumenta Dominic.
– Exatamente. Era mais fácil. – Isabel estica o braço na direção do ecrã e
do gráfico que mostra como o público ouvinte de Puget Sounds tem vindo a
diminuir ao longo dos anos. Não é um gráfico simpático: o Puget Sounds
foi o programa emblemático da estação com a queda mais acentuada. –
Agora toda a gente tem um podcast, e os seus netos também. Há demasiada
oferta. É impossível destacarmo-nos.
– Qualquer coisa que se foque no ambiente – sugere Marlene. – No
Noroeste, toda a gente se preocupa com o ambiente. Cada programa poderia
concentrar-se em pequenas ações que as pessoas podem levar a cabo para
reduzir a pegada de carbono. Já tenho uma data de gravações sobre
agricultura sustentável.
– Não estamos a pensar em grande – queixa-se Kent. – Já somos
hiperlocais, não é isso que se quer.
Mike sugere um programa de culinária e Paul um de ficção, coisa que
adoro. Mas Kent diz que isso é demasiado colado ao The Moth, e
provavelmente é por isso que adoro a ideia. Dominic apresenta mais umas
quantas ideias relacionadas com notícias, que, sem que eu perceba como,
conseguem parecer ainda menos interessantes do que a primeira. Um
verdadeiro triunfo.
– E se fosse um programa sobre encontros? – murmuro, mais para um
botão da minha saia de bombazina do que para o grupo, partindo do
princípio de que ninguém prestará atenção à produtora-sénior menos
calejada da PPR. Não é algo de que alguém já tenha falado e, depois do
noivado da minha mãe e de o telemóvel a recordar-me que continuo
solteira, está bem presente na minha mente.
Porém, Marlene ouve-me.
– A rádio pública não se mete nisso. E por bons motivos: os regulamentos
da Comissão Federal de Comunicações. Qualquer coisa quente seria difícil
de ser aprovada.
– Mas é possível fazer algo sobre encontros sem provocar a CFC – diz
Paloma, e sinto um arroubo de orgulho por ela vir em minha defesa. – No
ano passado tivemos um segmento sobre saúde reprodutiva e outro sobre
educação sexual nas escolas secundárias.
– Sim! – exclama Isabel. – Mas qualquer coisa nova. Qualquer coisa fora
do comum.
Do outro lado da mesa, Dominic revira os olhos com tanta força que até
tenho medo que fique a ver mal. Decerto um programa de encontros não
cabe na sua ideia de fiz-um-mestrado-em-jornalismo-e-sei-o-que-deve-ser-
a-rádio-pública.
– E se fosse um programa sobre encontros apresentado por um casal de
namorados? – sugere Paloma.
– Isso já foi feito – diz Kent. – Uma dúzia de vezes, numa dúzia de outros
podcasts.
– Um programa sobre encontros apresentado por ex-namorados – digo eu,
meio a brincar.
Todos se calam.
– Continua – incentiva-me Paloma. – Um programa sobre encontros
apresentado por ex-namorados?
Não era minha intenção fazê-lo parecer tão interessante – é apenas uma
potencial abordagem nova para um programa sobre encontros. Mas talvez
não seja má ideia.
– Hã – digo, a sentir o rosto aquecer, como sempre que fico no centro das
atenções. Apesar de estar numa sala só com gente que conheço, todos eles
têm vozes incríveis, o que me deixa ainda mais consciente do som da
minha. Esta torna-se mais aguda e nasalada do que é habitual. Estas pessoas
não dizem hã, nem tipo. Não se engasgam com as palavras.
Dominic observa-me intensamente, como se eu fosse a barra de notícias a
passar num canal de televisão por cabo. Mesmo sentado, tem uma postura
tão rígida, os ombros tão direitos, que só pode chegar a casa com dores nos
músculos. Não pela primeira vez desde o início da reunião, dou por mim a
desejar que não se tivesse sentado mesmo à minha frente.
– Bem. – Um excelente começo. Isto é tal e qual como propor um
segmento na reunião semanal da minha equipa. Sou capaz. Já todos me
ouviram falar. Ninguém está a julgar a minha voz e, se estiverem, não farão
comentários trocistas. – Um programa sobre encontros apresentado por ex-
namorados. É... exatamente aquilo que parece, na verdade. Interessávamos
os ouvintes na relação deles, em como se tinham aproximado e no que
levou ao fim da relação. E interessávamo-los neles como amigos, como
coapresentadores, como o que quer que sejam agora que a relação terminou.
Seria parte narrativa, parte informativo. Em cada episódio, poderiam revelar
mais acerca do seu passado e também poderiam explorar tendências nos
encontros atuais, ou entrevistar especialistas em relacionamentos, ou até dar
conselhos em direto para ajudar os ouvintes a perceber o que correu mal.
E fico surpreendida, enquanto me ouço falar, por estar a descrever algo
que adoraria ouvir. Por vezes, a rádio pública é avessa à diversão, mas uma
coisa assim – o meu pai teria ficado entusiasmado. Seria como uma mistura
de This American Life com Modern Love. Poderíamos fazer um programa
que seguisse cada um dos lados de um encontro marcado através do Tinder,
ou outro a seguir pessoas que tivessem deixado de responder a mensagens
de outras.
É então que tenho de parar. Mentalmente, estou a dizer nós, como se eu
fosse a produtora desse programa. Eu já tenho um programa.
– Como o Kent disse, há montes de programas sobre relações, muitos
deles apresentados por casais – digo, a ganhar mais confiança. Os meus
colegas, o resto do pessoal sénior e Dominic, continuam a ouvir-me. –
Mas... e se tentássemos perceber realmente o que corre mal nas relações,
pondo dois «ex» a apresentá-lo e a falar sobre os seus problemas? Porque é
isso que as pessoas querem saber, não é? O que fizeram mal?
É uma pergunta que me fiz muitas vezes. Permito-me sorrir e descontrair
de novo na cadeira.
– Eu adoro essa ideia – diz a repórter Jacqueline Guillaumont, depois de a
conversa na sala se silenciar de novo. – Eu ouviria esse programa.
– É pouco convencional – comenta Mike –, mas tenho de dizer que me
agrada a forma como a Shay pensa. Se calhar é disso que precisamos, de
uma coisa assim, fora da caixa.
– Precisaríamos de dois «ex» para o apresentar – diz Isabel. – Mas acho
que isso se arranja.
Paloma estende a mão e rabisca no meu bloco de notas: Bom trabalho, eu
sinto-me a inchar de orgulho.
– Lamento, mas não estou a ver como é que isso poderia funcionar – diz
Dominic, rebentando-me essa bolha de orgulho. Surge-lhe uma ruga entre
as sobrancelhas.
– Porque não?
Estou tão concentrada nele, naquele desejo súbito de carregar com força
naquele vinco entre as suas sobrancelhas, que praticamente nem oiço
Paloma a raspar o fundo da embalagem de iogurte. A única vez que reúno
coragem para falar numa reunião destas – uma reunião para que ele nem
deveria ter sido convidado – e ele ataca a minha ideia.
– Não é propriamente um trabalho investigativo inovador.
– E desde quando é que tudo precisa de o ser? Poria as pessoas a falar e
atrairia ouvintes fora da nossa audiência habitual. Talvez até aumentasse as
contribuições para a estação. – Olho diretamente para Kent ao dizê-lo. –
Não podemos denunciar presidentes da câmara todos os dias.
– Não, mas pelo menos deveríamos comportar-nos com um mínimo de
decoro – riposta Dominic, como se cuspisse aquela última palavra ao
inclinar-se para a frente, agarrado à beira da mesa. – «Ex» a criticarem-se
sobre o que os levou a acabar? A darem conselhos amorosos? – troça ele. –
Isso mais parece qualquer coisa de rádio por satélite, ou, Deus nos livre,
rádio comercial. Parece... sórdido.
– E expor a vida privada do presidente da câmara não?
– Se é notícia, não.
O resto da sala parece estranhamente interessada no que estamos a dizer.
Kent tem estado a escrevinhar no seu bloco de notas, invulgarmente calado.
Nunca vi ninguém discutir assim numa reunião, e estou convencida de que
ele vai mandar-nos parar. Quando não o faz, continuo.
– Tu achas que a rádio pública é só uma coisa, mas não é – digo, a apertar
a caneta com toda a força que tenho. Imagino que a tampa voa e lhe mancha
o peito de tinta negra, dando-lhe cabo da camisa que ele deve ter escolhido
com imenso cuidado hoje de manhã. Pinga por aquelas riscas azuis e suja-
lhe também as calças. – E é esse o seu encanto. Pode ser educativa, mas
também pode ser comovente, emocionante ou divertida. Não nos limitamos
a comunicar factos, contamos histórias. Tu trabalhas cá há quatro meses e
achas que tens o setor todo dominado?
– Bem, é verdade que tenho um mestrado em jornalismo. Da
Northwestern. – Diz o nome da escola com imensa descontração, como se
não fosse muito difícil entrar ou as propinas não custassem sessenta mil
dólares. – Por isso até acho que o diploma pendurado em cima da minha
secretária me dá as qualificações necessárias para falar de jornalismo.
Por fim, Kent levanta uma mão, indicando-nos que nos acalmemos.
– Há aqui muito em que pensar – diz ele e, com duas palavras, faz-me
perder toda a esperança. – Mais ideias?
*

Passados outros vinte minutos, Kent encerra a reunião, esforçando-se ao


máximo para nos tranquilizar quanto ao futuro da estação.
– Isto é só uma primeira fase – diz ele. – Não vamos implementar
mudanças na programação para já.
Ainda assim, é difícil ignorar a camada subtil de preocupação que cobre a
conversa dos meus colegas enquanto saem com as suas canecas de café frio.
Deixo-me ficar para ser a última a deixar a sala, a ver se evito Dominic.
Infelizmente, este está à minha espera no corredor, preparado para atacar.
– Credo! – exclamo quando ele me assusta, e tapo o coração acelerado
com o bloco de notas. – O que foi, não acabaste de me dar lições sobre o
trabalho que tenho há dez anos?
A ruga volta a instalar-se entre as sobrancelhas dele e, desta feita, a sua
expressão é mais suave do que na reunião.
– Shay, eu...
– Dom! Shay! – interrompe-nos Kent, o que me irrita um pouco porque,
por um segundo, me pareceu que Dominic até ia pedir-me desculpa.
Mas isso seria tão provável como Terry Gross deixar de apresentar Fresh
Air.
– Kent – digo, munida do meu próprio pedido de desculpas. – Lamento
imenso o que aconteceu ali dentro. A coisa descontrolou-se.
Tudo o que ele diz é:
– Tenho de ir a umas reuniões, mas quero falar convosco no final do dia.
Podem ir ao meu gabinete às cinco e meia? Ótimo. – E, sem mais, vira-se e
segue pelo corredor afora, deixando-me com Dominic.
– E eu tenho de gravar uma entrevista. – Faz um pequeno sorriso antes de
recuperar a personalidade demoníaca e acrescentar: – No Estúdio A. Para o
caso de quereres saber.
4

O gabinete de Kent é um verdadeiro altar à rádio pública. Tem fotografias


que o mostram a trocar apertos de mão com todos os nomes sonantes da
NPR, fileiras de prémios emoldurados e uma prateleira cheia de
equipamento antigo de gravação.
Eu passei o dia todo distraída. Ruthie acabou por me puxar para uma
cabina insonorizada antes do almoço, desesperada por informação depois de
ter passado a manhã a ouvir zunzuns. Falei-lhe da reunião de emergência
daquela manhã e, com alguma relutância, da discussão com Dominic e da
ideia que tinha tido.
Os olhos dela arregalaram-se por trás dos óculos de armação transparente.
– Uma programa assim está mesmo a precisar de um nome chamativo.
Qualquer coisa como... O Show dos Ex, ou Fala Com o Ex.
Resfoleguei, mas adorei logo.
– Tipo conversa de sexo?
– Exatamente. Demasiado atrevido para a NPR?
– Talvez – respondi, mas, na verdade, não sabia. E foi só uma ideia que
atirei no meio de uma reunião de brainstorming, não é provável que se
torne muito mais do que isso. A rádio pública não é rápida a inovar.
Quando nos sentamos nas cadeiras em frente à secretária de Kent, ele diz
que vai preparar um chá e já volta. Dominic levanta-se e começa a andar de
um lado para o outro.
– Estás a deixar-me tonta – digo-lhe.
– Não tens de ficar a ver. – Ainda assim, detém-se debaixo da fotografia
de um Kent muito novo e ensanduichado entre Tom e Ray Magliozzi, os
tipo do programa Car Talk. Encosta-se e inclina-se... claro. Já sabemos, és
alto. – Nervosa?
Encolho os ombros, sem querer transparecer o quão desconfortável esta
reunião me faz sentir. No que diz respeito a Kent, não faço ideia do que
esperar. Antes, ele intimidava-me, e embora estejamos longe de ser amigos,
sempre nos demos bem. Ou, pelo menos, eu sempre fiz exatamente o que
ele me tem pedido e nunca tivemos razão para interações prolongadas. A
seu pedido, ocupei-me de mais turnos de angariação de fundos e, quando
ainda tinha direito a isso, nunca o incomodei com horas extras, nem quando
ficava a trabalhar até altas horas da noite. Agora essas horas tardias
tornaram-se um hábito de que não consigo livrar-me.
– Trabalho aqui há quase dez anos. Já não fico nervosa.
– Dez anos, e continuas a fazer o mesmo – diz ele. – Não te fartas?
– Felizmente, chegaste tu para agitar as coisas. Não é entediante ter de
reagendar uma convidada à última da hora, depois de a termos marcado
com meses de antecedência, e que saiu prejudicada no seu negócio por
causa disso.
– Oh – diz ele, como se aquilo nunca lhe tivesse realmente passado pela
cabeça. – Não me dei conta. Merda. Lamento. Ela ficou chateada?
– Consegui acalmá-la – digo, espantada com a sua resposta. Será que ia
mesmo pedir desculpa hoje de manhã, também? – Para o mês que vem
vamos fazer um programa inteiro dedicado ao comportamento animal, para
compensar. E, antes que digas alguma coisa, sim, eu sei que isso não é
trabalho investigativo, mas esses programas são mesmo populares.
Sobretudo durante angariações de fundos.
Ele levanta as mãos.
– Não ia dizer nada. Na faculdade tivemos uma aula acerca de como
devíamos rebaixar-nos se tivéssemos irritado uma fonte.
Paro.
– Espera aí, estás a falar a sério?
Depois a fachada cai e ele solta uma gargalhada. Um ah forte e ofegado
que ficaria distorcido se o fizesse ao microfone. Número de vezes que o
ouvi rir nos últimos quatro meses: menos de dez. As notícias nunca têm
graça, ao que parece.
– Não, mas não há dúvida de que, por um segundo, até acreditaste.
Hum. Que estranho momento de autoconsciência. Será que ele sabe que
fala da faculdade sempre que pode?
Kent volta a entrar com uma caneca de chá a fumegar.
– Shay, Dom – diz-nos, com um aceno de cabeça para cada.
Dominic volta a sentar-se na cadeira ao pé de mim e só então reparo que
as nossas cadeiras estão um pouco próximas de mais. Há uns trinta
centímetros entre nós e as pernas dele são tão compridas que os joelhos
batem na secretária de Kent. Sinto o cheiro da sua água de colónia. Sal
marinho e mais qualquer coisa... sálvia?
Seria embaraçoso afastar a cadeira. Sofrerei em silêncio.
Kent bebe um gole lento de chá e fecha os olhos por um momento, como
se estivesse a saboreá-lo. Quando os abre, o seu rosto abre-se também num
sorriso, e eu fico profunda e completamente confusa.
– É tão óbvio – diz ele. – Está mesmo à nossa frente. – Mais um gole de
chá e depois pressiona os lábios. – É quase simples, na verdade.
– O quê? – pergunta Dominic, com uma nota de irritação na voz. É
ligeira, mas está presente.
– Vocês os dois. A apresentar o programa sobre encontros da Shay.
Segue-se um breve silêncio antes de ambos desatarmos a rir. A declaração
de Kent não faz o menor sentido, mas ele di-lo com um ar tão displicente...
O meu coração salta ao ouvir a palavra apresentar, mas aquilo só pode ser
uma piada. Ele deveria querer dizer produzir.
Atrevo-me a olhar para Dominic, e é capaz de ser a primeira vez que o
vejo genuinamente divertido. Costuma estar tão sério, tão estoico,
compenetradíssimo no papel de repórter objetivo. Há franqueza naquela sua
nova expressão.
– Nem sequer sei por onde começar – diz Dominic entre risadas e, pronto,
já está a tornar-se irritante. Não precisa de se rir tanto da ideia do programa,
pois não? – Isso é uma piada?
– Não é piada nenhuma – diz Kent, e ocorre-me que talvez tenhamos
enlouquecido os três. – O que achas?
– Para além do óbvio, como o facto de a Shay nunca ter apresentado um
programa... nós nunca namorámos – diz Dominic e, embora eu me ofenda
um pouco, ele não está errado. Há mil buracos na sugestão de Kent, mas,
apesar do conteúdo do programa, eu não sou uma locutora. Não tenho a
formação certa, a experiência certa, ou a voz certa.
– Tu também nunca apresentaste um programa – comento.
– Mas já estive no ar.
Não quero pôr-me a discutir com ele em frente a Kent, mas não suporto a
sua arrogância.
– Estiveste ao vivo pela primeira vez ontem? – Bato-lhe palmas,
exageradamente. – Suponho que tenhas aprendido tudo o que há para saber
sobre jornalismo num ano de mestrado e depois tudo acerca de rádio em
direto durante um programa de uma hora. Pois, faz sentido.
O sorriso de Kent é aterrador.
– Estão a ver? É isto. É disto que estou a falar. Esta... esta coisa que há
entre vocês. É fascinante. Vejo a forma como vocês se comportam na
redação. Eu sei que passo muito tempo neste gabinete, mas sou percetivo.
Vocês têm uma química fantástica, um conflito natural. O Dominic só quer
saber das notícias e dos factos puros e duros, e, Shay, tu gostas das peças
mais suaves, focadas na componente humana.
Não me agrada a forma como ele diz suave, como se a sugerir que o que
prefiro é mais feminino.
– Os ouvintes vão escolher um lado ou o outro – continua Kent. – A
Equipa Dom ou a Equipa Shay. Podíamos usar hashtags, capitalizar mesmo
o ângulo das redes sociais.
– Mas eu sou um repórter – diz Dominic. – E dos bons, caramba, a julgar
pelo que aconteceu nos últimos dias.
– E eu sei que também consegues tratar do interesse humano – diz Kent. –
Aquele artigo que escreveste na faculdade, aquela narrativa pessoal? Todos
o lemos quando te candidataste ao emprego aqui. Era envolvente e era
lindo.
Ele deve estar a falar do artigo mais elogiado de Dominic, uma história
sobre ter viajado até à Coreia do Sul e conhecido os avós. Não chorei, como
o resto da redação, mas mantive uma caixa de lenços por perto. Não fosse o
diabo tecê-las.
– Acho que estamos a distrair-nos do maior problema aqui – digo, com
demasiada desenvoltura na voz para uma conversa com o meu chefe, mas a
verdade é que nunca falei com um superior acerca da minha vida amorosa
(ou da falta dela). Tudo isto é surreal. – Eu e o Dominic não somos ex-
namorados. Nunca tivemos qualquer tipo de relação.
Ken acena com a mão.
– Vocês os dois são discretos acerca da vossa vida privada, coisa que eu,
claro, aprecio. E os Recursos Humanos também. Mas qualquer pessoa que
tenha estado convosco não ficaria surpreendido se soubesse que estão a
lidar com as sequelas do fim de uma relação. Sobretudo depois do que se
viu na sala de conferências.
– Não me parece que esteja a perceber.
– Criamos uma relação – diz Kent, como se fosse assim tão simples. –
Criamos um fim. E depois criamos um programa.
Silêncio. De novo.
Não consigo dar sentido àquilo. As peças estão ali, mas cada uma parece
pertencer a um puzzle diferente. Kent quer que façamos de conta que
namoramos – não, que façamos de conta que namorámos. O meu chefe, a
lenda da rádio de Seattle Kent O’Grady, quer fingir que tivemos uma
relação e pôr-nos a falar de relações na rádio pública.
Alguém quer pôr-me na rádio.
– Então mentimos. – Dominic cruza os braços. Voltou a arregaçar as
mangas, expondo os antebraços magros, e aponta com a cabeça para a
parede de prémios de Kent. – Isso tudo, e queres pôr-nos a mentir.
– Eu tenho de manter esta estação a funcionar – diz Kent. – Precisamos
de um programa que seja um sucesso, e precisamos disso depressa. Já
ninguém quer ouvir locutores de carreira. O que se quer é sangue fresco,
que talvez sejam vocês. – Bate na mesa entre nós. – Não temos tempo, nem
orçamento, para treinar outras duas pessoas, ou para trazer o ex-namorado
de alguém para cá. Vocês têm a química. E todos somos contadores de
histórias, não somos? Por isso, contamos a melhor história de uma relação
que acabou. Não vamos mentir... vamos distorcer a verdade.
Contar histórias. Mentir. Há uma linha turva entre essas duas coisas.
– Imaginem: um programa semanal de uma hora. Um podcast. Um
hashtag. Material promocional, até. Isto pode ser em grande. – Kent
transformou-se num vendedor. – Não seria incrível ter um programa com
interesse nacional ligado ao nome da KPPR? A WHYY tem o Fresh Air, a
WBEZ tem o This American Life... nós poderíamos ter o que quer que este
programa seja.
Por um momento, permito-me realmente imaginá-lo: estar sentada no
grande estúdio, com um microfone à minha frente, ouvintes em linha, à
espera.
– Fala Com o Ex – digo em voz baixa.
– Como? – pergunta Kent. Repito, com um pouco mais de convicção. –
Fala Com o Ex... sim. Sim. Gosto muito.
A forma como ele fala disto, deste programa que ainda há umas horas era
apenas uma ideia, faz com que pareça quase real, algo que eu poderia tocar
se me esticasse. É óbvio que ele passou o dia a calcular a melhor maneira
de o apresentar. Talvez seja assim que funciona a mente de um diretor de
programação, ou talvez ele esteja mesmo desesperado por algo novo.
Kent quer que eu minta.
Kent quer que eu apresente um programa.
– E a minha voz? – pergunto. Os dois homens viram-se para mim, como
se soubessem exatamente qual é o problema da minha voz, mas estivessem
renitentes a reconhecê-lo a menos que eu o explique. Como se insultar
alguém fosse permitido, desde que essa pessoa se insulte a si própria
primeiro. – O que foi? Vocês sabem como soa a minha voz. Seria um
desastre no ar.
– Estás a ser demasiado severa contigo. A rádio pública adora vozes
únicas. Sarah Vowell, Starlee Kine. Pode parecer chocante, mas até há
quem não goste do Ira Glass. E tu queres estar no ar – diz Kent, como se já
tivesse visto a forma sonhadora como olho para Paloma durante o Puget
Sounds.
– Bem... sim – admito. – Mas o que está aqui em causa não é o que eu
quero. – Será? Já não sei ao certo.
Isto não pode ser uma conversa a sério. Não estamos mesmo a falar de me
pôr no ar – ainda por cima, com Dominic, a apresentar um programa
baseado numa relação que nunca tivemos. Devo ter caído numa realidade
alternativa, e isso deve ter acontecido ontem: a entrevista de emprego de
Ameena, que ela tem a certeza de que não a levará a outro trabalho, o
noivado da minha mãe, a minha relação falsa e a subsequente rutura falsa
com a estrela jornalística mais recente da Pacific Public Radio. Não tarda e
Carl Kasell1 vai voltar do mundo dos mortos para me deixar uma mensagem
no telemóvel.
– Desculpem, não percebo – diz Dominic, e está com um ar tão
incomodado, tão perplexo, que até sinto alguma compaixão por ele. Mais
ou menos do tamanho de uma das sementes de chia de Paloma. – O
presidente da câmara demitiu-se. Tivemos esta história brutal e agora...
agora queres tirar-me das notícias para fazer uma fantochada?
– E fizeste um trabalho incrível com essa investigação. – Kent beberica o
seu chá. – Mas também foi só um trabalho, e um trabalho não faz uma
carreira. Ser repórter implica muita pressão. Essas investigações são
estafantes. Achas que consegues apresentar um trabalho desses a seguir a
outro, sem mais nem menos?
Dominic espeta os cotovelos nos joelhos e fita o chão, com outra emoção
nova a corar-lhe as faces: vergonha. Ele quer que Kent acredite nele, como
tem acontecido desde que começou. Nesse momento, lembro-me de como é
novo. O mestrado durou apenas um ano – ele é capaz de não ter mais de
vinte e três anos.
Kent dirige-lhe um sorriso compassivo, como se estivesse a tentar
impedi-lo de se ir abaixo.
– As pessoas ontem adoraram-te, Dominic – diz ele, e é isto que o torna
um bom gestor: sabe exatamente como engraxar-nos quando quer alguma
coisa, mesmo que para isso tenha primeiro de nos acicatar as inseguranças.
– E as pessoas também te adorariam, Shay. Só precisam de te conhecer. Não
quis dizer isto ao pessoal todo, mas... – Solta uma expiração lenta e
comedida. – Vai haver despedimentos. Dá cabo de mim dizer isto, dá
mesmo.
Despedimentos. A força dessa palavra prende-me à cadeira. Ele está a
falar de nova programação quando já há despedimentos planeados?
– Merda – diz Dominic, e eu fito Kent de olhos semicerrados.
– Então a reunião foi uma forma de lutarmos pelos nossos empregos? –
pergunto. – Sem sequer nos apercebermos disso?
– Para vossa sorte, são capazes de ter conseguido alguma segurança
profissional.
– Sorte – repete Dominic entre dentes. – Pois.
– Então e o meu programa? – pergunto. Os gráficos da reunião passam-
me pela cabeça. Já sei o que ele vai dizer e a sensação que tenho é a de que
empurrou a secretária contra o meu peito. Não me tinha dado conta de que
este potencial novo programa tinha o custo acrescido de destruir o de
Paloma.
– Lamento imenso, Shay. Os números não mentem. É o nosso programa
com piores resultados e vamos ter de o cancelar. Quem me dera não ter de o
fazer. Há meses que a direção fala disso e estou de mãos atadas. A minha
ideia era falar contigo e com a Paloma amanhã.
– O que é que lhe vai acontecer?
– Vão oferecer-lhe um acordo de rescisão muito generoso – diz Kent. –
Detesto que tenhamos de fazer isto. Detesto os despedimentos. Detesto
mesmo... é a pior parte do meu trabalho. Mas é inevitável. – O seu rosto
anima-se. – Se vocês os dois aceitarem fazer isto, quero fazer o que puder
para que fiquem satisfeitos. Até podem escolher o vosso produtor, na
verdade.
– A Ruthie – digo de imediato. – A ideia do nome foi dela.
– Perfeito. Não queria mandá-la embora... é boa. Queres a Ruthie, fica
com ela.
Dominic levanta-se, esticando-se por completo.
– A direção não vai alinhar nisto.
– Deixa que seja eu a preocupar-me com isso – diz Kent. – Até à sexta-
feira da próxima semana. É até então que preciso de uma resposta, caso
contrário posso escrever-vos cartas de recomendação cheias de elogios para
que vocês juntem aos vossos currículos. – O seu olhar fixa-se em Dominic.
– Porque também vamos ter de despedir repórteres.
Dominic solta uma expiração brusca, como se tivesse levado um murro.
Quero ter pena dele. Quero ter pena de Paloma, por todos os que vão perder
o emprego. E tenho, juro que tenho, mas...
As pessoas iriam adorar-te, Shay, disse Kent.
Ouvir-me-iam.
A mim.
– Esqueçam – diz Dominic, com os ombros rígidos enquanto se dirige
para a porta. – Eu não vou fazer isso.

11 Famoso locutor da NPR. (N. da T.)


5

Passo um pincel por uma tela, semicerrando os olhos para ver um pomar e
depois a minha representação. Uns quantos borrões vermelhos, uns quantos
borrões verdes. Não é propriamente uma obra de arte.
– E depois basicamente insinuou que perderiam o emprego se não
fizessem o programa? – pergunta Ameena, ao mesmo tempo que mergulha
o pincel em verde-floresta.
– Pois. Brutal, não é?
Ela solta um assobio baixo.
– A mim parece-me que raia o ilegal. Devia falar com alguns dos meus
amigos dos Recursos Humanos.
Estamos na Blush ‘n Brush, a noite mensal de pintura do bar de vinhos da
zona. Já há algum tempo que frequentamos estas noites depois do trabalho,
como forma de aliviar o stress, se bem que Ameena é muito mais talentosa
do que eu. Em resultado, tenho uma mancheia de pinturas medíocres de
árvores a ocupar espaço no meu quarto de hóspedes. Mas quem é que me
visita? Porque é que tenho um quarto de hóspedes? Toda a gente que
conheço vive em Seattle, mas não sabia que mais havia de fazer com o
terceiro quarto da minha casa.
– Não é nada disso – insisto. – Ele só se preocupa com a estação. Mas
nada disso importa, já que o Dominic disse que não vai fazer o programa. O
que quer dizer que, a menos que mude de ideias nos próximos dez dias,
vamos os dois perder o emprego.
– Que merda. Lamento imenso.
A realidade dos despedimentos ainda não me atingiu. Só se passaram
umas horas desde a reunião com Kent e devo estar a agarrar-me ao Fala
Com o Ex como a uma jangada de salvação. A minha oportunidade de ir
para o ar, de explorar algo novo, excitante e diferente, está nas mãos de
alguém que deixou bem claro que não sou a sua pessoa favorita. E claro, ele
também nunca foi a minha, mas suponho que pudesse tolerá-lo, se isso
significasse apresentar o meu próprio programa.
– Eu conheço-te – continua Ameena. – Queres mesmo fazer isso, não
queres?
– Quero mesmo. – Deixo escapar um suspiro e levo o pincel à água para o
limpar antes de passar para tinta azul-clara. Um céu... certamente serei
capaz de não o estragar por completo. Só quando o deslizo pela tela é que
me dou conta de que é do mesmo tom da camisa que Dominic estava a usar
hoje. – É uma estupidez, eu sei. Já me ocorreram ideias para episódios,
depois comecei a imaginar o logótipo enquanto conduzia até aqui... mas não
vale a pena.
– Então. Não é estúpido. – Ela morde o lábio inferior. – Mas,
hipoteticamente falando, estariam a mentir, não? Isso não é um pouco...
antijornalístico?
Uso o argumento de Kent.
– É ficção. De certa forma, seria como representar. A maioria dos
locutores tem uma personalidade diferente com o microfone à frente.
Ninguém é exatamente como parece na rádio... grande parte é fachada.
Cria-se uma personalidade especificamente para que as pessoas sintam uma
ligação.
– Suponho que, visto assim, faça sentido – diz ela, mas não parece
convencida. – Então. O Dominic. Vais pelo menos tentar persuadi-lo, certo?
– Não faço ideia de como, mas sim.
– Porque é que não gostas nada dele?
Gemo, tanto em resposta à pergunta dela como à forma como consegui
transformar o céu do meu quadro numa mixórdia enlameada e castanha.
– Ele acha que sabe tudo acerca de rádio, passa a vida a ostentar o
mestrado como se isso o tornasse alguma autoridade na área do jornalismo,
e a ideia de coapresentar um programa com ele, de ficar em pé de
igualdade... bem, sempre é melhor do que ele achar que lhe sou inferior.
– Ele é giro?
– O quê? – Engasgo-me com o Pinot Noir. – O que é que isso tem que
ver?
Ameena encolhe os ombros e desvia o olhar, a disfarçar.
– Nada, na verdade. Estou só curiosa.
– Bem... em termos objetivos... não é feio – consigo dizer, ao mesmo
tempo que tento não pensar nos seus antebraços ou na sua altura,
concentrando-me antes na sensação que tenho quando ele precisa de
inclinar o pescoço para olhar para mim. Seria realmente capaz de aturar isso
cinco dias por semana?
Um sorriso ligeiro curva os lábios da minha amiga enquanto ela beberica
o seu copo de rosé.
– Cala-te – digo-lhe.
– Não disse nada.
A formadora passa pela nossa fila e fica extasiada com a pintura de
Ameena.
– Uma bela obra, como de costume, Ameena – diz ela. Vira-se para mim
e o seu sorriso fica mais tenso. – Está a avançar. Está mesmo a melhorar.
Ameena sorri de orelha a orelha. Eu reviro os olhos.
– O que me parece mais estranho é o seguinte – diz Ameena. – Tens a
certeza de que estarias à vontade a falar das tuas relações anteriores na
rádio? A lavar a roupa suja em público?
Considero a sua pergunta.
– Suponho que teria de estar. E a minha roupa não é assim tão suja, pois
não? Desde o Trent que não tive nenhuma relação séria.
Trent: um programador de olhos meigos e cabelo prematuramente
grisalho com quem andei durante três meses no início do ano passado. Era
um doador habitual nas angariações de fundos, o que me fez querer deslizar
o ecrã para a direita. No nosso primeiro encontro, confessou-me que queria
imenso formar uma família. Passávamos todos os fins de semana juntos e
eu apeguei-me depressa. Íamos a mercados de produtores locais, a parques
estatais e a peças muito sérias. Eu gostava da força como ele me abraçava
na cama, de como enterrava a cara na minha nuca e me dizia o quanto
gostava de acordar a meu lado. Parti do princípio de que amar seria o passo
a seguir a gostar, mas, quando lho disse a caminho de um brunch com a
minha mãe num domingo, ele quase despistou o carro.
– Não sei se já estou nesse ponto – disse ele.
Estávamos a ouvir o Wait Wait... Don’t Tell Me! e a fazer o nosso próprio
concurso, somando pontos segundo o número de respostas corretas antes de
os membros do júri o fazerem. Desliguei a rádio de imediato, pois não
queria que aquela experiência me estragasse o programa.
Ainda assim, poderíamos divertir-nos juntos. Não tornaria as coisas
esquisitas, saber que eu o amava e ele não me amava. No entanto, nessa
noite acabou comigo, depois dos ovos Benedict mais constrangedores da
minha vida.
Eu sempre fui resolutamente antibrunch, e Trent confirmou a minha
opinião.
As pessoas dizem que querem algo sério, mas, assim que a coisa começa
a encaminhar-se nesse sentido, põem-se a andar. Ou estão a mentir, ou
percebem que não querem algo sério comigo. Daí o meu hiato. Isso não me
impede de querer casar-me, um dia. É só que «um dia» me parecia muito
mais longínquo quando eu tinha vinte e quatro anos do que agora, aos vinte
e nove.
– Já me ofereci para clonar o TJ – diz Ameena, com um encolher de
ombros. – Não tenho culpa se a tecnologia ainda não avançou o suficiente.
– És mesmo incrivelmente generosa. – Acrescento mais vermelho à
minha árvore. Parece gravemente ferida, caramba. Vou ter pesadelos, se
algum dia a pendurar em casa. – Sinceramente, a minha maior preocupação,
mais do que o Dominic ou o conteúdo, é a minha voz.
– Shay – diz ela com carinho, pois está a par do meu historial. Eu até
costumava implorar-lhe que atendesse por mim as chamadas mais
importantes.
– A sério, Ameena. Quem é que quer a Kristen Schaal quando poderia ter,
tipo, a Emily Blunt?
– Eu gosto de vozes únicas. A maioria dos velhos brancos da NPR
parecem-me todos iguais. E também detesto o som da minha voz. O voice
mail é o pior.
– Mas aqui não seria só uma mensagem de voz. Seria uma hora, todas as
semanas. E um podcast, também.
– O que faria um homem branco medíocre? – pergunta ela.
Começámos a dizer isto há uns anos, depois de ela ter assistido a um
seminário sobre diversidade no local de emprego. Ameena é indiana e
contou-me que as mulheres, sobretudo de cor, têm uma menor
probabilidade estatística de pedir coisas em relação às quais os homens nem
sequer hesitam. OQFUHBM, escreve uma de nós numa mensagem para a
outra quando precisamos de apoio.
– Um homem branco medíocre provavelmente teria uma voz de rádio
perfeita – replico. – Mas chega de falar de mim. Em que é que ficou o tal
trabalho de proteção ambiental?
Ameena tenta mostrar-se descontraída.
– Passaram-me para a fase seguinte. Tenho mais uma entrevista telefónica
para a semana.
Deixo escapar um gritinho.
– Parabéns!
– Obrigada – diz ela e depois obriga-se a rir. – Ainda estou convencida de
que foi só por cortesia, mas tenho de admitir que me fez bem ao ego.
– E achas mesmo que podes deixar Seattle?
– Eu gosto de Seattle – responde, depois de uma breve hesitação –, mas
sou capaz de estar pronta para uma mudança.
Pronta para uma mudança. Ameena talvez consiga aquele emprego, a
minha mãe vai casar-se e o meu programa vai desaparecer no final da
próxima semana. Uma mudança tão drástica como deixar a PPR – tenho a
certeza de que não estou pronta para isso.
– Ao que parece, a minha mãe também.
– Como... como é que te sentes acerca disso?
Passaram-se vinte e quatro horas e eles já marcaram uma data: 14 de
julho. Vai ser sobretudo para a família, embora a família da minha mãe seja
composta por mim e, por acrescento, Ameena e TJ, enquanto Phil tem os
filhos casados e os netos. Calculo que em breve passem a ser também parte
da minha família.
– Isso é uma boa pergunta – digo. – Acho que me parece muito repentino.
– Talvez, mas já têm cinquenta e muitos. Não faz grande sentido
esperarem.
– Vais comigo, certo? Mesmo que... – falha-me a voz –, mesmo que
tenhas de vir da Virgínia?
Ameena passa-me a ponta do pincel pelo nariz.
– Claro que sim. Não perderia isso por nada.
*
Em casa: luzes acesas, podcast bem alto. Verifico todas as divisões, para
me assegurar de que estou sozinha. Não é que tenha medo de que alguém
tenha forçado a entrada e esteja escondido atrás de uma porta, à espera para
me assassinar, é só que... bem, ter a certeza não faz mal nenhum.
Isto é normal. Toda a gente que vive sozinha deve fazer isto.
Depois de ter determinado que a casa está livre de assassinos, instalo-me
no resto da minha rotina noturna: pijama, portátil, sofá. Tenho um
escritório, mas prefiro a sala de estar. O televisor faz com que a divisão
pareça um pouco menos solitária, mesmo quando está desligado.
Provavelmente vou passar algum tempo com o meu novo vibrador daqui a
bocado, mais não seja porque a conversa com Ameena me fez aperceber de
que já se passou quase um ano desde que tive relações sexuais. A solo não é
bem a mesma coisa, mas tenho uma rotina. Sabe Deus que tive mais do que
tempo suficiente para a aperfeiçoar.
É quando abro o fecho-éclair da pasta do portátil que a realidade me cai
em cima – no final da próxima semana, talvez já não tenha um emprego
pelo qual me mate a trabalhar.
Em vez de abrir o email do trabalho, entro na conta bancária. Tenho
poupanças suficientes para uns meses e calculo que receberia subsídio de
desemprego. Seja lá como for que isso funcione – não sei ao certo. Parece
ser algo que eu deveria saber, mas este é o único emprego que alguma vez
tive. Será que o governo simplesmente nos... dá dinheiro? Meu Deus, sou
uma millenial desastrosa. Abro os arquivos do Puget Sounds, convencida de
que a dada altura fizemos um programa acerca disto, mas a nossa função de
busca está dolorosamente obsoleta e frustro-me antes de encontrar a
informação que procurava.
A paragem seguinte é o site de empregos de comunicação social pública
de que alguns dos meus colegas da PPR têm falado. Há um emprego de
produtor no Alasca. Um de repórter no Colorado. Um de redator-chefe em
St. Louis.
Nada em todo o estado de Washington.
Eu sabia que era difícil encontrar emprego na rádio pública, mas não
tinha noção de que fosse tão mau. Levo uma mão ao peito, a tentar acalmar
a respiração cada vez mais assustada. Se não estiver na rádio pública, não
faço ideia do que farei. Isto é tudo o que conheço, tudo o que alguma vez
conheci. E, claro, algumas das competências que tenho serão transferíveis,
mas não estou preparada para deixar esta área. Adoro demasiado a rádio
para abrir mão dela.
Tenho de convencer Dominic a fazer este programa comigo. E, para o
convencer, tenho de o conhecer, coisa que até agora não fiz. Por sorte, ser
produtora tornou-me ótima a fazer investigação bisbilhotando nas redes
sociais.
O seu perfil do Facebook é público. Abençoada esta geração e a nossa
falta de limites. Mas pensando bem... merda, será que sou de uma geração
diferente da dele? Apesar de o perfil dele não revelar o ano de nascimento,
diz que passou diretamente da licenciatura para o mestrado. Isso quer dizer
que terá vinte e três ou vinte e quatro anos. Quanto a mim, sou uma
millenial sem tirar nem pôr, mas ele está entre duas gerações: a minha e a
Geração Z.
Estranhamente, não temos quaisquer amigos em comum, o que significa
que ainda não deverá ter adicionado ninguém da estação. Aqui está ele, o
meu potencial ex-namorado, com cortes de cabelo infelizes, acne
adolescente e a posar para fotografias familiares embaraçosas. O seu rosto
aqui parece mais suave, embora mantenha aquele maxilar duro. Eu tenho
andado tão concentrada em sentir-me irritada por causa de ele que nem
assimilei que é giro. Sobretudo depois de ter passado aquela fase dos cortes
de cabelo infelizes. Um barbeiro que merecia ter sido despedido.
Eu podia ter andado com um tipo assim, penso, a demorar-me numa
fotografia dele a fazer uma apresentação em frente à turma, com os braços
esticados nalguma espécie de gesto enfático. A fotografia foi postada por
outra pessoa, com a legenda: Uma apresentação típica do Dominic Yun: por
favor, manter os braços e as pernas dentro do veículo. Isso faz-me sorrir.
Devia ser uma piada privada.
Nunca andei com alguém mais novo; todos os namorados que tive eram
da minha idade ou ligeiramente mais velhos. E apesar de não irmos
realmente namorar, não posso negar que me causa uma certa emoção, por
baixo da angústia geracional.
Continuo a descer, acabando numa série de fotografias – montes delas –
de Dominic com uma ruiva, algumas ainda de junho passado, na sua
cerimónia de fim de curso na Northwestern. Mia Dabrowski, diz a
identificação da fotografia. É extremamente bonita, com sardas no nariz e
uma queda por cores vivas. Vejo-os a rejuvenescer. Os dois numa festa, na
praia, no barco de alguém. Na maior parte do tempo, estão rodeados por um
grupo de amigos, mas por vezes estão sozinhos, de bochechas encostadas e
a posar para a câmara. Ali estão eles na cerimónia do fim da licenciatura,
com capas a condizer. Ficam adoráveis juntos. Clico no nome dela, mas tem
um perfil privado.
O estatuto de relação dele é solteiro, pelo que deduzo que deve ter sido
um fim recente. Pergunto-me se isso terá algo que ver com a relutância de
Dominic quanto a fazer o programa ou com a sua mudança para Seattle.
Realmente não sei nada acerca deste tipo, e de súbito sinto uma pontada
invulgar: quero conhecê-lo. Quero conhecer este tipo que tinha uma vida
inteira no Illinois, que não só sorria mas se via positivamente feliz em todas
a fotografias, e que ainda não se fez amigo no Facebook de nenhum dos
seus colegas.
Será que tem amigos na PPR? Não sei se alguma vez o vi a ir beber um
copo com alguém depois do trabalho. Uma vez Jason almoçou com ele,
logo nas primeiras semanas, mas depois passaram-no para as tardes. Só o
tenho visto sair da estação de uma maneira: sozinho.
Estou a subir de novo para o início das fotografias quando se dá uma
tragédia.
A minha mão escorrega pelo portátil e, sem querer, carrego no botão de
«gosto». Numa fotografia antiquíssima onde ele aparece com a ex-
namorada.
A única solução racional é autoimolar-me, juntamente com o portátil.
– Merda – exclamo em voz alta, atirando o computador para cima da
almofada do sofá. – Merda, merda, merda.
Ponho-me de pé num pulo e sacudo as mãos traiçoeiras. Ele vai saber que
eu andei a bisbilhotar-lhe o perfil. E isso pode trazer-lhe de novo à tona
sentimentos estranhos acerca da ex-namorada, e depois nunca há de querer
apresentar o programa comigo, e foda-se, foda-se, como é possível ter sido
tão estúpida?
Respira fundo. Basta tirar o «gosto». Ele nem há de receber uma
notificação. Pego no portátil e dou-me conta de que, com o pânico, fechei a
janela. Por isso, tenho de encontrar a página dele outra vez e voltar a ver as
fotografias, só que já não me lembro de quando era aquela em particular e...
Aparece-me uma nova notificação:
*
1 novo pedido de amizade: Dominic Yun.
6

Ao longo da semana seguinte, secretárias começam a esvaziar-se. A


jornalista de arte Jess Jorgensen, que foi contratada imediatamente antes de
Dominic, vai-se embora na quinta, seguida pelo locutor dos fins de semana,
Bryan Finch. Kent dá a notícia a Paloma, Ruthie e Griffin na segunda-feira,
e eu finjo que estou a ouvir aquilo pela primeira vez.
A redação costuma ser um lugar animado, mas os despedimentos
deixaram-nos taciturnos. Ninguém sabe quantas pessoas estão a ser
mandadas embora e andamos todos com os nervos à flor da pele. Nunca vi a
estação assim. Não gosto.
O prazo de Kent aproxima-se. Sempre que tento apanhar Dominic, ele
está a caminho de uma cabina acústica ou a sair para se encontrar com uma
fonte, com uma bolsa de equipamento de gravação a tiracolo. Fico cada vez
mais ciente de que ele sai sempre, sempre, sozinho do trabalho. Não almoça
com ninguém. Não aproveita a happy hour depois do trabalho. Apesar dos
elogios que os outros repórteres lhe fazem, é um lobo solitário, e não tenho
a certeza de que o seja por escolha própria. A estação é composta por gente
ligeiramente mais velha e eu fui a mais nova durante tanto tempo que a
minha única hipótese foi tornar-me amiga de pessoas cujos filhos tinham
idades próximas da minha. Depois Ruthie começou a trabalhar aqui e eu
nem acreditava que era mais velha do que ela.
Na quarta-feira, já como sementes de chia à mancheia, tal o meu stress, e
estas coisas não são baratas. Não posso perder o emprego. Sobretudo
estando tão perto de poder ir para o ar.
Por fim, consigo encurralá-lo depois do programa do dia, durante o qual
Paloma entrevistou um professor universitário acerca de psicologia dos
sonhos. É outro segmento popular, em que ouvintes ligam para que os seus
sonhos sejam interpretados. Se bem que, aparentemente, não seja popular o
suficiente para nos manter no ar. É revelador do profissionalismo de Paloma
ela conseguir manter a compostura depois de ter anunciado aos ouvintes,
logo no início da semana, que em breve o programa deixaria de ser
transmitido. Eu fiquei à espera de uma enxurrada de apoio da comunidade,
que chovessem emails a implorar que não fôssemos embora.
Recebemos um. E o nome de Paloma estava mal escrito.
– Temos de falar – digo a Dominic, que está na copa a aquecer um Hot
Pocket no micro-ondas. Suponho que seja difícil livrarmo-nos dos hábitos
universitários.
– Vais acabar comigo?
– Ah, ah – faço eu. – Que achas do restaurante coreano ao fundo da rua?
Vi-o ir lá almoçar com Kent no mês passado. Na altura, fiquei com
inveja. Eu tinha demorado anos a ser convidada para almoçar sozinha com
ele. Pronto, continuo com inveja.
O micro-ondas apita e ele abre-o.
– Recomendo. Espero que gostes.
– Jantas comigo? – peço, ciente de que parece que estou a convidá-lo para
um encontro amoroso. – Ofereço eu. Por favor. Não tens de te comprometer
com nada agora. Só quero conversar contigo.
Por mais que me custe implorar-lhe o que quer que seja, se fosse preciso
punha-me de joelhos. Kent não estava errado: nós os dois no ar podíamos
fazer rádio espetacular. Com a minha experiência como produtora e os seus
conhecimentos de repórter, mais Ruthie nos bastidores, aquele programa
poderia ser muito melhor do que Puget Sounds alguma vez foi.
Poderia ser meu.
Parece que lhe perpassam umas quantas emoções pelo rosto, como se
estivesse a travar uma batalha mental.
– Seis e um quarto. Logo a seguir ao trabalho – acaba por dizer.
– Obrigada, obrigada – digo, aliviada por não ter mesmo de recorrer à
humilhação. Seja como for, uno as mãos em posição de prece. – Obrigada.
Ele responde com um aceno brusco da cabeça e depois faz o Hot Pocket
deslizar para um prato antes de dar um passo para sair da sala. Para variar,
sou eu que estou a bloquear-lhe a passagem, se bem que só lhe chego às
clavículas. Ele seria capaz de me arrasar, se quisesse, de me fazer sair da
frente com as ancas. Também poderia empurrar-me para o lado. Espalmar-
me contra a parede.
Inspiro e lá está outra vez aquele aroma a oceano e sálvia.
– Se me dás licença – disse ele –, vou levar isto para a minha secretária e
acabar a história em que estou a trabalhar. É capaz de ser a última que faço
aqui.
*

Dominic chega antes de mim, mas só porque eu me demoro na casa de


banho do nosso piso, pois não quero aumentar o embaraço descendo no
elevador com ele. Volto a pôr batom e passo os dedos pela franja espessa.
Vesti a minha roupa preferida de propósito: botins castanhos, calças de
ganga pretas, blazer de pied-de-poule vintage. Não costumo recorrer à
ousadia de lábios vermelhos, mas o que é que se diz quanto a tempos
desesperados?
À exceção da festa de fim de ano, nunca o vi fora do trabalho.
Chamaram-lhe festa de fim de ano, apesar de ser essencialmente uma festa
de Natal, a que não faltaram decorações verdes e vermelhas e um amigo
secreto. Saiu-me o meu próprio nome, não contei a ninguém e comprei-me
uma menorá elétrica. Dominic parecia ligeiramente menos hirto do que é
habitual, de calças pretas e uma camisola verde-escura. Só me lembro do
que ele vestiu porque, quando estávamos na fila para o bufete, tive uma
vontade estranhíssima de estender a mão e tocar-lhe na camisola: queria ver
se era tão macia quanto parecia.
É a camisola que traz hoje, por cima de uma camisa aos quadrados, e
continua a parecer macia.
O restaurante minúsculo fica na cave de uma casa antiga. Quando tento
encontrá-lo, passo duas vezes pela entrada sem dar por isso.
– Vamos lá despachar isto – diz ele quando me sento à sua frente. –
Apresenta os teus argumentos.
– Jesus, será que podemos pedir a comida primeiro? – Abro a ementa. –
O que é que é bom aqui?
– Tudo.
O espaço é pequeno e só tem mais uma mesa, ocupada por dois
executivos que estão a conversar em coreano com a empregada. A cozinha
fica a poucos metros e tem um cheiro incrível.
– Nunca provei comida coreana – reconheço.
– E vives em Seattle há quantos anos?
– Sempre vivi aqui.
Ele arqueia as sobrancelhas com um ar expectante, como se estivesse à
espera de que eu seja mais específica em relação a quantos anos abarca o
meu «sempre».
– Tenho vinte e nove anos – digo e reviro os olhos. – Se calhar devíamos
saber a idade um do outro, se vamos equacionar fazer isto.
– Não vamos fazer nada.
– Então porque é que estás aqui?
Por causa do jantar de borla, poderia ele dizer. Mas não. Fica calado por
um momento e depois responde:
– Vinte e quatro.
Uma pequena vitória.
Depois, também abre a ementa.
– Bulgogi. Carne de vaca grelhada à moda da Coreia – diz ele, a apontar
para uma fila no menu. – As pessoas brancas costumam adorar. Sem ofensa.
– Porque haveria de me ofender? Sou branca.
– Algumas pessoas brancas ficam esquisitas quando lhes lembramos de
que são, de facto, brancas. É como se falar sequer acerca da sua própria raça
as deixasse pouco à vontade.
– Suponho que a maioria de nós não pense realmente no facto de ser
branca.
Ele dirige-me um sorriso sardónico.
– É isso mesmo.
Oh.
– Bom, eu não me importo de comer a coisa dos brancos, se é isso que
recomendas.
Acabo por pedir isso e ele diz que posso provar do seu bibimbap. É
estranha, essa oferta, e ainda mais estranha é a realidade de estar a jantar
com Dominic Yun. Esta é a conversa mais longa que alguma vez tivemos
sem ser acerca de rádio. Não sei o que revelará acerca de nós parecer ser
mais fácil falar de raça do que dos empregos que, supostamente, tanto
adoramos.
Quando a empregada nos deixa, remetemo-nos ao silêncio e eu começo a
desfazer um guardanapo. É enervante estar tão perto dele sem ecrãs ou
microfones por perto. Tal como confessei a Ameena, ele não é feio.
Obviamente, não é a primeira vez que me deparo com homens atraentes no
trabalho.
No entanto, o nível de atração de Dominic Yun é um pouco intimidante.
Em circunstâncias diferentes, eu teria deslizado para a direita na sua
fotografia, e depois provavelmente ter-me-ia perdido de amores antes de ele
me dar com os pés. Talvez tenha sido isso o que fez com que fosse tão fácil
discutir com ele. Não tinha de me preocupar com querer que ele gostasse de
mim; já sabia que não gostava.
Graças a Deus, tem os antebraços tapados.
– Eu percebo – começo, rasgando um pedaço particularmente satisfatório
de guardanapo –, que para ti só as notícias é que importam. Mas vá lá. De
certeza que desfrutas da rádio sem ser pelos factos puros e duros. Ouves
podcasts, não? Só há uns cinco milhões de podcasts diferentes.
– Trouxeste-me aqui para me dares uma lição acerca de podcasts?
– Tenho a certeza de que encontrarias algum que fosse ao encontro dos
teus interesses. A Vida Depois do Mestrado, talvez? Ou haverá algum para
pessoas que achem que uma refeição equilibrada é uma piza de pepperoni
saída de um Hot Pocket?
Um dos cantos da sua boca curva-se e aparece-lhe uma covinha mínima.
– Não sabes mesmo grande coisa acerca de mim. Suponho que isso
explique porque andaste a bisbilhotar o meu perfil do Facebook.
– Isso foi... pesquisa – insisto.
– Ouço podcasts – acaba ele por dizer. – Há um fantástico, sobre o
sistema judicial norte-americano, que...
Gemo.
– Dominic. Estás a dar cabo de mim.
Ele já está a sorrir de orelha a orelha.
– Fazes com que seja absurdamente fácil.
Ele estica as pernas compridas por baixo da mesa e eu pergunto-me se
terá sempre este problema: mesas tão pequenas que não conseguem contê-
lo.
OQFUHBM, penso, solicitando força a todos os homens brancos
medíocres.
– Eu quero isto – digo-lhe. – Olha, também não era assim que queria que
acontecesse. Desde que sei que a NPR existe que quero trabalhar na rádio.
E talvez Fala Com o Ex não seja o teu programa ideal. Mas abriria montes
de portas. Abriríamos novos caminhos na rádio pública, e, acredita no que
te digo, não é todos os dias que se faz isso. É uma oportunidade incrível.
– Como é que sei que não estás só a tentar salvar o teu emprego?
– Porque não tarda vais ficar sem emprego também, tal como eu.
Ele cruza os braços.
– Se calhar recebi outras ofertas.
Fito-o de olhos semicerrados.
– Recebeste?
Ficamos assim por um momento, até que ele solta uma expiração e cede.
– Não. Mudei-me para aqui para trabalhar na rádio pública. Ou voltei
para cá, melhor dizendo. Cresci aqui, nos subúrbios de Bellevue.
– Não sabia isso – digo-lhe. – Eu também, mas sempre fui uma miúda de
cidade.
– Eu teria morrido de inveja de ti – diz ele. – Não me deixaram conduzir
na autoestrada até ter dezoito anos.
Resfolego.
– Pobre rapazinho suburbano.
Contudo, estou surpreendida por a nossa conversa estar a fluir com tanta
naturalidade.
– As outras pessoas do mestrado foram contratadas para fazer jornalismo
digital ou para gerir jornalecos locais que daqui a uns anos vão à falência –
continua ele. – Eu não vim aqui parar por acidente. Fui fazer o mestrado
porque, bem... – Ele interrompe-se e coça a nuca como se estivesse
envergonhado do que vai dizer. – Vais achar que isto é ridículo, mas sabes o
que sempre quis fazer?
– Pode haver poucos empregos de porta-voz dos Hot Pockets, mas não
deves deixar que isso te corte as asas.
Ele pega num dos meus pedaços de guardanapo e atira-mo.
– Quero usar o jornalismo para resolver merdas. É por isso que quero
trabalhar em investigações. Quero abater empresas que estão a dar cabo da
vida das pessoas e quero tirar fanáticos do poder.
– Isso não é ridículo – digo eu, séria. Não sei por que há de ter vergonha
de algo tão nobre.
– É como dizer que queres fazer do mundo um lugar melhor.
– Não é o que todos queremos? Só temos formas diferentes de lá chegar –
digo. – Mas porquê na rádio?
– Agrada-me a ideia de falar diretamente com as pessoas. As palavras têm
um verdadeiro poder quando não são apoiadas por imagens. É pessoal.
Temos o controlo total de como nos ouvem e é quase como se estivéssemos
a contar uma história só a uma pessoa.
– Mesmo que haja centenas ou milhares a ouvir – digo em voz baixa. –
Sim. Eu percebo isso. A sério. Acho que tinha partido do princípio de que
tinhas só tido sorte.
A covinha ameaça voltar a aparecer.
– Bem, tive. Mas também sou mesmo bom naquilo que faço, porra.
Penso em quando esteve no estúdio com Paloma, na narrativa que
escreveu na faculdade. Em todas as histórias no nosso website, que as
pessoas parecem realmente adorar.
Ele é bom.
Talvez isso seja o que mais me tem custado.
– Não sabia que querias estar no ar – continua ele. – Partia do princípio
de que estavas satisfeita, sabes? A produzir. É o que tens feito sempre aqui,
não é?
Aceno com a cabeça. Está na hora de revelar coisas pessoais. Tinha a
sensação de que isto aconteceria, de que teria de lhe contar a minha história
da rádio, mas isso não o torna mais fácil. Nunca se torna mais fácil, na
verdade.
– Quando eu era mais nova, eu e o meu pai estávamos sempre a ouvir a
NPR. Fingíamos que estávamos no ar e isso foi sinceramente a melhor parte
da minha infância. Adorava que a rádio pudesse contar uma história tão
completa e imersiva, sem uma componente visual. Mas é um mercado
competitivo e eu tive a sorte de conseguir um estágio na PPR, que depois se
tornou um emprego a tempo inteiro... e aqui estou.
– Então queres que o teu pai te ouça na rádio.
– Bem... ele não pode – respondo depois de uma pausa, sem conseguir
corresponder-lhe ao olhar.
– Oh. – Ele fita a mesa. – Merda. Lamento imenso. Não sabia.
– Foi há dez anos – digo, mas isso não quer dizer que não continue a
pensar nele todos os dias, na forma como por vezes personificava os
aparelhos eletrónicos que arranjava, sobretudo para me fazer rir quando era
pequena, mas, mesmo depois de crescer, nunca me fartei. É uma cirurgia
arriscada, dizia ele acerca de um iPhone antigo. É capaz de não passar
desta noite.
Sinto-me agradecida quando a nossa comida chega, a fervilhar e fumegar,
com um ar delicioso. Dominic agradece em coreano e a empregada inclina a
cabeça antes de se afastar.
– Pedi-lhe mais um guardanapo – diz ele, a apontar para os restos
esfrangalhados do meu.
– Meu Deus, isto é bom – comento depois de provar.
– Experimenta um pouco deste.
Dominic põe-me uma colherada do seu arroz no meu prato e passamos
uns minutos a comer num silêncio apreciador.
– Então. Fala Com o Ex – digo eu, reunindo a coragem necessária para
falar do motivo para estarmos ali. – O que é que te impede? É... sou eu? A
ideia de andares comigo?
Os seus olhos arregalam-se e ele deixa cair a colher.
– Não. De todo. Oh, meu Deus... não me sinto, tipo, insultado pela ideia
de podermos ter namorado. Ligeiramente espantado, sim, mas não
insultado. Tu és... – E os seus olhos percorrem-me o rosto e descem-me
pelo tronco. Vejo-o corar e fico um bocado nervosa por saber que ele está a
avaliar-me, nada discretamente. És um espetáculo. És o máximo. Espero um
elogio desta pessoa que, até agora, só me tratou mal. Ele pigarreia. – Fixe –
acaba por dizer.
Com licença, tenho de ir andando para o trânsito da hora de ponta. Fixe é
como o Kevin Jonas dos elogios. É como alguém que diga que a sua cor
preferida é o bege.
– E tu? – pergunta-me. – Não te sentes demasiado horrorizada pela ideia
de termos namorado, nessa realidade alternativa?
Abano a cabeça.
– E não andas com ninguém agora.
– Desde que me mudei para aqui, não. O que presumo que já saibas,
depois da tua sessão de bisbilhotice noturna.
Tapo a cara com as mãos.
– Acreditavas se te dissesse que deixei cair os óculos no computador e
que eles acertaram no botão de «gosto»?
– Nem pensar.
– Então é por o programa não ser noticioso.
Ele assente com a cabeça.
– Eu estudei jornalismo...
– Espera, tu o quê? – pergunto, e ele revira os olhos.
– ... e é isso que quero fazer. Está a dar cabo de mim que a história do
presidente da câmara vá ser passada a outra pessoa, não poder fazer o
seguimento. – Acaba o seu prato. – Já para não falar do facto de não ser
sequer capaz de imaginar como seria esse programa. Nem saberia por onde
começar. Como tu disseste, a maioria dos podcasts que eu ouço é...
– Enfadonha? – proponho. – Estás cheio de sorte, porque eu sou uma
conhecedora de podcasts divertidos. Envio-te uma lista. – Já estou a
compilá-la mentalmente. Vou pô-lo a ouvir Not Another Star Wars Podcast,
Culture Clash e Femme. Todos têm uma excelente dinâmica provocadora
entre os apresentadores.
– Mal posso esperar.
– Talvez isto não seja a rádio pública típica – continuo. – Mas é a
diferença de que precisamos. Se fizermos um bom trabalho, vais poder
fazer qualquer coisa que queiras na rádio. Os locutores estão no cimo da
cadeia alimentar. Não é coisa pouca, que o Kent te tenha proposto isto. É
uma cena grande, caramba.
– Não achas que ele foi um pouco... manipulador?
Ameena tinha dito basicamente o mesmo.
– O Kent é assim mesmo. Ele sabe o que quer. E não há dúvida de que te
adora. – Espero que não repare na inveja na minha voz. – Isto é diferente do
que qualquer rádio pública já tenha feito. Sim, tem havido histórias, e às
vezes séries, sobre encontros e relações, e alguns com estações da rádio
pública. Mas nunca houve realmente um programa inteiro dedicado a isso.
Não é emocionante, pensar que podes fazer parte disso? – Ele encolhe os
ombros, pelo que continuo. – Eu passei tanto tempo nos bastidores que acho
que quero ver se consigo fazer mais do que isso.
A minha confissão pesa muito entre nós.
– Não fazia ideia de que sentisses isso.
– Não é coisa que eu tenda a publicitar com frequência. – Começo a
desfazer o guardanapo número dois. – Mas se tu achas que não serias
capaz...
Ele debruça-se sobre a mesa e nos seus olhos brilha uma emoção que não
consigo identificar.
– Oh, não duvido de que fosse capaz.
Obrigo-me a corresponder à intensidade do seu olhar. Parece um desafio e
não quero que ele julgue que estou a recuar. Espero não ter batom no
queixo. Espero que ele não ache que sou demasiado velha para ele, pelo
menos em termos hipotéticos. Espero que ele perceba o quanto eu quero
isto.
E isso significa querê-lo a ele também.
– Três meses – diz por fim.
– Seis.
– Shay...
Levanto uma mão, a tentar ignorar o quanto gosto da forma como disse o
meu nome. Reverberou-lhe na garganta e provocou-me um choque elétrico
desde os dedos dos pés até alguns sítios que não têm obtido muita atenção
ultimamente. Pergunto-me se será assim que ele diz o nome de uma mulher
na cama. Um rugido. Uma súplica.
Credo, agora estou a pensar nele na cama com alguém. Não estou bem.
Se fico excitada apenas pela sua voz, vamos ter problemas sérios.
– Três meses não chega para formar uma audiência dedicada – digo. –
Seis meses, o suficiente para eu obter a experiência de que preciso como
locutora e para tu elevares o teu nome a ponto de poderes passar para outra
coisa quando acabarmos.
– E se formos apanhados?
– Eu não vou contar a ninguém. Tu vais?
O maxilar dele contrai-se e eu percebo que está a pensar.
– Está bem – diz ele, e embora isso me deixe o coração feliz, o que quero
mesmo é que ele volte a dizer o meu nome.
– Obrigada! – Salto da cadeira e só quando estou de pé é que percebo que
não sei bem o que ia fazer. Será que pensei abraçá-lo? – Obrigada,
obrigada, obrigada. Não vais arrepender-te. Prometo. Este programa vai ser
espetacular, porra.
Ele está a observar-me com uma expressão de diversão óbvia. Em vez de
lhe dar um abraço, estendo a mão.
– Vou fazer-te cumprir essa promessa. – A sua mão é quente e os dedos
esguios encaixam-se entre os meus e aquecem-me a pele. – Foi um prazer
acabar contigo.
7

– Chama-se Steve – diz a voluntária da Humane Society de Seattle quando


paramos em frente à última jaula, no fim do corredor. – Mas não sei se seria
uma boa escolha para si.
– Porquê? – Um cão castanho-claro, arraçado de Chihuahua, está no
canto ao fundo, numa manta de flanela cinzenta, a observar-me com uns
grandes olhos castanhos. Tem umas orelhas gigantes, um pequeno nariz
preto e a mandíbula superior mais recolhida do que a inferior. É a coisa
mais gira que alguma vez vi.
Ao início, não liguei muito à sugestão de Ameena de que arranjasse um
cão. Mas ultimamente a casa tem-me parecido mais sinistra e ter um
pequeno animal à minha espera ao final do dia talvez seja exatamente
aquilo de que preciso. Para além de uns porquinhos-da-índia que partilhei
com Ameena assim que saímos da faculdade, nunca tive um animal de
estimação. Quando era pequena, havia lá em casa um cão chamado Prince,
mas não me lembro muito dele. Já era dos meus pais antes de eu nascer e eu
tinha nove anos quando ele morreu. Apesar disso, passo a vida a perguntar a
donos de cães: «Posso fazer uma festa?»
Flora, a voluntária, faz hum entre dentes.
– Ele... é complicado. Achamos que tem uns quatro anos, mas não
sabemos ao certo. Foi encontrado na rua, no norte da Califórnia, e
trouxeram-no para aqui para ter mais hipóteses de ser adotado. Na verdade,
chegou a ser adotado no final do ano, mas não era o animal de estimação
certo para a família. Tinham três crianças pequenas e, embora ele não seja
propriamente agressivo, às vezes torna-se um bocado territorial.
– Não é o que nos acontece a todos? – pergunto eu, forçando o riso.
Flora não reage.
– Já o temos aqui há quase três meses e temos tido muita dificuldade para
lhe arranjar casa. Achamos que ficaria melhor sendo o único animal de
estimação de um dono experiente. Sem filhos.
Três meses. Três meses destes latidos constantes, sem um ser humano
com quem possa aninhar-se. Três meses de solidão. Eu nem imagino como
serão as noites aqui, depois de todos os voluntários irem para casa.
– Eu não tenho animais de estimação nem filhos – digo.
– Mas nunca teve um cão, pois não?
Referi isso quando cheguei. Mas depois de ter percorrido estes
corredores, não me imagino a ir para casa com qualquer um destes cães –
exceto o Steve.
– Tive um cão em criança – digo, endireitando-me mais e esforçando-me
ao máximo por parecer uma dona responsável, alguém capaz de lidar com
um cão supostamente «difícil», com o Steve. Não há de pesar mais de
quatro quilos e meio. – E tenho uma amiga que é treinadora.
Mais ou menos. Mary Beth Barkley ficou triste quando lhe dissemos que
o Puget Sounds ia acabar e eu prometi que faria os possíveis por convidá-la
para outro programa.
– Muito bem – diz Flora –, vamos ver que tal ele se dá consigo.
Destranca a jaula e baixa-se para o tirar, mas ele recua para a parede. Ela
tem de entrar de gatas na jaula e pegar nele e, quando o faz, ele começa a
tremer. Não dá para imaginar que uma criatura tão pequena seja um cão
problemático.
– Estou mesmo ali, se precisar de alguma coisa – avisa Flora depois de
nos levar para uma sala cheia de guloseimas e brinquedos. E fecha a porta,
deixando-me sozinha com o Steve.
Agacho-me. O Steve fareja o ar, hesitante.
– Olá, pequerrucho – digo, ao mesmo tempo que estendo a mão para que
ele saiba que pode confiar. – Está tudo bem.
Ele aproxima-se um pouco, com o corpo castanho-claro ainda a tremer. A
mandíbula inferior saliente faz com que todas as suas ações pareçam
incertas. Quando está suficientemente perto, a sua língua cor-de-rosa
espreita e dá-me uma lambidela nos dedos.
– Vês, não sou assim tão má, pois não?
Ele aproxima-se ainda mais e deixa-me acariciar-lhe o dorso. É muito
mais macio do que parece e tem as patinhas brancas, como se estivesse a
usar umas botas minúsculas. Coço-lhe a parte de trás das orelhas até os seus
olhos se semicerrarem e ele encostar a cabeça ao meu joelho, como se isto
fosse a melhor coisa que alguma vez sentiu.
Ao que parece, também estou condenada a apaixonar-me depressa por
cães – porque, sem mais, estou perdida de amores.
*

Assino a documentação com o Steve ao colo. Decido que o seu nome


completo é Steve Rogers. Steve Rogers Goldstein. Um nome judaico muito
tradicional. Flora dá-me uma trela, uma coleira e alguma informação acerca
de veterinários locais e aulas de obediência. Não quero pousá-lo, nem
mesmo quando tenho de tirar a carteira para pagar os duzentos dólares da
taxa de adoção.
Flora está encantada, mas hesitante.
– Os cães costumam ser mais tímidos aqui no abrigo – diz-me. – Por isso,
não se espante se a personalidade dele mudar um pouco quando chegar a
casa.
– A mandíbula inferior assim é algo com que deva preocupar-me?
– Ele é perfeitamente saudável. É só uma pequena peculiaridade que tem.
– Eu adoro-a – digo, e viro-me para ele. – Adoro-te e ao teu queixinho.
Dizem-me que tenho duas semanas para o devolver com direito a
reembolso total, se a coisa não funcionar. Reembolso total. Por um animal.
Parece cruel, quase como se esperassem que o traga de volta.
No carro até casa, o Steve vomita na transportadora. Quando chegamos,
vomita outra vez num tapete de que realmente nunca gostei, faz chichi na
minha mesa de centro e cocó no tapete da sala. Se antes a casa me parecia
vazia, agora fervilha com uma energia caótica. Instalo-lhe a cama no meu
quarto e ele roça-se nela durante uns bons quarenta e cinco minutos antes de
dar quatro voltas e meia sobre si mesmo e de se enroscar numa bola
compacta. Quando tento aproximar-me, rosna, revelando os dentes
inferiores.
Afinal, o Steve é uma bela embrulhada.
– Não vou devolver-te – digo num tom determinado, mais para mim do
que para ele. – Vamos fazer com que isto resulte.
Limpo a casa e depois persigo-o durante uns quinze minutos até
conseguir prender-lhe a trela à coleira. Mas, quando o levo à rua, ele fica
paralisado à entrada, como se nunca tivesse visto o mundo exterior.
São quase seis da tarde, depois de ele dar uma dúzia de voltas pelo meu
pátio, quando ele finalmente se cansa e volta para a sua cama. Já sabe que é
sua, o que eu decido encarar como uma vitória. Depois de ter a certeza de
que está a dormir, tiro uma fotografia, que envio a Ameena. Ele começa a
fazer uns barulhinhos enquanto sonha e eu quase morro de ternura.
Como não posso passar o resto da noite a olhar para o meu cão, vou até à
cozinha para fazer o jantar e ligar à minha mãe, coisa que tenho adiado
desde que eu e Dominic concordámos em fazer o programa, há uns dias. E
talvez esta seja a vantagem de ter uma família pequena: só tenho de passar
pelo desconforto de mentir a uma pessoa acerca do meu ex-namorado a
fingir.
Por mais que queira ser honesta com ela, ambas sabemos o quanto o meu
pai valorizava a verdade na rádio. A ideia de a minha mãe me acusar, de me
dizer que o meu pai ficaria desiludido... não posso ir por aí. Tenho de me
manter neste ponto em que imagino que ouvir-me pelas colunas do carro o
deixaria mais feliz do que alguma vez o vi. Isso implica esconder-lhe a
verdade.
E não sei se aguentaria o seu julgamento, se ela soubesse que também
vou mentir aos meus futuros ouvintes. Não... não é mentir. É distorcer a
verdade. Foi o que Kent disse.
Para além disso, não consigo deixar de pensar que, se conseguir mostrar o
que valho neste programa, talvez um dia venha a fazer parte de algo que
não distorça tanto a verdade. Que, depois de ter esta experiência como
locutora, a carreira que sempre quis fique finalmente ao meu alcance.
– Andei com uma pessoa mas não resultou e vamos fazer um programa de
rádio acerca disso – digo-lhe de rajada assim que ela me pergunta como é
que vai o trabalho.
Segue-se uma pausa do outro lado da linha.
– Um programa de rádio acerca... de quê, ao certo?
Com o telefone em alta voz, explico-lhe o que será Fala Com o Ex,
enquanto abro um dos kits de refeições da semana. Um chili de feijão-
branco e batata-doce numa cama de cuscuz. Abrir esta caixa de ingredientes
é a parte mais excitante da minha semana. Adoro ser solteira. Adoro.
– Nunca falaste dele – diz a minha mãe. – Dominic, foi o que disseste?
Mas esse não é o tipo de quem estás sempre a queixar-te?
– As queixas, hã, isso é capaz de ter sido um efeito secundário de termos
acabado. – A mentira sai-me com imensa facilidade e ela acredita.
– Lamento, Shay. Mas deve estar tudo bem agora, se estás disposta a
fazer um programa com ele, certo? Parece que pode ser bem divertido.
– Pois – respondo entre dentes cerrados enquanto corto alho, gengibre e
um jalapeño. Vai tornar-se mais fácil, certo? Claro que vai. É pela minha
carreira, recordo a mim mesma. Não é para sempre.
Mudo de assunto e pergunto-lhe como vão os preparativos do casamento.
– Tu vens escolher o vestido de noiva comigo – diz ela, sem o
transformar numa pergunta.
– Queres que vá?
– Claro que quero! Sei que é um bocado inconvencional, ajudar a mãe a
escolher o vestido de noiva, mas não me pareceria bem fazê-lo sem ti.
O que, claro, me faz sentir ainda pior quanto a distorcer a verdade.
– Mal posso esperar por te ouvir na rádio – diz ela, e talvez ambas
decidamos não dizer o que tenho a certeza de que ambas estamos a pensar:
que o meu pai não caberia em si de contente.
– Oh – digo antes de desligarmos. – E arranjei um cão.
Mais tarde, depois de ter dividido as sobras do chili para levar almoço
para o trabalho durante a semana, chego ao quarto e encontro o Steve
aninhado na minha cama.
– Steve, não.
Não vou sacrificar a minha cama a um cão de três quilos. OQFUHBM,
penso, embora decerto esse conselho não se aplique a Chihuahuas ansiosos.
Quando me aproximo um pouco da cama, ele rosna.
Por isso, visto um pijama e vou até ao quarto de hóspedes, onde tiro os
quadros das sessões de Blush ‘n Brush da cama, para poder meter-me
debaixo das cobertas. Os lençóis são ásperos e um candeeiro forma sombras
assustadoras nas paredes, o que me faz sentir uma hóspede na minha
própria casa.
Isto deve ser uma metáfora de qualquer coisa.
*
O Steve acorda-me às cinco da manhã, a dar patadas na cama do quarto de
hóspedes. Se calhar eu devia ter investido num colchão melhor para todos
os meus «hóspedes». Dói-me o pescoço e tenho as costas feitas num oito.
Nunca tinha sentido os sinais da idade a abaterem-se sobre mim como
agora. Deixou-me uns quantos presentes na cama, pelo que arranco a roupa
toda e enfio-a na máquina de lavar. Saímos e ele porta-se um pouco melhor
com a trela, só que depois não quer voltar a entrar. Quando me meto no
duche, já só tenho uns minutos para secar o cabelo.
– Volto para te passear à hora de almoço – digo-lhe antes de fechar a
porta. – Por favor, porta-te bem.
Portanto, estou mesmo de bom humor quando chego ao trabalho para o
último dia do programa.
– Isso que tens no cabelo são cereais? – pergunta-me Ruthie quando largo
a mala debaixo da secretária.
Tiro o que quer que seja e examino-o antes de o atirar para um caixote de
lixo.
– É comida de cão. Que delícia. Eu, hã, adotei um cão ontem.
Os olhos dela iluminam-se.
– Adotaste? Devíamos combinar uma saída para eles brincarem! A Joan
Jett adora fazer amigos.
Fotografias de Joan Jett, a goldendoodle, ocupam toda a secretária de
Ruthie.
Dado o estado emocional atual do Steve, digo-lhe que é capaz de demorar
algum tempo a ficar pronto para um encontro desses.
– Olá, equipa – cumprimenta-nos Paloma durante a reunião matinal.
Recebeu uma proposta para apresentar um programa de jazz numa estação
comercial e insiste que está entusiasmada com a nova direção que a sua
carreira está a tomar. Quero acreditar nela. – Bem. É hoje. Demo-nos bem,
acho. Onze anos? A maioria dos programas não dura nada que se pareça.
– Tu foste fenomenal – diz Ruthie. – Para nós foi uma sorte podermos
aprender contigo.
Paloma sorri, mas eu percebo que há alguma dor no seu olhar.
– Obrigada, Ruthie. Estava preparada para vir para aqui e fazer um
discurso grandioso, mas acho que por esta altura tudo o que consigo fazer é
agradecer-vos por ter sido tão maravilhoso trabalhar convosco. Fazem tanto
parte deste programa quanto eu. – E funga, como se estivesse a conter as
lágrimas. – Preparadas para o nosso último rodeo?
Eu, Paloma e Ruthie pensámos este episódio como uma espécie de
retrospetiva. Passámos horas a procurar excertos dos melhores programas
de Paloma, os momentos mais divertidos e os mais comoventes. Os
momentos que se escutam dentro do carro, já à porta de casa, quando não se
consegue desligar o rádio sem acabar de ouvir a história.
Na segunda-feira, eu e Dominic daremos os primeiros passos no
planeamento de Fala Com o Ex. Terá início o trabalho a sério. Mas hoje
continuo a ser uma produtora e este ainda é o meu programa.
Uma hora nunca passou tão depressa. Quando estamos a terminar, os
nossos colegas chegam com champanhe e enchem o estúdio. Faltam dez
minutos, depois cinco, e depois Paloma monopoliza o microfone para se
despedir.
– Aos ouvintes que nos acompanham desde o início, e aos que talvez só
nos tenham descoberto há pouco tempo, agradeço o apoio que nos
ofereceram ao longo de todos estes anos. A partir da próxima semana,
poderão ouvir-me na 610 AM Jumpin’ Jazz. E a nossa produtora-sénior,
Shay Goldstein, tem um novo programa, por isso, ouvidos atentos!
Fita-me através do vidro e eu levo uma mão ao coração enquanto digo
obrigada em silêncio.
E depois está na hora da sua última despedida.
– E assim chega ao fim Puget Sounds. Eu sou Paloma Powers e esteve a
ouvir-me na Pacific Public Radio.
Entra Jason com as horas e o estado do tempo, e ficamos oficialmente
fora do ar.
O estúdio desata a aplaudir e, do outro lado do vídeo, Paloma limpa uma
lágrima.
Acabámos. Puget Sounds foi toda a minha carreira na rádio pública e
agora chegou ao fim.
Um fim e, em breve, um novo começo.
Os nosso colegas apressam-se a ir ter com ela, para a abraçarem e
certamente recordarem momentos passados. Não ouço nada do que dizem,
nem tenho a certeza de que deva participar. Paloma vai-se embora. Eu fico.
Daqui a uns dias, vou sentir-me melhor, mas agora a sensação é agridoce.
Dominic está à espera no corredor, encostado à entrada da copa. O meu
cérebro está tão esquisito que hoje nem sou capaz de apreciar os seus
antebraços. Cumprimenta-me com o termo de café enquanto volto para a
minha secretária.
– Belo programa – diz ele, e devo estar doente, porque me parece que está
a ser sincero.
8

Na quarta-feira seguinte, já é bem tarde, depois do trabalho, que eu e


Dominic esquematizamos tanto a nossa relação como a rutura.
Para preparar esta noite, imprimi uma data de questionários de «conhece
bem a sua cara-metade?» e pedi emprestados a Ameena e TJ uns jogos de
tabuleiro. Já toda a gente se foi embora, exceto o locutor da noite que passa
conteúdo da NPR, com pausas ocasionais para informar sobre o estado do
tempo. (Parcialmente nublado. Está sempre parcialmente nublado.) As
únicas luzes na redação são as poucas que estão mesmo por cima de nós e lá
fora já escureceu.
Eu e Dominic passámos a segunda-feira toda e grande parte de terça em
reuniões com Kent e o conselho de diretores da estação. Todas as estações
de rádio têm um conselho diretivo, que trata das questões éticas e
financeiras, e são eles os donos da licença da estação. Para todos, a nossa
relação foi real – Kent é o único que sabe a verdade. Há umas horas, Kent
anunciou o programa ao resto da estação. E, tal como ele tinha previsto,
todos caíram no engodo.
– Bem me parecia que se passava alguma coisa entre eles! – exclamou
Marlene Harrison-Yates. – Estavam sempre a implicar um com o outro, ou a
fazer os possíveis por se evitarem.
– Não admira que o Dominic se mostrasse tão adverso ao programa
durante aquela sessão de brainstorming – comentou Isabel Fernandez com
um sorriso cúmplice. Tentei sorrir-lhe de volta.
Ainda não acabei de chorar a perda do Puget Sounds, mas não posso
deixar-me ficar presa a isso. Fala Com o Ex arranca no final de março; será
um programa semanal, com episódios todas as quintas-feiras, o que nos dá
umas semanas para criar conteúdo e dar solidez à nossa história. A nossa
mentira não está a prejudicar ninguém. Isso é o que não paro de me dizer.
– Vamos começar pelo básico – digo, virando a minha cadeira para o
encarar e abrindo um bloco de notas. – Como é que começámos a namorar?
Dominic apoia-se na secretária em frente à minha e atira uma bola Koosh
de borracha ao ar. A redação foi remodelada e as nossas secretárias agora
ficam uma ao lado da outra. Enquanto a minha é um caos organizado, a dele
está absolutamente limpa, à exceção de uns auriculares sobre um dos lados
do tampo. Nunca tinha visto uma secretária tão impecável.
– Ouviste a minha irresistível voz de rádio – goza ele, ao mesmo tempo
que apanha a bola. O Dominic-Fora-de-Horas é apenas ligeiramente menos
tenso do que o Dominic-das-Oito-às-Cinco. Está a usar umas calças de
ganga azul-escuras e uma camisa cinzenta aos quadrados com um botão e
meio desabotoados. Aquele segundo botão está a esforçar-se ao máximo por
se manter na casa, mas, sempre que Dominic se mexe, desliza um pouco
mais.
– Vais passar o tempo todo a fazer isso? – pergunto, a apontar para a
Koosh.
Ele atira a bola e torna a apanhá-la.
– Descontrai-me.
– Não vais tomar notas?
– Tenho uma memória excelente.
Lanço-lhe um olhar intenso. Ele revira os olhos, mas pousa a bola na
secretária, senta-se na sua cadeira e abre um documento do Word.
– Obrigada.
– A propósito, ouvi os teus podcasts – diz ele. – Gostei do Culture Clash.
– Sim? – Talvez devesse dar-lhe mais crédito. Não pensei que fosse
realmente ouvi-los, mas suponho que esteja determinado a fazer a pesquisa
necessária. – Que episódio ouviste?
Ele fita-me.
– Todos.
– Tu... o quê? – Não estava à espera disso. – Todos? Devem ser mais de
cinquenta!
– Cinquenta e sete. – Faz uma expressão envergonhada. – Tinha algum
tempo livre.
– Hã. Suponho que sim.
Observo-o enquanto uma estranha sensação se apodera de mim. Não é
bem orgulho, embora seja reconfortante que ele ache que o Culture Clash é
bom. Acho que sou capaz de estar comovida.
Dominic aponta para o ecrã do computador.
– Podemos pelo menos reconhecer o quão ridículo é isto tudo?
– Reconhecido. Bom, acho que o que temos de fazer é definir que
começámos a... ai, eu sei que isto é horrível... seduzir-nos logo quando
começaste a trabalhar aqui e que a nossa relação se solidificou na tua
segunda ou terceira semana, embora obviamente tenhamos guardado
segredo e ninguém da estação soubesse. Nova cidade, novo emprego e uma
relação nova, tudo ao mesmo tempo. Achas que dás conta do recado?
– Acho que tem de ser – diz ele. – E como é que foi essa sedução?
– Eu... eu não sei – respondo, um pouco desconcertada pela pergunta. –
Como... como é que costumas seduzir alguém?
Ele equilibra o dedo indicador e o dedo médio no queixo.
– Hum. Suponho que não seja sempre uma coisa consciente, pois não? Se
fosse alguém no trabalho, arranjaria desculpas para passar pela secretária
dessa pessoa, para falar com ela. Diria piadas, tentaria fazê-la rir. Se calhar
tocava-lhe, só ao de leve, mas só se tivesse a certeza de que a pessoa
gostaria e, se não gostasse, pararia de imediato.
Permito-me imaginar aquilo. Dominic não apenas a olhar para alguém lá
do alto, mas a rasar-lhe o braço com as costas da mão, como se fosse um
acidente, com um sorriso envergonhado. A pousar a palma da mão no
ombro de uma colega, a dizer-lhe o quanto gostara do programa ou da
história dela. Dominic a tentar provocar o riso a alguém. Sinto-me quase
tentada a pedir-lhe que me conte uma piada.
O Dominic Yun que flirta com uma colega hipotética não é o Dominic
Yun que conheço desde outubro.
– Certo – digo. – E... ao que parece, eu teria gostado de tudo isso. –
Pigarreio. – Quanto tempo durou a nossa relação?
– Três meses – responde ele num tom factual, como se tivesse pensado no
assunto.
– Porquê três?
– Porque menos talvez não fosse visto como suficientemente sério e se
fosse mais eu ainda não teria voltado para Seattle. Quanto mais longa a
relação, mais séria teria sido, e menos provável será que acreditem em nós.
Arqueio as sobrancelhas.
– Estou impressionada.
– É como tu disseste. Se fizermos isto bem, podemos fazer o que
quisermos depois.
Pedimos piza e continuamos a congeminar. O nosso primeiro encontro:
um jantar no restaurante coreano preferido de Dominic, o que é fácil,
porque já lá fui. O segundo: perdemo-nos num labirinto de um campo de
milho e abóboras, no fim de semana antes do Halloween. Passámos o
feriado juntos, pela primeira vez, sem nos mascararmos mas dando doces às
crianças que tocavam à campainha da minha casa. Foi nessa noite que
oficializámos a relação e decidimos não a revelar aos nossos colegas, por
razões óbvias. A estação era pequena e não queríamos que ninguém se
sentisse desconfortável.
Gostávamos da ideia de celebrar o aniversário no Halloween, porque as
relações eram um pouco assustadoras, não eram?
– Trato-te por Dom? – pergunto.
O seu rosto obscurece-se.
– Não. Nunca.
– Não corriges o Kent.
– Tu não me pagas o ordenado.
É justo.
Empurro pedaços de côdea da piza para a beira do prato e pego de novo
na caneta, batendo com ela umas quantas vezes no caderno.
– Isto não tem propriamente que ver com a relação, mas achas que eu
devia fazer alguma espécie de treino de voz?
A boca de Dominic retorce-se para o lado.
– A tua voz está bem. Talvez seja um pouco mais aguda do que a de
outras pessoas, mas é a tua voz. Não é algo que devas mudar.
Ele engana-se, claro. Toda a gente sempre se assegurou de que eu não me
esquecia de quão irritante é a minha voz. Ele depressa ficará a saber
também – tenho a certeza de que vamos ser bombardeados por emails de
ouvintes cheios de opiniões.
– Aquilo que me preocupa mais é esconder isto de toda a gente – continua
ele. – Não temos qualquer registo nas redes sociais.
– Isso não é assim tão invulgar – digo-lhe –, sobretudo porque não íamos
contar aos colegas. Falaste disto a alguém? Do que vamos fazer?
Ele abana a cabeça.
– Na verdade, não. Não é que não confie nos meus pais, mas eles são
bastante tagarelas com os amigos. E tu?
– Só contei à minha melhor amiga, mas confio totalmente nela.
Conhecemo-nos desde o jardim de infância. – Não sei se consigo explicar-
lhe porque foi mais fácil contar a Ameena do que à minha mãe.
Concentro-me de novo nas notas. São quase nove da noite. Fui passear e
dar de comer ao Steve à tarde, antes de voltar a correr para a estação, mas
isso não quer dizer que não esteja desejosa de acabar isto o mais depressa
possível.
– Então. Adiante. A razão para termos acabado... tem de ser qualquer
coisa que nos permita continuar amigos. Ou, pelo menos, suficientemente
cordiais para apresentarmos um programa juntos. Também não quero que
qualquer um de nós fique com má fama por causa disso.
– Hã – diz ele. – Esperava que quisesses que eu fizesse de mau da fita.
– Eu sou assim, uma caixinha de surpresas – replico. – Vamos lá pensar
porque é que as nossas últimas relações acabaram. Eu não ando com
ninguém a sério desde o início do ano passado.
– O que é que aconteceu?
– Eu estava... mais afeiçoada do que ele – digo, sem querer humilhar-me
por completo. – E tu?
– Próxima pergunta.
– Vá lá. Já sabes que a vi no Facebook. Namorou contigo antes de mim.
Eu devia saber alguma coisa acerca dela.
Tento imaginá-los, Dominic e a ruiva gira, Mia Dabrowski. Deve mesmo
ter-lhe partido o coração, para ele continuar tão pouco à vontade para falar
disso.
Ele tira as chaves de uma gaveta da secretária.
– Vou precisar de álcool para aguentar o resto disto. Queres alguma
coisa?
*

Eu e Dominic Yun estamos bêbedos e a jogar à bola no trabalho.


Ele recua até às janelas que dão para uma rua escurecida de Seattle e ri-se
quando tropeça na secretária de alguém. Recupera e atira-me a Koosh. Dois
pares gémeos de garrafas de cerveja vazias estão nas nossas secretárias.
Não sei onde foi parar o elástico do meu cabelo – provavelmente, algures
do outro lado da redação, depois de eu ter tentado acertar-lhe com ele,
falhando em grande. O segundo botão da sua camisa já perdeu a batalha há
um bom bocado e o seu cabelo está desalinhado. Só tem um sapato calçado,
revelando uma meia às bolinhas no outro pé. Eis uma versão de Dominic
que nunca pensei que fosse ver, e não a detesto.
Álcool foi uma ótima ideia.
– O que precisamos mesmo – digo, a remexer na bola –, é de um slogan.
– Um slogan? Tipo o quê? WHAA-ZOOOM? – pergunta, na sua melhor
imitação de um locutor de um talk show radiofónico.
Resfolego e sobe-me cerveja pela garganta, causando-me um pouco de
azia.
– Não, não, não. Não é um slogan. É um... como é que se diz? Uma
introdução. Do género... – Faço a minha melhor Voz de Homem Branco da
Rádio nos Anos 1950 – ... «Olá, eu sou a Shay e este é o Dominic, e
tivemos mesmo uma relação». Só que, sabes? Mais chamativa.
– Não sei, eu cá gosto mesmo de «wha-zoom».
Atiro-lhe a bola com toda a força e, não sei como, ele apanha-a. Subo as
pernas para a cadeira, pois já descalcei as botas há um bom bocado. Tenho
colãs debaixo da saia, por isso espero não estar demasiado indecente nesta
posição.
Cresceu-lhe um pouco a barba ao longo do queixo – uma sombra das
onze da noite – e eu dou por mim a pensar como será passar a mão por ali.
Se seria áspera como lixa. Ele costuma andar tão bem barbeado. Não
consigo decidir como gosto mais de o ver e, claro, embora seja preocupante
debater mentalmente se Dominic é mais atraente com ou sem barba, não há
nada de errado em reconhecer que se trata de um ser humano esteticamente
agradável.
Sou perfeitamente capaz de ter uma relação falsa – um fim falso – com
um colega atraente. Sou uma profissional.
Ele volta para perto das nossas secretárias e deixa-se cair na sua cadeira.
– Lamento que o Puget Sounds tenha acabado – diz ele, estendendo as
pernas compridas até tocar na base da minha cadeira. Empurra-a com o pé,
o que a faz girar uns centímetros para o lado. – O teu último programa foi
mesmo bom.
– Obrigada. Tem sido... difícil despedir-me disso.
– Eu percebo. Foi o único programa em que trabalhaste – comenta, e eu
aceno com a cabeça. – Olha. Eu sei porque é que não gostas de mim.
– O quê? Eu não... eu não não gosto de ti – replico, baralhando-me com a
dupla negativa.
– Shay, Shay, Shay – arrasta ele o meu nome. – Então. Tive uma aula de
comunicação não verbal no mestrado e, mesmo que não tivesse tido, não
sou idiota. Ficas possessa por já não seres o jovem prodígio daqui, não é?
– O que queres dizer?
– A estagiária que chegou a funcionária-sénior mais depressa do que
qualquer outra pessoa da história da estação. Tu eras a menina brilhante e
agora...
– Estou velha?
Os olhos dele arregalam-se e os seus pés aterram com força no chão.
– Não! Merda, não, não era isso que queria dizer.
– Só temos uns cinco anos de diferença. Tecnicamente, também és um
millenial. – Um millenial muito jovem.
– Eu sei. Eu sei. Estou a tentar perceber como hei de dizer isto. É difícil
quando sentimos que não conseguimos impressionar as pessoas que
queremos impressionar.
– E o que é que tu sabes sobre isso?
Apesar da relação que forjámos esta noite, tenho de me recordar a mim
mesma que ele não me conhece realmente, ainda que esta conversa indique
o contrário.
– Sou o mais novo de cinco irmãos – diz ele. – Tudo o que fiz, algum
deles já tinha feito e, por norma, melhor do que eu.
E embora continue mudo quanto ao motivo para ele e Mia Dabrowski
terem acabado, isto parece muito mais real do que tudo o resto que disse
durante a noite. Pouco depois de ter começado a beber, contou-me que tinha
sido a distância. Ele ia deixar o Illinois e ela queria ficar. Mas eu não
consigo deixar de achar que isso não é tudo.
– Eu não tenho sido... a pessoa mais simpática contigo. E peço desculpa.
É possível que tenha tido um bocadinho de inveja.
Mostro-lhe o polegar e o indicador com um espaço de dois centímetros.
– Mais do género... – Ele estende a mão para a minha e afasta-me mais os
dedos. O seu toque é suave, apesar de a sua mão ser muito maior do que a
minha. – Mas eu provavelmente também não fui fácil. Tu és boa naquilo
que fazes. Acho isso desde que comecei.
O elogio insinua-se no meu cérebro embriagado, espicaçando outro dos
meus receios.
– E se isto não resultar? – pergunto em voz baixa.
Ele aproxima mais a cadeira até ficar mesmo à minha frente. Não cheira à
água de colónia habitual, de oceano e sálvia. O cheiro de hoje é algo mais
similar a madeira. Terroso. Talvez até... melhor?
Preciso de um paramédico.
Ele pousa as mãos em cada um dos braços da minha cadeira, o que me
proporciona uma visão privilegiada dos seus antebraços. Os músculos dos
braços dele contraem-se quando agarra a cadeira e eu tenho de desviar o
olhar – e fito-lhe a cara, o que é capaz de ser ainda mais perigoso.
Embora já tenha reparado no seu sorriso enigmático e na única covinha
que se forma na face esquerda, nunca tinha prestado atenção a como é
encantadora a sua boca, com o lábio inferior ligeiramente mais grosso do
que o superior.
És boa naquilo que fazes.
– Vai resultar – diz ele, correspondendo à minha voz baixa. – Não fiz de
Curly McLain em Okhlahoma! na escola preparatória em vão.
– Não me tinhas contado que eras um miúdo do teatro.
Tento imaginá-lo de chapéu de cowboy – qualquer coisa para me impedir
de pensar a que saberá a sua boca. Ele tem os joelhos encostados à beira da
minha cadeira. Se eu não tivesse encolhido as pernas, estaria no seu colo.
– Não, os miúdos do teatro odiavam-me. Fui espetacular na audição, mas
sempre tive um medo pavoroso do palco. Tinha ataques de pânico todas as
noites antes de entrar em cena.
Era capaz de ter dado jeito saber isso antes de aceder a fazer um
programa de rádio em direto com ele. Custa-me assimilar a ideia. Ele nunca
me pareceu ter falta de confiança, exceto quando ficou paralisado e sem
resposta no Puget Sounds.
– Tens um medo terrível do palco – ecoo, com a cerveja a chocalhar-me
no estômago. – Mas não te importas de apresentar um programa de rádio?
Ele abana a cabeça.
– Isso não tem problema. Não há público... bem, que se veja. Grupos
pequenos não me incomodam, mas se houver mais do que uma dúzia de
pessoas os meus pulmões de repente decidem que não funcionam. Quando
me recompus com a Paloma, foi como se estivesse a conversar só com ela.
– Empurra a minha cadeira com os pés, pondo cerca de meio metro entre
nós. Solto uma expiração trémula. Espaço. Sim. Isso é capaz de ser bom. –
Deves ser mesmo um peso-pluma. Tens a cara vermelhíssima.
Tapo-a com as mãos.
– Argh, vou buscar água. Está sempre a acontecer. É a desvantagem de
não medir um metro e oitenta e tal.
– E noventa.
– Credo.
Vou até à copa e surpreende-me que ele me siga. Lá dentro, acendo um
dos quatro interruptores.
Quando não consigo chegar aos copos de água na prateleira de cima, ele
pega num sem esforço e passa-mo, numa clara exibição dos superpoderes
invejáveis que acompanham ter um metro e noventa. Resmungo um
agradecimento e levo o copo à torneira do frigorífico.
– Ainda não definimos porque é que acabámos – diz ele, encostado à
bancada em frente ao frigorífico.
– Se calhar devíamos manter a coisa simples. Dizer que trabalhar juntos e
namorar se tornou demasiado para nós?
– Isso não é muito excitante – diz ele. Que apropriado que não estejamos
de acordo. – Se calhar ficaste intimidada pela minha brutal energia sexual.
Quase me engasgo com a água – aquilo é mesmo inesperado, vindo dele.
Mas, bem, eu também consigo jogar assim, sobretudo com o álcool a
soltar-me a língua.
– Ou tu nunca conseguiste levar-me ao orgasmo.
– Nunca tive esse problema – diz ele, sem sequer pestanejar.
Estando só os dois aqui na penumbra, tenho noção de quão pequena é a
copa. Ele não deveria ter-me seguido até aqui. Eu poderia ter subido à
bancada e tirado eu mesmo o copo da prateleira, porque se há coisa que os
baixinhos são é exímios trepadores de bancadas.
Mas depois ele não estaria ali, numa das suas Dez Melhores Posturas
Inclinadas Mais Enfurecedoras, a observar-me por baixo de umas pestanas
verdadeiramente impecáveis.
O álcool assume o controlo total.
– Então... tínhamos uma boa vida sexual, era?
Um dos lados da sua boca sobe ligeiramente.
– Se calhar não fomos para a cama.
Acontece então algo horripilante: deixo escapar um som completamente
inumano, uma mescla de arquejo com riso e engolir em seco. Recuo até
bater com as omoplatas na parede.
– O quê, achavas que ter sexo comigo era ponto assente? – pergunta ele. –
Será que a minha personagem fictícia é assim tão oferecida?
– Oh, meu Deus, não, não, não – digo. – É só que... se tivéssemos andado
durante três meses, provavelmente... quero dizer, se calhar não, mas...
Ele já está a sorrir de orelha a orelha, como que divertido pela minha
tagarelice incoerente. Levo o copo de água à cara para me esconder atrás
dele. Deixei a camisola em cima da secretária e estou demasiado quente, a
usar uma T-shirt preta e fina. Ele é uma lâmpada de aquecimento de um
metro e noventa.
– Shay – diz ele em voz baixa. Provocante. Aproxima-se mais e estende a
mão para desviar o copo da minha cara, deixando-o ao nível do meu ombro.
– Sinceramente, sinto-me lisonjeado.
Depois toca suavemente com o rebordo do copo na minha face, muito
suavemente. Um toquezinho amistoso que me põe o coração a mil. Quando
o afasta, levo a mão à cara, deixando uns dedos no sítio arrefecido.
O seu olhar é tão intenso que, por um momento, tenho de fechar os olhos.
O meu instinto é recuar, criar mais espaço entre nós, mas, quando tento,
lembro-me de que já estou encostada à parede. Não sei para onde olhar.
Normalmente, fico ao nível dos seus peitorais, mas ele está inclinado, com a
curva dos ombros suave nesta meia-luz. Suficientemente perto para
estender a mão e tocar-lhe – se quisesse. Observo o movimento do seu
peito. Isso é seguro. Mais seguro do que estabelecer contacto visual, pelo
menos.
Nunca tive esse problema.
– Ainda bem, porque o que eu queria agora era que o chão se abrisse e me
sugasse para a Boca do Inferno.
– Fã da Buffy?
– Oh, sim. Cresci com isso. E tu?
Ele tem ao menos a decência de parecer envergonhado.
– Vi na Netflix.
Claro que sim. Tem vinte e quatro anos, é suficientemente novo para
nunca ter assistido ao programa quando saiu, entrecortado por anúncios.
– Quando disse «cresci com isso», queria dizer que, sabes, era muito nova
durante as primeiras temporadas, e não percebia metade do que se passava...
– Interrompo-me com um gemido, embora esteja agradecida por a conversa
se ter afastado de sexo. – Meu Deus, não me faças sentir como uma
avozinha.
Uma gargalhada que lhe sai do fundo da garganta transforma-me as
pernas em gelatina. Aquela vibração... sinto-a no último sítio onde quereria
senti-la.
É profundamente preocupante.
Isso é o que me apanha desprevenida, mais do que qualquer outra coisa
nesta noite. Não quero pensar em fazer nada com Dominic para além de
apresentar um programa acerca da nossa relação fictícia. Não quero pensar
em como soaria aquele riso gutural junto ao meu ouvido, enquanto outras
partes do seu corpo se juntavam a outras partes do meu.
E não quero mesmo imaginá-lo a segurar aquele copo frio contra a minha
pele nua.
Engulo em seco, obrigando-me a desbaratar essas fantasias. Sóbria, Shay
nunca fantasiaria com Dominic Yun, estando ele mesmo à sua frente. A
minha imaginação é demasiado criativa e a seca de um ano não deve estar a
ajudar.
Dominic devolve-me o copo e endireita-se por completo. Oh. Só então
me dou conta de quão fácil teria sido para ele agarrar-me as mãos por cima
da cabeça e empurrar-me contra a parede, dizer-me, com a boca encostada
ao meu pescoço, como o jornalismo irá salvar o mundo.
É claro que ele não faz nada disso, optando antes por dar um passo atrás.
Depois dois. Quando dá três passos, a temperatura na copa desce. Aos
quatro, já consigo respirar outra vez.
– Para que saibas – diz ele, já a avançar para a porta –, eu também acho
que teria sido bom.
9

A minha mãe vira-se, a espreitar o seu reflexo no espelho triplo.


– Estás linda – digo-lhe, sentada no sofá de pele bege.
O mesmo se aplica aos últimos cinco vestidos que experimentou, o que
confirma a minha teoria: Leanna Goldstein é incapaz de ter mau aspeto,
mesmo a usar doze metros de tafetá amarelo-esverdeado. Entretanto, eu
tenho olheiras pois o meu cão voltou a obrigar-me a dormir no quarto de
hóspedes e o cérebro cheio de recantos escuros da copa.
– Não é um erro, optar por uma cor que não o branco, pois não? – Ela
afasta o cabelo acobreado da nuca, expondo as costas abertas do vestido. –
Quero afastar-me do tradicional, mas não quero nada que seja demasiado
maduro.
Ela e o meu pai também não foram pela rota tradicional: casaram em
segredo no Parque Nacional das Montanhas Rochosas do Colorado. As
fotografias são de cortar a respiração, os dois com montanhas azuladas e
abetos Douglas como pano de fundo. «Todos os meus amigos dizem que
gastaram imenso dinheiro em comida e não conseguiram comer nada»,
dizia-me quando lhe perguntava porque não tinham feito uma cerimónia
com um copo-d’água. Depois dava a sua gargalhada musical. «E isso
parecia-me a coisa mais trágica do mundo.»
Quando entrámos na loja de vestidos de noiva, a vendedora pôs-se a falar
cheia de entusiasmo acerca de como era maravilhoso ajudar a filha a
escolher as coisas para o casamento. A minha mãe teve de a corrigir, ao que
ela se fartou de pedir desculpas.
Contudo, não é o facto de estarmos aqui por causa da minha mãe que faz
com que isto me pareça estranho. É que seja a segunda vez que ela se casa e
que, desta vez, queira ter a cerimónia com um copo-d’água.
– Cada vez mais noivas optam por vestidos não tradicionais – comenta a
vendedora, de almofada de alfinetes e fita métrica na mão. – Não teria
pensado que o verde combinasse com o seu cabelo, mas está um espanto.
Mesmo assim, a minha mãe franze o sobrolho.
– Ainda há qualquer coisa que não me parece bem. Será que tem alguma
coisa que seja um pouco menos... – agarra as muitas camadas de saias com
folhos –, bem, um pouco menos vestido?
– Com certeza. Volto já com uns estilos mais curtos.
A vendedora desaparece e eu acabo o resto do champanhe.
Estou a esforçar-me ao máximo por me concentrar, mas a minha mente
regressou à estação. Na quinta-feira de manhã, Dominic entrou como se
nada se tivesse passado entre nós, à exceção daqueles sorrisinhos que me
dirigiu ao pegar na sua bola Koosh e começar a atirá-la para cima e para
baixo. E... nada aconteceu entre nós, certo? Aquele momento na copa pode
ter-me parecido intenso, mas talvez ele se debruce sobre mulheres a toda a
hora, com as suas feromonas e ombros largos a baralharem-lhes o cérebro.
Não se deu o caso de ele me empurrar contra a parede porque me queria e
não conseguia esperar mais. Fui eu que recuei, e ele depois limitou-se a pôr-
se à minha frente.
Estávamos bêbedos e exaustos e a falar de sexo. A minha mente
descontrolou-se, exibindo a «imaginação hiperativa» que as professoras da
primária mencionavam nos meus relatórios de fim de período. Isso não quer
dizer que me sinta atraída por ele.
A vendedora regressa com uma braçada de vestidos rosa-pálidos, verde-
menta e azul-claros, e a minha mãe agradece-lhe.
– O primeiro episódio é daqui a duas semanas – diz-me do outro lado do
provador. – Como te sentes?
– Estranhamente bem – respondo. – Ainda não me caiu realmente a ficha
quanto a ir estar no ar.
Poderia dizê-lo cem vezes, mas provavelmente só quando estiver naquele
estúdio é que vou acreditar, por estar tão habituada a ficar do outro lado.
– O teu pai já estaria a contar a toda a gente e mais alguma – diz a minha
mãe, após o que ouço o seu riso melódico. – As pessoas iriam achá-lo tão
chato.
– Não achavam já? – pergunto, pois essa é a verdade.
Quando alguém morre, não nos lembramos só das suas qualidades.
Também nos lembramos do que tinham de difícil; por exemplo, se lhe
fizesse uma pergunta a que ele não soubesse responder, o meu pai limitava-
se a ignorá-la. Também passava a vida em conflito com os vizinhos por
causa das árvores que pendiam para o nosso jardim e a sua retaliação
passivo-agressiva era cortar a relva todos os dias durante meses. Os mortos
não se tornam imediatamente seres humanos sem defeitos. E não estaria
certo transformá-lo nisso. Amávamo-lo, com defeitos e tudo.
– Às vezes – diz a minha mãe, a sair do provador num vestido cor-de-rosa
com saia de tulipa. – Eu também fiz uma mancheia de inimigos na minha
carreira, sem dúvida. Não, não, este não.
Agarro o rabo de cavalo baixo e tapo a boca com o cabelo antes de o
atirar de volta para trás do ombro.
– Pensei, não sei, que com o Phil, e este casamento... que se calhar desta
vez ias finalmente fazer a coisa certa.
A porta volta a abrir-se e a minha mãe surge num sutiã da cor da sua pele
e um vestido azul-escuro apenas até à cintura. Tem sardas pelos braços e na
barriga. Quando eu era mais nova, as suas rugas poderiam ter-me assustado,
mas agora fazem-na parecer forte.
– Shay. Não. De todo. – Apressa-se a ir ter comigo, aparentemente sem
querer saber de estar seminua. – Eu sei que isto só pode ser estranho para ti.
– Um bocadinho – respondo, porque muito era capaz de a preocupar.
Quero ser a filha descontraída e de mente aberta, mas não sei bem como.
Habituei-me tanto à nossa família mínima.
Mas também me tinha habituado a Puget Sounds. O meu emprego está a
mudar e, exceção feita ao que quer que tenha acontecido na copa, tenho
estado bem.
– Eu e o teu pai tivemos exatamente o tipo de casamento que queríamos –
continua ela, soltando-me o cabelo e passando os dedos por ele como fazia
quando eu era pequena. – Os nossos pais não se entendiam e tinham ideias
diferentes quanto ao que devia ser um casamento. Os meus insistiam numa
cerimónia judaica tradicional, enquanto os pais do Dan, que não eram
praticantes, não queriam que fosse religioso. – Os meus avós paternos
vivem no Arizona, mas os da minha mãe morreram quando eu era pequena.
– E, agora que sou mais velha, agora que somos só nós os dois, podemos
fazer exatamente o que queremos.
– Se calhar é isso que me custa – digo, tentando parecer mais confiante do
que me sinto. – Que sejam só vocês os dois, quando sempre senti que
éramos só nós as duas.
Isso fica a pairar entre nós e, quando o rosto da minha mãe se crispa,
arrependo-me de o ter dito.
– Merda, foi mesmo egoísta da minha parte, desculpa. Lamento imenso.
Estava só a pensar que não fazia ideia de que ias pedi-lo em casamento, e a
Ameena perguntou-me se eu já sabia, e...
No entanto, a minha mãe abana a cabeça, a coçar a base do pescoço como
faz sempre que fica nervosa.
– Não. Tens razão. Nos últimos dez anos, temos sido apenas nós, não é
verdade? Eu deveria ter falado contigo primeiro. Peço desculpa. – Olha para
baixo e depois fita-me de novo e, por um momento, não vejo apenas a
minha mãe, mas uma mulher que cometeu um erro e está desesperada por
ser perdoada. – Mas tu também estás contente, não estás? Gostas do Phil?
– Oh, meu Deus, mãe, sim. Sim. Adoro o Phil. – Aperto-lhe a mão. – Não
estou zangada. De todo. Juro. Estou só... a ajustar-me.
– Acho que todos estaremos, durante algum tempo – diz ela. – Quero que
faças parte disto da forma que quiseres, OK?
– OK, mas se tentares obrigar-me a vestir verde-amarelado, podes crer
que me levanto quando o conservador perguntar se alguém se opõe.
Ela assente com a cabeça, fazendo um ar solene.
– E seria bem merecido.
Depois vira-se para o espelho, como se a lembrar-se de que não acabou
de se vestir. Põe-se de pé e endireita-se, e eu percebo que o está a usar não é
um vestido, mas um elegante macacão azul-escuro. Não tem mangas, a
parte de cima é caicai, e as suas linhas são longas e simples. É
simultaneamente adequado à sua idade, não tradicional, impressionante e
discreto.
O rosto dela abre-se num sorriso que, apercebo-me pela primeira vez, é
exatamente igual ao meu.
Talvez não o tenha visto vezes suficientes nem nela, nem em mim.
– É este – declara.
*
Na tarde de domingo, Mary Beth Barkley encontra-se na minha sala de
estar, a ver quem ganha o concurso do olhar fixo com o Steve.
– Agradeço-lhe imenso que faça isto – digo-lhe. – Ele tem sido uma
espécie de pesadelo. Um pesadelo adorável.
Mary Beth não liga ao meu comentário.
– Não és a coisa mais fofa? – disse assim que chegou, e deu-lhe um
bocado de queijo, do pacote que traz à cintura. – O que ele precisa é de
limites e de disciplina. Passo a vida a ver isto com quem nunca teve
animais, sobretudo com cães que não foram socializados. Ele precisa de
saber que a Shay é a alfa.
Ele começa por chamá-lo pelo nome, recompensando-o quando ele
responde. Depois treinamos algumas ordens básicas e treino de trela.
– Ele é que está a passeá-la a si – diz Mary Beth, quando saímos e o Steve
me puxa até à árvore onde mais gosta de urinar. – Quanto é que ele pesa?
– Hã... uns três quilos.
– A Shay é a alfa – repete ela, e eu decido não lhe contar que tenho
dormido no quarto de hóspedes. – Assegure-se de que ele sabe isso. Não é
ele quem manda. Este passeio é escolha sua, não dele. A Shay é que o leva,
não é o contrário.
Portanto, sou basicamente a produtora da vida dele, e isso é coisa que eu
sei de sobra como fazer.
Ele puxa a trela, mas eu não cedo. Passados uns momentos de esforço, ele
vem ter comigo, deixando a trela lassa, e, quando avanço para ir na outra
direção, até me segue.
– Lindo menino! – exclamo praticamente a guinchar, o que o assusta, mas
uma guloseima resolve tudo.
Cerca de uma hora mais tarde, voltamos para dentro, exaustos mas
vitoriosos.
Mary Beth baixa-se para o coçar atrás das orelhas.
– Vais ser um lindo menino – diz. – Só precisavas de alguma ajuda.
Agradeço-lhe, mas ela não me deixa pagar-lhe.
– O seu programa fez-me chegar tantos clientes – diz ela, o que me
provoca um calor agridoce no peito. Estávamos a fazer algo importante.
Sempre o soube, apesar daqueles momentos em que Dominic me levou a
duvidar de mim mesma. – Mal posso esperar por ouvi-la no novo programa,
mesmo que tenha muito menos ênfase em cães.
A sessão de treino deixa-me incapaz durante o resto do dia, o que talvez
seja bom, porque os nervos do começo iminente de Fala com o Ex
finalmente me caíram em cima. O Steve dormita – na sua cama, não na
minha –, enquanto eu vou recuperando alguns podcasts sobre relações que
subscrevi e trocando mensagens com Ameena.
Às oito menos um quarto, recebo uma mensagem de texto de um número
desconhecido. Estou na casa de banho a pintar as unhas de cinzento e é tão
desconcertante que quase deixo cair o telemóvel no lavatório.
*

É o Dominic. Consegui o teu número no diretório do pessoal.


Tive uma ideia. E se fizéssemos um episódio sobre pessoas que se tenham
conhecido numa viagem partilhada? Uma rapariga do meu mestrado anda com um
tipo que foi o seu condutor da Lyft.
*

Dominic Yun. A mandar-me mensagens sobre um ideia para o programa.


Para o nosso programa. Estou convencida de que só me vai parecer real
quando estiver sentada ao lado dele no Estúdio A.
*

SIM! Adoro. Admite. Estás entusiasmado com isto.


*

Enrosco a tampa do verniz, a perguntar-me de onde estará ele a enviar-me


mensagens e como passará os seus fins de semana. Talvez vá a mercados de
produtores locais ou saia para comer com amigos. Talvez faça caminhadas,
ande de bicicleta ou leia romances clássicos sozinho, num café. Não sei em
que parte de Seattle é que mora, se num estúdio, numa casa com uma data
de amigos, ou na casa dos pais.
É claro que até pode não estar em casa. Apesar de não ter uma relação de
momento, isso não quer dizer que não tenha encontros casuais. Sim, os
domingos não são a melhor noite para encontros, mas isso não me impede
de imaginar a sua posição característica, encostado à porta do quarto no
apartamento de uma desconhecida. A empurrar alguém contra a parede, a
sério desta vez, a pôr as mãos de um lado e do outro do corpo dela. Isso faz
com que o meu estômago se contorça de uma maneira estranha e nova.
*

Sim. Acho que sim. Foi algum feitiço teu.


*

As nossas palavras fluíram tão facilmente naquela noite na estação, mas


agora não sei bem como manter a conversa viva. Dou-me conta de que
quero conhecê-lo, quero saber onde mora e o que faz numa noite de
domingo, que tipo de livros gosta de ler. Provavelmente não-ficção, com
capas pardacentas e uma letra minúscula. Ensaios.
Porque é que não temos amigos em comum no Facebook. Sempre me
interessei por histórias, mas não consigo propriamente pôr-me a investigar
jornalisticamente a vida de Dominic. Sobretudo sem ser capaz de decidir o
que responder.
Não obstante, fico desapontada por o meu telemóvel não voltar a acender-
se durante o resto da noite.
10

As duas semanas seguintes são um turbilhão de atividades promocionais.


Enviamos comunicados de imprensa, tiramos fotografias novas para o site e
vamos ao programa da manhã da Pacific Public Radio. Os nossos primeiros
três episódios estão garantidos, com conteúdo e convidados, mesmo que
isso tenha implicado noites longas e madrugar. É difícil acreditar que, há
poucas semanas, eu produzia um programa em direto todos os dias.
– Estás a explodir os «p». Outra vez.
Estamos no Estúdio C a tentar gravar um anúncio de quinze segundos.
Entrámos há vinte minutos, durante os quais se tem tornado cada vez mais
evidente para mim que estes estúdios não foram pensados para duas
pessoas. Sim, há aqui duas cadeiras e dois microfones. Mas a altura de
Dominic faz com que o estúdio pareça ter metade do tamanho. Hoje está a
usar umas calças caquis, que muito facilmente ficariam horríveis na pessoa
errada. (Ele não é a pessoa errada.) Coordenou-as com uns sapatos Oxford
castanhos e um casaco de malha cinzenta com cotoveleiras. É um dos seus
looks mais descontraídos e eu só reparo nestes pormenores por estarmos a
trabalhar tão próximos um do outro.
Ele desliga o botão de GRAVAR.
– Custava-te muito ajudar-me, em vez de gozares comigo?
– Oh, parti do princípio de que tinhas tido uma aula sobre isto no
mestrado. – Mordo a parte de dentro de uma bochecha. – Desculpa. Isso
também não está a ajudar, pois não?
Ele solta um suspiro de grande sofrimento.
– Podias começar por me dizer o que raio é um «p» explodido.
Isso é coisa que posso fazer. Recorda-me as primeiras semanas do meu
estágio, o treino individual que Paloma me deu. Nessa altura, achei que era
ridículo – fosse como fosse, nunca viria a apresentar um programa na rádio.
Mesmo assim, aprendi a evitar as explosões dos «p» e as menos comuns
dos «b», e ainda o sibilar dos «s», não fosse o diabo tecê-las.
– Chamam-se consoantes oclusivas – explico, ao mesmo tempo que me
esforço por não pensar se a sua água de colónia com cheiro a água do mar
perdurará no estúdio depois de sairmos. – Quando pronuncias esse som «p»,
lanças uma explosão de ar contra o microfone. – Ponho a mão à frente da
boca e indico-lhe que faça o mesmo. – Pacific Public Radio. Sentes a
diferença quando dizes uma palavra que começa por «p» e outra que
começa por «r»? Expeles mais ar com os «p», certo?
– Pacific Public Radio. Pacific Public Radio. – Dominic experimenta
umas quantas vezes e depois assente com a cabeça. É simultaneamente
divertido e reconfortante, ver aquele gigante de metro e noventa a fazer o
que lhe digo.
– E isso que sentes vai soar distorcido na gravação – continuo. – Para
além de melhor tecnologia de gravação, coisa que tão cedo não vamos
poder adquirir, podes aprender a controlar melhor a respiração. Leva algum
tempo, e provavelmente vais pensar muito nisso no início, mas vai-se
tornando mais fácil.
Ele repete o nome contra a mão várias vezes, já com uma pronunciação
mais suave. Quando finalmente baixa o braço, a manga da camisola rasa no
meu ombro. Fico a pensar se será de lã ou algodão, suave ou áspera. Talvez
não deteste de todo a forma como ele se veste.
– Obrigado – diz ele. – Foi mesmo útil.
Tentamos gravar o anúncio outra vez.
Eu sou a Shay Goldstein...
E eu sou o Dominic Yun. Esta terça-feira, às três da tarde, na Pacific
Public Radio, ouça o nosso novo programa, Fala Com o Ex. Namorar,
acabar e recomeçar: tudo isto por duas pessoas que conseguiram continuar
amigas quando a relação terminou.
Mal podemos esperar para lhe contar a nossa história e ouvir a sua.
– Melhor – digo eu. Mas não consigo deixar de pensar no som da minha
voz. Com o programa quase a estrear, isso é a última coisa em que quero
fixar-me. – O episódio do Culture Clash desta semana foi bom.
– Não me contes! Ainda não ouvi.
– Está beeeem, mas olha que há uma parte em que...
Ele tapa as orelhas com grande estardalhaço.
– Já alguém te disse que és terrível?
– A maioria das pessoas. – Dirijo-lhe um sorriso angelical. – Também há
um podcast mais ou mesmo novo sobre a Buffy que tenho andado a pensar
ouvir.
– O Five by Five? É ótimo. O primeiro episódio foi um bocado tremido,
mas no terceiro já sabiam o que fazer.
– Então não te limitas a ouvir notícias – comento, arqueando as
sobrancelhas.
– Queres dizer que sou um ser humano complexo e com várias facetas?
– O júri ainda não decidiu.
A sua boca remexe-se, como se ele estivesse a esforçar-se por não sorrir.
– Bom, esse é que é um bom podcast.
Resfolego. Ele não precisa de saber que subscrevi um dos seus podcasts
sobre o Supremo Tribunal, Justice Makes Perfect. Ainda não ouvi nenhum
episódio, mas talvez o faça. É justo – ele ouviu os meus. Acredito piamente
na reciprocação.
Fazemos mais uns ensaios do anúncio. Se tal é possível, a minha voz
parece mais irritante a cada nova tentativa. Suspiro, afasto o microfone e
deixo-me cair numa das cadeiras da cabina. É sempre melhor gravar de pé –
menos pressão sobre o diafragma.
– Tens a certeza de que a minha voz soa bem?
– Pela milésima vez, sim.
– É óbvio que nunca ninguém se riu da tua voz mesmo à tua frente.
– Não, mas já recebi emails anónimos a dizerem-me que voltasse para a
China – diz ele. – O que tem ainda mais piada tendo em conta que não sou
chinês.
– Oh. – Merda. Isso não pertence sequer ao mesmo planeta dos meus
problemas. – Ena. Isso é mesmo lixado. Lamento.
– Obrigado. – Ele passa a mão pelo cabelo e deixa de se curvar sobre a
mesa para se sentar na cadeira ao lado do meu. – Gostava de te dizer que
me habituei, de tantas vezes que aconteceu, mas nunca nos habituamos.
Deixamos que isso nos dê força. Tornamo-nos ainda melhores porque
sabemos que continua a haver gente à espera de que falhemos.
E, para acabar, toca com a biqueira do sapato castanho na perna da minha
cadeira, de uma forma que talvez tenha a intenção de ser reconfortante.
Hum. Somos capazes de estar a dar-nos bem.
Não detesto a sua companhia, não por completo, e já quase me esqueci do
que aconteceu na copa. (Ainda que tenha ficado com a boca seca quando
ontem o vi encher um copo de água. Vou ficar lixada, se isto se torna um
fetiche.) Se calhar há alguma maneira de sermos amigos. Não será a relação
que tive com Paloma, que foi desequilibrada desde o início. Mas talvez
possamos ser algo como iguais. Uma verdadeira inovação no mundo da
rádio pública.
Fito o seu sapato. A pele engraxada, os atacadores cuidados. É um pouco
menos intimidante quando está sentado a meu lado, mas talvez ainda mais
misterioso.
– Mais uma vez, então? – pergunto, e ele carrega de novo no botão de
GRAVAR.
*

Nenhum dos ouvintes irá ver-me, mas decido vestir-me com cuidado no
dia da estreia. Uso um minivestido cinzento estruturado, colãs estampados e
umas sandálias Mary Jane lilases de salto alto que encontrei numa venda de
garagem a que fui com Ameena no ano passado. Apanho o cabelo grosso no
rabo de cavalo do costume, mas aliso a franja, deixando-a suave e lustrosa.
Ainda penso usar lentes de contacto, mas já não o faço há séculos e estou
tão afeiçoada aos meus óculos de armação de tartaruga que não quero
arriscar a mais pequena alteração da minha visão.
Tens um rosto bom para a rádio, dizia-me o meu pai a sorrir. Uma bela
piada de pai. Meu Deus, ainda sinto a falta dessas.
A manhã arrasta-se. O nível de angústia é equiparável ao de fazer uma
desvitalização dentária seguida de uma citologia. Ao almoço, o meu
estômago só aguenta um terço de uma sanduíche da loja no piso térreo,
enquanto Ruthie revê o resumo a meu lado. Acabo com mostarda na saia e
passo quinze minutos na casa de banho a esfregar a nódoa.
Kent vem ter connosco enquanto ensaiamos a introdução.
– O meu casal preferido – diz ele, a apontar sem grande subtileza para a
gravata com cupidos que escolheu em nossa honra. – Ou ex-casal preferido.
Vocês vão ser o máximo. Estamos todos mesmo entusiasmados com isto.
No entanto, por baixo daquelas palavras, eu ouço outra coisa:
Não façam asneira.
Ruthie imprime os guiões mais atualizados. Este primeiro episódio não
tem convidado. Sou só eu e Dominic, a contar as nossas histórias falsas e a
esperar que comecem a cair chamadas.
No corredor a caminho do estúdio, tropeço no tapete.
– Estás bem? – pergunta-me ele, estendendo a mão para me agarrar o
cotovelo e ajudar a recuperar o equilíbrio. O meu vestido é de manga curta
e sinto os seus dedos quentes na minha pele.
Bem, agora não estou.
– Five by five – consigo dizer.
Ruthie entra no estúdio e pousa um copo de água à minha frente e outro
em frente a Dominic.
– Água para os meus apresentadores preferidos – cantarola.
– Obrigada. Eu ter-me-ia esquecido. – Embora eu o tenha feito montes de
vezes por Paloma, não quero que Ruthie sinta que precisa de nos servir. –
Como é que pareces tão calma? Voltei a pôr desodorizante há meia hora e
continuo a suar horrores.
– Sou a vossa produtora – diz ela. – Compete-me manter a calma.
E tem razão – seria muito pior se ela também estivesse a passar-se.
Pergunto-me quão pior seria se ela soubesse que nunca namorámos.
Por sorte, os nervos não me deixam espaço para a culpa. Pelo menos hoje
não. Pelo menos não quando estou a cinco minutos de concretizar o sonho
de toda a vida. Ruthie desaparece para o estúdio adjacente e eu e Dominic
ficamos de um lado da mesa, com os copos de água à nossa frente e as
cadeiras giratórias, e pomos os auscultadores.
O sinal A GRAVAR acende-se.
– Já a seguir, a estreia do nosso novíssimo programa, Fala Com o Ex –
diz Jason Burns. – Mas, primeiro, as notícias da NPR.
Está a acontecer. Vamos mesmo fazer isto.
O meu próprio programa.
– Tenho um desodorizante fortíssimo no meu saco de ginástica – diz
Dominic. – Posso pedir à Ruthie que vá buscá-lo.
Lanço-lhe um olhar horrorizado. Estamos num pequeno espaço fechado.
Morro, se ele acha que eu cheiro mal. E se ficar com manchas de suor,
morro mesmo.
– Preciso?
– Oh... merda. Não. Não. Parecia era que estavas a stressar por causa
disso, por isso lembrei-me de oferecer. Tens uns cheiro normal. Tipo...
cítrico. É agradável.
É agradável. Ele não disse cheiras bem. Uma distinção importante.
– Obrigada – digo com alguma hesitação, aceitando o elogio pelo meu
champô da Burt’s Bees.
A perna dele abana debaixo da mesa. Hoje está de calças de ganga escura.
– E aí o que é que se passa? – pergunto, a apontar.
Volto a lembrar-me da sua confissão de ter medo do palco. Ele disse que
estaria bem na rádio, sem uma audiência visível. Meu Deus, espero bem
que assim seja.
– Ah. Sou eu a tentar disfarçar o nervosismo. Como é que estou a sair-
me?
– Terrivelmente mal – respondo. – Tal como eu.
O canto da sua boca agita-se. Como se não quisesse que eu soubesse que
algo lhe parece divertido, ou como se um riso a sério pudesse dar-lhe cabo
da fachada estoica.
– Então há alguma coisa que fazemos bem juntos – comenta. Bebe um
gole de água e o meu coração acelera por uma razão totalmente diferente.
Concentra-te. Folheio a minha pilha de papéis. Como conseguiria Paloma
fazer com que tudo parecesse tão simples? A nossa introdução
coreografada, as histórias fictícias, os intervalos para anúncios... Mas é
impossível prepararmo-nos para tudo. E se alguém liga com uma pergunta
que não conste das minhas notas, será que vou ter resposta?
OQFUHBM?
Ruthie fala pelos nossos auscultadores.
– Trinta segundos – diz-nos, um pouco ofegante.
Cruzo e descruzo as pernas. Raspo a nódoa de mostarda. Tento beber
água e escorre-me um bocado pelo queixo.
– Olha – diz Dominic, mesmo antes da contagem decrescente a partir de
dez. Por fim, a sua perna deixa de abanar e ele encosta o joelho ao meu. –
Shay. É só como se fôssemos nós os dois a ter uma conversa.
– Certo. Certo. Podemos fazer isso.
O seu olhar fixa o meu.
– E estou mesmo contente por me teres convencido a fazê-lo.
Depois Ruthie aponta para nós.
E entramos em direto.
Fala Com o Ex, Episódio 1: Porque é que Acabámos
Transcrição

<Fade in de trechos áudio enquanto a música «Breaking Up Is Hard to Do»


toca>
«Tu dizes que és um espírito livre, uma coisa selvagem, e que morres de
medo de que alguém te meta numa jaula. Bem, querida, já estás nessa
jaula...» (Boneca de Luxo)
«Não podes seguir-me para onde eu vou. Não podes fazer parte daquilo
que eu tenho de fazer...» (Casablanca)
«Francamente, minha querida, estou-me nas tintas.» (E Tudo o Vento
Levou)
«Se eu quiser ser senador, preciso de casar com uma Jackie, não com uma
Marilyn...» (Legalmente Loira)
«Devíamos acabar ou isso» (Scott Pilgrim contra o Mundo)
<Fade out>
DOMINIC YUN: Foi num dia frio de dezembro...
SHAY GOLDSTEIN: Tenho praticamente a certeza de que foi no início de
janeiro.
DOMINIC YUN: Foi algures no inverno. Tu estavas a usar aquela
camisola azul...
SHAY GOLDSTEIN: Verde.
DOMINIC YUN: E eu tinha o meu gorro cinzento preferido.
SHAY GOLDSTEIN: Eu detestava esse gorro.
DOMINIC YUN: E eu detestava que tu detestasses aquele gorro.
SHAY GOLDSTEIN: Obviamente, não foi por isso que acabámos, mas
uma má comunicação é uma das principais razões para as relações não
durarem.
DOMINIC YUN: Eu sou o Dominic Yun.
SHAY GOLDSTEIN: E eu sou a Shay Goldstein, e este é Fala Com o Ex,
o novo programa da Pacific Public Radio. Obrigada por se juntar a nós.
Transmitimos em direto de Seattle, ou, se está a ouvir o nosso podcast,
algures num passado recente. Vamos ser totalmente honestos: este não é só
o nosso primeiro episódio, mas também a primeira vez que estamos assim
no ar. Eu sou produtora desta estação há dez anos e o Dominic trabalha aqui
como repórter desde outubro. E também foi por volta dessa altura que
começámos a namorar. E, no início do ano, acabámos.
DOMINIC YUN: Mas continuávamos a ter de nos ver todos os dias no
trabalho, o que acho que fez com que fosse mais fácil continuarmos a ser
amigos. Ou, no mínimo, conhecidos passivo-agressivos.
SHAY GOLDSTEIN: Ambos estamos mesmo muito entusiasmados por
termos à frente um microfone assim e a oportunidade de falar de algo a que
a rádio pública nunca dedicou um programa inteiro: encontros e relações. É
disso que trata Fala Com o Ex, com uma ênfase em contar histórias – as
histórias dos ouvintes. Esperamos conseguir desarmar estereótipos e papéis
de género no que diz respeito às relações e, nas próximas semanas, teremos
especialistas convidados que nos ajudarão a fazê-lo.
DOMINIC YUN: Neste primeiro episódio, vamos falar do que nos levou a
acabar. Daqui a pouco atenderemos algumas chamadas, mas quisemos
começar pela nossa história, já que, obviamente, nem quanto a isso eu e a
Shay conseguimos pôr-nos de acordo. Eis algumas razões que levam os
casais a acabar nos tempos que correm: ciúmes, promessas falhadas,
insegurança, infidelidade...
SHAY GOLDSTEIN: Trabalhar demasiado perto do companheiro.
DOMINIC YUN: Ou talvez interrompê-lo constantemente.
SHAY GOLDSTEIN: Pensava que isto ia ser uma conversa amistosa?
DOMINIC YUN: Acho que para isso era preciso que tu fosses amistosa.
SHAY GOLDSTEIN: Eu sou amistosa! Para os meus amigos!
DOMINIC YUN: OK, então... aqui entre amigos, posso fazer-te uma
pergunta?
SHAY GOLDSTEIN: Hã…
Som de papéis a serem remexidos.
DOMINIC YUN: Não está nas nossas notas. Porque quero ouvir a tua
resposta sincera.
SHAY GOLDSTEIN: Perfeito. Queres improvisar durante os nossos
primeiros três minutos no ar?
DOMINIC YUN: Esquece. Estás a dar-lhe demasiada importância. Já há
demasiado suspense.
SHAY GOLDSTEIN: Dominic Yun, juro que me ponho a andar deste
estúdio se tu não...
Dominic ri-se.
DOMINIC YUN: Pronto, pronto. O que quero mesmo saber, já que
estamos a falar, sabes, da nossa relação, é o que mudarias em mim, se
pudesses. Isso presumindo que eu não seja um ser humano sem defeitos.
SHAY GOLDSTEIN: Oh, realmente não preciso de consultar notas para
responder a isso. Está bem. Então, a primeira coisa seria que só poderias
referir o teu mestrado, tipo, uma vez por mês. De preferência nunca, mas
não tenho a certeza de que o teu ego aguentasse tanto.
DOMINIC YUN: O mestrado em jornalismo que tirei na Northwestern?
SHAY GOLDSTEIN: Esse mesmo. E também... fazes esta coisa em que te
encostas a uma parede e curvas o pescoço para falar com as pessoas, e às
vezes isso parece mesmo condescendente. Como se estivesses literalmente
a falar lá do alto.
DOMINIC YUN: Tens noção de que medes, o quê, um metro e meio?
SHAY GOLDSTEIN: Um metro e cinquenta e sete. Respeita esses sete
centímetros. Não, mas isto é o meu mundo mágico e especial, em que posso
mudar qualquer coisa em ti. Não disseste que tinha de fazer sentido.
DOMINIC YUN: Podias simplesmente tornar-me mais baixo.
SHAY GOLDSTEIN: Eu gosto de que sejas tão alto. Quero dizer... assim
podes tirar coisas de prateleiras altas quando não me apetece pôr-me em
cima de bancadas.
DOMINIC YUN: Então as minhas piores características são a minha altura
e a minha formação avançada? Estou a ser fulminado.
SHAY GOLDSTEIN: Também tens aquela bola de borracha na secretária
que atiras de um lado para o outro quando estás a pensar, e isso dá comigo
em louca. Por isso, tirava-te a bola. E agora, vais dizer-me o que mudarias
em mim?
DOMINIC YUN: Só se fores capaz de o aguentar.
SHAY GOLDSTEIN: Tu sabes bem que não tenho emoções enquanto
estou a trabalhar.
Dominic resfolega.
DOMINIC YUN: Bem, em primeiro lugar, terias de ser mais alta. É
simplesmente sinistro que um adulto seja tão pequeno quanto tu.
SHAY GOLDSTEIN: É verdade que no outro dia me pediram a
identificação para ver um filme para maiores de dezasseis.
DOMINIC YUN: E não me contaste? Podia ter passado a semana inteira a
gozar contigo.
SHAY GOLDSTEIN: Estamos a afastar-nos do tema. Conta-me mais
coisas de que não gostes em mim. Arrasa-me, Dominic. É isso que os
miúdos fixes dizem hoje em dia, não é?
DOMINIC YUN: Sim, os miúdos fixes de 2016. Pronto, vou arrasar-te.
Vejamos... às vezes julgas que só há uma maneira de fazer as coisas, por
isso acho que te tornaria um pouco mais flexível.
Shay tosse.
DOMINIC YUN: Precisas de água? Ou de ajuda a chegar ao copo?
Shay tosse com mais intensidade.
SHAY GOLDSTEIN: Não, eu... bem. Estou bem.
DOMINIC YUN: Então, quanto a essas coisas que querias mudar em
mim... achas que, se eu tivesse mudado, nós não teríamos acabado?
SHAY GOLDSTEIN: Bem, não. E acho que percebo onde queres chegar.
Estás a tentar dizer que, ainda que mudássemos essas coisas, mesmo assim
não seríamos o par certo um para o outro. E, por mais que me custe
reconhecê-lo, acho que é um bom argumento. Se se espera que o
companheiro mude, talvez não se esteja na relação certa. Esperto.
DOMINIC YUN: Bem, é verdade que tenho um mestrado.
11

Acordo na manhã seguinte encolhida na beira da minha cama. O Steve está


esparramado no meio, com os bigodes minúsculos a agitarem-se enquanto
sonha. Progresso. Como é que um cão tão pequeno ocupa tanto espaço é
algo que nunca perceberei.
Ele costuma acordar-me antes do despertador, pelo que antes de espreitar
as redes sociais já ando a passeá-lo. Mas hoje aproveito os minutos extras
com o telemóvel, ajeitando-me à volta do meu cão para tentar não o
acordar.
E... ena.
Eu tinha um pouco menos de mil seguidores no Twitter, mas agora já
passei dos dois mil. Os comentários estão um descalabro e faço um esgar
enquanto os vejo, à espera do que sempre receei que acontecesse se alguma
vez chegasse a ser locutora.
Mas isso não acontece.
Porque são simpáticos.
Há algum do veneno inevitável na internet, mas, no geral, as pessoas
adoraram o programa. Adoraram. Não estou a exagerar – o verbo «adorar»
está por todo o lado.
O alívio faz com que me afunde mais no colchão e reprimo um sorriso.
Durante semanas, andei a carregar este medo de não sermos
suficientemente bons, de ninguém ir ouvir-nos, de eu ir estragar tudo no ar.
Mas isto... isto é uma sensação poderosa, e é muito mais forte do que eu
julgava que fosse.
A hora começou devagar. Dominic parecia calmo, controlado,
completamente desprovido de ansiedade. Ou é ótimo a escondê-lo, ou o seu
medo de palco desapareceu mesmo assim que entrámos em direto. Ao
início eu estava tremida, ri-me um bocadinho de mais, mas depois
recompus-me. Tínhamos a nossa introdução escrita, uma dança
coreografada de ele-disse ela-disse, que ele atirou logo às urtigas.
Improvisar com ele não foi tão difícil como eu receava, se bem que, durante
todo aquele tempo, eu estivesse ciente de que as histórias que contámos
acerca de Dominic deixar cair uma vela enquanto acendíamos uma menorá
no seu primeiro Hanucá ou sobre a nossa discussão muito pública no meio
de um Olive Garden, em que testámos os limites de um bufete de salada e
gressinos, não eram acerca de nós. De que nunca o tornei um judeu
honorário. De que não era Dominic na história acerca de patinar no Centro
de Seattle quando a música «The Time Warp» começou a tocar e ambos
sabíamos os passos.
Mas, durante uns minutos, foi como se pudesse ter sido.
No entanto, não tinha a certeza de quanto tempo conseguiria continuar a
improvisar assim com ele, pelo que fiquei aliviada quando as chamadas
começaram a chegar.
– Fazem-me lembrar como era com o meu ex-namorado – tinha dito
Isaac, de Seattle ocidental, com uma risada. – Se bem que não me parece
que tivesse o sangue-frio necessário para apresentar um programa de rádio
com ele.
Então Kayla, de Bellevue, telefonou a queixar-se de que parecia afugentar
potenciais parceiros por ser demasiado direta e dar o primeiro passo.
– É-nos dito que as mulheres não devem iniciar as coisas – respondi,
apercebendo-me de que aquilo era algo sobre o qual tinha uma opinião
forte. – Que é mais romântico se for o homem a fazê-lo. Para além de isso
ser antiquado e heteronormativo, de que outra forma vamos sentir que
temos alguma espécie de igualdade numa relação? Eu não quero ficar à
espera, a desejar que outra pessoa decida assumir o controlo, se sou
perfeitamente capaz de o fazer por mim mesma.
– Eu adoro quando as mulheres dão o primeiro passo. Na verdade – disse
Dominic, dirigindo-me um olhar rápido –, foi a Shay quem me convidou a
sair.
– É verdade – confirmei, sem sequer precisar de consultar as notas em
que tínhamos resumido o nosso primeiro encontro. – Fui ter com ele à copa
e perguntei-lhe se queria ir jantar comigo depois do trabalho. E a minha
mãe acaba de pedir o namorado em casamento.
Kayla pediu-me mais pormenores e eu descobri que ficava contente por
poder partilhá-los, por poder aplaudir a minha mãe. Depois de ter tido
algum tempo para o processar, conseguia reconhecer que tinha sido um belo
pedido de casamento.
Continuo a descer pelo Twitter, rindo-me com o tweet de alguém que jura
que, se Dominic fosse seu namorado, ela nunca o largaria. O som da minha
alegria desperta o Steve (que falta de cuidado) e ele põe-se em ação,
lambendo-me a cara até eu me render e sair da cama.
No nosso passeio, continuo a ver o telemóvel com as mãos geladas.
Atiro-me a ele imediatamente a seguir ao duche, deixando o ecrã todo
molhado. Vou refrescando a nossa hashtag enquanto espero que a torradeira
liberte o meu pãozinho multicereais.
Quando estou pronta para sair, já são oito e quarenta e cinco. Nunca, em
toda a minha vida na Pacific Public Radio, cheguei mais tarde do que as
oito e cinquenta e cinco. Posso chegar sempre atrasada a jantares com a
família e os amigos, mas nunca, nunca, ao trabalho.
Não tive oportunidade de responder à mensagem que Ameena me enviou
depois de ter ouvido o podcast ontem à noite, pois não pudera fazer uma
pausa no trabalho. Caraças! Tu e o teu falso ex-namorado estiveram o
máximo! Por isso, ligo-lhe usando o kit mãos livres enquanto avanço pelo
trânsito da I-5.
– Olá, estrela da rádio. Parece que o vídeo não te matou.2
– Ainda não, pelo menos – digo. – Olá. Aquilo ontem foi um turbilhão.
Não queria que pensasses que me tinha esquecido de ti com a minha
ascensão à fama.
Ela resfolega.
– Dois mil seguidores no Twitter e já és demasiado boa para mim?
– Eu não ia dizê-lo, mas se te sentes desconfortável com o meu nível
extremamente baixo de celebridade...
– Mas a sério, vocês foram espetaculares – diz ela. – Mesmo naturais. Por
um momento, até me esqueci de que nunca namoraram mesmo e comecei a
maldizer-te por teres acabado com ele.
– Ah – faço eu. – Obrigada. Também me parecia a sério. Não tem sido
completamente terrível trabalhar com o Dominic.
– O TJ queria que eu te dissesse que estava preparado para telefonar com
uma história falsa sobre ter acabado comigo em público, para te salvar se
precisasses de ouvintes a ligar, mas não teve de o fazer. Quase ficou
desiludido... passou muito tempo a trabalhar a história.
– Diz-lhe que agradeço, seja como for.
As colunas do carro ficam com estática, como se ela estivesse a tapar o
telemóvel.
– Ai, tenho de ir para uma reunião – diz-me. – Brunch no domingo?
– Sabes o que acho de brunches, mas faço-o por ti.
*

O pânico de estar atrasada instala-se quando entro para o elevador e


carrego no botão para o quinto piso. Estou convencida de que Kent vai
gritar comigo assim que eu abrir a porta, mas não é isso que acontece.
Primeiro, Emma McCormick, na receção:
– Adorei o teu programa, Shay! – E, num tom mais baixo: – Não devia
perguntar isto, mas ele beijava bem? Tem ar disso. Se não quiseres falar
disso, não faz mal, mas se quiseres... sabes onde podes encontrar-me.
E depois Isabel Fernandez:
– Vocês os dois foram fantásticos! Devíamos ter feito isto há muito
tempo.
Até o editor-sénior, Paul Wagner, me diz que ele e a mulher ouviram o
podcast enquanto jantavam ontem à noite e não conseguiam parar de rir.
Nada disto me parece real. Estou convencida de que, a qualquer
momento, Kent vai aparecer e dizer Apanhada! Ou que alguém da estação
me fará uma pergunta sobre Dominic a que eu não saberei responder. Essa é
a parte que faz com que o pãozinho multicereais ameace voltar a subir.
Isto é só o começo, tento tranquilizar-me. Estamos a contar uma história.
A rádio é assim. O programa vai crescer para além da nossa história... tem
de crescer. Só assim vou aguentar a nossa mentira.
Preciso de falar com Dominic, com toda a sua moral de jornalismo
heroico. Preciso de saber como se sente, se está assoberbado pela reação
das redes sociais ou a ceder sob o peso de uma mentira que nunca tinha
pensado contar.
Mas não tenho oportunidade de o fazer. Ele já está sentado à secretária,
concentradíssimo no ecrã do seu computador. As pontas do seu cabelo
escuro estão húmidas e a encaracolar-se na nuca. Se ainda tem o cabelo
molhado, não deve ter chegado muito antes de mim.
Assim que a minha mala bate no chão debaixo da minha secretária, Kent
entra.
– No meu gabinete – diz, com tanta urgência que não perdemos tempo e o
seguimos de imediato.
– A Ruthie deveria estar aqui – digo enquanto nos sentamos em frente à
secretária de Kent.
– Estou aqui! – E apressa-se a entrar com duas canecas de café, que pousa
à minha frente e à frente de Dominic.
– Não tinhas de fazer isto – digo-lhe, mas ela acena com a mão como se
não tivesse qualquer importância. A minha caneca é uma relíquia.
angariação de fundos outono de 2003, pode ler-se em grandes letras roxas.
Não sei bem o que sinto acerca desta nova dinâmica. Não quero ser esse
tipo de locutora.
Só há três cadeiras no gabinete, pelo que Ruthie fica um pouco afastada, o
que me deixa ainda mais desconfortável.
– Só um segundo. – Dominic levanta-se e sai do gabinete. Volta logo com
mais uma cadeira, que Ruthie aceita com gratidão.
– Shay, Ruthie, uma de vocês pode tomar notas? – pede Kent. Espero que
ele acrescente «ou o Dominic», mas ele não o faz.
– Eu trato disso – diz Ruthie.
– Obrigado. – Kent clica nuns quantos botões. – Então. Vocês são capazes
de ter visto uma pequena explosão acerca do programa nas redes sociais. –
Vira o ecrã para nós. É uma busca do Twitter pela nossa hashtag, com
resultados novos a surgirem constantemente. Depois volta a clicar na página
do nosso podcast. – Vejam o número de downloads. É cerca de quatro vezes
mais alto do que o de qualquer outro programa que tenha ido para o ar esta
semana. Isso é tremendo para um podcast novo.
– Oh, meu Deus – exclamo.
– E tivemos um bom fluxo de ouvintes a telefonar – atalha Ruthie. –
Bastantes por onde escolher. Aquela rapariga que falou de ter acabado com
o namorado a meio de uma viagem de carro pelo país? Ouro.
– Bastará dizer que não estava à espera de que isto acontecesse logo, mas
estou encantado – diz Kent. – Mesmo. Estes números podem fazer uma
diferença tremenda na próxima época de angariação de fundos. Também
podem pôr-nos no mapa nacional. Fizeram um excelente trabalho, vocês os
dois.
– Três – digo eu.
– Certo. Claro. Desculpa, Ruthie. – Kent dirige-lhe um olhar arrependido.
– Eu sei que, normalmente, as reuniões com ideias para os próximos
episódios seriam entre vocês, mas, tendo em conta o interesse que o
programa gerou, acho que vão concordar que faz sentido que eu também
esteja envolvido. Gostaria de participar de agora em diante, pelo menos
durante algum tempo, se por vocês não houver problema.
Algo pouco convencional, mas...
– Faz sentido – responde Ruthie. – Por mim tudo bem, se a Shay e o
Dominic concordarem.
Assentimos com a cabeça.
– Eu só... uau – exclama Dominic, e é capaz de ser a primeira vez que o
vejo a ter dificuldades de expressão. – Não me tinha apercebido de que
aconteceria tão depressa.
– Acredita – diz Kent –, e aproveita. Mas agora não podemos parar. O que
é que têm planeado para o próximo episódio?
– Íamos fazer uma sessão de terapia de casal em direto, para perceber o
que correu mal na nossa relação – respondo. – E, na semana a seguir, temos
um académico e uma psicóloga que vão falar-nos de estudos recentes sobre
relações.
– Adoro. Que mais?
– Bem... – começa Ruthie. – Ainda não tinha proposto isto, mas achei que
seria interessante fazer algo acerca de relações inter-raciais.
– Propõe-mo a mim – diz Kent.
Surgem manchas coradas nas faces dela.
– Sempre que ando com uma rapariga ou um rapaz asiático, as pessoas
olham para mim quase como se isso fosse o esperado... E se ando com uma
rapariga branca, ou com um rapaz branco, as pessoas olham para mim de
maneira diferente. Como se se perguntassem se aquela pessoa só está
comigo porque gosta de miúdas asiáticas. Depois, se ando com alguém que
não seja branco ou asiático, as pessoas ficam completamente confusas.
Ela nunca tinha revelado nada tão pessoal. Três anos, e não sei
praticamente nada acerca dela.
Decido que vou mudar isso.
– Eu nunca andei com uma asiática – diz Dominic.
Penso de novo no seu Facebook. Mia Dabrowski. Com quantas raparigas
terá ele andado? Não percebi ao certo quanto tempo namoraram – pelo
menos uns dois anos.
– Eu alinhava em falar disso – afirmo, e depois digo a Dominic: – Se tu
achares bem.
Ele assente com a cabeça.
– Gostaria de ter outras pessoas de cor nesse episódio.
– Ótimo, ótimo – diz Kent. – Então, quanto ao conteúdo,vocês aprovam.
Agora, em relação à promoção... – Ele clica nalgumas coisas no seu
computador. – Precisamos de ter uma estratégia. Vocês vão falar com o
Seattle Times hoje ao meio-dia e há umas quantas publicações digitais que
também querem entrevistar-vos: o BuzzFeed, a Vulture, a Slate, a Hype
Factory...
– Que raio é a Hype Factory? – pergunta Dominic.
– É um site de clickbait – digo eu. – Não é o jornalismo mais nobre, mas
«Quinze Gatos Que Parecem Pães (O N.º 8 Vai Deixá-lo Banzado)»
entreteve-me durante uns bons dois minutos na semana passada.
– Temos de aproveitar isto – diz Kent. – Estamos numa posição única
aqui. O podcast teve uma estreia incrível e eu aplaudo-vos a todos por isso.
Mas também foi só um episódio. Não quero que isto suba à cabeça de
ninguém. O que precisamos é de que isto continue, sempre a aumentar o
entusiasmo acerca do programa.
«Sabem quanto tempo dura a atenção das pessoas hoje em dia? Não
muito. Ficam loucas com uma nova temporada de Stranger Things durante
uma semana, antes de aparecer o novo trailer da Marvel, e depois vem um
remake da Disney de que toda a gente fala. Nada dura. Mas queremos
manter-nos relevantes durante o máximo de tempo possível, fazer realmente
parte do zeitgeist.»
Ruthie estremece.
– O que foi?
– Desculpa, é só que tenho uma reação visceral à palavra zeitgeist.
Eu abafo uma gargalhada, mas Kent nem sequer sorri.
– Eu percebo o que dizes. – Dominic arregaça as mangas da camisola
preta. – Só não quero que nada disso pareça desonesto.
Kent leva uma mão ao peito, como que insultado pelo que Dominic está a
insinuar.
– Eu não peço a nenhum de vocês que seja outra coisa para além do que é
– diz ele, arqueando minimamente as sobrancelhas.
Uma realidade maior atinge-me e assenta como ácido no meu estômago:
Ruthie acha que eu e Dominic namorámos mesmo. Comprometer-me a
conhecê-la melhor parece absurdo quando estou a mentir-lhe simplesmente
por estar sentada ao lado dela.
– Então se aqui está tudo – diz Dominic –, vou voltar a ouvir o programa.
Ver como podemos melhorar para a próxima.
– Excelente ideia – afirma Kent. – E, a sério: Parabéns aos três.
Porém, eu continuo a pensar na outra coisa que ele disse:
Nada dura.
Provavelmente dura ainda menos se estivermos a mentir.

21 Referência à música dos The Buggles. (N. da T.)


Twitter

@amandaosullivan
Quem mais anda obcecado com #FalaComoEx? O Dominic e a Shay são tão fofos que não
se aguenta. Se algum dos meus ex fosse como o Dom, eu nunca o teria largado!

@elttaes_amadeus
adoro tanto @goldsteinshayyy e @dominicyun em #FalaComoEx, será podem voltar pf???
#ConversadeEx #shayminic

@MsMollieRae17
posso só dizer que é altamente ouvir alguém com um voz A SÉRIO na NPR?
#FalaComoEx

@most_dolphinately_
O Dominic Yun parece um otário pomposo em #FalaComoEx

@photography_by_shaunahauna
OMG acabei agora de ouvir #FalaComoEx e PRECISO do 2º episódio! mais alguém a
torcer para que a shay e o dominic voltem a andar?

@StanleyPowellPhDwewel
Mas o que é que se passa com a NPR? Quem me dera poder reaver um donativo de uma
angariação de fundos #FalaComoEx #naoobrigado

@itsmenikkimartinez
A voz dele é sexy. Já VIRAM a foto dele? Olhem, @GiracosdaNPR, espreitem.
#FalaComoEx #vozdesonho #desejo

@_dontquotemeonthis
@itsmenikkimartinez @GiracosdaNPR acrescentem @goldsteinshayyy também
12

As celebrações da Páscoa costumavam ser solenes. Eram pequenas, apenas


com os meus pais e avós, até os pais da minha mãe terem morrido e os dos
meu pai se mudarem para o Arizona, fugindo da névoa de Seattle. E depois,
durante a maior parte dos meus vinte anos, era só a minha mãe a fingir que
me fazia as Quatro Perguntas, já que eu nunca tinha sido outra coisa que
não a pessoa mais nova à mesa.
Agora a primeira noite da Páscoa judaica é uma espécie de festa. Estamos
na casa em que cresci, mas somos catorze à mesa, nunca houve tanto
barulho. O Manischewitz e várias outras bebidas fluem livremente e os
netos de Phil divertem-se a procurar o afikomen, um pedaço de matzah
embrulhado num guardanapo e escondido algures na casa. Para o meu pai,
esta sempre foi a parte preferida das celebrações, e divertia-se à grande a
escondê-lo no estojo do violino da minha mãe, entre livros numa prateleira
e, uma vez, colado debaixo da mesa, o que foi tão inesperado que demorei
quase uma hora a pensar sequer em procurar aí. Como é a primeira Páscoa
dos miúdos, dei-lhes um desconto e escondi-o em cima do frigorífico. Mas,
para o ano, vou ser implacável.
Gosto desta parte: partilhar as nossas tradições, deixar espaço para novas.
– Estamos a adorar o teu programa – diz o filho de Phil, Anthony, cujo
marido, Raj, acena com a cabeça enquanto tenta enfiar uma colherada de
puré de legumes na boca do filho pequeno.
– O segundo episódio ainda foi melhor do que o primeiro – comenta Raj.
– Sobretudo quando deixaste a pobre terapeuta de casais sem saber o que
dizer.
– Obrigada – respondo com sinceridade. – Tem sido muito divertido.
O segundo episódio foi transmitido há uns dias e eu tenho atualizado a
página dos nossos subscritores quase de hora a hora. Pensava que
continuaríamos a subir nas tendências, mas os números de downloads
parecem ter estagnado. Provavelmente não conseguiremos patrocinadores
até termos mais uns milhares de downloads por mês. Ainda é cedo – é isso
que me digo, pelo menos –, mas suponho que julgava que o bombardeio de
publicidade bastaria para nos fazer chegar lá. A menos que, como disse
Kent, esta área já esteja tão saturada que o burburinho acerca de um novo
podcast não seja mais do que um sussurro.
– E o Dominic parece adorável – diz a filha de Phil, uma dentista com
trinta e tal anos chamada Diana. Está sentada à minha frente, a mostrar os
dentes branquíssimos. – Nem acredito que tenhas acabado com ele.
– Mesmo alguém com uma bela voz pode ser... um idiota de todo o
tamanho – digo, em busca da palavra certa, sem nunca a encontrar. Mentir à
família de Phil (à minha família) diminui-me o apetite e começo a empurrar
a carne no prato até me dar conta de que é exatamente isso que os filhos de
Diana estão a fazer.
– Mas tinha o tamanho onde interessava?
– Diana! – exclama Phil, sentado a uma ponta da mesa. – O teu pai está
aqui. E há crianças presentes.
– Pai. Sabes que, na verdade, já fiz sexo antes. – Aponta para os filhos. –
Duas vezes, para ser exata.
Mais risos.
Aquele era o tipo de família que eu sempre quis ter quando era mais nova,
sobretudo nas nossas celebrações mais calmas. Queria competir pelo
afikomen. Queria outra pessoa a quem fazer as Quatro Perguntas. Só que,
depois de o meu pai ter morrido, percebi que não queria uma família
enorme e ruidosa. Só o queria a ele.
Surpreende-me a facilidade com que falam de sexo. Eu e Ameena
falamos bastante disso, mas nunca ganhei esse à-vontade com a minha mãe.
Talvez seja porque descobri o luto e o sexo ao mesmo tempo. As minhas
primeiras experiências estão envolvidas nesse manto apertado, rodeadas de
tristeza. Não saberia como ter qualquer uma dessas conversas com ela.
– Então o que é que aconteceu? – pergunta Diana. – Podes confiar-nos a
versão com detalhes picantes.
– Não há nenhuma versão com detalhes picantes – digo, tentando parecer
indiferente. – Éramos só... incompatíveis.
– Bem sei como é. Todos os rapazes com quem andei quando tinha vinte
e poucos anos. Tanta falta de jeito embaraçosa. – Estende a mão e segura o
queixo do marido, Eric. – Felizmente, tu estavas disposto a aprender.
– Vamos mesmo ter esta conversa em frente aos nossos filhos? – pergunta
ele. É certo que eles não estão a prestar atenção, enquanto discutem quem
terá visto o afikomen primeiro.
– Então, conheces-me? – Diana olha para ele e pestaneja. Ele ri-se e
abana a cabeça.
A verdade é que adoraria conseguir ter conversas destas com Diana. Mas
da única vez que tentámos almoçar juntas, um dos seus filhos ficou doente e
nunca mais voltámos a marcar. Ou talvez eu seja completamente incapaz de
fazer amigos adultos.
– Falem-nos do casamento – diz James, o filho mais novo de Phil, que
estuda química. – O que é que já planearam? Como podemos ajudar?
Sinto-me grata pela mudança de assunto. Agora que abril vai a meio, 14
de julho já não parece tão distante.
– Vai ser pequeno – diz Phil. – Não como o casamento da vossa prima
Hassana, em Ibadan.
Anthony dá uma palmada na mesa e desata a rir.
– Lembram-se de quando o noivo chegou de helicóptero? E do pavão que
se escapou?
Diana acrescenta:
– Juro que esse pavão queria sangue.
A minha mãe também se ri e eu fico sem saber se Phil já lhe terá contado
a história, ou se ela quer apenas sentir que faz parte daquilo. É claro que é
natural que a família de Phil tenha uma história de experiências partilhadas.
Mas é então que me dou conta de que a minha família já não se resume a
mim e à minha mãe, com a participação ocasional de Ameena e TJ. Nunca
teremos nesta sala o que costumávamos ter e, de certa forma, isso é bom. Já
suportei demasiados jantares solitários e silenciosos, a contar os minutos até
poder fugir.
Não apreciei esses jantares que por vezes pareciam atormentados pelo
fantasma do meu pai. Agora estou convencida disso. Falar dele era difícil,
mas não falar era pior. Muitas vezes fico presa entre a dor de recordar e o
medo de esquecer.
*

O jantar acaba lentamente e já são quase nove e meia quando os pequenos


são levados para casa, para irem para a cama. Não me lembro de uma
Páscoa com a minha mãe que tenha passado das oito da noite.
Ajudo-a na cozinha, embora Phil nos diga que trata de tudo e tente
enxotar-nos. É bom homem, é mesmo, e eu estou contente por a minha mãe
estar contente. Quem me dera que me fosse mais fácil aceitar esta mudança
como totalmente positiva, em vez de lamentar o que perco. O que, claro, me
faz sentir uma merda. Suponho que não fosse uma verdadeira época festiva
sem uma boa dose de autodesprezo.
Por fim, Phil convence a minha mãe a parar. Ela retira-se para a sala com
um livro sobre música e deixa-nos sozinhos na cozinha. Com uma família
tão grande, é certo que há mais loiça para lavar.
– Tu lavas e eu seco? – sugere ele e trabalhamos em silêncio durante
alguns minutos.
Passo o esfregão pela travessa antiga que era da minha avó.
– Isto foi... mesmo agradável – digo, a baralhar-me com as palavras.
– Gostámos muito de participar. – Mais silêncio a lavar e secar e depois:
– O teu pai adorava rádio, não era?
– Sim. Adorava.
– Ficaria muito orgulhoso de ti. – Com cuidado, Phil seca a travessa,
tratando-a com o mesmo respeito que a minha mãe lhe dedica há anos. –
Não estou a tentar ocupar o lugar dele. Sabes isso, certo?
– Eu sei que não és um padrasto malvado. Não tens de te preocupar com
isso.
Ele sorri.
– Talvez não, mas continua a ser uma adaptação. Não podes estar já
habituada a... – aponta para a sala de jantar – ... toda aquela loucura.
Encolho os ombros, envergonhada.
– Nem por isso – digo antes de nos deixarmos envolver de novo pelo
quase silêncio, ouvindo apenas a água a correr e a música que a minha mãe
pôs a tocar na sala. Brahms. A música clássica nunca foi a minha preferida,
sobretudo porque a falta de palavras me obriga a ficar dentro da minha
própria cabeça, em vez de escutar o que está dentro da de outra pessoa.
Ainda assim, ter crescido a ouvi-la assegurou que sei algo acerca do
assunto.
Poderia dar-me por satisfeita com isto. Posso continuar a dar-lhe
respostas superficiais, ou posso fazer uma verdadeira tentativa de começar a
conhecer o meu futuro padrasto. Porque, independentemente do que eu diga
ou não, isto vai acontecer. Daqui a uns meses, este homem que sempre
tratou a minha mãe com bondade, e a mim também, será uma presença
ainda mais permanente.
Talvez vá haver sempre um fantasma nesta casa, mas isso não significa
que eu também tenha de desaparecer.
– Ao jantar disseste que a sinfónica tem um maestro novo?
– Alejandro Montaño – diz Phil, com um enorme respeito. – Uma lenda
viva. É um bocado peculiar, para não dizer mais, mas é mesmo genial.
– Peculiar, como?
– Bem, para começar, canta partes da abertura de As Bodas de Fígaro de
Mozart... em voz alta.
Arquejo.
– Não.
– Sim – responde Phil, e eu penso que formar uma relação com ele talvez
seja mesmo fácil. – E... – Olha em redor, como se receasse que o lendário
maestro Alejandro Montaño nos ouvisse. – Tem uma voz pavorosa.
– E claro que ninguém pode dizer nada. – Sei pela minha mãe que os
maestros muitas vezes são os ditadores do mundo da música clássica.
– Claro que não. – Aceita outra taça que lhe passo. – Estás mesmo a fazer
um belo trabalho com o teu programa, Shay. É muito divertido.
– Obrigada – digo. – O meu pai estava sempre a dizer que a rádio não era
só uma coisa. Que podia fazer-nos rir num minuto e partir-nos o coração a
seguir. Na verdade... – Deixo a frase no ar e mordo o interior da bochecha.
Tenho uma ideia a formar-se e, embora Phil sempre se tenha mostrado
tolerante, não sei como vai reagir a isto. – Adoraria poder fazer alguns
episódios mais fortes. Talvez... algo acerca da perda.
Phil para de secar a taça.
– Ligada a relações?
Assinto com a cabeça, com a ideia a ganhar um pouco mais de peso.
– Talvez pudesse ser acerca de encontrar o amor outra vez... depois de
perder um cônjuge ou um companheiro.
Ele fica calado durante alguns momentos e eu amaldiçoo-me por ter dito
a coisa errada. Ele e Diana podem brincar acerca de coisas que nunca me
passaria pela cabeça abordar com a minha mãe, mas talvez isto seja
demasiado. Talvez tenha ultrapassado algum limite.
– Sabes – acaba por dizer –, gostaria mesmo muito de ouvir um episódio
assim.
Sinto os ombros descontrair, aliviada. Talvez seja assim que compenso
mentir aos ouvintes – produzindo algo real e puro. Descobrindo a verdade,
como Dominic tanto gosta de dizer.
– E se vocês os dois viessem ao programa para nos falarem disso?
– Nós os dois? No Fala Com o Ex? – A minha mãe volta à cozinha, a
coçar o pescoço, com as sobrancelhas escuras a subirem-lhe pela testa. – Tu
não me queres na rádio. Duvido muito de que tivesse alguma coisa
interessante para dizer.
– Terias – insisto.
Phil seca as mãos e passa um braço à volta do ombro dela.
– Se a Leanna não quer, então lamento, mas também não vou.
– Mas... seriam fantásticos.
De repente, fiquei mesmo apegada à ideia que tive há segundos. Já estou
a imaginar: violinistas a recuperar da perda e a redescobrir o amor através
da música. Na minha mente, transformo-me na maestrina deles e o
programa torna-se uma sinfonia, uma mistura de cordas e vozes, com
pausas no momento certo para o ouvinte poder assimilar tudo.
– Vou pensar nisso – diz a minha mãe. – Chag sameach.
– Chag sameach – repito, e abraço os dois antes de ir embora.
No caminho de volta, não ponho um podcast, pela primeira vez no que
me parece uma eternidade. Das colunas do carro sai música clássica, cujas
notas me envolvem o coração e me guiam até casa.
Conversa de Ex, Episódio 2: Temos de Falar
Transcrição

SHAY GOLDSTEIN: Bem-vindo a Fala Com o Ex! Eu sou a


apresentadora, Shay Goldstein.
DOMINIC YUN: E eu o apresentador, Dominic Yun.
SHAY GOLDSTEIN: E somos duas pessoas que namoraram, acabaram e
agora têm um programa acerca disso. Será assim que devemos apresentar-
nos sempre? Ainda estamos a ver o que será melhor.
DOMINIC YUN: Eu gosto, mas tu nunca foste muito de querer saber das
minhas opiniões.
SHAY GOLDSTEIN: Isso é porque as minhas costumavam ser melhores.
Queremos agradecer a todos os que ouviram o nosso primeiro episódio, que
publicaram comentários online ou que o partilharam com os amigos. Se me
permitem que seja lamechas, sempre quis apresentar um programa de rádio
e nunca pensei que isso fosse acontecer. Por isso, a sério: Muito obrigada.
DOMINIC YUN: Hoje trazemos-vos uma coisa um bocado aterradora...
bem, aterradora para nós. Idealmente, para si, que nos está a ouvir deve ser
agradável. Um bocadinho de shadenfreude para a sua tarde de quinta-feira,
ou quando for que ouça este podcast.
SHAY GOLDSTEIN: Estamos encantados por ter a Dra. Nina Flores no
estúdio connosco. É uma conceituada terapeuta de casais, que está aqui para
nos ajudar a perceber o que correu mal na nossa relação. Dra. Nina Flores,
muito obrigada por ter vindo.
DRA. NINA FLORES: Por favor, chamem-me Nina. O prazer é todo meu.
SHAY GOLDSTEIN: Nina, adoraríamos que respondesse a algumas
dúvidas dos nossos ouvintes, mas, antes de passarmos às chamadas,
queremos saber a sua opinião acerca da nossa relação.
DOMINIC YUN: Talvez a doutora até pudesse tê-la salvado.
DRA. NINA FLORES: Bem, Dominic, quero deixar bem claro que não
me compete salvar o que quer que seja. Eu dou aos casais as ferramentas
para terem um diálogo franco sobre quaisquer que sejam as dificuldades por
que estejam a passar, a capacidade de dar um passo atrás e analisar a
relação, de se perguntarem: «Será isto o melhor que devo fazer ou dizer
nesta situação?»
SHAY GOLDSTEIN: Então não há uma varinha mágica.
DRA. NINA FLORES: Isso mesmo.
DOMINIC YUN: Digamos que acabava uma relação, mas continuava a ter
de trabalhar com o seu ex-companheiro. Calculo que muitos dos nossos
ouvintes também se identifiquem com essa situação. E, no meu caso, bem, a
minha «ex» estava decidida a tornar-me o trabalho o mais difícil possível.
Que tipo de ferramentas me daria nesse cenário?
Nina ri-se.
DOMINIC YUN: Também gostaria de ressalvar que a Shay está a revirar
os olhos.
SHAY GOLDSTEIN: Não estou nada! Tinha os óculos sujos.
DOMINIC YUN: Percebo. Querias ver melhor a minha cara.
SHAY GOLDSTEIN: Queria ver melhor os defeitos que tem. Começaste a
barbear-te hoje de manhã e a meio decidiste que já chegava?
DOMINIC YUN: Já são três da tarde. A minha testosterona é muito
potente.
SHAY GOLDSTEIN: Já sabem, malta, temos um homem grande e forte no
estúdio hoje. Como é que as mulheres vão conseguir evitar desfalecer?
DOMINIC YUN: Guardarem o sarcasmo para si mesmas é capaz de ser
um bom ponto de partida.
SHAY GOLDSTEIN: Já o sinto. Estou... estou a sentir-me fraca. Não sei
quanto tempo mais vou conseguir estar na tua presença. O estúdio está a dar
voltas, ai, que calor, e... e...
DRA. NINA FLORES: Sabem... desculpem que o diga, mas para que tudo
fique claro e bem explicado... tenho trabalhado com muitos casais e
pressinto qualquer coisa entre vocês. Algo de que não falaram. Alguma
tensão persistente, talvez?
SHAY GOLDSTEIN: O quê? Oh, não. Aqui não persiste tensão nenhuma.
DOMINIC YUN: Nem pensar. Está tudo em pratos limpos, Nina. Confie
em mim.
13

O frasco do mestrado começou no terceiro episódio, quando uma ouvinte


chamada Lydia nos conta que conheceu o «ex» no seu mestrado.
– Eu cá não gosto muito de falar disso, mas também tenho um mestrado –
diz Dominic, a olhar para mim e com metade da boca a inclinar-se num
sorriso. Há uma autocrítica nesse sorriso que há uns meses não existia ou,
se existia, eu nunca dei por ela. Já é demasiado divertido para me
incomodar, sobretudo agora que se tornou uma piada com os ouvintes. Eles
agarraram-se ao que eu disse no primeiro episódio e até encontraram alguns
dos antigos artigos universitários dele e partilharam-nos pelo Twitter.
O riso de Lydia borbulha pela linha telefónica.
– Vocês deviam começar um frasco do mestrado. Como aqueles frascos
para quando dizemos palavrões, mas o Dominic tem de pôr lá cinco dólares
de cada vez que fala do seu mestrado.
É uma loucura, a forma como ela fala de Dominic como se o conhecesse
há séculos. Os meus podcasts preferidos têm criado anos e anos de piadas
privadas, e eu nem acredito que já começamos a ter algo do género. Um
vocabulário só para nós e os nossos ouvintes.
– Isso é perfeito – digo. – Apoio qualquer moção para envergonhar o
Dominic.
– Cinco dólares? – espanta-se Dominic, incrédulo. – Quanto é que acha
que ganhamos?
Então, é assim que o frasco vazio de gomas da Costco acaba em cima da
minha secretária, com frasco do mestrado do dominic escrito a marcador.
Ruthie decora-o com autocolantes azuis e laranjas, as cores da Universidade
do Illinois, que é a rival da Northwestern. No final de cada mês, os ouvintes
votam na instituição de solidariedade a que devemos doar o dinheiro. No
final da semana, o frasco já tem vinte e cinco dólares.
A malta da estação também tem andado a tentar fazê-lo cair na esparrela.
Mike Russo referiu que a filha vai candidatar-se à faculdade no outono e
quis saber se Dominic conhecia algumas escolas boas no Illinois, e
Jacqueline Guillaumont perguntou-lhe se tinha uma opinião acerca do
artigo sobre financiamento universitário em que ela estava a trabalhar. O
mais engraçado talvez tenha sido ele levar tudo isto na desportiva,
abanando a cabeça e oferecendo sorrisos contidos enquanto se esquiva a
qualquer pergunta que possa roubar-lhe mais cinco dólares da carteira.
Com uma grande margem, os ouvintes votam para que o primeiro
donativo seja feito para a associação de estudantes da Universidade do
Illinois. Gravo um vídeo para publicar nas redes sociais, em que Dominic
finge deixar escapar uma lágrima enquanto passa o cheque.
*

Na semana seguinte, acabamos num novo restaurante da moda na baixa,


para gravar algum som para um episódio que vamos fazer sobre
afrodisíacos. No Oscura, estamos completamente às escuras, tanto literal
como metaforicamente: todas as luzes estão apagadas, e os pratos, um menu
de preço fixo baseado naquilo que o chef lhe apeteça fazer, são compostos
sobretudo por afrodisíacos. Ruthie teve um encontro aqui quando o
restaurante abriu e disse que foi uma experiência louca. Hoje reservaram o
restaurante para que eu e Dominic tivéssemos um almoço privado.
– Sopa fria de beterraba e romã com raiz de maca – anuncia Nathaniel, o
gerente do restaurante, e ouço um tilintar suave quando duas tigelas são
pousadas à nossa frente. – É uma planta que recebeu a alcunha de Viagra do
Peru.
Temos um gravador em cima da mesa entre nós. Queríamos fazer
experiências com os nossos segmentos, misturar alguns elementos pré-
gravados. Como não vemos o que fazemos, vai ser ótimo para rádio e a
audiófila que há em mim está felicíssima. O primeiro prato foi de ostras
com um molho sofisticado qualquer. Provavelmente sou das poucas pessoas
de Seattle que não gosta de marisco, pelo que não saberia dizer se eram
boas ou não. Mas Dominic disse uau depois de provar a primeira, pelo que
parto do princípio de que seriam. O segundo prato foi uma galette de batata
com crosta de pistacho, o terceiro um caril de frango com montes de feno-
grego e agora estamos no último prato antes da sobremesa.
Às escuras, o meu olfato está muito mais apurado, e a sopa de Viagra tem
um cheiro incrível. Ácida mas terrosa, com um laivo de doçura da maca.
Mergulho a colher e levo-a à boca.
– Oh, meu Deus. Conseguia comer um caldeirão disto.
– Quanta ciência há por trás disto tudo? – pergunta Dominic. – Porque o
que li é que não está cientificamente provado que as ostras sejam
afrodisíacas, embora haja alguma evidência a apoiar coisas como maca ou
feno-grego.
– O nosso objetivo é oferecer aos clientes uma experiência gastronómica
divertida e inventiva – diz Nathaniel. – Mas o nosso chef tem um mestrado
em ciências da nutrição. Posso pedir-lhe que venha dar-vos uma entrevista
no final da refeição.
– Adoraríamos, obrigado – diz Dominic. – E quanto tempo demorou a
habituar-se a trabalhar às escuras?
– Ao início tropeçávamos muito, deixámos cair muitos pratos. – Apesar
de não o ver, imagino que esteja a sorrir. – Mas ao fim de umas semanas
habituámo-nos.
– E há casais que acabam a arrancar-se as roupas no final da refeição? –
pergunto. Sou uma Jornalista Profissional e Séria.
Nathaniel ri-se.
– Não propriamente – responde. – Mas, se o fizessem, nós não
repararíamos.
E volta para a cozinha.
– Como te sentes? – pergunto a Dominic. – A maca não é demasiado
forte?
– Estás a perguntar-me se estou excitado?
Engasgo-me com a colherada seguinte.
– Que nojo, não, não quero saber isso.
Para ser sincera, eu sinto algo não muito diferente do que senti na copa da
estação. Poderá ser completamente psicológico, a escuridão a pregar-me
partidas, como o álcool. A mesa é minúscula e os nossos joelhos estão
sempre a bater um no outro por baixo do tampo. Só quando ele encolhe as
pernas é que me apercebo de que temos estado em contacto durante o
último prato e meio.
– Continuas ansiosa em relação aos números – diz Dominic.
– Como é que sabes? Nem sequer me vês a cara.
– Pelo teu tom de voz.
Não me tinha dado conta de que andamos a passar tanto tempo juntos que
ele é capaz de me avaliar o estado de espírito pelo som da minha voz, mas
talvez isso seja verdade.
– Um bocado – admito. – Não quero desapontar ninguém. Não que
tivesse pensado que nos tornaríamos um sucesso da noite para o dia, e os
nossos ouvintes têm mesmo sido incríveis. Acho que só preciso de
aprovação – digo eu, meio a brincar, no que espero que pareça um
comentário autodepreciativo.
Dominic fica calado durante algum tempo e eu amaldiçoo a escuridão.
Não que, às claras, conseguisse decifrar-lhe a expressão.
– Não ia dizer nada a menos que parecesse que ia acontecer, mas... –
Inspira fundo. – Um amigo meu da faculdade trabalha em relações públicas
com a Saffon Shaw.
– Esse nome não me é estranho?
– Ela entra naquela série da CW, a Oceanside?
– Já ouvi falar. – Vi um ou dois episódios. Pronto, sete. – É uma daquelas
séries em que todos os atores têm trinta e tantos anos e fazem de
adolescentes?
– O James Marsters já ia a meio da casa dos trinta quando começou a
participar na Buffy – salienta Dominic.
– Está bem. Espera lá, como é que ainda não sei se és da Equipa Angel ou
da Equipa Spike?
– Equipa Riley.
– Por favor, vai-te embora.
Ele ri-se.
– Só queria pôr-te à prova. Sou completamente da Equipa Angel. É o meu
lado romântico, acho.
Hã. Nunca o teria julgado romântico. Confirmo que somos da mesma
equipa.
– A Saffron tem, tipo, uma legião de fãs brutal – diz ele –, e faz esta coisa
nas redes sociais em que recomenda alguma coisa aos seguidores todas as
semanas, um programa, um livro ou algo do género. O meu amigo achou
que Saffron gostaria de Fala Com o Ex, pelo que ia tentar que ela ouvisse,
mas ainda não tive notícias dele.
– Isso... isso é mesmo impecável da tua parte – digo. Ele preocupa-se com
o programa. Não deveria ser uma surpresa assim tão grande para mim, mas
é. Ele quer tanto quanto eu que seja bem-sucedido. – Obrigada por fazeres
isso.
– Queria poder surpreender-te com isso – diz ele, e depois acrescenta num
tom trocista. – Por isso, obrigado por não me teres deixado.
Apetece-me bater-lhe no braço, mas tenho receio de falhar e de lhe atirar
antes um líquido que suponho que seja fúcsia para o colo, por isso
mantenho as mãos quietas.
Quando acabamos a sopa de romã, Nathaniel regressa com o último prato.
– São trufas de chocolate preto de fabrico caseiro. – Faz uma pausa. –
Encorajamos sempre o casal a dá-las um ao outro.
– Oh, nós não somos um casal – digo eu.
– Têm de ter a experiência completa – insiste ele.
– É melhor fazermos o que o ele diz – afirma Dominic, e mais alto, como
se quisesse assegurar-se de que o microfone o grava: – Que fique registado
que a Shay Goldstein não quis que as minhas mãos se aproximassem da sua
boca.
– Eu não tenho qualquer problema com as tuas mãos perto da minha
boca. Não são o pior que já lá pus – digo num voz doce.
– Demasiado atrevido para a rádio pública – censura-me Dominic, com
um estalido da língua.
– Shay, força – diz Nathaniel, que parece que está a tentar conter o riso.
A minha mão tateia a mesa às cegas até que encontro uma das trufas. É
pequena, mas provavelmente muito densa.
– O avião está a preparar-se para aterrar – digo, enquanto a levo aonde
imagino que estará a boca de Dominic.
– Ah, sim, nada mais romântico do que imaginar que estás a dar de comer
a uma criança esquisita com a comida – diz ele, e eu devo ter empurrado o
chocolate contra a bochecha dele, porque acrescenta: – A pista de aterragem
é um pouco mais para a esquerda.
Com cuidado, faço a trufa passar da sua face onde a barba começa a
crescer e chegar à boca. Pronto. Ele entreabre os lábios para morder um
pouco, com os dentes a rasar-me os dedos. E oh, meu Deus, esta é uma
sensação que nunca antes tive ao jantar. Os lábios dele são tão macios, a
contrastar com a aspereza da face, e também sinto o chocolate a derreter-se-
me nas pontas dos dedos.
– Desculpa – diz ele numa voz rouca que me faz a mão tremer contra a
sua boca e o coração fazer algo similar dentro do meu peito. – Meu Deus, é
fenomenal.
Ele volta ao chocolate, com a língua a lamber-me as pontas dos dedos.
Respira. Consigo fazer isto. Consigo dar uma trufa a Dominic Yun sem me
descontrolar por completo.
Só que, de cada vez que nos tocamos, imagino-nos contra aquela parede
outra vez, ele a aproximar-se cada vez mais até não haver espaço entre os
nossos corpos. E as várias outras formas como ele usaria a língua e os
dentes, como poderia saborear uma rapariga tal como saboreia este pedaço
de chocolate.
Espero que Nathaniel saiba que este sítio é perigoso. Podemos estar num
restaurante obscurecido cujo objetivo é deixar as pessoas com vontade de se
atirarem para os braços umas das outras, mas este é o nosso trabalho. Não
posso sentir este tipo de coisas enquanto estou a trabalhar.
Por fim, é a sua vez de – argh – me dar de comer. Estou convencida de
que não será tão desconcertante como a sensação de ter os dentes dele na
minha pele, mas ele alcança-me a boca fechada um segundo antes de eu
estar à espera, antes de ter tido tempo de processar o que está a acontecer.
Entreabre-me os lábios com um dedo delicado antes de me passar um pouco
do chocolate mais delicioso que alguma vez provei.
– Bom? – pergunta-me, e de súbito parece estar muito mais perto do que
do outro lado da mesa.
Não. Esta trufa é mesmo indecente. Não é boa, a forma como os meus
dentes lhe raspam os dedos. Não é boa, a doçura do chocolate e o sal da sua
pele. Não é boa a forma como tenho de pressionar as coxas uma contra a
outra para me defender da sensação que se acumula ali e exige escape.
Isto não são preliminares. É trabalho.
Podemos estar a enganar os nossos ouvintes e agora a escuridão e a
proximidade estão a enganar-me, a transformar-me a irritação com ele
nalguma espécie de atração demente.
– Ótimo – consigo dizer, e realmente não é boa a forma como passo o
resto da semana a desejar chocolate.
Twitter

Saffron Shaw @saff_shaw


feliz sexta, querid@s! a #recdasaf de hoje é um podcast chamado @FalaComoEx!

ainda só tem alguns episódios, mas os apresentadores são mesmo encantadores e


GENUÍNOS! vão ouvi-los que é para eles poderem fazer mais, sim?

Respostas: 247 Partilhas: 9200 Gostos: 16000


14

No Top 100 do iTunes.


Entramos para o lugar número 97 na tarde de sexta-feira, depois do tweet
de Saffron Shaw e aproveitamos a onda durante todo o fim de semana. O
tweet é visto pela Marie Sue, pela Vulture, pelo podcast de cultura pop da
própria NPR. Os meus seguidores chegam aos três mil, cinco mil, oito mil.
Perco a capacidade de me manter a par das notificações e, a dada altura, é
possível que #shayminic seja uma das tendências do momento.
É a loucura.
A segunda-feira é basicamente um dia atirado fora. Kent traz dónutes às
nove, abre uma garrafa de champanhe às dez e leva-nos a um almoço
demorado às onze e meia. Não trabalhamos muito mais depois disso.
Durante todo esse tempo, tenho a mente a mil. Pelo choque da nossa fama
súbita e pela pressão de a manter, sim, mas há também algo mais. A estação
está a tratar Dominic como um herói, o que, normalmente, me levaria a
revirar os olhos. Mas é verdade que ele contribuiu para que isto acontecesse
– tenho de lhe dar crédito por isso. Até ao primeiro episódio, eu achava que
aquilo que me deixaria mais ansiosa era a minha voz. E, embora
provavelmente nunca vá adorar ouvir-me, julgava que a mentira seria
simples. Estávamos a contar uma história.
Só que, quando os tweets dos ouvintes deixam bem claro que acreditam
em todos os pormenores da nossa relação falsa e da rutura que
engendrámos, não consigo deixar de pensar de que lado estaria o meu pai.
As pessoas entregaram-se muito depressa a esta história que não é real,
apesar do que Kent possa ter contado à direção.
E no entanto, ali estava Dominic, procurador da Verdade no Jornalismo, a
desfrutar da atenção e a deixar que Kent lhe pagasse outra cerveja.
– Vais descer?
Ele aparece à frente do elevador quando estou à espera para ir embora.
Estranhamente, isto não aconteceu desde que o programa começou. Sempre
precisei de ir a correr para casa para passear o Steve, enquanto ele parece
gostar de ficar até tarde.
– Na verdade, estava a pensar dar um pulinho à start-up de inteligência
artificial para o golfe, no sexto andar – digo-lhe. – Parecem ser boa gente.
– Nunca pensei que gostasses de golfe.
– Sou um ser humano complexo e com várias facetas.
Isso vale-me um sorriso trocista.
– Sabes, estou a detestar muito menos fazer isto do que julgava.
– Não estás a detestar os teus quase dez mil seguidores?
– Não fiques amargurada por só teres nove mil.
– Nove mil e quinhentos.
E tenho a certeza de que em breve seremos inundados por oportunidades
de patrocínio. Ainda assim, tenho tido de limitar o tempo que passo a ver os
comentários, já que algumas pessoas não têm propriamente limites no que
diz respeito a separar as nossas vidas privadas e profissionais. Claro, o
próprio programa esbate um pouco essas linhas e as imagens de cenas
famosas de filmes com casais a separar-se que um ouvinte publicou, com as
nossas caras no lugar das dos atores, estavam engraçadas. Sim, partilhei
esse tweet.
Mas alguns comentários têm sido um pouco explícitos em demasia. Ao
início senti-me lisonjeada – não há dúvida de que me faz bem ao ego que
desconhecidos me considerem atraente –, mas deixou de me parecer
inocente quando alguém me mandou uma mensagem a perguntar se
Dominic era circuncidado. Depois alguém pediu a Dominic que dissesse
como é que eu era na cama. E esses foram dos mais contidos.
Já tenho pensamentos indesejados que cheguem sem que a internet piore
tudo.
O elevador chega e, quando os dois nos esticamos para carregar no P, a
mão dele chega lá primeiro. Meu Deus, ele ainda parece mais alto aqui
dentro.
O meu cérebro desatina em espaços fechados com Dominic, mas quero
aproveitar o nosso tempo a sós, fazer-lhe as perguntas que não posso fazer
na redação.
– É esquisito que algumas pessoas queiram que voltemos a andar, não
achas?
– Ao que parece, ambos estamos certos e errados e ambos merecemos
melhor e pior.
– Devíamos mesmo deixar de ler os tweets. – Encosto-me de forma bem
menos impressionante do que ele do outro lado do elevador, a mexer na alça
da mala. – Não te sentes... não sei, desonesto?
Ele demora um pouco a responder.
– Foste muito clara quando me imploraste que fizesse este programa
contigo. Estamos a contar uma história.
– Certo.
Achava que talvez ele estivesse a fingir com Kent – não que tivesse
abandonado a sua moral jornalística. Talvez não fosse assim tão forte,
afinal. Isso muda a opinião que tenho dele, só um pouco. Acho que me
agradava que ele tivesse algo a que fosse tão dedicado. Que fosse tão
escrupuloso.
– Como é que a tua família está a lidar com tudo isto? – pergunto. – Eles
ouvem o programa?
A sua boca curva-se naquele sorriso frustrante de esguelha.
– Perguntam-se o que é que eu fiz para te afastar.
– E tu disseste-lhes que foi por fazeres questão de adormecer ao som
tranquilizador de um podcast sobre o sistema judicial?
– Naturalmente. Ia contar a um dos meus colegas da faculdade. Da
licenciatura – acrescenta, como se eu pudesse correr o risco de pensar que
ele estava a falar do mestrado. – Mas estamos todos espalhados pelo país e
já não falamos tanto como antes. Às vezes gostava de ter ficado aqui a
estudar – diz ele, com um laivo de... nostalgia?... na voz. – Mas depois não
teria feito o mestrado.
– E deves cinco dólares ao frasco.
– Já passa da hora do trabalho – diz ele, com um ar inocente. – Não vais
dar-me um desconto?
Eu estendo a mão e ele resmunga e tira a carteira do bolso.
Este à-vontade entre nós é muito recente. Não me desagrada, embora me
deixe mais ciente de todos os seus ângulos: a inclinação dos ombros, a
curva dos malares. É uma maldade, não poder voltar simplesmente a sentir-
me irritada por ele.
Um plim indica que chegámos ao parque de estacionamento.
– Ultimamente este elevador anda tão lento – comento. – Bem. Até
amanhã.
Estou a dirigir-me para a cabina do segurança, onde passamos a nossa
identificação todas as manhãs, quando Dominic me diz:
– Espera.
Viro-me.
– Queres... não sei, queres ir beber um copo? O Mahoney’s, aqui ao lado,
tem uma happy hour ótima. Tudo a metade do preço. Para celebrar termos
entrado para o Top 100 – acrescenta. – É um grande marco. Quero dizer...
acho que já passámos a maior parte do dia a celebrar, mas nunca é de mais
celebrar, pois não?
Ele acaba com um sorriso envergonhado e passa a mão pelo cabelo
escuro. Estará... nervoso?
– Oh... – começo, apanhada desprevenida pelo comentário. Um copo. Um
copo com Dominic. Dominic convidou-me para ir tomar um copo com ele.
Uma rodada de copos amistosa entre colegas. De certeza que era isso que
ele queria dizer. Está a tentar provar que podemos ser amigos, tal como as
nossas personagens do universo alternativo depois do fim inventado da
relação falsa. – Eu... hã, não posso. Tenho de ir dar de comer ao meu cão.
– Deixa-me adivinhar, também te comeu as notas para o episódio?
Tapo a boca com a mão.
– Oh, meu Deus. Acabei de me aperceber como isso soou. Juro, tenho
mesmo de ir dar de comer ao meu cão.
– Adotaste-o há pouco tempo, não foi? – As feições de Dominic
suavizam-se, mas não me sinto a relaxar. – Adoro cães. No meu
apartamento não me deixam ter animais.
– No mês passado. Ainda estamos a criar uma rotina. Ele é um bocado
esquisito, mas, pronto, é o meu esquisito. – Agora sou capaz de começar a
tagarelar. – Não me tinha apercebido de que ia gostar tanto dele, mas gosto,
apesar de todas as suas idiossincrasias. Ou talvez por causa delas.
Por uns segundos, penso que sou capaz de o convidar a ir conhecer o meu
cão. Mas isso seria ridículo, não seria? Dominic na minha casa, a brincar
com o Steve? É uma imagem demasiado estranha para sequer a visualizar.
– OK, bom – diz ele, a apontar com a cabeça na direção das portas. – Vou
beber um copo sozinho.
Gemo.
– Por favor, não te faças de coitadinho. Vou sentir-me mal.
– Sabes que adoras.
Acena com a mão e eu pergunto-me se irá mesmo a um bar aproveitar
bebidas a metade do preço sozinho, e algo nisso me parece incrivelmente
triste. Ele disse que tinha considerado falar aos seus amigos da faculdade da
nossa relação falsa, mas não mencionou quaisquer amigos de Seattle. Volto
a perguntar-me como ocupará o tempo livre. Se ganhámos alguma espécie
de à-vontade um com o outro, não foi o suficiente para que sinta que posso
perguntar-lhe isso.
Fico mais ou menos à espera de que ele diga algo como fica para outro
dia, como uma promessa de que iremos beber um copo num dia em que o
jantar do meu cão não seja tão urgente. Mas isso não acontece e, enquanto
avanço pelo labirinto do parque de estacionamento até ao meu carro, dou-
me conta de que gostava de que tivesse acontecido.
*

Deito algumas tampas de espuma de banho de alfazema na banheira e


apanho o cabelo num carrapito. O Steve está deitado no meio da casa de
banho, a roer um hipopótamo de peluche, e tenho um copo de rosé
equilibrado na beira da banheira. Há séculos que não tomo um banho de
imersão, sobretudo porque nem sempre tem sido fácil descontrair na minha
casa. Normalmente, poria um podcast, mas o silêncio até está a saber-me
bem. Hoje sinto que posso desligar a mente e estar simplesmente. (Ou estou
a tentar.)
O nosso programa está a correr bem. (Por agora.)
A minha mãe anda contente com os preparativos para o casamento. (E
ainda hesitante quanto ao meu episódio sobre perda, mas estou a fazer
avanços.)
Ameena tem andado sobrecarregada de trabalho, mas combinámos jantar
no próximo fim de semana. (E continua a avançar no processo de
entrevistas para o emprego na Virgínia.)
E Dominic...
Não, não vou por aí.
Estou a sair da banheira quando o meu telemóvel vibra em cima da
bancada. Tinha planeado deixá-lo no quarto, mas é possível que esteja um
pouco casada com ele, com os nossos números de subscritores, com o meu
feed no Twitter.
Dominic: Espero que o teu cão tenha tido um jantar rápido e requintado.
Não posso deixar de sorrir. Respondo antes de me afundar de novo na
água quente.
Shay: Tem um paladar sofisticado. Acho que a ração dele até tem frango a sério. Ou
pelo menos são obrigados a dizer isso na embalagem.
Shay: Como foi beber sozinho?
Dominic: É beber sozinho quando se faz conversa de circunstância com o camionista
velho do outro lado do balcão que talvez me tenha convidado a ir a uma festa de
camionistas?
Shay: Dominic. Estás numa festa de camionistas? Precisas de ajuda?
Shay: Já agora: o que é uma festa de camionistas?
As respostas dele chegam tão depressa que mal tenho tempo de pousar o
telefone antes de voltar a acender-se.
Dominic: Estou em casa, por isso, infelizmente, talvez nunca venha a descobrir.
Shay: São oito e meia. Sai e faz aquilo que os jovens fazem hoje em dia.
Dominic: Mas já vesti as calças de fato de treino confortáveis.
Shay: Se vestiste umas calças confortáveis às oito e meia, já não podes gozar comigo
por ser velha.
Dominic: Está bem, o que é que tu estás a usar?
Engasgo-me com o vinho e o Steve olha para mim, como que para se
assegurar de que não morri. Não necessariamente por se preocupar comigo,
mas porque sou a sua fonte de comida. Depois de confirmar que continuo
viva, volta ao seu brinquedo.
Dominic: oh
Dominic: oh meu Deus
Dominic: não queria que soasse assim
Dominic:
Shay: Ainda bem, porque a resposta ia deixar-nos aos dois envergonhados.
Não estou a flirtar, juro.
Dominic: Um disfarce sexy de Gritty, a mascote dos Philadelphia Flyers?
Shay: Raios, não era suposto adivinhares à primeira.
Ele fica calado durante algum tempo e eu regresso ao meu rosé como a
millenial sem esperança que sou. Aparecem três pontinhos no ecrã,
desaparecem, tornam a aparecer. Quanto a mim, vou pensando e analisando
em demasia.
Dominic: Sabes que mais? Convenceste-me. Sou jovem e enérgico. Vou sair.
Shay: Livraste-te das calças de fato de treino?
Dominic: Fora com as calças de fato de treino, vivam as calças de farra.
Shay: Ahah. Diverte-te.
Fito o telemóvel, sem saber se a minha resposta transmitirá o entusiasmo
necessário. Não tenho a certeza absoluta de que onde o tenha encorajado a
sair ou do que fazer, nem do nível de entusiasmo que seja apropriado.
Depois de mais uns segundos de deliberação, envio-lhe um emoji de um
chapéu de festa. Isso faz-me sentir um pouco melhor.
É ao fim de uma hora e meia, quando estou a meter-me na cama com um
romance tórrido e outro copo de vinho, que o meu telemóvel volta a vibrar.
Dominic: alguma vez pensaste porque é que as pizas vêm em caixas quadradas se
são redondas
A falta de maiúsculas e de pontuação denuncia-o logo. Só pode ter estado
a beber.
Shay: CANCELAR SUBSCRIÇÃO
Dominic: não resulta, não estou a pedir-te dinheiro nem votos
Shay: Está bem. Suponho que seja mais fácil fazer caixas quadradas. E que, sendo
quadradas, a piza não deslize para todos os lados.
Dominic: que inteligente
Quem me dera conseguir perceber porque é que trocar mensagens com
ele me deixa a sorrir de orelha a orelha como se o meu podcast preferido
tivesse publicado um episódio bónus surpresa. Provavelmente não gostaria
da resposta. Por agora, vou dizer que a culpa é de ter bebido um bocadinho.
Dominic: Shay Evelyn Goldstein
Dominic: tou muito bbedo. demasiado bêbedo para a autocrrecao
Shay: Como é que sabes o meu segundo nome?
Dominic: andámos três meses, é claro que sei o teu segundo nome
Shay: Parece que as calças de farra estão mesmo a cumprir o prometido.
Dominic: oh sim. ta tudo a girar e a saltar e é liiiiiindo
Dominic: até tou a começar a esquecer-me de onde é que moro
Isso tira-me o sorriso do rosto. Tenho a certeza de que é uma piada, mas
fui eu que sugeri que ele saísse. Ele estava tão controlado quando bebemos
na estação. Dependendo de quão bêbedo esteja, é capaz de precisar mesmo
de ajuda.
Shay: Onde é que estás agora?
Dominic: no nomad em cap hill
Dominic: porquê, também vais pôr as tuas calças de farra?
Não vou conseguir desfrutar deste romance, ou sequer adormecer depois,
se estiver preocupada com ele, raios.
Shay: Fica aí. Vou a caminho.
15

– Não tinhas de vir – diz ele quando o encontro debruçado sobre o balcão
do bar, a provar exatamente porque é que eu tinha de fazer isto. Há uns
quantos copos de shots alinhados a seu lado. Tem uma bochecha colada ao
balcão e não quero nem pensar em como a sua cara vai estar pegajosa
quando ele se sentar. Meu Deus, é estranho vê-lo assim fora do trabalho, é
como ver o diretor da nossa escola no supermercado com um carrinho cheio
de refeições prontas.
– Talvez não – respondo, ao mesmo tempo que evito pisar uma poça de
cerveja. – Mas como não posso apresentar o programa sozinha se tu caíres
numa vala a caminho de casa, aqui estou.
Ele não podia ter escolhido um sítio mais manhoso para vir afogar as
mágoas, se é que foi isso que ele veio fazer. Se calhar estava só a ser jovem
e enérgico. O bar é pequeno e escuro e tem Nickelback a tocar, o que, só
por si, deveria ser uma razão para o fecharem. Para além disso, todo o
ambiente parece húmido.
– Shay. – Todas as suas feições formam uma expressão de concentração
absoluta. Com uma mão, afaga o balcão, com a orelha tão próxima que é
capaz de contrair uma DST. – Shay. Chiu. Acho que ouço o mar.
– Claro que sim, amigo.
Dou-lhe uma palmadinha nas costas e a minha intenção é tranquilizá-lo,
talvez até com alguma condescendência. É raro sentir alguma espécie de
autoridade junto de Dominic e não posso dizer que não esteja a gostar. Mas
sinto os seus ombros a contrair-se debaixo da camisa, a firmeza dos seus
músculos. Como está quente.
Baixo a mão.
– Cuidado. Posso ter piolhos. – E ri-se.
A minha cabeça começa a latejar. Devia ter bebido só um copo de vinho,
mas pelo menos não estou tão perdida quanto ele. Se tivesse aceitado ir
tomar um copo com ele, estaríamos os dois tão bezanos?
– Peço imensa desculpa – digo à emprega do bar, que tem os braços
cheios de tatuagens e um ar de quem provavelmente conseguiria levantar
não um, mas dois Dominics. – Quando vim buscá-lo não me apercebi de
que ia ter de tomar conta de um miúdo de seis anos.
– Não se preocupe. Já vi bem pior.
Enche um copo de água e pousa-o à frente dele.
– Bebe – ordeno-lhe e, embora resmungue, ele dá uns quantos goles. –
Comeste alguma coisa? – Interpreto o seu encolher de ombros com um não.
– Servem comida? – pergunto à empregada.
– Só batatas fritas e bolinhos de batata – diz ela, pelo que peço uma dose
de cada.
Como não quero ir embora até ele ter alguma comida no estômago,
empoleiro-me no banco demasiado alto ao lado dele. Os nossos cestos de
fritos chegam, juntamente com um frasco de ketchup que tem lá dentro
apenas o suficiente para que eu me ponha a fazer o que parece ser um gesto
obsceno quando o bato contra a palma da mão.
– Ena. Não perdes tempo – diz Dominic.
Sacudo outra vez a embalagem até que o ketchup sai.
Apesar de o bar dar a impressão de que não se pode confiar em nada que
saia da cozinha, a comida está estaladiça e com a quantidade perfeita de sal.
Estou a comer bolinhos de batata com a minha antiga némesis num antro às
onze da noite de uma segunda-feira. A minha vida deixou de fazer sentido.
Depois de ele ter comido o suficiente para parar de vacilar no lugar,
parece-me que será seguro irmos embora. No entanto, tirar a carteira do
bolso de trás das calças dele é difícil, pelo que pego na minha.
– Depois pago-te – diz ele.
– Oh, eu sei que pagas.
A empregada devolve-me o cartão de crédito.
– Tenham uma boa noite, vocês os dois.
Os dois. Não é uma insinuação de que sejamos um casal, apenas indica
que somos dois seres humanos a deixar um bar ao mesmo tempo.
Poderá ser segunda-feira, mas isso não para o Capitol Hill. Hipsters
juntam-se em frente a bares, deixando o ar frio de abril carregado de fumo
de cigarro e erva. Dominic não está a usar um casaco, apenas a camisa
cinzento-escura que usou no trabalho, mas que entretanto ficou desfraldada.
Passa um braço à volta dos meus ombros e apoia-se em mim, o que, dada
a nossa diferença de alturas, deve parecer cómico. Passado um momento de
hesitação, passo o braço à volta da sua cintura para o amparar. É o mais
próximo que alguma vez estivemos – e ainda mais quando a sua camisa
sobe e, por um momento brevíssimo, os meus dedos lhe rasam a pele quente
do fundo das costas.
Retiro a mão tão repentinamente que ele tenta endireitar-se, valendo-se
mais das suas próprias pernas do que do meu metro e cinquenta e sete.
– Desculpa. Devia estar a fazer-te demasiado peso. – Dá-me uma
palmadinha no ombro do casaco. – És minúscula.
– O mínimo que podes fazer é tentar não me insultar, depois de te ter
salvado de Nickelback e Jägermeister.
– Não era um insulto. – Ele fita-me com um olhar tão impossível de
decifrar como sempre. Não me sinto apenas minúscula, mas como se
estivesse a fazer uma apresentação numa reunião de seniores a usar apenas
umas tachas a tapar-me os mamilos e as minhas meias favoritas de rádio
(não seria Shay Goldstein se não tivesse vários pares) com um peixe a
segurar o microfone e as palavras Ira Bass. – Quanto media o tipo mais alto
com quem já andaste?
– Não vejo que relevância isso possa ter. – E, não obstante, enquanto
começo a pensar no meu historial de encontros, a minha mente embotada
pelo vinho estaca na memória de quando estivemos na copa da estação. Na
forma como ele se impunha sobre mim, impedindo-me de sair. A encostar o
copo de água à minha cara. Na forma como me senti pequena mas segura,
para além de uma data de outras sensações que nunca dei ao meu corpo
permissão para sentir. Sensações que, definitivamente, não estou a ter
agora.
Suponho que não tenha problema fazer-lhe a vontade.
– Há uns anos andei com um rapaz que media um metro e oitenta e cinco.
– Tonta – diz ele, e dá-me um piparote no nariz. Vai morrer de vergonha
amanhã, quando lhe esfregar tudo isto na cara. – Devias ter respondido que
o mais alto fui eu. Onde é que está o carro?
– Como ia a meio de um copo de vinho quando começaste a mandar-me
mensagens, apanhei um Lyft.
Pego no telemóvel para pedir outro e depois encaminhamo-nos para um
banco virado para a rua. Ele deixa-se cair no banco a meu lado e encosta a
cabeça ao meu ombro. Com a sua falta de controlo dos membros, parece
uma daquelas criaturas de balões infláveis nos concessionários automóveis.
Só que mais pesado. E a cheirar um bocadinho a álcool – bem menos do
que eu acharia que aconteceria depois de passar umas horas naquele bar – e
um bocadinho a suor, mas sobretudo a Dominic. Algo como madeira e
limpo.
– Porque é que bebeste tanto? – pergunto.
– Issémaboahistória – diz ele como se fosse só uma palavra longa e
bêbeda. – Já estava tocado quando saí do Mahoney’s. Tive de afogar as
mágoas depois de me contares uma treta sobre um cão a fingir só para não
teres de passar tempo comigo.
– Ele existe! Chama-se Steve! Tenho fotografias!
Preparo-me para pegar outra vez no telemóvel, mas Dominic limita-se a
levantar uma mão, a rir.
– Eu sei. Eu sei. Depois cheguei a casa e tu estavas a usar um fato sexy do
Gritty e acho que ainda não tinha acabado de celebrar o programa. E sabes
como é. Ser jovem e enérgico e isso tudo. – Sacode uma mão. – E depois
comecei a pensar que não havia ninguém que pudesse convidar para sair
comigo. Nem sequer gosto assim tanto de sair à noite. Não o suficiente para
me habituar a fazê-lo sozinho. Mas lá estava eu. A beber sozinho num bar
numa segunda à noite, e achei que beber mais me ajudaria a sentir-me
menos na merda por causa disso.
Ao início, nem consigo formular palavras. Este não é o Dominic que
gozava comigo por causa do Puget Sounds, nem sequer o Dominic que me
deu trufas à boca às escuras, cujos dentes rasaram as pontas dos meus
dedos. Tento imaginar uma versão dele, deitado num sofá, de calças de fato
de treino, a tentar escolher algo para ver na Netflix sem encontrar nada que
lhe apetecesse e a trocar mensagens comigo porque não tinha mais ninguém
com quem o fazer. A sair sozinho porque não tinha mais ninguém para
convidar. Cresceu aqui, por isso ainda fico mais curiosa em relação ao seu
passado. Ele contou-me que é o mais novo de cinco irmãos e eu nem sei
onde é que eles vivem, ou se são próximos. Não sei que Dominic é este e
isso deixa-me tanto hesitante quanto curiosa.
A sua confissão também me faz ficar séria e leva-me a partilhar um dos
meus segredos.
– Eu às vezes também me sinto sozinha – digo em voz baixa. –
Basicamente só tenho uma amiga, que é capaz de ir arranjar um emprego do
outro lado do país.
– Lamento – diz ele, e parece sincero. Depois anima-se e endireita a
postura. – Eu vou ser teu amigo!
– Isso parece o álcool a falar.
– Não somos amigos? – Há ali uma estranha vulnerabilidade. Até parece
ficar magoado por eu não nos considerar amigos.
– Não, não – apresso-me a dizer. Seremos amigos? – Podemos ser
amigos. Somos amigos.
Ele volta a encostar a cabeça ao meu ombro e eu obrigo-me a ficar muito,
muito quieta.
– Bom.
O carro da Lyft aparece então, para meu grande alívio, e lá consigo enfiar
aquele gigante num Prius sem me magoar com o esforço.
Depois de entrarmos, o condutor confirma a morada antes de retomar
uma discussão acalorada sobre futebol com quem quer que esteja a falar
através do kit mãos livres. A minha cabeça lateja tanto que é um martelar
enlouquecedor e insistente. Solto uma expiração longa e descontraio-me
contra o assento, aproveitando para fechar os olhos por um instante.
– Cheiras bem – diz Dominic, ao que os meus olhos se abrem de supetão.
– Oh... eu, hã, tomei um banho de imersão há bocado. Deve ser do gel de
espuma de alfazema.
– Quando estávamos a trocar mensagens?
– Hã-hã – consigo dizer. Pois, vai ser isso a impedir-me de dormir esta
noite. – Uma típica noite tresloucada de segunda-feira. A par e passo com
beber sozinho.
– Já te agradeci?
– Não.
– Obrigado – diz num tom enfático, parecendo-se mais consigo mesmo,
pelo menos com a parte de si que é genuína. A parte que tem espreitado
umas quantas vezes desde que começámos toda esta charada. – A sério. Sei
que teria sido capaz de chegar a casa sozinho, mas provavelmente vou
sentir-me bastante menos terrível amanhã, graças a ti.
– Não tens de quê. Fui eu que te encorajei a sair, por isso... Senti-me
culpada.
– Talvez, mas fui eu que decidi pedir Jägerbombs.
Quando a luz de um candeeiro lhe incide no rosto, salienta-lhe o contorno
do maxilar, a curva da boca. É uma grosseria, que tenha tão bom aspeto
mesmo com os copos. Mesmo com – sobretudo com – o cabelo
desgrenhado. Gosto do Dominic desalinhado, do Dominic literalmente
menos aprumado do que no trabalho.
– Espero não me ter intrometido quando estavas a tentar conseguir o
número de alguém.
Merda. Detesto-me assim que o digo. Porquê porquê porquê porquê
porquê.
Ele arqueia uma sobrancelha.
– Não. Tem sido um longo período de seca.
– A tua última relação acabou há cerca de um ano? – pergunto, e ele
assente com a cabeça. – Para mim passou-se mais ou menos o mesmo
tempo.
Um longo período de seca. Será que quer dizer que não foi para a cama
com ninguém desde que a sua relação acabou, ou que só não tem saído com
ninguém? Não é irrealista, claro. Se calhar ele não é do género de sexo
descomprometido. Eu tendo a apegar-me muito mais cedo do que devia,
uma lição que aprendi no início da casa dos vinte. Que é onde ele ainda
está.
– Não tens saído com ninguém? – pergunta ele.
– Estou num hiato de encontros. – Fito o chão, apercebendo-me de que,
com a pressa para sair, calcei um sapato preto e outro castanho. Jesus, por
falar em desalinhado. – Entretanto... há sempre a gaveta da diversão. Nunca
me falha e nunca quer um brunch de manhã.
– Há uma gaveta inteira?
Eu nunca mais volto a beber. Dominic vai achar que a minha mesa de
cabeceira está a abarrotar de dildos.
Olho de relance para a frente, para me assegurar de que o condutor
continua imerso no seu telefonema.
– Bem, meia gaveta. – Ainda estou tocada, certo? Ou fiquei bêbeda por
osmose perto dele. Só pode ser por isso que estou a falar assim com ele.
– Podias arranjar alguém, se quisesses. – Um revirar ocioso da cabeça na
minha direção, com as pálpebras a meia-haste. – Alguém que não fosse a
pilhas, quero dizer. És gira.
É a primeira vez que me faz um elogio direto, e não faço ideia do que isso
queira dizer. Palavras bêbedas, pensamentos sóbrios? Mesmo que isso seja
verdade, não deveria importar-me se Dominic acha que sou gira. Eu sou
gira. Ele está simplesmente a constatar um facto.
É claro que não vou dizer-lhe que arranjar não é o problema... o afugentar
depois de inevitavelmente me apaixonar mais depressa do que a outra
pessoa é que é.
– Achava que era «fixe» – digo, a tentar projetar uma calma que não
sinto. Uma distância. Uma indiferença. Sou Meryl Streep a fazer de
Margaret Thatcher! Sou Meryl Streep naquele filme com as freiras. O meu
olhar recai na sua boca, na curva do seu pescoço, no triângulo de pele
exposto pelos seus botões desapertados, e toda a reivindicação de calma
desaparece. Sou Meryl Streep em Mamma Mia! Here We Go Again.
– As duas coisas.
– E, mais uma vez, o Dominic Bêbedo é muito mais divertido do que o
Dominic Sóbrio.
– O Dominic Sóbrio quer dizer-te que também é divertido, mas está
demasiado ocupado a abanar a cabeça com um ar reprovador ao Dominic
Bêbedo.
Ainda estou a rir, com o coração ainda acelerado, quando o carro para em
frente à casa dele. O bar não ficava muito longe do seu apartamento na
baixa, mas, estranhamente, a viagem pareceu-me mais curta do que teria
julgado que fosse.
– Gosto desta área – comento enquanto saímos do carro e eu dou cinco
estrelas a Julius, o condutor. Sentir o ar fresco no rosto é um contraste bem-
vindo depois do calor do assento traseiro.
Ele encolhe os ombros.
– Não é ótima. Não tens de fingir que é. Só a escolhi por ficar perto do
trabalho.
Cada passo que damos é mais pesado que o anterior. Estou só a levá-lo à
porta. Decerto não vou ajudá-lo a entrar. Ele já parece muito menos perdido
do que estava no bar. Ainda tocado, mas perfeitamente capaz de entrar num
edifício sem que eu tema pela sua vida.
– Obrigado – diz-me quando chegamos aos degraus do seu prédio, um
edifício mais recente que parece idêntico a todos os outros desta rua. Ele
encosta-se à porta, na sua postura característica. Não sei porquê, não me
incomoda tanto como habitualmente. – Mais uma vez. De certeza que eu
teria chegado bem, mas é bom saber, acho, que... que te preocupaste.
Isso atinge-me o coração de uma forma que eu não esperava de todo.
– É claro que me preocupo. – Mudo o peso do corpo de um lado para o
outro, subo e desço a mão pela alça da mala. – Termos acabado não quer
dizer que eu tenha deixado de me preocupar. Preocupo-me com todos os
meus ex-namorados.
Isso vale-me meio sorriso. Ele gosta que eu alinhe na brincadeira. Faz um
movimento para procurar as chaves – pelo menos, é o que eu acho que ele
está a fazer, até sentir a sua mão aterrar antes no meu pulso. Juro que
acontece em câmara lenta, quando ele puxa o elástico de cabelo que tenho
aí, retesando-o contra a minha pele.
O sussurro de uma picada desaparece num instante, mas as ondas de
choque que se repetem são tremendas. Engulo em seco. Usaria elásticos a
cobrir-me os braços de cima a baixo se ele voltasse a fazer aquilo. Quando
fala, é em voz baixa.
– Gosto de te ver com o cabelo solto – diz ele, o que me leva a agarrar o
cabelo por instinto. Saí tão à pressa que nem me lembrei de o apanhar. – Sei
que o usas sempre apanhado, e gosto, mas assim... gosto mesmo muito.
– É muito crespo – digo em voz baixa, espantada por conseguir que me
saiam sons de todo. – Nunca consigo decidir se é encaracolado ou liso. É
por isso que costumo usá-lo apanhado.
A sua mão sobe até ao meu cabelo, desliza por ele e... oh. Aproximo-me
mais dele enquanto os seus dedos se perdem na minha melena
encaracolada-lisa e me afagam o couro cabeludo. Inspiro o seu odor terroso
e estonteante. Meu Deus, há tanto tempo que ninguém me toca assim,
mesmo que não conte, dado que ele é o meu coapresentador barra falso ex-
namorado barra possível amigo. E que está bêbedo. Dominic Sóbrio talvez
seja divertido, segundo ele, mas nunca faria isso.
– A mim parece-me bastante suave – diz ele, e é então que morro.
Com a mesma mão, puxa-me mais para si. Depois inclina-se e, antes que
eu tenha tempo de processar o que está a acontecer, tem a boca na minha.
E eu estou a corresponder-lhe.
A pressão dos seus lábios é firme mas curiosa, uma explosão de calor
numa noite fria de primavera. Não sei o que fazer com as mãos, ainda não,
quando isto já é uma sobrecarga sensorial. A forma maravilhosa como a
sombra da sua barba me rasa no queixo. A forma como os dedos dele
seguram madeixas do meu cabelo. Um gemido murmurado na sua garganta.
Não devíamos fazer isto, grita o meu cérebro.
Talvez só ele ouça, porque, de repente, se afasta, deixando-me
desesperada por ar, a arquejar na baixa escura. O beijo deve ter durado
menos de três segundos. Três segundos que me roubaram os ossos e me
deixaram a pairar.
A sua expressão é de horror abjeto.
– Merda. Merda. Lamento imenso. Não devia...
– Não, está... – interrompo-me, sem saber o que ia dizer. Que estava bem?
Porque definitivamente não está. Porque agora estou a perguntar-me como
seria um beijo sóbrio, o que poderia ter acontecido se eu tivesse aberto a
boca. Se ele me tivesse empurrado contra a porta da sua casa. – Quero dizer,
eu também ainda estou bastante tocada, por isso...
– Foda-se, isto é embaraçoso – diz ele, a abanar a cabeça e a passar uma
mão pela cara. Onde está gravada a palavra Erro. – É óbvio que ainda estou
bastante mais bêbedo do que julgava. Vamos só...
– Fingir que nunca aconteceu? – Solto um som que poderia ser uma
gargalhada, mas que é muito mais agudo do que aquilo que estou habituada
a ouvir. Levo as pontas dos dedos à boca, como se procurasse a memória
dos seus lábios ali.
Os ombros dele curvam-se. De alívio – é isso.
– Por favor. Lamento mesmo muito.
– Eu também – digo, porque ele não se apercebeu de que eu estava a
corresponder-lhe? Se calhar não. Se calhar é melhor assim. Se calhar eu
devia deixar o Fala Com o Ex. Parece-me tão racional como qualquer um
dos outros pensamentos que me correm pela mente. – Então é melhor eu...
Inclino a cabeça na direção da rua, acrescentando o gesto mais cromo de
todos, de apontar com os polegares.
– Certo. Pois. Obrigado. Outra vez. Depois diz-me quando te devo das
bebidas e do Lyft e...
– Não te preocupes.
– OK. Se tens a certeza. – Coça o cotovelo, incapaz de me olhar nos
olhos. Há um minuto, aquela mão estava no meu cabelo. – Queres que eu...
hã... espere aqui até o teu carro chegar?
– Não! – guincho em resposta. Sou uma personagem da Disney. Um rato.
– Estou bem. Obrigada.
– Bem... está bem – diz ele, a procurar as chaves antes de as pôr na
fechadura. – Até amanhã?
Se entretanto não me atirar ao Puget Sound.
– Até amanhã – ecoo e, quando a porta dele se fecha, deixo-me deslizar
até ao chão e juro que nunca mais na vida volto a beber.
16

É um alívio ver Ameena na quarta-feira, mesmo que isso implique submeter


o meu pobre ego a mais uma noite de vinho-e-pintura. O tema desta noite é
uma taça cheia de quinquilharias cuidadosamente dispostas: um cadeado,
um espelho, uma boneca com um triste corte de cabelo e só um olho. Não
há dúvida de que tem visto coisas.
– Onde é que foram desencantar a porra da boneca? – sibilo a Ameena.
De sobrolho franzido, Ameena olha para a sua tela, onde captou a
essência da boneca de uma forma que muito poucas pessoas seriam capazes
de fazer.
– Não sei, mas juro que o único olho está a seguir-me. – Espreita a minha
representação. – Mas que raio, Shay, ainda a tornaste pior!
– Desculpa! – Atiro mais tinta para a tela. – Tenho a cabeça em vários
sítios ao mesmo tempo.
– Eu sei como é. Mal consegui concentrar-me no trabalho durante esta
semana, com todos os preparativos para a entrevista que a organização de
conservação da natureza me mandou.
Uma coisa que vai acontecer: Ameena apanhar um voo para a Virgínia
para a última entrevista.
Contou-me há dez minutos. Ainda estou a processar a informação.
O vinho ajuda, mas ultimamente também me tem levado por alguns
caminhos duvidosos, pelo que não vou confiar nisso por completo. Corrigi a
minha jura: só não vou beber quando Dominic estiver por perto, já que não
posso ter a certeza de fazer boas escolhas na sua presença.
Até agora, temo-nos limitado ao plano de fingir que segunda-feira nunca
aconteceu. Temos sido cordiais, talvez demasiado, enquanto dançamos um à
volta do outro numa coreografia cuidada de evitação. As nossas conversas
são sobre trabalho e apenas sobre trabalho. Não há noites longas no
escritório, nem partilhamos mais pormenores sobre as nossas vidas
privadas. O seu rosto é ainda mais estoico do que de costume. Pela primeira
vez, estou apavorada com a ideia de ter de apresentar o programa amanhã e
pintar com Ameena não me distrai tanto quanto eu esperava.
Em parte, estou aliviada por termos sido capazes de deixar tudo isso para
trás, mas outra parte de mim – uma parte que cresce a cada dia que passa –
não consegue deixar de pensar no beijo. Não consegue tirar a cara estúpida
e bonita dele da cabeça. Aquele rasar de lábios que foi tão breve que às
vezes me convenço de que o imaginei. Nem sequer contei a Ameena.
E não é só o beijo. É aquilo de que falámos, a solidão que partilhamos e a
impressão de podermos estar a virar uma página na nossa relação. Porque,
se esse beijo não aconteceu, então o resto também não. Não somos amigos?,
perguntou Dominic. Não. Suponho que não sejamos.
– Queres ajuda para a entrevista? – pergunto a Ameena, banindo Dominic
para o canto mais escuro do meu cérebro e amarrando-o a uma cadeira.
Não. Esperem. Isso é pior.
Ela abana a cabeça.
– O TJ tem sido fantástico com isso. – E depois, sem desviar o olhar da
sua pintura, diz: – Ontem à noite disse-me que se muda comigo se eu
conseguir o emprego.
– Oh... oh, ena. – Deixo a informação assentar. Ao menos se ele ficasse
aqui, ela teria mais um motivo para vir de visita. Não quero admitir o meu
maior receio: não ser motivo suficiente. – Isso é bom, não é?
– Sim e não – diz ela. – Vai facilitar-me a decisão se me oferecerem o
trabalho, mas continua a não ser uma decisão fácil.
– Eu ia lá ver-te. Podíamos fazer coisas virginianas, como...
– Não sabes nada de nada sobre a Virgínia, pois não?
– É a terra dos amantes?
– Diz que sim. – Ela beberica o seu vinho. – E tu, continuas a fingir que o
teu coapresentador não é giro?
Sinto a cara aquecer. És gira. Foi o que ele disse na segunda-feira à noite.
Depois disse que gostava de me ver com o cabelo solto – que gostava
muito. A propósito, nos últimos dois dias tenho andado de rabo de cavalo.
– Posso reconhecer que é giro. Mas, mesmo que eu gostasse dele, e
mesmo que ele gostasse de mim, que não gosta, não poderia acontecer.
Se ele tivesse quaisquer sentimentos não profissionais por mim, não
ficaria tão desejoso de esquecer o beijo. Tão simples quanto isso.
– Porque não?
Olho em redor e depois falo mais baixo:
– Todo o programa assenta no facto de termos namorado e de a nossa
rutura ter sido suficientemente amistosa para podermos apresentá-lo juntos.
– Então, se calhar voltam a andar.
Mentiras em cima de mentiras.
– Isso não resultaria – digo eu. – Já sabes como sou em relações. Ia ser
um pesadelo se eu acabasse por me apaixonar por ele e ele não sentisse o
mesmo, tendo de continuar a apresentar o programa...
– Está bem, está bem. Tens razão – diz ela, mas num tom que dá a
entender que sabe que não vou dar ouvidos a ninguém acerca disto. E não
está errada, mas eu também não. Andar com Dominic Yun seria uma
catástrofe. Só a hipótese de isso acontecer basta para me virar o estômago
do avesso.
Ameena está a fitar o meu quadro.
– Podes ao menos desviar essa coisa de mim?
*

Decido usar o cabelo solto no dia seguinte. Dia de programa.


Acordo cedo, com o que quero dizer que tive um pesadelo com Dominic
por volta das três da manhã e não consegui voltar a dormir. Tenho tempo de
sobra para tomar banho, deixar o cabelo secar ao ar e alisar a franja.
E não fica nada mal.
Apesar de querer afastar a minha cadeira da dele antes de começarmos a
gravar, sento-me a seu lado como faço todas as quintas-feiras e pouso
cuidadosamente as mãos em cima da mesa à minha frente. Se ele repara na
ausência de rabo de cavalo, não diz nada. Eu não devia ficar desapontada.
Ruthie teve a ideia de Dominic me pôr à prova neste episódio com um
questionário sobre gíria de encontros.
– Migalhar – diz ele, desviando o olhar das notas para me fitar de
sobrancelhas arqueadas. Um desafio. É o máximo de personalidade que me
revelou durante toda a semana e eu tento ignorar o calafrio que me provoca
pela coluna abaixo.
– Essa é óbvia – digo. – É quando se anda com um canibal que vive no
bosque. Numa casa feita de biscoito de gengibre.
Dominic faz sinal a Jason para que toque um sinal sonoro grave.
– Submarino.
– Quando duas pessoas assistem a Yellow Submarine para criar ambiente.
Também se chama «Beatles and chill».
– Almofadar.
– Oh, isso é quando se leva uma almofada sempre que se vai a um
encontro com alguém, para essa pessoa não ter de se sentar em superfícies
duras.
Dominic já está a rir, com uma mão a tapar-lhe a boca. Mas eu estou a
esforçar-me muito por não lhe olhar para as mãos, já que parece que não
consigo fazê-lo sem pensar no que imaginei que faziam ontem à noite. Que
é uma coisa que empurrei bem para o fundo da minha mente, juntamente
com a última entrevista de Ameena. A compartimentação é o máximo.
– Vamos experimentar uma coisa nova – digo, passando para o ponto
seguinte no nosso resumo. Talvez um dia, como Paloma, mal olhe para
aquilo, mas, ao fim de apenas cinco episódios, embora não me importe de
improvisar de vez em quando, continua a ser o melhor tipo de mantinha de
segurança. – Se acha que arranja uma definição melhor de uma das palavras
de gíria que tuitámos antes do programa, ligue-nos para o 1-888-883-KPPR.
Vamos escolher os favoritos no final do programa. Também pode tuitá-los
usando o hashtag Fala Com o Ex.
A primeira chamada é de Mindy, em Pioneer Square.
– OK, então, baratar – diz ela. – É quando alguém tenta criar uma
situação em que dorme no nosso sofá que lhe cedemos generosamente
quando o seu apartamento ficou infestado de baratas.
– Isso parece ser algo que talvez tenha vivido em primeira mão... – digo
eu.
Mindy geme.
– Foi do pior. Eu não queria mandá-lo de volta para o apartamento
nojento dele e sabia que ele talvez sentisse qualquer coisa por mim, mas
pensei: vou só fazer esta coisa simpática, trabalho até tarde, mal vamos ver-
nos. Bem, imaginem a minha surpresa quando cheguei a casa do trabalho e
o encontrei na banheira, rodeado de pétalas de rosa colocadas muito
estrategicamente.
– Baratar, no seu melhor – digo, e estremeço.
– Dominic, descanse-me – diz Mindy. – Não faria uma coisa destas, pois
não?
– Claro que não. Usaria alfazema.
Fico com a boca seca. Atrevo-me a lançar-lhe uma olhadela, mas ele está
a olhar em frente, estoico como de costume. O banho de que lhe falei.
Cheiras bem. Está a meter-se comigo?
– Parem – pede Mindy com uma gargalhada. – Adoro-vos, aos dois. Não
seria capaz de fazer isso com nenhum dos meus ex-namorados. E
Dominic... parece ser bom rapaz. Não sei se está solteiro... – diz ela num
tom sugestivo e eu não gosto nada do que isso me provoca no peito.
– Desculpe, Mindy – atalha ele. – Estou interessado numa pessoa.
Isso atinge-me num sítio estranho. Ele não o referiu na segunda-feira,
altura em que houve claramente uma oportunidade para o fazer. Ou talvez
seja algo novo. Devia ficar contente por ele mas, em vez disso, sinto-me
estranhamente vazia. Talvez tenha sido por isso que quis esquecer o beijo:
porque estava a tentar começar algo com outra pessoa.
A história da alfazema só pode ter sido coincidência. Agora tenho a
certeza.
– Não posso dizer que não tenha a esperança secreta de que consiga fazer
com que as coisas resultem com a Shay – diz Mindy –, mas, aconteça o que
acontecer, fico feliz pelos dois.
– Obrigada por ter ligado, Mindy – atalho, ciente de que pareço um pouco
brusca, mas ela não parece reparar.
Dominic carrega no botão para atender a chamada seguinte.
– Agora temos o John, que nos liga de South Lake Union.
– Sim, olá – diz uma voz seca e masculina. A meio da casa dos trinta ou
quarenta, se tivesse de adivinhar. – Estava a ouvir-vos no carro e tive de
encostar para telefonar.
– Fico contente por saber que o programa está a ter impacto – comenta
Dominic, mas eu arqueio as sobrancelhas, sem ter a certeza de que o
ouvinte tenha dito aquilo num tom positivo.
Uma gargalhada cínica.
– Nem por isso. A minha namorada é fã, mas eu cá não percebo.
– Oh? – exclama Dominic.
– Parece-me bastante conveniente que vocês os dois, assim que acabaram,
tivessem qualificações para apresentar este programa – diz John de South
Lake Union. – E uso a palava «qualificações» de uma forma muito lata.
Mas suponho que hoje em dia qualquer pessoa que resulte em mais cliques
possa estar na rádio.
– Diga o que quiser acerca de mim – replica Dominic, endireitando-se
mais na cadeira, com as sobrancelhas a formar uma linha reta –, mas a Shay
trabalha nesta estação há dez anos. Nunca conheci uma pessoa mais
devotada do que ela à rádio pública, ou que soubesse mais do assunto. Sem
ela, o Puget Sounds nunca teria durado tanto quanto durou. Ela mereceu
este lugar, a cem por cento.
As palavras dele colam-me à cadeira. São demasiado veementes para não
serem genuínas. E ele está a fitar o outro estúdio, o que é capaz de ser boa
ideia. Não sei se o meu coração aguentaria o contacto visual.
Há muito tempo que ninguém dizia uma coisa tão simpática sobre mim.
– Bem, eu investiguei um bocado e acho que os vossos ouvintes
devotados poderiam estar interessados em saber que vocês não só não
aparecem nas redes sociais um do outro, mas que também se tornaram
amigos no Facebook há cerca de um mês. Isso parece-me fascinante.
– Eu sou muito privado nas redes sociais – diz Dominic.
A recuperar dos elogios, acrescento:
– E queríamos manter a relação separada do trabalho.
– E aquele tweet que a Shay publicou em janeiro, acerca de deslizar o
ecrã para a esquerda enquanto estava sentada na sanita?
– Eu... hã – digo, atrapalhada. Porque realmente tuitei isso. Merda.
Achava que tinha passado as minhas redes sociais a pente fino para eliminar
qualquer coisa que indicasse que eu e Dominic não estávamos juntos
naquele inverno, mas deve ter-me escapado alguma coisa. Merda, merda,
merda. Lanço um olhar rápido a Dominic, que continua a não olhar para
mim.
Estávamos preparados para esta possibilidade. Falámos do que faríamos,
se alguma vez acontecesse.
Só nunca pensei que acontecesse em direto.
– Olhe, John – diz Dominic. – Pode agarrar em qualquer coisa no
historial das redes sociais de alguém e usá-lo para provar o que quiser. Já
vimos isso acontecer vezes de sobra a pessoas com muito mais em jogo do
que eu e a Shay. Não estamos aqui para o convencer, se já decidiu o que
acha de nós. O que posso dizer-lhe é que não frequentei jornalismo para
dizer mentiras na rádio.
E, sem mais, carrega no botão para terminar a chamada.
Não consigo decifrar-lhe a expressão. Embora lhe esteja extremamente
agradecida, gostava de ter sabido o que dizer.
– Hoje vamos ter de ficar por aqui – diz ele. Continua a nossa despedida,
indica os nossos nomes nas redes sociais e diz aos ouvintes que voltaremos
na próxima semana.
Depois é Jason Burns com o tempo e uma pausa noticiosa da NPR, e eu
continuo paralisada na cadeira.
Dominic tira os auscultadores.
– Ei – chama-me. – Estás bem?
Aceno com a cabeça, mas tenho as mãos a tremer. Por fim, encontro a
minha voz.
– Acho que sim. Aquilo que disseste acerca de mim. Foi... não tinhas de
fazer isso. Mas obrigada.
– És a minha coapresentadora – responde ele, como se fosse assim tão
simples. Como se essa fosse a única ligação que temos.
Na verdade, estou interessado em alguém.
E talvez seja.
17

– A tratar otários com elegância e dignidade – diz Ruthie, e os três unimos


os copos num brinde.
Desesperados por recuperar do pesadelo que foi o programa de hoje,
decidimos ir beber uns copos depois do trabalho. Não é algo a que eu esteja
habituada a fazer; Paloma e a mulher estavam instaladas havia muito em
rotinas que não incluíam cocktails de três dólares em bares de qualidade
duvidosa. Eu não achava que fosse do género de querer reforçar o espírito
de equipa mas, até agora, estou a gostar muito.
– Aquele tipo – diz Dominic, a dar um gole na cerveja. – Nunca tinha tido
vontade de conseguir entrar num telefone e dar um murro a alguém.
Ele tem o botão de cima da camisa aberto e parece absolutamente
estafado. E, apesar disso, continua giríssimo, sobretudo com o cabelo
despenteado de fim de dia. É injusto, na verdade, que alguém tão atraente
também tenha uma voz de rádio tão boa. O mais frequente, quando fazia
pesquisas no Google para ver as caras das minhas paixonetas da NPR, era
ver que não correspondiam às vozes. O que também é injusto: a forma
como o meu olhar não para de se fixar na sua boca quando ele fala.
Para. Para de pensar nisso.
– Ah, isso é porque não fazes rádio há tempo suficiente – comento. –
Ruthie, lembras-te do...
– Do tipo com a respiração pesada? – acaba ela. – Oh, meu Deus. Sim.
Vou ter pesadelos com isso até morrer.
Deve ter sido algures na última primavera, no Puget Sounds: um tipo que
telefonou para o nosso segmento mais ou menos regular de jardinagem a
dizer que precisava de conselhos e depois começou a fazer perguntas sobre
rutabagas a Paloma e à convidada, intervaladas por respirações longas e
profundas.
– Juro que ouvi o som de um fecho-éclair – digo.
– Eu cá não quero envergonhar os fetiches de ninguém, mas
sinceramente... – comenta Ruthie. – Espero mesmo que estivesse só, tipo, a
fazer as necessidades.
Ainda estamos a rir quando o meu telemóvel vibra com uma mensagem
de Kent.
*

Tu e o Dom podem chegar mais cedo amanhã?


*

Franzo o sobrolho. Dom. O diminutivo de que ele não gosta, mas sobre o
qual não diz nada a Kent. Também não adoro que só me tenha perguntado a
mim, como se eu fosse responsável por Dominic. Como se eu continuasse a
ser só uma produtora e não alguém com as mesmas responsabilidades que
Dominic.
Só uma produtora. Preciso de deixar de dizer isso, caso contrário sou tão
má como qualquer outra pessoa que dê crédito à hierarquia disparatada da
rádio pública, que põe os apresentadores num pedestal acima de todos os
outros. A Ruthie não é só uma produtora. É... bem, é Ruthie.
Mostro-lhes a mensagem.
– O Kent quer falar connosco amanhã.
– Será acerca do ouvinte? – pergunta Dominic.
– Deve ser. – E, como Ruthie não tem qualquer razão para achar que
poderíamos estar em pânico perante a possibilidade de alguém descobrir a
verdade, acrescento: – Deve querer só assegurar-se de que não ficámos
demasiado abalados ou isso.
Os olhos de Dominic encontram os meus por um instante, por cima da
cabeça de Ruthie. É estranho estar do mesmo lado que ele, na mesma
equipa. Ambos queremos que isto corra bem. Ambos queremos não ter
arruinado o programa.
– É melhor ir andando – diz ele. – Hoje janto com os meus pais.
Quero escrutinar-lhe o tom de voz, perceber como é ao certo a sua relação
com os pais. Mas ele di-lo num tom descontraído e o seu rosto também não
revela nada. Despedimo-nos e ele paga a sua parte, após o que o vejo a sair
do bar, com a pasta a tiracolo a bater-lhe na anca.
– Um bocado lixado, isso do Kent te mandar uma mensagem a ti e não ao
Dominic – comenta Ruthie.
– Não é? – pergunto, grata por poder desviar os olhos de Dominic. Depois
de ele desaparecer, volto a poder respirar.
Ruthie percebe. Claro que percebe.
– É quase como se o Dominic tivesse pénis e tu não. Quero dizer...
desculpa. Eu não devia dizer isso.
– Não te enganas. Às vezes o Kent parece ter os seus favoritos e muitos
deles são gajos – digo, encolhendo os ombros, como se o facto de mais
alguém ter reparado o validasse.
– Mas está a correr bem? O programa? Tirando o John de South Lake
Union.
Se ignorar o meu coapresentador, sim.
– Está a correr surpreendentemente bem. Adoro estar no ar. Depois de ter
ultrapassado a coisa da voz, passou a parecer-me natural. Parece estranho
dizer que adoro falar, porque provavelmente isso não é aparente para quem
acabe de me conhecer, mas... – Interrompo-me, a tentar perceber como hei
de pôr isto em palavras. – Gosto de ter o controlo da conversa e de
estabelecer ligações com os ouvintes, de ouvir as suas histórias. Isso tem
qualquer coisa de incrível. Para além disso, o frasco do mestrado deste mês
já tem quase cinquenta dólares e não posso dizer que não adoro limpar a
conta bancária do Dominic. – Faço uma pausa, a perguntar-me se estarei
preparada para lhe contar a próxima parte. – Também tive uma ideia. Para
um programa sobre perda.
Explico-a a Ruthie. Eu e a minha mãe falámos disso ao telefone ontem à
noite e ela aceitou ir ao programa desde que eu estivesse lá ao lado dela. Eu
disse-lhe que não havia lugar onde eu mais quisesse estar que não fosse a
ouvir a sua história.
– Sim – diz Ruthie automaticamente. – Eu gosto. É melhor verificarmos
com o Kent, porque é um bocado diferente do que temos feito, mas já está a
partir-me o coração e a remendá-lo de novo.
– Já te disse que és a minha produtora preferida?
– Não vezes suficientes – replica ela. – Nem acredito que esteja a
produzir o meu próprio programa, para ser sincera. Não achei que fosse
estar a fazer isto, aos vinte e cinco anos. – Ela estica o braço por cima da
pequena mesa e põe a mão por cima da minha. – A sério, Shay. Obrigada. O
Kent podia ter-me mandado embora e sei que tu lutaste por mim.
– Não foi uma luta – digo. – Nunca houve dúvidas em relação a isso. Só
fazia o programa se te tivesse a produzi-lo.
– Para, que vou mesmo chorar! – Bebe mais um gole da sua bebida e faz
sinal ao barman para lhe servir outra.
Entretanto, estou a dar voltas à cabeça, a tentar lembrar-me se alguma vez
tínhamos passado algum tempo só as duas.
Nunca o fizemos.
– Como é que vieste parar à rádio? – pergunto, subitamente curiosa.
– Oh, está na altura de contar histórias? – Ruthie cruza uma perna por
cima da outra, a fingir afetação. – Está bem. Estudei marketing e trabalhei
na parte comercial da KZYO durante uns meses. Depois houve um verão
em que todos os produtores foram de férias ao mesmo tempo, por isso toda
a gente fazia falta e eu meti mãos à obra e ajudei-os. E fiz um bom trabalho.
E o mais importante foi que adorei. Gostava de puxar cordelinhos e compor
o programa, sabes? Por isso, quando abriu uma vaga, consegui trocar. Havia
sempre montes de vagas a abrir... é a vantagem da rádio comercial.
– Não fazia ideia – digo.
– E tive mesmo sorte com este trabalho. O Kent gostou que eu tivesse
experiência na rádio comercial e eu estava mortinha por trabalhar nalgum
sítio onde não fosse torturada sem cessar por musiquinhas publicitárias a
oficinas de reparações e fábricas de picles. – Estremece. – Nunca comeria
um picle Nalley.
– Esse refrão é o pior. Crocantes, estaladiços e deliciosos...
– Picles Nalley! – gritamos as duas, antes de desatarmos a rir.
– Mas, tirando isso – diz ela quando recuperamos –, a estação comercial
dava muito tempo de antena a coisas mais ou menos sensacionalistas. Que
alguém tivesse um acidente de viação era uma grande notícia e isso era
sempre muito perturbador. A rádio pública é muito melhor em investigações
de fundo e a falar das questões de uma forma mais equilibrada.
«Eu sei que montes de pessoas vão para a rádio pública a pensar que vão
trabalhar algum tempo como produtores até serem repórteres ou locutores,
mas eu adoro ser produtora. Sou feliz aqui. Posso fazer rádio fixe todos os
dias e faço o que adoro, com gente que adoro. Talvez um dia queira fazer
outra coisa, mas, por agora, sinto que é isto que devo ser.»
– Isso é mesmo à maneira – digo-lhe. – Quando comecei a trabalhar como
produtora-júnior da Paloma, o meu produtor-sénior disse-me que tínhamos
de fazer tudo o que a Paloma quisesse, assegurar-nos de que ela tinha a sua
kombucha e as suas sementes de chia, de que o estúdio não estava
demasiado quente ou demasiado frio, e fiquei tipo... a sério? Somos
colegas. Não escravos. Eu sei que a Paloma me respeitava, mas foi nisso
que me tornei.
– Nunca me fizeste sentir assim. Para o caso de estares preocupada.
– Ainda bem. Se alguma vez te disser que preciso da kombucha
exatamente a seis graus, por favor manda-me calar.
Ruthie inclina o copo para mim.
– Fica registado.
Continuamos a falar do trabalho até a conversa se tornar mais pessoal.
Ruthie conta-me que saiu algumas vezes com um tipo chamado Marco e
que é capaz de estar preparada para tornar a relação oficial. Eu falo-lhe da
minha mãe e do casamento iminente.
Durante todo esse tempo, a verdade vai dando voltas dentro da minha
cabeça.
Ela merece saber.
E, no entanto, o meu desejo de autopreservação sai a ganhar.
– Porque é que não fazemos isto mais vezes? – pergunta ela quando nos
damos conta de que estamos aqui sentadas há duas horas sem olharmos para
os telemóveis.
– Devíamos fazer – respondo, enquanto tento ignorar a culpa amarga que
me sobe pela garganta. – Vamos fazer.
Fala Com o Ex, Episódio 5: Treinador de Fantasmas
Transcrição

SHAY GOLDSTEIN: O episódio desta semana é patrocinado pela


Archetype. Se é parecido comigo, terá dificuldades em encontrar sapatos
que lhe assentem mesmo bem. Um tamanho é demasiado grande, mas meio
tamanho abaixo já é demasiado pequeno, e sapatos desconfortáveis podem
fazer com que o dia de trabalho pareça mesmo demasiado comprido.
DOMINIC YUN: É aí que entra a Archetype. Tudo o que tem de fazer é
medir o pé, usando o sistema patenteado de moldes da marca, e enviá-lo
para que criem um apoio de arco em espuma com memória perfeitamente à
medida do seu pé, para que possa usá-lo em todos os sapatos.
SHAY GOLDSTEIN: Já meti o meu nalguns 37 e nem acreditava na
diferença.
DOMINIC YUN: Eu fiz o mesmo com os meus 46.
SHAY GOLDSTEIN: E sabes o que se diz dos homem com pés grandes...
DOMINIC YUN: Que deviam experimentar a Archetype!
SHAY GOLDSTEIN: E, neste momento, a Archetype tem uma oferta
especial para os nosso ouvintes! Para obter um desconto de quinze por
cento ao finalizar a compra, vá a archetypesupport.us e insira o código
FALA COM O EX. F-A-L-A-C-O-M-O-E-X para obter um desconto de
quinze por cento.
18

Na manhã seguinte, estou a entrar no elevador para a nossa reunião matinal


com Kent quando Dominic me pede que mantenha a porta aberta. Ele vem a
correr do parque de estacionamento, com o seu termo da Pacific Public
Radio, umas calças caquis e uma camisa azul-celeste.
Preciso de toda a minha força de vontade para não carregar no botão de
fecho de portas.
– Obrigado – diz-me depois de o elevador nos aprisionar lá dentro.
Lá consigo esboçar um sorriso débil e afastar-me dele da forma mais
discreta de que sou capaz. Distância e profissionalismo. É a única forma de
eliminar esta atração inconveniente que desenvolvi por ele. Traz o cabelo
húmido do duche e tem um cheiro fresco e limpo, com um laivo a
especiarias. Talvez do aftershave?
– Tu e a Ruthie divertiram-se, ontem à noite? – pergunta-me, entre um
gole de café e outro.
– Hum-hum – respondo, de olhos postos no chão. Não preciso de ver o
movimento da sua maçã de adão quando engole.
– Até que horas ficaram?
– Oito e tal.
Ele mira-me de sobrancelhas arqueadas. Sempre que desvio o olhar, ele
volta a procurá-lo.
– Estás a evitar-me?
– Não.
– Passa-se qualquer coisa – diz ele, a atravessar a linha invisível que
marquei no meio do elevador. Instintivamente, encosto-me mais à parede
acolchoada. Por sorte, ele para a cerca de meio metro de mim, e inclina-se
para me observar o rosto com os seus olhos profundos e escuros. Na minha
imaginação traiçoeira, encosta-me à parede e carrega no botão de paragem
de emergência do elevador. Baixa-se mais para juntar a boca ao meu
pescoço. – O que é?
– Nada.
– Se é por causa de segunda-feira... – interrompe-se, a corar ao mesmo
tempo que cria mais espaço entre nós.
É a primeira vez que o vejo corar, o que me dá vontade de tapar a minha
própria cara.
– Não, não, não. – Aperto a mala com mais força. – Não é. Estávamos
bêbedos. Estávamos só...
– Mesmo bêbedos – acaba ele, a assentir vigorosamente com a cabeça. –
Eu normalmente não... quero dizer, aquilo não foi...
– Não tens de explicar – atalho, embora tudo o que queira seja uma
explicação detalhada, de preferência com uma apresentação em Power
Point a acompanhar.
Estendo a mão para lhe rasar o pulso com a ponta de um dedo – um gesto
tranquilizador – e, assim que estabeleço contacto, apercebo-me de que foi
uma decisão terrivelmente pouco sensata. Estou descontrolada e tenho de
ser parada. Já devia saber, mas o tipo é um íman, caramba. Aquele roçar de
pele contra pele basta para me aquecer as faces e mais uns quantos sítios.
Traça, apresento-te a chama. Faz um manguito à chama.
– Bom. – Ele expira visivelmente, com os ombros a baixar pelo menos
uns dois centímetros. Agora pode ir atrás da tal pessoa que mencionou no
programa, sem se sentir culpado. – Então, se não é isso...
– Dominic. Estou bem. Estou espetacular – digo-lhe. – Não há nada para
investigar.
– Nunca te tinha ouvido usar a palavra «espetacular».
– É melhor levares-me ao hospital. Parece grave.
O canto da sua boca agita-se.
– Vou descobrir o que é – promete ele.
Um plim indica que chegámos ao quinto piso. Tenho de falar com a
manutenção do prédio acerca de como o elevador tem andado lento. É
capaz de ter algum problema.
*
– Sinto sempre que estou no gabinete do diretor da escola – sussurra
Dominic enquanto esperamos que Kent faça o seu chá. É um processo
complicado com uns cinco passos, que ele me explicou certa vez e eu logo
esqueci.
Concentro-me de novo na reunião propriamente dita. O que está em causa
é bem pior do que o equivalente à detenção.
Kent entra com a sua caneca, com o sorriso habitual, embora um pouco
tenso.
– Bem. Tenho a certeza de que vocês sabem porque é que estão aqui.
– Tentámos tirá-lo do ar assim que pudemos – diz Dominic, e é estranho
que diga nós, quando eu fiquei praticamente calada. – Estávamos quase a
terminar e eu sabia de que outra maneira poderia ocupar aquele tempo, por
isso... – Encolhe os ombros, envergonhado. – Não podemos cortá-lo do
podcast?
– Não deixa de existir – diz Kent. – Se o cortarmos, vai parecer que
estamos a esconder alguma coisa. Temos de levar isto a sério, de controlar
os danos a sério. As pessoas ouviram, por isso agora vão submeter-vos a um
escrutínio ainda maior.
Dominic passa a mão pela cara.
– Bem... foda-se – diz ele, e eu poderia rir-me por ele proferir aquela
palavra em frente ao nosso chefe numa reunião tão séria, se não estivesse
tão preocupada com o que vai acontecer.
– Foda-se mesmo. – Kent sopra para cima da caneca de chá. – Se mais
gente se agarra a isso, se começam a pôr a premissa do programa em causa,
estamos bem, bem fodidos. – Suspira e depois: – Tenho ouvido uns
zunzuns. Ainda nada é garantido, mas é possível que venham aí umas
coisas em grande.
Chego-me para a beira da cadeira.
– Em grande?
– Sim, estou a falar do PodCon – diz Kent, e tenho de me esforçar por
manter uma cara séria. – E tem havido interesse de patrocinadores muito
aliciantes. Mais uma vez, ainda não há certezas, mas têm noção de como
isto pode ser brutal para a estação?
Estou morta por saber mais acerca do PodCon e daqueles potenciais
patrocinadores, mas a integridade do programa – ou a falta dela – é a
questão mais premente.
– Podíamos... encenar umas fotografias da relação? – Faço um esgar
mesmo enquanto o sugiro. Mais mentiras. Isso faz-me lembrar que tudo o
que sinto de positivo em relação ao programa se faz acompanhar por uma
voz desapontada que por vezes parece a de Ameena, outras vezes a do meu
pai.
É com um ligeiro alívio que vejo Kent abanar a cabeça.
– Não é uma questão de criar provas – diz ele. – É a forma como vocês os
dois falam um com o outro. É como se seguissem um guião à letra.
Demasiado ensaiado. Às vezes também me apercebo disso. E sei que em
parte é culpa minha. Fui eu que o encorajei e nenhum de vocês tinha
experiência em direto. Mas estivemos a analisar algum feedback dos
ouvintes e verificámos que alguns também acham que o programa parecia
um pouco coreografado em demasia, o que faz com que me preocupe que
pareça que não se conhecem suficientemente bem. O que, convenhamos, é
verdade. Não vos demos tempo para se conhecerem, nem para criarem tanto
a relação como o que vos levou a acabar.
Eu e Dominic ficamos calados durante alguns segundos. Kent está a
censurar-nos, mas não nos culpa?
– Não percebo o que estás a pedir de nós, então – diz Dominic, provando
de novo que tem mais coragem do que eu no que diz respeito ao nosso
chefe. Não faz o mínimo esforço para disfarçar a frustração, enquanto eu
estou sempre ávida por agradar a Kent de qualquer maneira possível. Será
por ele ser o favorito desde o início? Nesse caso, porque é que Kent me
enviou a mensagem acerca da reunião e não aos dois?
– O que vamos fazer é o seguinte – diz ele. Aponta para nós apesar de não
haver mais ninguém no gabinete. – Vocês vão passar a noite juntos.
Quase salto da cadeira.
– Como?
– O fim de semana, na verdade. Libertem as agendas. Isto é urgente.
Arrendámos-vos um Airbnb na ilha Orcas, tudo a expensas da estação. Vão
passar o fim de semana juntos e vão resolver esta merda. Vão fazer-me
acreditar que passaram três meses maravilhosos como um casal. Quero que
saibam como é que o outro lava os dentes. Se quando substitui o rolo de
papel higiénico deixa a folha solta por cima ou por baixo. Se ressona. Como
é assim que acorda de manhã. Quero que saibam absolutamente tudo um
sobre o outro, que é para não acabarmos metidos noutra embrulhada destas.
As palavras dele deixam-me sem fala. Não fico só de queixo caído no
chão... acho que bate no parque de estacionamento da garagem. Kent
retoma o seu chá, sério como tudo. Sempre foi um chefe do género de não
fazer prisioneiros, mas com uma dose considerável de empatia. Isto... isto é
completamente diferente.
Eu até tenho medo de olhar para Dominic, quanto mais de passar um fim
de semana inteiro com ele.
– Presumo que todas as despesas estejam incluídas? – pergunta ele.
– Dentro de limites razoáveis – diz Kent. – Ambos vão ter os vossos
cartões da empresa.
– Bom. É que eu por norma fico com muita fome ao fim de semana. E
sede. – Fita Kent. Parecem dois leões prestes a lutar por uma gazela,
embora eu não saiba ao certo o que será a gazela neste cenário.
– Como disse, a estação pagará os custos, dentro de limites razoáveis. –
Kent levanta-se. – A Emma dá-vos toda a informação. Tenho uma reunião
com a direção. Suponho que por agora esteja tudo?
– Na verdade – digo, porque uma parte de mim acha que, se ceder, se
facilitar esta trapalhada do fim de semana, talvez ele me dê algo em troca. –
Olha, Kent, já que estamos aqui... – Sinto o peso do seu olhar e de Dominic
também e tento avançar por entre a ansiedade. – Queria falar-te de uma
ideia que tive para um Fala Com o Ex sobre, hã, luto e perda. A Ruthie
queria que confirmasse contigo, porque é um tema um bocado mais pesado
para o programa...
– Não é mesmo a altura indicada, Shay.
Um pontapé bem aplicado no meu peito. É a primeira vez que Kent me
desconsidera por completo. Sempre tinha partido do princípio de que
gostava de mim, ou, no mínimo, me respeitava.
Isso leva-me a pensar em como teria reagido se tivesse sido Dominic a
sugeri-lo.
– Eu... OK – respondo. Quem me dera que Dominic não me tivesse
ouvido a ser calada. – Então acho que vamos trabalhar.
Kent sorri.
– Bom plano. E desfrutem do fim de semana, a sério. O melhor é irem
logo à tarde, para evitarem o trânsito.
As minhas pernas ficam bambas assim que saímos do gabinete.
– Eu ia fazer uma prova de bolos com a minha mãe neste fim de semana –
digo, encostando-me à parede. – E... vou ter de levar o Steve, mas ele nunca
fez uma viagem de carro tão longa comigo, e não estou pronta para o deixar
já com outra pessoa. Eu... – Inspiro fundo. Sinto os pulmões tensos. Entrei
em modo de pânico. Merda, merda, não quero que ele me veja assim.
– Shay. – Ele põe-se à minha frente e apoia umas mãos fortes nos meus
ombros. Não me agrada o que o meu nome na sua boca me provoca, e ainda
menos que as palmas das suas mãos se instalem tão naturalmente no tecido
do meu casaco. – Isto é uma merda, eu sei. Estou tão lixado quanto tu. Mas
é só um fim de semana. Somos capazes. Fazemos isto e depois se calhar
podemos sair mais cedo nalguns dias da próxima semana e assim podes
estar com a tua mãe. É pelo programa, certo? Nenhum de nós quer ver este
programa ir pelo cano.
Não devíamos tocar-nos assim e não devíamos andar juntos no elevador,
fazer grandes viagens de carro ou passar um fim de semana inteiro juntos
numa ilha. Distância. Profissionalismo. Era para ser essa a minha estratégia.
– Para além disso – diz ele com um meio sorriso –, quero conhecer o teu
cão. E também quantas grades de cerveja é que achas que cabem «dentro de
limites razoáveis»?
Reviro os olhos, mas a sua tranquilização faz-me sentir um pouco melhor.
Só que não vai ser fácil evitá-lo se vamos passar o fim de semana inteiro
metidos na mesma casa.
Rezo aos meus deuses da rádio, os que mantêm a calma e a ponderação
mesmo nas entrevistas mais hostis. Se Terry Gross sobreviveu à sua
entrevista de terror com Gene Simmons, eu também consigo fazer isto.
Terry Gross, Rachel Martin, Audie Cornish – deem-me força.
19

Três horas no trânsito da hora de ponta de sexta-feira. Uma hora e meia


num ferry. Onze minutos à espera de que Dominic escolha os snacks certos
no minimercado da ilha. Mais meia hora no carro. Vinte minutos a discutir
por causa das indicações do Google Maps, que nos dizem para atravessar
um lençol de água que nos faria chegar a território canadiano.
É esse o tempo que eu e Dominic demoramos a chegar à casa do Airbnb
que a estação nos arrendou no extremo norte da ilha Orcas, um pedaço de
terra em forma de ferradura no canto noroeste do estado.
Também é então que começa a chover.
– Como não adorar a costa noroeste do Pacífico? – resmunga Dominic
enquanto fechamos as portas do carro e corremos para a casa com as
bagagens.
O Steve puxa pela trela, em busca da árvore perfeita para fazer chichi.
– Este é o Steve Rogers – disse eu a Dominic quando fui buscá-lo.
– O Vingador mais peludo? – perguntou ele.
Esse foi o único momento de leveza durante toda a viagem. Pouco depois,
fiquei a saber que o gosto musical de Dominic é pavoroso. Apesar de ser eu
a conduzir, ele não parou de insistir que ouvíssemos a sua estação de rádio
preferida de quando era adolescente, que costumava passar música
alternativa mas agora passa algo designado como «música contemporânea
para adultos». Eu sou adulta e música contemporânea para adultos é um
nojo. Por fim, concordámos pôr a minha playlist do Spotify a tocar
aleatoriamente.
Dentro de casa, Dominic larga as nossas malas na entrada antes de se
esparramar no sofá da sala de estar.
– Suponho que seja agora que criamos uma ligação – digo.
– Claro – responde ele, num tom duro. – Porque o Kent acha que
podemos conjurar uma relação do nada.
Aquilo magoa-me um bocadinho. Como se não tivéssemos nenhum tipo
de relação, quando, nos últimos meses, até ganhámos pelo menos alguma
proximidade.
Se bem que, para ser justa, aquele beijo provavelmente tenha dado cabo
disso.
A casa é engraçada e pitoresca, com móveis de mogno, pormenores azuis
e uma lareira a sério. Plantas penduradas, extensas paisagens pintadas por
artistas da ilha Orcas. Exatamente o tipo de sítio onde duas pessoas
poderiam desfrutar de passar tempo juntas, se gostassem de passar tempo
uma com a outra.
– Então, tomo notas de todas as coisas esquisitas que tu fazes? –
pergunto, enquanto avanço para o cadeirão à frente dele. – Tiro-te
fotografias enquanto dormes para depois fazer chantagem?
– Eu tenho um ar adorável a dormir, para que saibas.
Reviro os olhos.
– Agora sei que és uma pessoa que se descalça assim que entra em casa.
Ele olha para os seus pés de meias.
– Hábito. Os meus pais tinham uns tapetes brancos prístinos e perdiam a
cabeça se lhes puséssemos nem que fosse um bocadinho de terra.
Passa pouco das oito e, embora não seja tão tarde que eu esteja pronta
para ir para a cama, depois de um dia inteiro no carro não tenho qualquer
vontade de sair. Está a chover ainda mais, martelando sobre a casa como se
tivesse contas a ajustar. Ouvimos trovões não muito longe e o Steve corre de
um lado para o outro, a ladrar como um louco.
– Steve – chamo-o, e vou atrás dele, para tentar acalmá-lo, mas ele está
possesso: salta para o sofá e logo a seguir para o chão, foge tão depressa
que começa a ofegar. Até ignora a mancheia de guloseimas que lhe ofereço.
Nunca o vi assim e detesto saber que está tão assustado. Que não consigo
resolver isso. – Steve, está tudo bem. Tu estás bem.
Dominic vai à sua mala de viagem, que abre e de onde tira uma camisola
interior branca. Ao início, julgo que vai mudar de roupa, mas depois ele
ajoelha-se no chão e estende a mão para o Steve, que continua a ladrar
loucamente. Depois fareja o ar, hesitante, e, como se o mero odor de
Dominic o atraísse, vai ter com ele.
– Lindo menino – diz Dominic, a fazer-lhe uma festa na cabeça. Eu vejo
que ainda está a tremer. – Posso experimentar uma coisa?
– Força.
Com delicadeza, enfia o Steve na camisola e depois enrola-a à volta do
corpo dele uma vez, duas.
– Está tudo bem, pequenino – diz-lhe. – Tens alguma coisa para segurar
isto?
Arqueio as sobrancelhas, completamente perdida. Mas tiro uns quantos
elásticos da mala, a tentar esquecer a forma como Dominic fez um deles
estalar contra a minha pele. A tentar ignorar a forma como a pele me arde
quando ele mos tira.
Usa os elásticos de cabelo para manter a camisola no lugar, sem apertar
demasiado e... funciona? Solta o Steve, que parece preocupado, mas já não
tresloucado, e que se senta, a olhar para nós e a abanar a cauda.
– A minha irmã tinha um cão pequeno que se assustava com fogos de
artifício e tinha um colete especial que o acalmava – explica-me Dominic,
enquanto coça o Steve atrás das orelhas. – Este é um colete improvisado. A
pressão alivia a ansiedade.
Vê-lo com o Steve aperta-me o coração de uma forma que nunca antes
tinha sentido. Apanha-me desprevenida e deixa-me as pernas em papa.
– Obrigada – agradeço-lhe, ainda estonteada. Cambaleio até à cozinha.
Estamos mais ou menos no meio de nenhures, pelo que trouxemos
mantimentos não perecíveis suficientes para fazer o jantar. Abro um
armário, em busca de tachos e panelas. – Bem, estou a ficar com fome.
Fazemos uma massa ou qualquer coisa assim?
– Sim, pode ser. Mas não a cozas demasiado. Gosto da massa al dente.
Como deve ser.
Estaco com uma mão numa panela. É um alívio que ele esteja de novo a
mostrar-se obstinado. Assim é muito mais fácil não gostar dele.
– Eu não vou fazer-te o jantar. Se queres comer, podes vir ajudar.
Ouço um resmungo na sala de estar e ele depois aparece na cozinha e
encosta-se à ombreira. Precisava de trazer esta postura para aqui também?
– A massa está no saco azul – digo-lhe.
*
Nunca tinha considerado que cozinhar massa fosse uma experiência
particularmente volátil, mas, com Dominic, é nisso que se transforma. A
primeira panela de massa fica demasiado cozida e Dominic recusa-se a
comê-la, dizendo que está demasiado viscosa, pelo que a mandamos para o
caixote de compostagem e começamos de novo. Parece uma criança a
recusar comida. Depois esquece-se de referir que é alérgico a cogumelos e
só por sorte havia outro frasco de molho na despensa. Sinto que estou de
volta à faculdade, ou no primeiro apartamento que dividi com Ameena,
quando fazíamos o alarme de incêndio disparar sempre que tentávamos
cozinhar qualquer coisa que não fosse macarrão.
São nove e meia quando levamos os pratos para o sofá, juntamente com
duas garrafas de sidra de pera. A chuva fustiga as janelas, mas o Steve
parece satisfeito com a camisola interior de Dominic e a roer o seu
brinquedo em forma de hipopótamo. Dominic liga a televisão, encontra
estática branca e preta e solta um suspiro muito sofrido.
– Estás a ver se acabo contigo outra vez? – pergunto, enquanto enrolo
massa no garfo. Pelo menos desta vez deixou-me algum espaço no sofá.
– Desculpa. Acho que estou um bocado enervado – reconhece ele.
Tento uma abordagem mais suave, porque realmente está, e eu já não sei
se é por ter sido obrigado a fazer esta viagem comigo.
– Estás... bem?
Ele pousa o prato na mesa de centro e bebe um gole de sidra. Pega no
prato e volta a pousá-lo, como se se debatesse entre a ideia de me contar a
verdade ou proteger-se com mais um escudo. No chão, o Steve espera por
um fio de massa que sabe que provavelmente acabarei por lhe dar.
– A minha ex-namorada começou a andar com outra pessoa – diz
Dominic por fim. – Está escarrapachado em todas as redes sociais, os dois
juntos, e tem-me custado ver isso. E passei o dia a ser um cretino, não foi?
– Um bocadinho mais do que o habitual, sim – respondo, ao que ele me
atinge o braço com a almofada do sofá. Agarro-me ao braço, fingindo-me
lesionada. – Exceção feita a teres deixado o Steve menos neurótico. Mas
lamento. É uma merda e quero dizer-te que vai ficando mais fácil, mas a
verdade é que custa sempre. Só que de uma maneira ligeiramente diferente.
– O problema é esse. – E ele volta a esperar, com o garfo a girar no
esparguete, como que a atormentar o Steve. – Ela foi a minha primeira
namorada. A minha... única namorada.
– A tua única namorada séria? – pergunto, partindo do princípio de que
ele não esteja a contar com namoricos da secundária ou encontros casuais.
Ele abana a cabeça.
– Não. A única namorada que alguma vez tive, ponto. Nunca andei com
ninguém na escola secundária. Conhecemo-nos na receção aos caloiros.
Namorámos durante toda a faculdade e depois acabámos mesmo antes de eu
voltar para aqui.
Oh.
Mas que revelação interessante.
E ele nem sequer está a ser presunçoso e a fazer questão de precisar que
se conheceram durante a licenciatura, não no mestrado, pelo que sei que o
assunto é sério.
A casa range e o Steve choraminga.
– Steve, não – digo, e ele deita-se, a abanar a cauda. – Dominic. Lamento
imenso. Não fazia ideia.
– Devia ter-te contado quando estávamos a definir a nossa relação, mas
ainda era um ponto um bocado sensível. – Ele deixa escapar um suspiro e
eu fico com a impressão de que esta história tem mais que se lhe diga.
Pousa as mãos nos joelhos e inspeciona os nós dos dedos, como se tentasse
distrair-se da realidade de estar a deixar-me entrar na sua vida privada e
pessoal. – Não continuo apaixonado por ela. Já se passaram oito meses.
Mas estivemos tanto tempo juntos, e passámos por tanta coisa, que tem sido
uma adaptação estranha.
– E foi a distância? Que vos levou a acabar, quero dizer? – pergunto, a
pensar na razão que me indicou na noite da nossa falsa rutura.
– Não exatamente. – Baixa-se para coçar o Steve atrás das orelhas. Este
parece ter-se afeiçoado a ele de imediato, para grande desagrado meu. –
Éramos inseparáveis e, quando duas pessoas passam cinco anos juntas, toda
a gente parte do princípio de que vão casar. Éramos Aquele Casal, com que
toda a gente gozava porque estávamos sempre juntos e envolvidos um no
outro, e nós fingíamos que detestávamos, mas adorávamos. Adorávamos ser
aquele casal.
Sinto um aperto no peito. Lembro-me de que sempre quis fazer parte de
um casal assim. As fotografias que vi no Facebook – eles pareciam mesmo
ser esse tipo de casal.
– Então – continua, enquanto o Steve salta para o sofá para lhe lamber
parmesão dos dedos –, quando me candidatei a mestrados no último ano, o
objetivo era ficar na Northwestern. A Mia era de Chicago. Estava a estudar
medicina e ia tirar um ano antes de começar o internato, para ganhar
experiência. Por isso, até que funcionou na perfeição quando consegui
entrar para o mestrado da Northwestern, porque ficámos os dois por ali. Só
que... – Inspira fundo. – Uns meses depois de eu ter começado o mestrado,
a Mia foi esquiar com umas amigas da secundária e... teve um acidente.
– Oh, meu Deus.
Ele apressa-se a levantar uma mão.
– Sobreviveu. Agora está bem – diz ele, e eu sinto-me descontrair. – Foi
mau, mas ela teve uma sorte do caraças. Nesse ano inteiro, sempre que não
estava nas aulas ou a estudar, eu estava com ela. A ajudá-la a comer, a levá-
la à fisioterapia, a garantir que tomava os medicamentos. Praticamente
passei a viver em casa dos pais dela. Mas, cerca de um mês depois de eu ter
acabado o curso, quando estava a ir a entrevistas para empregos um bocado
por todo o país, ela disse que já há algum tempo que sentia que queria
acabar. Que não achava que continuasse apaixonada por mim.
«Não que eu achasse que ela tinha de ficar comigo depois disso. Só que
fui completamente apanhado de surpresa. Eu achava mesmo que ia casar
com ela. E, durante todo esse tempo, ela estava a tentar perceber como
havia de acabar comigo.
– Ias pedi-la em casamento?
– Não, não, mas já tinha pensado nisso – diz ele, mais para o cocuruto do
Steve do que para mim. – Acho que não a conhecia tão bem como pensava.
– Lamento mesmo. Não pode ter sido fácil, ires a entrevistas enquanto
isso acontecia. E depois voltares para cá.
Quero esticar a mão e tocar-lhe, como ele fez com tanto à-vontade depois
da nossa reunião com Kent, mas não sei bem como fazê-lo com
naturalidade, pelo que mantenho as mãos no colo.
– Como deves adivinhar, ela chamava-me Dom, e isso é como se fosse
dela. Custa-me deixar que outra pessoa me trate assim – diz ele, e eu
percebo. – Por isso, já percebes porque é que não fui particularmente franco
acerca disto antes. Sobretudo com alguém que, sem ofensa, parecia não
gostar mesmo nada de mim.
Levo uma mão ao peito.
– Não é que não goste de ti. Acho-te irritante. É diferente.
Ele sorri, mas o sorriso desaparece logo. Tenho vontade de me aproximar
e de lho deixar sempre na cara. A sua tristeza tem-no acompanhado desde
que começou a trabalhar na Pacific Public Radio – agora percebo.
– Às vezes é difícil estar aqui e ver a Mia e aquelas fotografias só piorou
as coisas. Perdi o contacto com todos os meus amigos da escola secundária.
Tentei combinar um jantar com um deles, mas a meio ele teve de atender
uma chamada do trabalho e nunca mais voltámos a marcar. E depois tentei
encontrar-me com uma antiga colega mas o namorado ficou ciumento e
achou que eu estava a fazer-me a ela. É ainda mais estranho porque não é
uma cidade completamente nova para mim. Seria de pensar que seria mais
fácil. Mas não tenho realmente amigos aqui e todos os meus irmãos andam
ocupados com as suas próprias famílias. Tenho tentado no trabalho, mas
quase toda a gente tem um companheiro ou filhos, e eu às vezes sinto-me...
sozinho.
Isso faz-me pensar na segunda-feira à noite. Não no beijo, mas na sua
confissão embriagada. Viro-me, para ficar de frente para ele, e depois raso-
lhe o joelho de ganga com as pontas dos dedos. De repente, tocar-lhe torna-
se mais fácil, ou então fui eu que fiquei mais corajosa.
– Então. Não estás sozinho. Tens a tua falsa ex-namorada barra atual
coapresentadora barra cozinheira inepta de massa. – Mordo o interior da
bochecha, a pensar quão pessoal quero que isto se torne. Ele pôs as cartas
todas na mesa... bem posso fazer o mesmo. – Eu nunca saí de Seattle, por
isso ainda é mais patético que sinta o mesmo. Nos últimos dez anos, só
tenho tido a minha mãe e a Ameena, a minha melhor amiga, e uns quantos
namorados que nunca se tornaram sérios. Por isso, se calhar podemos estar
sozinhos juntos.
Desta vez o seu sorriso dura um pouco mais.
– Obrigado. Até sabe bem contar a alguém, depois de todo este tempo.
Acho que tenho de me habituar, se alguma vez quiser voltar a sair com
alguém.
– Oh, por favor, tens vinte e quatro anos. Ainda não és propriamente uma
velhota com gatos. – Franzo o nariz. – É ridículo não haver um equivalente
de velhota com gatos para homens. Porra da misoginia.
– Homem dos gatos?
– Parece um super-herói muito delicado.
Ele faz uma voz dramática de locutor:
– Ele voa! Ele apanha os maus! Ele salva gatos de árvores mesmo muito
altas! – E depois de uma pausa: – Então. O que é que te impede, então?
Porque é que estás a fazer um programa sobre a nossa relação falsa em vez
de andares a ter uma a sério?
– Não é exatamente uma coisa fácil de admitir, mas... tenho tendência
para me apegar. Extremamente depressa. – Estendo uma mão, esperando
que o Steve me deixe acariciá-lo enquanto conto esta história, mas parece
que Dominic o faz melhor que eu. – Fui a primeira a dizer «amo-te» a todos
os meus ex-namorados e foi sempre cedo de mais. Isso assustou-os e fê-los
porem-se a andar.
– E estavas a ser sincera, de todas as vezes?
Isso faz-me hesitar.
– Sim? Acho que nunca me pus realmente a pensar nisso.
Não lhe revelo o meu maior receio: o de não ter estado profundamente
apaixonada por nenhum deles. O de querer tanto ter algo para além da
pequena família constituída por mim e pela minha mãe que estava disposta
a precipitar-me para o que quer que fosse... mesmo que não fosse o
momento ou a pessoa certos. Ansiava tanto por essa palavrinha que talvez a
tenha obrigado a sair-me, na esperança de a ouvir de volta.
– É por isso que já há algum tempo que não saio com ninguém. Torna-se
esgotante, dar tanto quando a outra pessoa não dá praticamente nada.
– Nada disso parece uma coisa má – diz ele. – Difícil, sim, mas não me
parece um defeito de personalidade fatal.
– Talvez não com a pessoa certa.
– Então suponho que ainda não a tenhas encontrado.
Ficamos calados durante uns minutos, num silêncio que não é
completamente desconfortável. Por isso, claro, decido tornar as coisas
embaraçosas.
– Há outra coisa que quero perguntar-te, mas não quero parecer
demasiado direta.
– Duvido de que possa ser mais direto do que aquilo de que já falámos,
por isso, por favor, dispara. – E aponta com a garrafa de sidra.
– Só andaste com a Mia. – Mordo o lábio inferior com força, a perguntar-
me se vou arrepender-me disto. – Ela é... a única pessoa com quem foste
para a cama?
Ele acena com a cabeça, enquanto um rubor se lhe insinua nas faces. De
repente, parece mesmo ter apenas vinte e quatro anos.
– E tu? – pergunta-me, depois de beber um gole. – Qual é o teu...
número? É assim que se diz, não é? O teu número?
– Não sei quem é que diz isso, mas sim, entendo. – Faço uma contagem
mental. – Sete.
– Ah – diz ele, com as sobrancelhas retas, sendo impossível decifrar-lhe a
expressão.
– Então e toda a bravata – digo. – As coisas que disseste na estação, sobre
a tua «energia sexual pura». – Não, claro que as palavras exatas não me
ficaram gravadas no cérebro nem nada.
Ele não faz caso disso.
– É fácil mentir acerca disso, quando o mundo espera que os homens
tenham uma certa atitude em relação ao sexo.
– O mundo é nojento. Eu não te teria julgado. Pelo teu gosto musical,
sim, mas pelo teu número... de certeza que não.
– Agradeço.
Abano a cabeça, ainda a tentar assimilar tudo aquilo.
– Durante algum tempo achei mesmo que eras um engatatão.
– Ir para a cama com alguém parece-me uma coisa muito importante – diz
ele, recostando-se no sofá, como se estivesse mais à vontade com o tema do
que há quinze minutos. – Acho que não seria capaz de o fazer
descomprometidamente. Talvez seja por só ter estado com uma pessoa, mas
não sei se alguma vez conseguiria ter sexo com alguém sem que fosse uma
coisa pessoal e íntima.
A temperatura na sala sobe um pouco. Os seus olhos não se desviam dos
meus e as palavras pesam entre nós. Pessoal. Baque. Íntima. Baque. Na
minha cabeça, pessoal e íntima traduz-se em beijos lânguidos e o tipo de
prazer que é esticado até ao limite antes de explodir. Lento, torturante e
satisfatório. Cheiro a doçura da sidra no seu hálito. Mal conheço a sensação
dos seus lábios e isso só me aumenta o desejo de tornar a beijá-lo. Como
seria tê-los nas clavículas, no pescoço, mesmo atrás da orelha?
Não.
Pouso o meu prato na mesa de centro e cruzo as pernas com força.
Quando falo, tenho a garganta seca.
– Isso... deve ser bom.
– Para ti nunca foi assim?
Não. Nem com Trent, o meu último namorado, nem com Armand, com
quem andei antes, e decerto não com David, o primeiro. Para mim, o sexo
sempre foi... não propriamente transacional, mas longe de ser a experiência
emocional de que ele fala.
Está demasiado calor aqui. Vou ter de ir regular o termóstato.
– Acho que já fomos honestos que chegue para uma noite – comento.
Um dos cantos da sua boca abre-se num sorriso. Ali está aquela covinha.
– Não era suposto começarmos a conhecer-nos melhor?
Não assim. Não de uma maneira que me leve a imaginar-me ter sexo
pessoal e íntimo com alguém. Provavelmente à luz das velas, numa cabana
remota, enquanto neva lá fora.
– Sim – respondo, levantando-me do sofá e seguindo para a cozinha. –
Estou mesmo interessada em saber como lavas a loiça.
20

Dominic fita-me pelo espelho enquanto lavamos os dentes. A casa de banho


do piso superior é demasiado pequena e, quando nos baixamos para cuspir
para o lavatório, batemos com os cotovelos.
– Vou apresentar um relatório ao Kent sobre o teu cuspo de pasta de
dentes – digo.
– Fantástico. – Ele guarda a escova de novo no estojo de viagem. – Acho
que nunca te tinha visto sem óculos – diz ele, a olhar para o meu reflexo, o
que me faz logo sentir envergonhada.
Com uma mão a segurar o cabelo, cuspo uma última vez antes de
enxaguar a escova de dentes.
– Estou tão habituada a eles que tenho sempre receio de que a minha cara
pareça assimétrica quando não os tenho.
– Eu gosto dos óculos. – Passa alguma água pela cara e depois seca-a com
uma toalha. O Dominic da Hora de Dormir, de calças de fato de treino e
uma T-shirt velha da Northwestern, é capaz de ser a minha versão preferida
até agora. A sua versão mais suave e perigosa, desprovida de toda a
armadura. – Mas ficas bem das duas maneiras.
Bem. Pronto, é isto que acontece: passo horas no sofá ao lado dele a rever
episódios antigos da Buffy, a perguntar-me se as nossas pernas estarão a
tocar-se de propósito ou se ele acha que faço simplesmente parte do sofá, e
depois ele diz uma coisa assim. Algo que me convence de que sou a única a
sentir a gravidade a mudar entre nós. A nossa conversa anterior paira-me na
cabeça. Algo mudou, tenho a certeza.
Ou talvez estejamos só a conhecer-nos.
O quarto constitui um dilema interessante.
– Posso dormir no sofá – diz Dominic, a olhar para a cama. O seu hálito
está maravilhosamente fresco, a cheirar a menta.
– Somos adultos. Podemos dormir na mesma cama sem que seja
esquisito. – Espero que ele não ouça o tremor na minha voz.
– Não sei se sou capaz de dormir ao lado de alguém com uma T-shirt tão
ridícula.
Olho para baixo. Fiz a mala à pressa, por isso claro que escolhi esta T-
shirt. estou em forma – em forma de taco, diz, com uma ilustração de um
taco sorridente.
– Era cinco dólares no Target.
– Pagaram-te cinco dólares para ta impingirem?
– Eu acho que é gira! – Cruzo os braços, a esconder o taco dos olhos
críticos de Dominic. Não costumo ir de sutiã para a cama, mas não queria
andar por aí sem ele, por isso achei que podia tirá-lo depois me meter
debaixo das cobertas.
– Gira és tu – diz ele. – A T-shirt não.
Isso é definitivamente um elogio e não sei bem o que pensar disso. É a
mesma coisa que me disse na noite de que não falamos. Espero que esteja
suficientemente escuro para ele não ver que corei.
Acercamo-nos da cama como se fosse um animal selvagem e tivéssemos
medo de fazer quaisquer movimentos súbitos. Dormir ao lado dele parece
simultaneamente aterrador e emocionante, com o seu corpo comprido a
centímetros do meu, o cabelo escuro espalhado na almofada ao meu lado.
Devagar, afasto um lado das cobertas.
– Trouxeste alguma coisa da gaveta da diversão? – pergunta-me. – É que,
se sim, é capaz de ser um bocado esquisito.
Fito-o boquiaberta. Uns quantos segundos de silêncio e depois desato à
gargalhada, um riso que me apanha o corpo todo e me obriga a dobrar-me
sobre mim mesma, agarrada à barriga. Depois ele faz o mesmo e ficamos
completamente loucos. Tenho de me segurar ao pilar da cama para não cair.
E isso alivia, por pouco que seja, alguma da tensão entre nós. Faz-me
sentir que se calhar podemos ficar bem. Se calhar estamos bem.
Quando olho de relance para ele, vejo na sua expressão uma mescla de
divertimento e de algo mais que não consigo identificar. Nunca o tinha visto
assim, sem aquele escudo de confiança que usa com todas as outras
pessoas.
Agrada-me que se permita ser uma pessoa completa comigo.
Metemo-nos na cama sem mais catástrofes de maior e eu consigo livrar-
me em segurança do sutiã. Estou a pensar que finalmente posso descontrair
quando ele se vira para mim e apoia a cabeça num braço. Talvez seja o
álcool ainda a circular-me no sangue, ou a luz ténue do candeeiro, mas ele
parece ainda mais encantador do que é habitual, como se tivesse sido
pintado com pinceladas suaves.
– Olha – diz ele. – Queria agradecer-te. Outra vez. Foste impecável com
aquilo tudo que te contei. Há muito tempo que não conseguia falar assim
com ninguém e dou muito valor a que me tenhas ouvido.
– Como tu disseste – respondo, ao mesmo tempo que também me viro
para ele –, tens de ser capaz de te abrir, se não queres acabar como um
homem dos gatos.
Esperava que ele se risse. Talvez seja imaginação minha, mas ele parece
retesar-se com as minhas palavras.
– Ou talvez seja simplesmente muito fácil falar contigo.
Por baixo dos lençóis, o seu pé raspa no meu, um pequeno toque entre
amigos que me traz à mente pensamentos nada próprios para se ter com
amigos.
Seria tão fácil deslizar para mais perto dele, alinhar os nossos corpos,
encostar a cara ao seu pescoço. Ainda bem que estamos tapados, caso
contrário os meus mamilos de bom grado lhe diriam quão excitada estou.
Solto uma respiração lenta, com a certeza de que ele estará a ouvir o bater
do meu coração.
– Já que estamos a ser honestos – digo-lhe. – Há uma coisa de que queria
falar-te. – Ele arqueia as sobrancelhas, como que a encorajar-me a
continuar. – Quando começámos esta coisa toda, tu opunhas-te imenso à
parte da mentira. Querias abater fanáticos e usar o jornalismo para ajudar as
pessoas. E apesar disso... nada do que estamos a fazer parece incomodar-te.
Ele fica calado durante uns momentos.
– A compartimentação é uma droga potente – acaba por dizer. – A minha
mãe aprendeu inglês a ouvir a NPR. Essa foi a razão para eu ficar tão
entusiasmado por ter conseguido um emprego aqui. Por isso, estou bastante
desesperado por mantê-lo, mesmo que isso signifique...
– Comprometer a tua moral?
Um sorriso sardónico.
– Bem... sim.
Hum.
– Dominic Yun, não paras de me surpreender. Estou só... – interrompo-me
e inspiro profundamente. – Estou contente por não estar a passar por isto
sozinha.
– Eu também. – Com a ponta de um dedo, faz umas marcas nos lençóis
entre nós. – Temos falado demasiado de mim. Quero saber mais sobre a
Shay Goldstein. – Passa o dedo pelo meu braço dobrado e dá-me um toque
no cotovelo. – Falas-me do teu pai?
É uma pergunta e a forma como a faz deixa claro que eu poderia
facilmente recusar. Mas dou por mim a ceder, apenas marginalmente
distraída pelo ritmo do seu dedo na minha pele.
– Ele tinha a melhor voz de rádio do mundo – digo. – Como o Kent, mas
cem vezes melhor.
– Trabalhava na rádio? – Dominic recua a mão para o seu lado da cama.
Abano a cabeça.
– Tinha uma loja de reparações elétricas. A Goldstein Gadgets. Já a tinha
antes de eu nascer. Passei a maior parte das minhas tardes de criança lá, e
adorava vê-lo a trabalhar. Tinha uma paixão tão grande por aquilo, não só
pela tecnologia em si, mas também pela arte da rádio. Ouvíamos todos os
programas juntos, fingíamos que apresentávamos os nossos. Por isso, acho
que temos isso em comum... herdarmos a rádio dos nossos pais.
Por um momento, receio ter entrado demasiado na nostalgia, mas
Dominic escuta-me atentamente.
– A minha mãe toca na orquestra sinfónica – continuo –, por isso nunca
tive uma casa silenciosa, embora eles por vezes discutissem quanto ao que
ouvir. Ainda hoje não suporto o silêncio.
– Queres pôr alguma coisa a tocar? – pergunta-me.
– Não. Assim... assim está bem.
– Posso perguntar o que aconteceu? Como é que ele... – Deixa a frase
incompleta, como se não soubesse bem como verbalizar a pergunta.
– Como é que ele morreu? – digo eu. Já se passou muito tempo desde a
última vez que contei esta história. Viro-me para fitar o teto, pois não sei se
quero que me veja a cara enquanto a conto. – Paragem cardíaca súbita
enquanto estava a trabalhar. Ninguém podia ter feito nada, ou detetado que
isso ia acontecer. Uma coisa horrível e aleatória. Lembro-me de ter recebido
o telefonema da minha mãe, mas depois tenho a mente em branco em
relação à semana seguinte. Nem me lembro do funeral.
«Depois disso, a minha vida simplesmente... desmoronou-se. Diziam-me
que eu tinha a sorte de ter gozado dezoito anos com ele, que era uma sorte
não o ter perdido quando era muito mais pequena. Mas isso não tornou mais
fácil perdê-lo. Tenho a impressão de que vivi na cama durante meses, fiz
algumas escolhas más, outras menos más. E só quando comecei o estágio
na PPR é que finalmente começou a parecer-me que as coisas podiam ficar
bem.»
Fecho os olhos, a tentar defender-me das piores memórias. Dos dias em
que chorei até ficar afónica, da noite em que perdi a virgindade com alguém
que nem sequer sabia que era a minha primeira vez. A esperar que isso me
ajudasse a sentir algo de novo, quando tudo o que fez foi fazer-me sentir
pior.
Tento concentrar-me em algo mais feliz: nos programas de rádio que eu e
o meu pai apresentávamos na cozinha, em como ele ficava entusiasmado ao
mostrar-me um gravador ou um microfone novo. Era assim que eu me
sentia sempre, todos os dias que ia para o trabalho.
Quando é que perdi isso?
– Nem sei o que dizer – declara Dominic ao fim de algum tempo. –
Lamento imenso, mas isso não parece ser suficiente. Acho que vou
agradecer-te. Obrigado por me teres contado.
– Agora a Goldstein Gadgets é uma loja de cigarros eletrónicos. Não é
deprimente?
– Extremamente. – E repete: – Lamento, Shay.
O meu nome soa leve como gaze nos seus lábios.
– Passei a maior parte da casa dos vinte anos à procura desta ideia de
felicidade doméstica com que cresci. E já nem sei o que é que isso quer
dizer... só que quero tanto essa constância e esse conforto que por vezes me
assusta.
Os seus dedos estão de novo no meu braço, uma carícia leve. Para a
frente e para trás e para a frente e para trás, até que se recolhem.
– Ser adulto é uma chatice – diz ele, de uma forma tão franca que me faz
rir, apesar de tudo.
– É mesmo – concordo. O fantasma do seu toque perdura-me na pele. – O
que havemos de fazer amanhã? Menos conversas inquisitivas? Podíamos
explorar mais a ilha. Se parar de chover, podíamos ir fazer uma caminhada.
– Eu alinhava numa caminhada – diz ele. – Consta que também há belas
velharias na ilha.
– Velharias?
– Ah, se calhar nunca te contei. Os meus pais têm uma loja de
antiguidades. Tenho uma afeição incurável por utensílios de cozinha
antigos. Tachos e panelas de ferro fundido, para ser mais específico.
– Então está combinado – digo, com um bocejo. Quando começo a achar
que o percebo, Dominic revela mais uma camada. – Vamos procurar
velharias e depois fazemos uma caminhada. – Viro-me para ver as horas. –
Como é que já é uma e meia?
– Estás cansada? Deixo-te ir dormir. Eu sempre fui mais notívago.
E o que se passa é... estou cansada, mas não quero dormir. Quero ficar
acordada, a conversar assim. Adoraria conhecer a sua boca a sério, que as
suas ancas subissem para cima das minhas e me pressionassem contra o
colchão, mas também quero ouvir mais segredos, contar mais segredos.
No entanto, não sei como fazer nada disso, pelo que apago a luz e faço-
nos mergulhar na escuridão.
– Boa noite, Shay – diz ele, e parte-me o coração, só um bocadinho, que
apenas vá ouvi-lo dizer essas palavras mais uma vez.
*

A primeira coisa que sinto quando acordo é calor. A luz do sol entra no
quarto e está um tipo muito alto e muito hirsuto a meu lado. Tem um braço
debaixo da almofada, o outro esticado na cama entre nós. E meu deus, como
está giro. Eu sempre tive um fraco por sonolência matinal masculina. Ficam
tão suaves, tão inocentes, de uma forma que raramente se mostram na vida
real.
O Steve está aos pés da cama, a gemer baixinho para ser passeado, como
se também não quisesse acordar Dominic. A cama range quando me levanto
e Dominic agita-se.
– Desculpa, acordei-te? – pergunto.
– Não, não – diz ele, com os olhos ainda fechados.
Não posso deixar de sorrir.
– Podes continuar a dormir, se quiseres. Eu vou passear o Steve e tomar
um duche.
– Vou levantar-me – diz ele, já a virar-se, com a cara esmagada contra a
almofada.
Depois de eu levar o Steve a passear, Dominic toma um duche no piso
térreo e eu no primeiro andar. Visto algo muito menos sofisticado do que
aquilo que costumo usar no trabalho: umas leggings pretas, uma T-shirt
estampada, uma camisola com capuz. Ele apresenta-se também com um
estilo atlético-casual, de calças de ganga, uma camisola da Northwestern – a
sério, mas quanta roupa universitária é que uma pessoa pode ter? – e um
boné dos Mariners.
A aplicação do tempo prevê chuviscos matinais e sol à tarde, pelo que
decidimos ir primeiro à caça de velharias e caminhar depois. Passamos a
manhã num mercado de produtores locais, a deitar a mão a bolinhos e fruta
fresca. Talvez Kent tivesse razão quanto a criarmos laços, porque isto
parece realmente algo que eu faria com um namorado. Levamos o Steve
connosco e ele reage a todos os desconhecidos como se quisesse que o
levassem para casa.
– Steve, onde está a tua lealdade? – pergunto, a fingir-me ofendida.
Depois de estarmos adequadamente cheios de hidratos de carbono,
metemo-nos no meu carro para procurar no mapa as lojas de antiguidades
que Dominic quer visitar.
– Toma – digo-lhe, passando-lhe o meu telemóvel enquanto coloco o
Steve na sua transportadora. – Procura os sítios onde queres ir.
Quando me sento ao volante, ele está a olhar para o meu telemóvel e a
sorrir.
– Estou a ver que tens andado a ouvir um certo podcast sobre o sistema
judicial.
Tento apanhar o telemóvel, mas ele mantém-no longe do meu alcance.
– Era só... pesquisa. Sabes. Tinha de ficar a saber mais sobre ti.
– Hã-hã. – Ele continua a descer na lista, com um sorriso trocista. – Então
porque é que diz aqui que ouviste... os doze episódios mais recentes?
– Eu e o Steve damos muitos passeios longos – insisto, e ele faz o resto da
viagem a sorrir.
Estou mais interessada em observar Dominic numa loja de antiguidades
dos que nas antiguidades propriamente ditas. É como se ele soubesse
automaticamente onde ir, apesar de nunca ter estado ali. Sigo-o até um
corredor cheio de utensílios de cozinha.
Ele desencanta uma frigideira de ferro fundido e inspeciona-a.
– Uma Griswold número sete. Boa. – Ao ver a minha expressão perplexa,
fica envergonhado. – É um vício. Devo ter umas vinte destas no meu
apartamento.
– E cozinhas com todas elas?
– Primeiro, restauro-as – diz ele. – É preciso tirar toda a ferrugem com
um pouco de palha-d’aço, antes de as temperar.
– Temperar? Tipo... acrescentas-lhes orégãos, alecrim ou quê?
– Não é dar tempero, vem de têmpera. Esfrega-se o material com óleo e
depois deixa-se num forno quente durante cerca de uma hora e, depois
disso, fica pronto para ser usado na cozinha.
– Ena – digo, genuinamente impressionada. – Eu e a Ameena às vezes
vamos a vendas de garagem, mas sobretudo para comprar roupas.
– Ai sim? – Um dos cantos da sua boca curva-se para cima enquanto ele
vai passando tachos e panelas em revista. Ajoelho-me a seu lado, para
tentar ajudar, embora não faça ideia do que é que procuro. – Gosto de como
te vestes.
A minha cara aquece mais do que aquela frigideira deveria ser capaz.
– Achava que não eras fã da T-shirt do taco.
– Oh, essa devias queimar, não faças confusões. Estava a falar do que
usas para trabalhar. – E mergulha noutra pilha, escondendo o rosto.
– Oh. Hã... obrigada – digo eu e depois, numa tentativa de mudar de
assunto, pergunto: – Mostras-me de que estamos à procura?
E assim tem início a minha aprendizagem no mundo do ferro fundido.
Dominic está bastante satisfeito com o seu saque: aquela Griswold
número sete e uma Wagner número cinco. Depois de um almoço rápido
num café, começamos a nossa caminhada. Por sorte, é uma caminhada fácil,
que nos permite andar sem ficarmos demasiado ofegantes. O que é bom,
porque essa é uma sensação que tenho tendência a ter quando estou perto de
Dominic, independentemente da atividade física. O Steve vai trotando a
meu lado, como se estivesse simplesmente satisfeito por estar aqui.
– Há séculos que não fazia uma caminhada – diz Dominic. As suas
passadas são muito mais largas do que as minhas e eu percebo que ele vai
propositadamente mais devagar para que eu o acompanhe. Isso é
simultaneamente querido e enfurecedor. – Adoro ter tempo para
simplesmente pensar.
– Eu e a minha mãe caminhámos muito nos anos depois de o meu pai ter
morrido. – A terapeuta sugeriu que podia ser uma atividade para nos
sentirmos próximas uma da outra. Nunca falávamos muito nessas
caminhadas, mas acho que ajudou.
– O teu pai gostava de fazer caminhadas?
Resfolego.
– Meu Deus, não. Detestava o ar livre. Era mais uma questão de ser
terapêutico para mim e para a minha mãe. O meu pai até costumava dizer a
brincar que era uma loucura ter acabado na costa noroeste do Pacífico, já
que ele e a natureza não se davam. Quero dizer, sim, claro, era capaz de
apreciar um pôr do sol ou uma árvore particularmente bonita, mas era
branquíssimo e tinha de usar fator de proteção noventa ou coisa que o
valha, e dizia que os mosquitos adoravam o seu sangue, porque acabava
sempre todo mordido.
– Era ruivo?
– Não, era louro. Mas a minha mãe é ruiva. Porquê?
– O teu cabelo – aponta ele –, não é completamente castanho. À luz certa,
veem-se reflexos avermelhados. Ou será que são madeixas?
– Oh. – Passo as mãos pelo rabo de cavalo. – Não, nunca pintei o cabelo.
Mas costumo dizer que é apenas castanho. Não é assim tão interessante. O
arruivado é muito subtil. Seja como for – digo, a querer desviar a conversa
do meu cabelo –, há muito tempo que não fazia uma caminhada. Tenho
andado ocupada. Sabes, a namorar contigo.
Quando ele sorri, parece sincero.
– Eu realmente monopolizava-te muito o tempo. Todos aqueles jantares
fora, todas as parvoíces que te obrigava a ver na Netflix comigo, estar
sempre a insistir que passássemos os fins de semana em lojas de
antiguidades. E depois... depois havia aquelas manhãs de fim de semana em
que passávamos horas na cama. – E o seu sorriso torna-se torto.
– Horas? – pergunto, com o coração a acelerar enquanto os meus ténis
batem no caminho de terra.
– Às vezes era o fim de semana inteiro. Mandávamos vir comida para não
termos de sair da cama.
Não sei o que é que ele está a tentar fazer ao certo. Deve estar só a meter-
se comigo. Outra vez.
– Tu às vezes até ligavas para o trabalho a dizer que estavas doente –
digo. – Porque me querias tanto que terias passado o dia todo distraído se
fosses trabalhar.
– Exceto daquela vez no Estúdio C.
Toco no queixo, a tentar parecer descontraída e indiferente. É ridículo
querer tanto que isto tenha sido verdade.
– Refrescas-me a memória?
– Tu lembras-te. – Ele dá-me com o cotovelo no braço e, por um instante,
fico convencida de que tenho essa falsa memória bloqueada nalgum lugar. –
Mandaste-me um email, a pedir-me que fosse ter contigo ao Estúdio C. Eu
achava que querias a minha opinião sobre qualquer coisa que estavas a
gravar, mas tu limitaste-te a trancar a porta e... bem, digamos apenas que eu
nunca tinha feito aquilo numa cabina insonorizada.
As palavras dele desconcertam-me por completo. Isto só pode ser uma
piada para ele... não é? Ou será que está a meter-se comigo porque também
quer que tudo tenha sido a sério?
– Pois – digo. – Isso foi... hã... Uma loucura.
Ficamos em silêncio durante uns dez minutos. Eu tento concentrar-me no
ritmo da minha respiração, no tilintar da coleira do Steve. Não é imaginação
minha, Dominic está a flirtar comigo – pelo menos, acho que não é. Mas
não consigo distinguir o que é real do que não é, o que inventámos no
estúdio e o que se desenvolveu desde então. Meu Deus. Dominic Yun, que
eu detestei assim que começou a trabalhar na Pacific Public Radio. O tipo
de quem começo a gostar mais do que alguma vez tinha planeado.
Quando chegamos ao cume, sinto-me mais em casa entre as nuvens de
algodão e as árvores intermináveis do que muitas vezes em Seattle. O Steve
escolhe uma rocha para um chichi triunfante.
Dominic puxa-me para um abraço vitorioso e é um crime que continue a
cheirar tão bem depois de uma hora a subir uma montanha.
– Tiras uma fotografia comigo? – pede-me, pegando no telemóvel.
Faço uma careta.
– Estou com um ar horrível agora. – Toda suada e suja, com o cabelo a
fugir do rabo de cavalo.
– Tenho a certeza de que eu também.
Estendo a mão para limpar uma mancha imaginária da cara dele.
– Absolutamente nojento.
Ele fita-me e eu pergunto-me se este será o tipo de luz que faz o meu
cabelo parecer mais ruivo do que castanho.
– Acabaste de subir a porra de uma montanha. És linda, Shay. No
trabalho, de pijama ou no cimo de uma montanha.
– Eu... – começo, mas fico-me por aí, porque estou sem palavras. Ele
disse-o de uma forma tão simples que não deveria afetar-me tanto. – Está
bem. Tira lá a fotografia.
Pego no Steve e Dominic aproxima-se e estende o braço para a selfie.
Inspiro outra lufada de sabonete e suor e de repente isso torna-se tão
inebriante que tenho de encostar o corpo ao seu para que ele me ampare.
Quando ele vira o telemóvel para eu ver como ficou a fotografia, tudo o
que eu vejo é o seu rosto sorridente, a sua mão no meu ombro e a covinha
na sua face esquerda. Que parece realmente feliz.
Acho que nunca o tinha visto assim.
21

Conforme é típico na costa noroeste do Pacífico, começa a chover enquanto


vamos a descer e, quando chegamos a casa, a água cai a cântaros.
– Que achas? – pergunta-me Dominic quando nos livramos dos sapatos
enlameados. – Massa outra vez?
– Só se não te queixares do ponto de cozedura – digo. – Para além disso,
agora que sei que és perito em ferro fundido, acho que poderíamos fazer
algo melhor.
– Pela décima vez, a massa não deve ficar tão mole, deve ser servida al
dente – diz ele, mas num tom provocador. Despe o casaco e pendura-o na
entrada. A T-shirt cola-se-lhe ao peito, revelando músculos que eu não sabia
que ele tinha e que não me desagrada ver. – E aquelas frigideiras ainda não
estão prontas. Vais ter de esperar que voltemos a Seattle para que te revele
as minhas capacidades culinárias.
Quero insistir para que me diga quando, ao certo, é que vou estar em
posição de desfrutar das suas capacidades culinárias, mas não estou
preparada para o mundo real. Encho a tigela do Steve e tento não pensar no
concurso de T-shirt molhada que Dominic está a ganhar agora.
– É melhor tomar um duche primeiro. Livrar-me de toda esta natureza.
– Claro – diz ele. – Eu fico com a casa de banho daqui de baixo, tu tomas
banho lá em cima?
Devia saber-me bem ter uma pausa dele. Algum espaço para a minha
mente se desemaranhar. Só que, assim que me ponho debaixo de água
quente, a tentar descontrair, não consigo deixar de imaginar Dominic a fazer
o mesmo no andar de baixo, a passar as mãos pelo cabelo e pelo peito e por
outras partes apetecíveis. As piadas que ele disse hoje, as coisas que
contámos um ao outro ontem à noite... nunca estivemos tão próximos e a
corrente entre nós é cada vez mais elétrica.
Enrolo uma toalha à volta do cabelo e demoro demasiado a decidir o que
vestir. Acabo por optar por umas leggings e uma T-shirt com decote à
barco, sem pôr maquilhagem, porque ele já me viu assim.
Quando chego à cozinha, Dominic está em frente à bancada, a cortar
vegetais do mercado de produtores locais, enquanto óleo fervilha numa
panela ao lume. Os músculos das suas costas contraem-se contra a T-shirt
cinzenta que está a usar, o cabelo húmido enrola-se nas pontas. Deve ter
trazido o champô e o sabonete que costuma usar, pois deteto o cheiro que já
associo a ele.
– Pasta primavera – diz, passando brócolos e pimentos para a panela. –
Ligeiramente mais avançado.
– Qualquer coisa que envolva mais do que um tacho e não siga uma
receita já me impressiona. – Vê-lo e cheirá-lo faz-me querer esparguete
demasiado cozinhado.
Quando vejo dois copos de vinho à espera em cima da mesa, o meu
coração bate com o triplo da velocidade. Foi Dominic Yun, o
coapresentador arrogante e demasiado alto, que preparou isto para nós.
Dominic, que reconfortou o meu cão aterrado. Dominic, que me revelou os
seus segredos ontem à noite e me encorajou a fazer o mesmo.
Que me beijou e me perguntou se podíamos esquecer que isso tinha
acontecido.
É a nossa última noite na ilha e não vou aguentar meter-me na cama ao
seu lado sem lhe tocar. Chega de fingir que isto não é algo que quero desde
que começámos o Fala Com o Ex. Preciso de saber que isto não é
unilateral.
– Temos sido honestos um com o outro, certo? – pergunto, com ele de
costas para mim. – Durante todo este fim de semana?
– Certo. – Ele junta abóbora, curgete e alho à panela.
– Eu sei que era suposto esquecermos o que aconteceu depois do bar. –
Tenho a pulsação a latejar-me nos ouvidos, mais ruidosa do que a chuva lá
fora. – Mas... eu não esqueci.
Finalmente, ele vira costas à bancada e olha para mim. Não sabia que
calças de fato de treino podiam ser sensuais, mas só assim posso descrever
a forma como lhe pendem das ancas.
– Eu também não – diz, passado um pouco. – Nem sequer tentei.
Não sei se estou mais aliviada ou excitada.
– Apesar de teres querido fingir que não tinha acontecido? – A minha voz
é pouco mais do que um sussurro. Amaldiçoo-me por perguntar, mas
preciso de saber.
– Pareceu-me que seria mais fácil.
– Tem sido? Mais fácil?
Um sorriso triste.
– Às vezes – diz ele, e há só um milhar de possíveis interpretações. Ele
lança um olhar de relance aos vegetais a saltear e mexe-os.
– Se é mesmo para criarmos laços durante este fim de semana, saber tudo
o que há para saber sobre o outro... talvez devêssemos saber como é a sério.
Sóbrios.
Ele abana a cabeça.
– Não.
– Não? – Sinto que o coração me cai. Nunca consegui perceber o que lhe
vai na cabeça, mas não esperava que me rejeitasse assim.
– Se eu voltasse a beijar-te – diz ele, aproximando-se mais, com uma
intensidade no olhar que eu nunca lhe tinha visto –, não seria pelo
programa, ou por pesquisa, ou por qualquer outra razão que não fosse a de
querer fazê-lo.
Oh. Tenho de me agarrar à beira da bancada para me manter de pé. Não
sei bem quais são as regras agora. A fronteira entre a realidade e a fantasia
esbateu-se, turvou-se, foi completamente apagada.
– Dominic. – Tento pôr um ponto de interrogação no final do seu nome,
mas sai-me ofegante e carente. Se ele não me toca nos próximos segundos,
vou explodir.
Ele deve ouvir essa carência na minha voz, porque desliga o fogão e
quase elimina o espaço entre nós, com uns quantos centímetros entre o seu
peito e o meu. Quero devorar cada uma das suas respirações ofegadas.
Quando olha para mim, não o faz com o ego que me habituei a ver. Olhos
escuros, boca ligeiramente entreaberta... talvez seja esta a expressão que
não fui capaz de interpretar. O seu cabelo está húmido e despenteado e eu
acabei de decidir que é exatamente assim que gosto. Vou gostar ainda mais
quando estiver entre os meus dedos e a rasar-me a barriga, as coxas.
Ele levanta a mão e o seu polegar pousa no meu malar, deslizando por ele
antes de passar para o meu cabelo molhado.
– Quereria recordar todos os pormenores. O teu sabor. O teu cheiro. Os
sons que farias.
Quando o diz, escapa-se-me um gemido involuntário. É a coisa mais
excitante que alguém alguma vez me disse e, se eu conseguisse falar, dir-
lhe-ia que também quero conhecer os seus sons.
– Shay. Meu Deus. Fazes ideia... – Ele interrompe-se, como se estivesse
demasiado assoberbado pelo desejo para acabar a frase. É potente,
apercebermo-nos de que podemos deixar alguém assim sem palavras.
Um trovão abana a casa, mas eu não estremeço. Toda eu sou desejo,
carência e os pontos em que ele me toca. A sua outra mão passa para a
minha cintura, onde sinto a pressão de cada dedo através do tecido da T-
shirt.
– De quê? – pergunto, desesperada por saber como acaba a frase. Encosto
as mãos ao seu peito, à T-shirt cinza. Sinto-o retesado e quente sob as
palmas das minhas mãos. Devagar, muito devagar, subo-as, e as suas
pálpebras fecham-se quando uma das minhas mãos lhe chega à face,
sentindo a barba a crescer. Deixando que me rase a pele. – De que é que
faço ideia?
– De como estás perfeita neste momento, raios.
Isso é tudo o que é necessário. As minhas mãos mergulham no seu cabelo
e puxam a sua boca para a minha. Estou a beijar Dominic Yun, e o sabor da
sua boca é incrível, tão quente e húmida e certa quando abre a minha.
Pensava que o alívio seria imediato, mas o que acontece é o oposto, uma
carência profunda e estonteante sempre a crescer. Preciso de que ele me
beije com mais força. E é isso que ele faz, correspondendo aos movimentos
da minha língua e dos meus dentes. Tinha-me esquecido do arroubo de
adrenalina que surge quando estamos tão próximos de uma pessoa nova.
Uma pessoa com quem, supostamente, acabei há uns meses.
Ele vira-nos para me empurrar contra a bancada e depois percorre-me da
boca ao pescoço com beijos enquanto as suas ancas se movem contra as
minhas. É tão mais alto do que eu que lhe sinto a dureza contra o meu
umbigo, o que só me deixa mais louca. Ouço um rumorejar grave na sua
garganta quando faço pressão contra ele.
Não devíamos estar a fazer isto.
Temos de continuar a fazer isto.
Murmuro oh meu Deus quando ele me suga o pescoço, com os dentes
contra a minha pele. Sinto-me prestes a perder a força nas pernas, mas ele
está ali, a manter-me de pé.
– Quarto – arquejo.
Ele puxa-me para si e passa uma das minhas pernas à volta da sua cintura,
indicando-me que faça o mesmo com a outra. Depois agarra-me as coxas e
o traseiro e assim subimos para o andar de cima, periclitantes.
– Tu tens cá um jogo... – digo quando me pousa à beira da cama, a dar-me
um momento para recuperar o fôlego e pousar os óculos com cuidado numa
mesa de cabeceira.
– Não é jogo – diz ele, e parece sincero enquanto desliza para a cama a
meu lado. – Só uma coisa que queria fazer há algum tempo.
A sua boca volta ao meu pescoço. As suas mãos percorrem-me o corpo e
demoram-se na curva da minha cintura.
– Eu também. – Sinto uma pontada de pânico quando os dedos dele me
rasam o peito. – Devo avisar-te que estou a usar um sutiã de desporto
mesmo horroroso.
Já foi antracite, mas entretanto ficou de um cinzento aguado feioso, com
elástico a espreitar de vários buracos nas costuras. A sério, devia ganhar um
prémio por fazer a mala com as roupas menos sensuais possíveis.
Uma gargalhada que lhe fica presa na garganta.
– Posso garantir a cem por cento que não me vou importar com isso.
Tiro a T-shirt e o sutiã o mais depressa que posso.
– Não me digas que preferes o sutiã – digo-lhe, quando ele fica
simplesmente a olhar para mim.
– Linda – responde, mas a olhar-me para a cara. Inclina-se para me beijar
de novo, com um polegar a afagar-me um mamilo entumecido antes de se
baixar para meter o outro na boca.
Porra que ele é bom nisto. A este ritmo, começo a pensar que ainda me
venho antes de tirar as leggings. Levo a mão à bainha da sua T-shirt e ele
ajuda-me a arrancá-la. Mal tenho tempo de apreciar os contornos do seu
peito quando começo a puxar-lhe o cós das calças. Estou tão ávida que,
mesmo com as calças meio despidas, enfio a mão, desesperada por senti-lo.
Ele geme junto ao meu ouvido quando fecho a mão à sua volta. Está
quente e suave e duro como pedra, a pulsar-me no punho.
– Não... não vás demasiado depressa – diz ele, o que me lembra de que
ele só fez isto com outra pessoa. De que isto para ele é muito importante.
O que deve querer dizer que eu sou muito importante para ele.
– Não. – Recuo. Não ir demasiado depressa. Eu consigo fazer isso.
Consigo saborear isto.
Porque tenho um pensamento incómodo a dizer-me que não saberei o que
isto significará quando estivermos de volta à estação.
Mudamos de posição para ele conseguir tirar as calças e depois fica por
cima de mim, a debater-se com o cós das minhas calças. Mais uma terrível
escolha de vestuário.
– São um bocado justas, por isso...
– É preciso esforçar-me – diz ele, mas a sorrir. – Não me importo. Tenho
um mestrado, afinal. Estou habituado a trabalho duro.
Aceno com a cabeça na direção da tenda impressionante nos seus boxers.
– Estou a ver.
Ele despe-me as leggings, beija-me do tornozelo ao joelho e sobe pela
coxa, afagando-me a parte de fora das cuecas, já molhadas de tanto que o
quero. Estas são quase de avozinha, mas eu nunca me tinha sentido tão sexy.
– Está bem assim? – pergunta-me, com a respiração ofegante. Um dedo
rasa o tecido e o meu corpo concentra toda a atenção nesse pedaço de
algodão. Agarro-me com força aos seus ombros, a implorar-lhe em silêncio
que me afaste a roupa interior, que a rasgue, qualquer coisa para sentir o
contacto da sua pele na minha.
– Deve parecer bastante óbvio que está – consigo dizer, mas, como
aprecio que tenha perguntado, acrescento: – Sim. Sim.
Só que ele recua e senta-se na cama a meu lado. Eu ainda estou a ofegar,
ligeiramente acanhada por aqueles toques do seu dedo me terem deixado
tão selvagem.
– Acabei de me aperceber de que não tenho preservativos – diz ele, e a
realidade ribomba mais do que um trovão. Passa uma mão pelo cabelo, com
um ar envergonhado. Neste momento, até a sua vergonha é sensual.
Inconveniente, mas sensual. – Merda. Desculpa. Tu...?
Interrompo-o a abanar a cabeça e obrigo-me a sentar-me e a encostar-me
à cabeceira da cama. O meu hiato de aplicações de encontros evoluiu para
um hiato de controlo de natalidade.
– Não. Nunca me passou pela cabeça que isto fosse acontecer, por isso...
Ficamos calados durante algum tempo. O suficiente para o embaraço se
instalar e para que eu comece a sentir-me um pouco exposta.
– Desculpa – repete ele. – Podia ir comprar alguns?
Mas a chuva parece apenas martelar com mais força no telhado da casa
minúscula, lembrando-nos da tempestade e do facto de o supermercado
mais próximo ficar a pelo menos vinte minutos daqui.
– Eu... não quero parar. – Aproximo-me mais e agarro-lhe a ereção. –
Podíamos fazer outras coisas.
Ele fecha os olhos e deixa escapar outro gemido. Sou capaz de me viciar
nesse som – o de Dominic a esforçar-se por manter o controlo. Seguro o
elástico dos boxers e ajudo-o a despi-los. Nu, Dominic é quase demasiado:
o contorno dos músculos do seu abdómen, a forma em V que me chama a
atenção mais para baixo. É mais bonito do que eu pensava que seria, e
tenho pensado muito nele assim.
– És... – aponto para ele, com dificuldade para encontrar um elogio
adequado. – És um homem extremamente atraente.
Isso vale-me outro sorriso. Passo uma perna por cima dele e instalo-me
no seu colo, a senti-lo pelo tecido da minha roupa interior.
– Meu Deus, Shay – diz ele. Um aviso e uma súplica. Tem as mãos nas
minhas ancas, a guiar-me à medida que avanço. É tão bom senti-lo assim
que tenho de passar os braços à volta do seu pescoço para me amparar. Os
meus seios pressionam-lhe o peito e eu roço-me nele com mais força, mais
depressa, com a fricção a deixar-me cada vez mais perto do êxtase. – Estás
a dar cabo de mim. Tenho de te tocar. Por favor.
Ele espera pelo meu sim exalado antes de assumir o controlo, deitando-
me de barriga para cima para me tirar as cuecas, que deixa cair no chão.
Mordisca-me o pescoço ao mesmo tempo que me toca com um dedo. Ao
início é hesitante, a desenhar círculos suaves por todo lado exceto onde
mais preciso. Mexe-se tão dolorosamente devagar que empino as ancas, a
tentar encorajá-lo a ser mais rápido. Isso fá-lo rir-se, um som gutural.
Não vás demasiado depressa.
Algures no fundo da minha mente, pergunto-me se Dominic será sempre
assim na cama: determinado a fazer com que dure o máximo possível.
Talvez queira saboreá-lo também. Desliza um dedo para dentro de mim e
não consigo evitar – arquejo. Ele acelera e eu deixo a cabeça cair contra a
almofada.
– Não fazes ideia de como estás sexy agora – diz ele. – A minha
imaginação não te fez justiça.
Metade da sua boca curva-se num sorriso, como se ele soubesse como
estou perto. Saber que ele imaginou isto faz-me chegar mesmo ao limite.
Solto um gemido e fecho os olhos com força. A pressão torna-se
implacável, ardente e tremeluzente enquanto me venho com força contra os
seus dedos.
Quando pestanejo e regresso à terra, ele está a sorrir como se tivéssemos
acabado de chegar ao Top 10 do iTunes.
– Que convencido – digo, a tentar recuperar o fôlego ao mesmo tempo
que já levo a mão ao seu membro.
Ele estremece.
– Só se quiseres.
– Achas que não estou a morrer por te ver louco, depois disto?
Ele já está deitado de barriga para cima, deixando-me assumir o controlo.
Observo o que faço a refletir-se no seu rosto: uma contração no maxilar, os
olhos a pestanejar, o meu nome nos seus lábios. E os sons que faz, estes
gemidos e grunhidos que me atingem diretamente no âmago. Não fazia isto
– bater uma sem ser como preliminares – desde a faculdade, e o poder é
inebriante.
De repente, ele vira-se e escapa ao meu alcance.
– Quero que te venhas comigo – diz ele, com a voz a rouquejar e um dedo
a subir-me pela perna.
Essas palavras quase bastam para me arrasar. Afasto as pernas para o
ajudar a encontrar de novo aquele sítio perfeito e depois monto a sua mão
enquanto ele investe contra a palma da minha, com as ancas cada vez mais
frenéticas, mais desesperadas enquanto procura o seu próprio orgasmo. É
quase demasiado, tocar-lhe assim enquanto ele me toca a mim, mas, sem
saber como, consigo conter-me.
– Quase – digo e é então que ele leva os dedos à boca, os lambe e volta à
carência entre as minhas pernas. – Dominic...
Sou levada pelo prazer um segundo antes de ele se derramar na minha
mão com um gemido grave.
Estou liquefeita. A flutuar. Desfeita.
Ambos ficamos imóveis, só com os sons da chuva no telhado e o ritmo da
nossa respiração.
Nenhum de nós fala quando ele sai da cama para se limpar. Visto uma T-
shirt, de súbito a sentir algum frio. Segue-se um momento de estranheza
quando trocamos de lugar para eu poder lavar-me na casa de banho, um
momento que me deixa por de mais ciente de que somos Shay e Dominic,
não um casal, de todo.
Para milhares de pessoas, somos o oposto.
Quando volto para a cama, ele vestiu outras calças de fato de treino mas
continua em tronco nu. O seu rosto suaviza-se com um sorriso e ele dá uma
palmadinha a seu lado no colchão.
– Vem cá – diz ele, e todo o meu corpo se descontrai de alívio.
– Isto foi...
Um meio sorriso.
– Melhor do que a gaveta da diversão?
– Significativamente.
Não sei porque terei partido do princípio de que ele não queria abraçar-
me depois. Talvez porque não falámos do que isto é, ou do que significa, se
foi uma coisa de uma vez só ou se não termos preservativos requer uma
repetição quando voltarmos a Seattle.
Encosto-me a ele, a tentar ignorar como me parece natural pousar a mão
no seu peito. Os seus dedos mexem-me no cabelo, tocam-me ao de leve nas
costas. Havemos de ter de nos levantar – teremos de falar disto –, mas, por
agora, quero aninhar-me neste momento de vida não lá muito real.
Por isso, envolvo-nos bem neste momento e não deixo que mais nada
entre durante o resto da noite.
22

Quando acordo, o lado dele da cama está vazio. Tateio-o primeiro com a
mão, de olhos fechados, a tentar ignorar o nó de desapontamento que se me
instala no estômago quando o que encontro são lençóis frios e uma cova na
almofada, e de Dominic nem sinal.
A noite passada é capaz de ter sido a mais ardente que tive em muito
tempo, ou talvez sempre, e não me lembro da última vez que dormi tão
profundamente. Apesar disso... acordar sozinha faz com que tudo pareça
não ter passado de um sonho. Distante.
No entanto, não me esqueço do que ele disse sobre ser uma coisa pessoal
e íntima, nem a possibilidade de isto querer dizer algo para ele, ainda que
não consiga descortinar bem o que quer dizer para mim.
Ouço ruídos de alguém a preparar o pequeno-almoço na cozinha e depois
os sons fungados do Steve. Visto uma camisola com capuz e vou lá ter com
eles.
Dominic está ao lado do fogão, completamente vestido e de duche
tomado, a passar uma panela de um bico do fogão para o lava-loiça. Não sei
se se esqueceu de trazer uma lâmina de barbear ou se não a trouxe de
propósito, mas a sua barba a crescer deixa-me cheia de vontade de voltar a
passar-lhe as mãos pela cara. Só que já se passou muito tempo desde que
passei por um pequeno-almoço pós-sexo, e nunca o fiz com um colega.
É com pés inseguros que chego à mesa.
– Bom dia – diz Dominic, num tom muitíssimo animado. – Panquecas?
E ali está, uma pilha de panquecas de mirtilos, uma cafeteira cheia e dois
pratos.
– Fizeste panquecas? – Baixo-me para coçar o Steve atrás das orelhas.
– Já acordei há umas horas – admite ele. – Dei um salto à loja para
comprar umas coisas. E levei o Steve a dar uma volta. Espero que não te
importes. Queria que começássemos o dia cedo, se possível. – E olha
intensamente para o meu pijama.
Paro com a mão a caminho do frasco de xarope de ácer. Ele fez
panquecas, o que parece um ponto a incluir na coluna do «vamos voltar a
fazer isto em breve». Mas quer voltar para Seattle o mais depressa possível,
que não parece. Não sei bem como conciliar essas duas coisas.
– Oh... sim, está bem. Obrigada. Tomo duche e faço a mala assim que
acabarmos.
Ele sorri, mas um pouco tenso, o que faz com que o pequeno-almoço
açucarado se transforme em giz na minha boca. Será que está...
arrependido?
As coisas que me disse ontem à noite não combinam com aquele sorriso.
Não fazes ideia de como estás sexy agora. Quero que te venhas comigo.
Um emaranhado de suspiros e membros e desespero.
De repente, não tenho fome, mas obrigo-me a comer as panquecas.
*

Na viagem de regresso, falamos praticamente de tudo o mais – podcasts,


as nossas famílias, o tempo. Mas não falamos do que aconteceu. Eu
facilmente poderia trazer o assunto à baila – belos orgasmos ontem à noite,
hã? – mas, se o fizer e ele me disser que foi alguma espécie de experiência
prolongada provocada pela situação em que nos encontrávamos, não sei se
serei capaz de aguentar. Sobretudo fechada dentro de um carro com ele e
quando finalmente parecemos ser amigos. Prefiro agarrar-me ao talvez, pelo
que aceito o silêncio.
Quando chegámos à porta do seu prédio, tenho dois espigões puxados nas
unhas e uma cefaleia de stress a rebentar-me a cabeça. A rua só me parece
vagamente familiar, como se a tivesse visitado em sonhos, mas encontro
logo o apartamento dele, entre as colunas de edifícios idênticos.
Ele solta o cinto de segurança, mas não faz qualquer movimento para sair.
– Então – diz, e eu viro-me para ele, com o coração a latejar contra o
cinto de segurança. – Vemo-nos amanhã de manhã?
Faço os possíveis por projetar um tom de «está tudo bem».
– Sim. Bem cedo.
E depois, num único movimento ágil, ele inclina-se e desliza uma mão
pelo meu cabelo, puxando-me a boca para a sua. O beijo começa doce até
eu entreabrir os lábios, desejosa de o provar mais. Ele faz o mesmo e
pressiona-me com uma urgência que me deixa ofegante.
Um sorriso arrevesado e vai-se embora, com o beijo a convencer-me de
que o que quer que tenhamos começado na ilha ainda não acabou.
*

– Aconteceu qualquer coisa – diz Ameena, e ainda bem que não fui para
telejornalismo, porque o meu rosto é absolutamente incapaz de esconder um
segredo. A minha boca agita-se, ou as minhas narinas abrem-se, ou o meu
olhar não para de dardejar.
Eu e Dominic chegámos a Seattle no início da tarde, por isso, quando
Ameena me mandou uma mensagem de texto sobre uma venda de garagem,
aproveitei logo a oportunidade de a ver. E, quando me perguntou como
correu, não consegui manter uma cara séria.
– Aconteceu mesmo qualquer coisa – concorda TJ, a segurar numa fronha
que tem um palhaço bordado.
– Nem penses – declara Ameena, e ele pousa-a devagar.
Vou até ao fim de uma fileira de utensílios de cozinha. Claro que isso me
faz pensar nas lojas de antiguidades a que fomos e dou por mim a
perguntar-me se haverá ali algo de ferro fundido.
– Está bem, está bem, aconteceu uma coisa e sou capaz de estar a meio de
uma crise – digo, e esforço-me ao máximo por pôr tudo aquilo em palavras.
Não só as partes que tiveram lugar sem roupa, mas também a conversa na
sexta à noite, e a caminhada, e a forma como tranquilizou o meu cão. Ao
fim de cinco anos, já me habituei a falar das minhas relações com Ameena
estando TJ por perto, o que, claro, quer dizer que ele também sabe que eu e
Dominic estamos a mentir no programa.
– É verdade que tu tens queda para gajos com animais – comenta
Ameena. – Lembras-te daquele tipo, o Rodrigo, e dos gatinhos?
Ah, pois: Rodrigo, o analista de dados, cuja gata tinha acabado de ter uma
ninhada de seis bolas de pelo fofo. Passado algum tempo, tive de
reconhecer que estava mais interessada em aninhar-me com os gatinhos do
que com ele.
– Ainda nem sequer conseguiam abrir os olhos, Ameena. Não
conseguiam abrir os olhos.
Ela resfolega e detém-se a inspecionar o conteúdo de uma caixa de
sapatos. É esta semana que vai ficar a saber se fica com o emprego na
Virgínia, e a forma como ignora um par de sandálias de tiras amarelas diz-
me como está enervada.
– Mas isso agora é um problema – digo. – Porque quero mesmo que volte
a acontecer.
– Há alguma razão para não poder acontecer? Ou para não dever
acontecer? – pergunta TJ.
Ameena aponta para ele.
– Idem.
– Então, todo o programa assenta no facto de não andarmos... E, para
além disso, se calhar só gosto dele porque não devia gostar. Se calhar é isso
que torna a coisa excitante.
– As pessoas podem voltar a andar – diz TJ. – Os ouvintes até eram
capazes de adorar.
– Já pensei nisso – reconheço. Por alto, durante a viagem de regresso,
enquanto repuxava o segundo espigão. – Mas o programa está a ir
demasiado bem para o pormos em risco. Fazer alguma coisa com o
Dominic... ser um casal a sério. Não vejo como é que isso não daria cabo de
tudo. A menos... a menos que, de alguma maneira, conseguíssemos manter
as coisas casuais.
Casuais – justamente o que Dominic não faz. E, tendo em conta o meu
historial, corremos o risco de eu me apegar, e ele só tem vinte e quatro anos.
As estatísticas simples das relações, muitas das quais me enchem o
histórico de buscas do computador – ossos do ofício de apresentar um
programa sobre encontros – indicam que ele não se apegaria de volta.
– E tu tens tanto jeito para isso. – Ameena franze o sobrolho, a passar
uma madeixa de cabelo escuro e comprido para trás da orelha. – Se calhar é
uma pergunta estúpida, mas será possível vocês confessarem a verdade?
– Não. Isso seria um desastre. Já conseguimos uns quantos patrocinadores
e o Kent insinuou que somos capazes... – Engulo em seco, a tentar não me
entusiasmar demasiado. – Que somos capazes de conseguir chegar à
PodCon.
TJ solta um assobio.
– Ena, isso é tremendo. Achas que consegues arranjar um autógrafo do
Marc Maron3?
Ameena bate-lhe no braço com uma saia circular.
– Há muito tempo que não falavas de alguém assim – diz-me em voz
baixa. – Eu sei que a situação é inconveniente, mas vocês já andam a fingir
que namoraram. Parece demasiado continuares a fingir que não sentes o que
sentes por ele. – O seu tom parece um pouco crítico.
– É a minha carreira – replico, num tom mais duro do que pretendia. –
Não posso mandar tudo às urtigas por um tipo.
– Tens razão – diz ela, com as palavras carregadas de frustração e,
embora eu e TJ nos esforcemos por distraí-la com vestidos vintage, ela
mantém-se alheada durante o resto da tarde.
*

Quando chego a casa, o Steve está à espera à porta. Mesmo depois de ter
passado o fim de semana com ele, agrada-me a sua excitação de não me
abandonaste. Ele corre à volta da sala e demora umas quantas voltas a
acalmar o suficiente para que eu lhe faça festas.
Instalo-me no sofá a coçá-lo atrás das orelhas e só depois de estar assim
algum tempo é que me dou conta de que já não anseio por barulho em pano
de fundo. Algumas almofadas novas que comprei na semana passada dão
graça à sala e até desfiz as malas quando cheguei a casa e pus as roupas
sujas na máquina de lavar. Já para não dizer que ter as coisas do Steve por
todo o lado faz com que a casa pareça mais vivida, menos estéril. De súbito,
já não odeio estar aqui.
Se calhar estava mesmo sozinha.
É claro que isso me faz pensar em Dominic. Custa-me imaginá-lo no seu
próprio apartamento, a comer sozinho, a beber sozinho e a ver televisão
sozinho. A meter-se na cama e a dormir sozinho, depois de duas noites a
meu lado.
Determinada a não pensar na noite passada, atiro-me à investigação para
os nossos próximos episódios. Estamos a planear um sobre embelezar perfis
em sites de encontros, outro sobre a distribuição de géneros nas grandes
cidades, outro ainda sobre ter encontros quando se é mãe ou pai solteiro,
cada um com convidados especialistas nas suas áreas. Tenho de me
concentrar no programa. Como disse a Ameena, não posso pôr em causa o
meu trabalho, depois de finalmente ter tido a oportunidade de ir para o ar.
Durante pelo menos mais três meses e meio, que foi o acordo inicial com
Dominic. No fundo, é claro que espero que ele goste o suficiente do
programa para querer continuar mais tempo, sobretudo se conseguirmos
patrocínios ainda melhores.
E, no entanto, quanto mais olho para as minhas notas, mais dou por mim
a pensar no episódio que ainda não foi aprovado. Já fiz pesquisa suficiente
para saber que nenhum tópico na área dos encontros está realmente por
explorar. Somos apenas um de muitos, muitos podcasts que a atravessaram.
Mas o que sempre fez com que a rádio me parecesse tão especial é a sua
capacidade de transformar algo intangível em algo pessoal. Deixar que
alguém conte uma história à sua maneira.
Este episódio sobre luto não constituiria rádio inovadora, eu sei – mas
seria meu.

31 Comediante, ator e apresentador do podcast WTF. (N. da T.)


23

– Porque é que há dildos na redação?


Na segunda de manhã, Marlene Harrison-Yates está à espera em frente à
minha secretária, a pairar sobre uma caixa de brinquedos sexuais que
parecem ter aparecido ali da noite para o dia. Há caixas idênticas nas
secretárias de Dominic e de Ruthie.
– Essa é uma excelente pergunta – replico, ao mesmo tempo que empurro
a caixa para arranjar espaço para o meu café, com o que quase atiro o frasco
do mestrado de Dominic ao chão.
– Patrocinadores – diz Ruthie, a espreitar da sua secretária. – Bem,
querem ser patrocinadores. Enviaram estas coisas para vocês... hã...
experimentarem. – Engasga-se com o riso. – E depois, se gostarem, falarem
disso no programa.
Não são só brinquedos sexuais. Também há uma caixa de lubrificantes
com uma subscrição mensal, um par de sapatos quase completamente feitos
de milho e um conjunto de lençóis de algodão biológico. Tenho
praticamente a certeza de que não podemos falar de metade destas coisas na
NPR.
Marlene comprime os lábios e volta para a sua secretária.
Demorei demasiado tempo a debater o que havia de usar hoje quando
viesse trabalhar. Queria atingir o equilíbrio perfeito entre mostrar-me
profissional e não queres voltar a ver-me nua? Acabei por me decidir por
algo que não difere muito do que costumo vestir: as minhas calças de ganga
escura preferidas, uns botins e um casaco preto e justo por cima de uma
blusa com decote em V. Continua a ser a NPR, afinal. E Dominic disse que
gosta da roupa que eu uso no trabalho.
Estou tão nervosa que nem consegui ouvir rádio no carro. Um dos
espigões está tão grave que tenho dois pensos rápidos à volta do polegar, e
os orgasmos múltiplos que tive com Dominic podem ter posto fim à seca,
mas só me aprofundaram a frustração sexual.
E a caixa de dildos não está a ajudar.
– Como foi o fim de semana? – pergunta Ruthie enquanto vamos vendo o
conteúdo das caixas, dividindo os artigos em dois grupos, um intitulado
material seguro para a npr e o outro a comissão federal de comunicações
instaurava-nos um processo. – Conseguiram criar laços?
Evito o olhar dela, com receio de que o meu rosto revele todas as formas
como criámos laços. – Ele e o meu cão deram-se bem. – Mostro-lhe a caixa
de subscrição de lubrificantes. O sabor de maio é lima. – Podemos falar de
lubrificante na NPR?
– O instinto diz-me que não – responde Ruthie. – Mas os sapatos de
milho até são giros, não são?
Quando Dominic chega, às nove e um quarto, já não há brinquedos para
adultos em cima da sua secretária.
– Bom dia – diz-me depois de largar a mala na secretária e puxar a
cadeira para trás. – Bom dia, Ruthie.
– Bom dia! – responde ela antes de continuar a escrever ao computador.
As palavras não me saem do fundo da garganta. Não tenho a certeza de
conseguir proferir um simples bom dia agora que sei como é sentir as suas
mãos na minha pele, entre as minhas pernas. Como ele fica quando está à
beira do orgasmo. Qual será a etiqueta correta no dia depois de irmos para a
cama com o falso ex-namorado com quem apresentamos um programa de
rádio? Adorava mesmo que houvesse um podcast acerca disso.
Dominic não olha para mim, o que me dá uma oportunidade de o ver tirar
as coisas da mala. Fez a barba, os pelos do fim de semana desapareceram, e
está de camisa vermelha aos quadrados e calças de ganga pretas. Não é
normal que eu sinta o cheiro do seu sabonete a uma secretária de distância,
pois não? E percebo que algo de grave se passa comigo quando o vejo a
atirar a bola Koosh para cima e para baixo e nem sequer me irrita.
Foi ele que disse que achava que não conseguia ter relações casuais. Se
calhar também não faz ideia de como lidar com isto.
Mesmo que nada de sábado tenha parecido minimamente casual.
Esforço-me ao máximo por me concentrar na lista de coisas a fazer nesta
segunda-feira, em vez de imaginar os seus dedos de novo na minha pele. Às
dez vamos participar como convidados no podcast Thanks I Hate It, que é
apresentado por Audrey e Maya, duas comediantes que são melhores
amigas e falam da cultura de encontros dos millenials e de como ser adulto.
São bastante populares e para o ano vão lançar um livro. Fiquei encantada
quando a produtora delas entrou em contacto com Ruthie na semana
passada, mas hoje tenho de me obrigar a concentrar-me na entrevista.
Ruthie prepara a entrevista no Estúdio A. Por sorte, é fácil conversar com
Audrey e Maya, mesmo que me sinta retesar quando Audrey nos apresenta
como «os ex-namorados preferidos da América».
Não sei se o fim de semana nos deixou mais ou menos desajeitados, mas
conseguimos fazê-las rir várias vezes. No entanto, quando a entrevista
chega ao fim, não me lembro de nada do que disse.
Quando acabamos de gravar, Kent está à nossa espera ao fundo do
corredor.
– Belo material, mesmo bom – diz. – Aquilo ali dentro... era exatamente
disso que estava a falar. Vocês pareceram muito mais naturais. Então passar
o fim de semana fora fez maravilhas, hã?
Hã, de facto.
– Acho que sim. Obrigada – digo. E depois, dado que ele está de bom
humor, decido voltar a tentar. OQFUHBM, recordo a mim mesma quando
começo a temer acobardar-me, e avanço: – Queria ver o que achas de uma
coisa.
– Claro – diz ele, com um olhar de relance para o relógio de pulso. – Mas
só tenho uns minutos.
Estou extremamente ciente de que Dominic está ao meu lado e tenho a
certeza de que a minha cara ficou da cor da camisa dele.
– O meu episódio sobre luto. Eu sei que o trouxe à baila numa altura um
pouco esquisita na semana passada, mas é importante para mim e acho que
podíamos fazer muito com isso.
Ele gela quase de imediato.
– Achava que isso já estava falado.
– Mais ou menos, mas tenho estado a pensar e...
– Só não me parece que seja o caminho certo para o programa agora – diz
Kent, interrompendo-me. – Demasiado sombrio. Queremos manter as
coisas ligeiras, divertidas. Dom, concordas comigo, certo?
– Na verdade, não – diz Dominic, endireitando-se por completo e
mostrando-se muito mais alto do que Kent. – Acho que seria um excelente
momento de rádio. Não me parece que haja algum motivo para termos de
nos limitar a um só tipo de programa.
Kent leva a mão ao queixo e fica absorto durante um momento. Quanto a
mim, tenho demasiado calor com este casaco e não sei em que dará esta
conversa.
– Bem, eu confio em ti – acaba por dizer. A Dominic. – Confio nos dois.
Vão em frente e tratem disso.
Eu ainda estou boquiaberta quando ele se afasta pelo corredor.
– Tu... tens noção do que acabou de acontecer aqui, não tens? – lá consigo
perguntar a Dominic. Mais uma entrada para o manual de misoginia de
Kent O’Grady. Nunca estive tão certa de que seja isso.
– Cretino de merda – resmunga ele entre dentes.
Tenho de conter uma gargalhada.
– Obrigada – digo-lhe. – Por alinhares.
– Vai ser um bom episódio. – Preparo-me para voltar para a secretária,
mas o que ele diz a seguir faz-me estacar. – Acho que, hã, sem querer
ficámos com os carregadores de telemóvel um do outro no fim de semana –
diz ele, com o olhar a varrer o corredor como que para se assegurar de que
estamos sozinhos. – Importas-te de passar lá por casa logo à noite para
podermos trocá-los outra vez?
Eu não devo ter reparado.
– Claro, mas também podemos fazer isso amanhã no trabalho.
– Preciso do carregador logo à noite. – Aproxima-se mais, com uma mão
esticada para me tocar com um polegar na anca. – A sua voz desce outra
oitava. – Ou vais obrigar-me a dizer que quero ver-te?
– Não detesto ouvir isso – digo, a conter um sorriso. Mesmo que isto seja
um convite mal disfarçado para um encontro sexual, decido que não me
importo. Tenho de voltar a estar sozinha com ele: todas as células do meu
corpo estão a clamar por isso. – Quero dizer, se é isso que estás a dizer.
Ele esboça um sorriso trocista.
– Vemo-nos logo.
24

O apartamento de Dominic tem um cheiro incrível.


– Bem-vinda – diz ele, com a porta aberta. Trocou a camisa do trabalho
por uma de flanela suave, enrolada até aos cotovelos – mas que antebraços,
Batman – e tem as calças de ganga com a cintura descaída.
Dispo o casaco e descalço os sapatos, a tentar não parecer que estou a
examinar-lhe o apartamento. Tem uma estética a que eu chamaria IKEA
chique, mas com gosto: mobília simples e branca, umas quantas suculentas
na mesa de centro na sala de estar, aquele candeeiro de pé que toda a gente
teve em algum momento da vida.
Mostro-lhe o meu carregador.
– Trouxe isto – digo. – Mas está a parecer-me que se calhar não vou
precisar?
– Não fui muito subtil, pois não?
– Eu estou aqui, portanto conta como vitória.
Quando o acompanho até à cozinha, as pontas dos seus dedos tocam-me
ao de leve no fundo das costas. É um crime, as coisas que aqueles pequenos
toques me fazem.
As frigideiras de ferro fundido estão penduradas do teto.
– Restaurei as frigideiras deste fim de semana ontem ao final do dia – diz-
me. – E uma delas está aí mesmo. – Aponta para o forno.
– Piza?
– A melhor piza da tua vida, porra – corrige ele.
– Isso é um passo consideravelmente além daquela Hot Pocket.
Ele encolhe os ombros.
– Não é muito divertido cozinhar só para mim. E achei que te devia isto,
depois do incidente com a massa.
Isto parece um encontro amoroso. Isto não pode parecer um encontro
amoroso.
– Certo. Então isso e o carregador... são as únicas razões para eu estar
aqui?
As suas faces ruborizam-se.
– A piza está quase pronta. Podemos comer primeiro e falar depois?
Queria um sítio onde pudéssemos fazer isso, que não fosse no trabalho.
– Claro – digo, mas o nó de pavor no meu estômago contrai-se mais.
Depois do jantar, ele vai explicar-me muito delicadamente que não
podemos repetir o que fizemos no fim de semana, e eu vou estar tão
enamorada da piza que nem me vou importar. Só pode ser essa a sua
estratégia.
Ele tira a piza do forno, a borbulhar, fragrante e perfeita. Honestamente, a
sua estratégia é capaz de funcionar. Prepara uma salada rápida, com alface
pré-lavada com raspas de cenoura, um pouco de azeite e vinagre. Depois
tira uma garrafa de vinho da prateleira de cima do frigorífico, a fazer uma
careta ao rótulo.
– O vinho de hoje é uma garrafa vintage de Mixórdia de Dois Dólares –
diz ele, a tirar dois copos de vinho de um armário. – Espero que aguentes o
nível de extravagância.
Sentamo-nos à sua mesa branca do IKEA, que tem apenas duas cadeiras.
– Que achas? – pergunta-me, esperando pela minha avaliação antes de
começar a comer.
Provo um pedacinho denso, cheio de queijo e molho.
– Oh. Oh, merda, é mesmo bom.
– É só um hobby – diz ele, mas vejo que ficou satisfeito. – Se bem que
sou capaz de ouvir um ou outro podcast de culinária. Mas tenho de pedir
desculpa por esta salada tão triste. Queria que achasses que sou, tipo, um
adulto mais ou menos funcional, capaz de preparar refeições com mais do
que um grupo de alimentos.
– Mas o que é um adulto funcional? O meu jantar de ontem consistiu em
dois bagels.
A piza quase me queima a língua, mas está tão boa que não me importo.
Para meu espanto, o resto do jantar não é nem de longe a tortura que eu
achei que seria quando Dominic pediu para adiarmos a nossa iminente
conversa séria. Depois de Orcas, talvez nada nele devesse surpreender-me.
– Estava a pensar no que falámos no fim de semana, acerca de não termos
muitos amigos – digo quando já só há migalhas nos nossos pratos. – E tive
uma ideia. Devíamos desafiar-nos um ao outro a marcar uma saída com um
amigo.
Para além disso, já andava a pensar convidar Ruthie para tomar um copo
outra vez, ou talvez para jantarmos.
– Uma saída com um amigo? – pergunta ele, mas os cantos da sua boca
curvam-se para cima. – Está bem. Desafio aceite. – O seu dedo indicador
sobe e desce pelo pé do copo de vinho. – Por falar no fim de semana...
diverti-me muito.
– Eu também – digo. – E... não me opunha a que acontecesse outra vez.
Se tu sentires o mesmo.
Em resposta, ele estica o braço pela mesa e vira-me a mão para me
percorrer a palma da mão com o mesmo dedo. Até ao pulso, e descreve um
círculo à volta da veia a latejar. Aquele pequeno toque intencional basta
para me fazer tremer. Ele deve senti-lo, porque me puxa da cadeira para si.
– Olá – digo quando já estou diante dele, com as pernas encostadas aos
seus joelhos. Estou muito, muito contente por me ter enganado quanto à
direção que esta conversa tomou.
– Olá.
Ele acaricia-me a parte de trás das costas e, quando me segura o traseiro e
me puxa para o seu colo, torna-se evidente que qualquer que fosse a
conversa que íamos ter vai ter de esperar.
Parece diferente, beijá-lo no seu apartamento, na sua cozinha, sentindo-
lhe a acidez do vinho na boca. Os nossos lábios encaixam-se como se não
se tivessem conhecido apenas há dois dias. Ele passa as mãos pelas minhas
pernas, sobe-as pelas minhas costas, enreda-as no meu cabelo. Beijamo-nos
e beijamo-nos e eu encosto-me à suavidade da sua camisa, em busca de
algo mais duro. Por fim, abro-a, botão a botão, explorando-lhe os peitorais.
Ele está ereto debaixo de mim e eu posiciono-me de forma a senti-lo
exatamente onde quero. Quando me baloiço contra ele, ele geme ao meu
ouvido. Seria capaz de passar o resto da noite a ouvir aquele gemido.
Provavelmente, até mais tempo.
– Tu és cruel – resmunga ele enquanto me roço para a frente e para trás
por cima da frente retesada das suas calças de ganga.
Ele levanta-se comigo à sua volta e eu pergunto-me se este será o seu
movimento típico ou se simplesmente me encaixo perfeitamente nele.
Depois de se levantar, cambaleamos pelo corredor até ao quarto dele.
Suavemente, afasto-me para assimilar tudo. O quarto é pequeno e tem
uma cama de casal com uma colcha azul-escura simples. Mais uma vez, a
mobília é do IKEA, uma estrutura básica de cama e uma cómoda – e, por
cima desta, uma embalagem de preservativos. Como se estivesse à nossa
espera.
Não posso deixar de rir e, apesar disso, saber que ele o planeou faz-me
querê-lo ainda mais.
– Queria estar preparado – diz contra a minha boca, mas também está a
rir.
– Eu também trouxe uns quantos na mala.
– Sabes... – Ele cria cerca de meio metro de distância entre nós. Tem o
cabelo desgrenhado, as faces coradas. O meu casaco ficou algures no
corredor e tenho as calças de ganga semiabertas. – Podes mudar de ideias a
qualquer momento.
– Se não soubesse melhor, pensaria que estavas a tentar livrar-te de mim.
– Não. Juro. É só que... não tenho jeito para isto. Já te disse, só estive
com uma pessoa. Não sei como é que estas coisas costumam ser. Ou de que
é que devemos falar. Quero fazer isto contigo. Muito. – Quando volta a rir-
se, atinge-me o coração mesmo no centro. – É tudo em que tenho pensado
desde sábado à noite. Mas quero que saibas que, se decidires que não
queres, não faz mal.
Tento não reparar que quero fazer isto contigo não é quero estar contigo.
Mas, meu Deus, eu também quero isto – tanto que nem consigo pensar
como deve ser.
– Dominic – digo, eliminando o espaço entre nós e pousando as mãos no
seu peito, a decidir ser o mais direta possível. – Quero que me fodas.
Não é preciso mais nada. Ele inclina-se e esmaga-me a boca com a sua,
empurra-me para trás até que caio na cama e o puxo para que se deite
comigo. Vesti um sutiã e umas cuecas de renda preta depois do trabalho, e
valeu a pena pela forma como geme quando me desabotoa a blusa. Talvez
não se tenha importado com o meu sutiã de desporto, mas não há dúvida de
que não detesta esta roupa interior.
Agora estamos a despir-nos um ao outro, a minha blusa e o sutiã caem no
chão, com as calças de ganga e os boxers dele a amontoarem-se ao lado.
Ele beija-me os seios enquanto me faz descer as calças de ganga pelas
pernas.
– Podes dizer aquela coisa outra vez? O que querias que eu fizesse?
– Que coisa... oh. – Sorrio, ao mesmo tempo que lhe arranho as costas. –
Quero que me fodas.
O seu membro pulsa contra a minha coxa nua e ele livra-se das minhas
calças de ganga num último movimento.
– Sim. Isso.
Com que então Dominic Yun gosta de palavras ordinárias.
Posso fazer-lhe a vontade.
Depois ele volta para cima de mim, a beijar-me profunda e intensamente
enquanto os seus dedos me acariciam a seda das cuecas. Se tiver de
continuar a usá-las muito mais tempo, sou capaz de morrer.
– Como é que é possível que saibas ainda melhor do que da última vez? –
A sua boca desce-me pelo corpo, mas, quando ele baixa a cabeça para o
meio das minhas pernas, eu encolho-me instintivamente. – O que foi? Não
devo...
– Não, não – apresso-me a dizer, tentando puxá-lo de novo para mim, mas
ele não se mexe. – É só que... não tens de o fazer. Realmente não... não sei
se consigo... – E é a minha vez de ficar encavacada.
Um sorriso matreiro curva-lhe os lábios.
– Shay Goldstein. Nunca tiveste um orgasmo com sexo oral?
Abano a cabeça, a sentir o rubor a subir-me pelo pescoço.
– Quero dizer, não me importo. Mas se não acontecer – apresso-me a
acrescentar –, não faz mal. Podemos... sabes. Saltar essa parte.
– Não te importas – diz ele, num tom factual, com o dedo a rasar-me a
seda húmida entre as minhas coxas. – Achas que não conseguia deixar-te
ainda mais molhada do que já estás?
– Eu... tenho a certeza de que conseguias – digo enquanto ele continua a
mexer o dedo num círculo tortuoso. Meu Deus. Ele não pode ser uma
espécie de génio do sexo oral, pois não?
Ele baixa-se para me beijar ao longo da parte interna das coxas, primeiro
suavemente. Depois tira-me as cuecas e beija-me por baixo do umbigo
antes de descer mais.
– Então isto é uma coisa com que não te importas?
A sua língua começa devagar, um sussurro de prazer enquanto me segura
com uma mão na minha anca. Passa um dedo para dentro de mim – mas só
por um instante, pois logo o tira. Agarro-lhe o cabelo quando ele volta a
fazê-lo.
– É melhor parar?
– Não te atrevas.
Ele olha para mim com um sorriso trocista e volta a baixar a cabeça. Só
quando estou desesperada pelo êxtase é que ele encosta a língua ao meu
clítoris e se instala num ritmo que me deixa a cabeça a andar à roda.
Agarro-me a tudo – ao seu cabelo, aos lençóis, à parte de cima de uma
orelha dele. Ele não para, determinado na sua missão. Estou tonta e perdida
e oh e sim e depois venho-me intensamente contra a sua língua, sem me
preocupar com o barulho que faço ou se alguém na vizinhança me ouvirá.
– Isso – digo quando volto a conseguir formar palavras –, foi mesmo
incrível, caramba.
Ele tem a boca reluzente e está a sorrir como se me tivesse dado o melhor
presente que alguma vez recebi. Estou ávida por mais, a apontar
desesperadamente para os preservativos em cima da cómoda. Ele põe um
depressa e depois debruça-se sobre mim, posicionando-se junto à minha
entrada.
– Estás bem? – pergunta-me, ofegante.
– Vou ficar ainda melhor quando estiveres dentro de mim. – Devagar,
devagar, ele desliza para dentro... e depois torna a sair. – Meu Deus. Gostas
mesmo de provocar.
– Isto vai fazer-me parecer um garanhão e tanto, mas como já se passou
algum tempo, e como vires-te assim deve ter sido a coisa mais excitante que
alguma vez vi, não sei quanto tempo é que vou aguentar – reconhece. – Por
isso, estou a tentar... sabes.
– Vou tentar ser menos sexy?
Ele abafa uma gargalhada enquanto volta a entrar em mim. Esticando-me.
– Promete-me só que me dás outra oportunidade se desta vez durar uns
dez segundos, porque gostava de te foder de umas vinte maneiras
diferentes.
Meu Deus. Nunca falei tanto durante o sexo. Um ou outro comentário
atrevido, claro, mas não a franqueza que temos um com o outro. A
capacidade de nos rirmos. Era sempre uma corrida para despir a roupa, para
pôr coisa A em ranhura B. Isto é estranhamente libertador.
– Prometo – digo, e arquejo quando ele me preenche completamente.
Sabe tão bem tê-lo, parece-me tão certo que nem acredito que nunca
fizemos isto antes. Ao início, sinto-me fascinada a vê-lo bombear contra
mim, até que volto a fitar-lhe os olhos e puxo o seu rosto para o meu para
poder beijá-lo. Juntos, encontramos um ritmo, e ele deve reparar na minha
mão a descer entre nós, pois vai ao seu encontro. Um músculo no seu
maxilar, que lhe desce pelo pescoço, contrai-se, como se ele estivesse a
tentar conter-se.
Arqueio as costas para o receber mais profundamente enquanto ele puxa
um mamilo para a boca e o suga com força até eu me vir de novo. Depois
de umas quantas investidas, o seu corpo treme em cima do meu e ele solta
um som puro e rouquejado, enterrando-se ainda mais profundamente do que
eu julgava possível. Não faço ideia de quanto tempo dura, só que estou
completamente extenuada quando acaba.
Ele afasta-se, tira o preservativo e dá-lhe um nó antes de o deitar ao lixo
na casa de banho. Sinto de imediato a falta do seu calor, mas não sei bem o
que fazer agora. Não vou passar cá a noite – não é isso que isto é. Se eu
passar cá a noite, se ele sequer quiser que eu o faça... vou perder-me por
completo com ele.
Por isso, passo as pernas para o lado da cama, o que o faz franzir o
sobrolho quando volta.
– Vais-te embora? – pergunta ele, e a surpresa na sua voz leva-me a
arrepender-me de me ter mexido tão depressa.
– Não tenho de ir. – Deixo-me afundar de novo na cama.
– Ainda bem.
Ele deita-se a meu lado e puxa-me para o seu peito. Encosto a cara ao
espaço onde o seu pescoço se junta ao ombro e fico a ouvir o ritmo da nossa
respiração.
Dá cabo de mim, a forma como ele passa de sexy a doce numa questão de
minutos. É demasiado boa, esta proximidade, o calor do seu corpo e o
cheiro terroso a sexo.
– Dominic – começo. – Devíamos falar sobre isto.
Uma pausa, e depois:
– Acho que provavelmente devíamos.
Ele endireita-se a meu lado e ambos ficamos sentados. Não quero ter esta
conversa nua, pelo que agarro na minha blusa, e ele deve perceber a dica
porque veste uns boxers.
– OK – diz-me. – Vamos falar.
– Isto – aponto para a cama –, foi extremamente agradável.
– Concordo.
O problema desta conversa é que não sei para onde ir a partir daqui. Não
sei o que quero, e é tão difícil perceber o que lhe vai pela cabeça que nem
seria capaz de adivinhar o que ele quer.
Quando fico demasiado tempo calada, ele diz:
– Se calhar eu podia aprender a ter uma relação descomprometida.
– Oh – exclamo, sem saber o que sentir acerca disso. – Sim?
Não posso dizer que não esteja ansiosa quanto a manter o programa fora
de perigo. Esta é capaz de ser a única maneira de o fazer. Ele acena com a
cabeça.
– Somos adultos. Estamos a ter cuidado. Se conseguirmos comportar-nos
normalmente no trabalho, não vejo porque havemos de parar. – Ele faz uma
pausa e olha para baixo, onde, no espaço entre nós, entrelaça os dedos nos
meus. – Se não te importas.
Descomprometida. Não me pareceu nada descomprometido quando me
perguntou se nunca tinha tido um orgasmo com sexo oral. Não me pareceu
descomprometido quando me disse que queria foder-me de umas vinte
maneiras diferentes. E definitivamente não me pareceu descomprometida a
forma como passou o braço pelas minhas costas e começou a acariciar-me
as pontas do cabelo.
– Descomprometida – digo, a tentar imaginar como será. Esgueirarmo-
nos no trabalho, aparecer no seu apartamento à noite. – Sim. OK. Então...
será que devíamos estabelecer algumas regras? Na verdade, também nunca
fiz isto, mas... não estou a ir para a cama com mais ninguém.
Ele faz uma cara como se isso nunca lhe tivesse passado pela cabeça.
– Eu não o faria.
Expiro de alívio.
– E nada de passarmos a noite em casa um do outro, presumo?
– Oh. OK – diz ele com outra expressão estranha.
– Bom – digo, esperando que ele não se aperceba de como estou
hesitante.
– Bom – concorda ele, e aperta-me a mão. – Ainda bem que já definimos
isso.
Mas eu pergunto-me porque é que descomprometida terá sido o seu
primeiro instinto. Se não lhe passou pela cabeça que isto pudesse ser mais
do que algo sem compromissos, tenho de me assegurar de que também não
passa pela minha. É mais seguro, na verdade, envolver-me com alguém tão
claramente errado para mim. Isso só pode impedir que eu me apegue.
A forma como agimos na ilha, aquelas conversas até altas horas... isso era
amizade. Não era o prelúdio para uma relação. Sendo realista, não há nada
que eu possa ter com ele que não seja sem compromissos.
Se só posso tê-lo assim, então tenho de o aceitar.
Conversa de Ex, Episódio 7: Ama-me Tinder
Transcrição

SHAY GOLDSTEIN: Esta é boa. Uma pessoa num fato de mergulho azul-
claro, com uma legenda que diz apenas: «Tens coragem suficiente para
descobrir o que há por baixo?»
DOMINIC YUN: E esta? «Sou espontânea e impulsiva. Tenho os lábios do
meu ‘ex’ tatuados algures no corpo. Só te mostro no nosso terceiro
encontro.»
SHAY GOLDSTEIN: E depois um emoji a piscar o olho?
DOMINIC YUN: Há sempre um emoji a piscar o olho.
SHAY GOLDSTEIN: A menos que seja um emoji com um sorriso trocista.
DOMINIC YUN: Será má altura para referir a tatuagem do teu nome que
fiz no fundo das costas? É de um bom gosto incrível.
25

Descomprometido revela-se mais divertido do que eu esperava.


Uns dias mais tarde, Dominic senta-se ao meu lado durante uma reunião e
pousa a mão na minha coxa debaixo da mesa. De vez em quando, o seu
polegar rasa na pele nua por baixo da minha saia.
Na semana a seguir, quando damos por nós sozinhos naquele elevador
maravilhosamente lento, ponho-me de joelhos, a ver quão perto do êxtase
consigo deixá-lo antes de chegarmos ao piso do parque de estacionamento.
Quando saímos do elevador como se nada tivesse acontecido, Dominic a
apertar o cinto com gestos sub-reptícios, sigo o carro dele até ao seu
apartamento e experimentamos três posições e meia das vinte que ele tinha
referido.
Ainda bem que não tenho de me preocupar se esta coisa com Dominic é
mais do que algo sem compromissos, porque Ameena recebe a proposta de
emprego na sexta à tarde. Quando me telefona a contar, já aceitou. Ela é
uma excelente profissional, pelo que não me surpreende que a tenham
selecionado. Tampouco me surpreende que tenha aceitado, já que é o seu
emprego de sonho.
Aquilo que me surpreende: que, quando chego ao seu apartamento perto
de Capitol Hill, na sexta ao final do dia, para irmos jantar fora e celebrar, já
haja caixas por todo o lado.
– Sou capaz de me ter precipitado um bocadinho – diz ela. – Querem que
eu comece já no próximo mês, por isso vamos apanhar um voo até lá no
próximo fim de semana para vermos apartamentos. Talvez até uma casa... o
custo de vida lá é muito mais baixo do que aqui.
– Não é assim tão mau aqui – protesto debilmente, embora seja. Mas o
que se passa é que, em parte, estou sentida por ela ter o emprego há menos
de vinte e quatro horas e já estar a queixar-se da cidade em que ambas
crescemos.
Ela arqueia uma sobrancelha pintada. Quando éramos miúdas,
costumávamos ver-nos ao espelho, a praticar levantar uma sobrancelha e
depois a outra. Eu nunca consegui, mas Ameena dominou a técnica.
– A nossa renda é de quase três mil por mês.
Estão uns quinze graus ventosos, o que é normal para maio em Seattle,
pelo que Ameena pega num casaco antes de ela e TJ me seguirem pela
porta do seu prédio do início do século xx. Foi uma pechincha, quando
assinaram o contrato de arrendamento, há uns anos. Podem ir a pé a vários
bares, restaurantes, salas de concertos e butiques giras. Coisas que parecem
importantes no início da casa dos vinte, mas talvez não tão cruciais no final,
e menos ainda quando se passa dos trinta, imagino. Da minha casa, só dá
para ir a pé até à gasolineira. E, claro, a outras casas.
TJ põe um braço à volta do ombro dela enquanto passamos por grupos de
hipsters de Capitol Hill a fumarem os seus cigarros eletrónicos à porta de
bares. Tento não pensar que, se Dominic fosse meu namorado, eu o traria a
este jantar em vez de vir sozinha, desajeitadamente atrás deles porque o
passeio não é suficientemente largo para três pessoas.
– Meu Deus, que barulheira – comenta Ameena quando nos sentamos a
uma mesa de um bar de tapas onde já viemos algumas vezes. – Nunca me
dou conta de como Seattle é ruidosa.
– Tenho a certeza de que também há bares na Virgínia – digo entre
dentes. Não quero ser desagradável, mas será que ela não se apercebe de
que eu vou continuar a viver neste sítio barulhento e caro? Sem ela?
Pedimos bebidas e uma mancheia de pequenos pratos para começar. Na
mesa ao lado da nossa, um trio de tipos da tecnologia fala do Tesla que um
deles comprou. Tem a lata de dizer que não acredita que teve de esperar
tanto para que lho entregassem.
– Imagina queixares-te do teu Tesla – diz TJ, a bebericar uma bebida roxa
demasiado cara.
– Acrescenta isso à lista de coisas de que não vou sentir falta – diz
Ameena.
Isso já me incomoda.
– OK, a sério?
A sobrancelha dela volta a erguer-se, daquela forma ensaiada.
– O que foi? – pergunta, com a voz eivada de frustração.
– Tu. De repente a falares mal de Seattle. Estou encantada por ti, a sério
que estou, e sei que é suposto isto ser uma celebração. Mas sabes quanto me
custa estar sentada ao pé de ti enquanto só falas de como estás feliz por ires
sair daqui?
– Shay... não estava... quero dizer – responde ela, a tentar recuar. –
Merda. Desculpa. Fui... exagerei um bocado. Sabes que detestei trabalhar
em recrutamento empresarial. E já há alguma tempo que ando farta de
Seattle.
– Bem que me enganavas.
Ameena fita o seu copo, a remexer na palhinha.
– Olha. Se calhar tu és feliz aqui, a fazer o mesmo que sempre fizeste. A
trabalhar no mesmo sítio onde trabalhas desde que acabaste a faculdade.
Mas eu sempre quis sair. Assim que acabei o curso... – Ela interrompe-se,
como se se desse conta de que ia dizer algo que não queria.
– Ameena – diz TJ em voz baixa, a pousar a mão na dela. – Tens a certeza
de que...
Ela dirige-lhe um pequeno sorriso, como se para o assegurar de que vai
ficar bem depois de largar qualquer que seja a bomba que tenha para largar,
o que me deixa logo nervosa.
– Tenho. – Vira-se de novo para mim. – Assim que acabei o curso, recebi
uma oferta de emprego de um grupo ambiental em Nova Iorque.
Isto é novidade para mim.
– Tu... o quê?
– Pois. – Faz um esgar, talvez já arrependida de ter revelado isto. – Mas
recusei. Tu ainda estavas a debater-te com... com tudo, e eu não suportava a
ideia de te deixar.
As palavras dela caem como tijolos no chão do bar.
– Eu... eu não te obriguei a ficar – digo, incapaz de processar o que está a
dizer-me. – Não fazia ideia. Se me tivesses dito, eu ter-te-ia encorajado a
aceitar!
O facto de ela ter falado disto com TJ, de os dois terem decidido
esconder-me esta informação, pelo menos até agora... isso abala-me. E é
claro que ele sabe. TJ é o seu número um. É o que acontece quando se
encontra o tal. Vão mudar-se para a Virgínia juntos e deixar-me para trás. E,
desta vez, ela não tem de recear que eu não a deixe avançar.
– Talvez tivesses, mas mesmo assim não sei se teria aceitado.
O álcool queima-me a garganta.
– Lamento que tenhas tido tanta pena de mim que não tenhas podido
aceitar o teu emprego de sonho.
Nessa altura, o meu pai tinha morrido quatro anos antes. Eu não
continuava feita um caco. Não. Tinha acabado de começar o estágio na
Pacific Public Radio. Isso fazia-me feliz.
Não fazia?
– Só me tinhas a mim – diz Ameena. – Só me tinhas a mim e eu sentia-
me... não sei, amarrada a ti.
Amarrada. A palavra atinge tão bruscamente o rosto de TJ como o meu
coração.
– Sentias-te amarrada a mim?
– Não, não, não. Terrível escolha de palavra. Não amarrada, apenas...
Não a deixo acabar.
– Não te tinha só a ti – riposto. Os tipos da tecnologia na mesa ao lado
estão a observar-nos, aparentemente mais interessados nisto do que no
Tesla. – Tinha a minha mãe. Tinha o meu trabalho.
Espero que, quando as palavras me saem dos lábios, soem menos
patéticas, menos artificiais, mas não. Não soam.
– Certo. O teu trabalho. Que te consome, que te faz chegar atrasada a
tudo, que se tornou toda a porra da tua personalidade.
– Ameena – começa TJ, como se pressentisse que ela está a ir longe de
mais. Mas a expressão dela está mais intensa do que alguma vez a vi, com
as sobrancelhas unidas e o maxilar contraído. Eu e Ameena não gritamos.
Não discutimos.
Talvez nos tenhamos vindo a guardar para esta.
– Não, ela precisa de ouvir isto. É para o bem dela. – As suas feições
suavizam-se, mas as suas palavras mantêm-se incisivas. – Adoro-te. A
sério. Mas alguma vez pensaste que se calhar o teu pai te prende? Que
continuas na PPR para viveres um sonho que o teu pai queria, mas que
nunca paraste para pensar se tu ainda o querias? Estás a mentir a ti mesma,
Shay – continua. – Estás a mentir aos teus ouvintes acerca do Dominic e
estás a mentir a ti própria. Dizes que o que quer que esteja a acontecer com
ele não é a sério para que nada tenha de mudar.
Mas eu quero que as coisas mudem. Penso-o, mas não consigo dizê-lo.
Foi por isso que aceitei este lugar de locutora, não foi?
– Por mais que gostasse de continuar a discutir em público neste bar de
hipsters que representa tudo o que Seattle tem de mal – digo, a pegar na
mala –, vou-me embora.
– Shay, espera – pede TJ, mas é em vão. Já vou a meio caminho da porta.
Por sorte, chego à rua antes de começar a chorar, e limpo as lágrimas o
mais depressa que posso, pois não quero ser a mulher que chora em público.
E, apesar de não dever, apesar de provavelmente isso pôr em causa a
definição de «descomprometido», mando uma mensagem de texto a
Dominic enquanto me dirijo para o meu carro.
*

Podes vir a minha casa? Preciso mesmo de falar com alguém.


*

É um alívio quando a sua resposta chega pouco depois.


*

Vou já.
26

– Não tinhas de trazer nada – digo quando Dominic chega, com roupas de
fim de semana, uma T-shirt preta e umas calças de ganga deslavadas, e um
saco de plástico de takeaway. O meu estômago dá horas, lembrando-me de
que deixei o jantar com Ameena sem ter comido nada.
Ele faz uma careta.
– Merda, que vergonha. Não é para ti.
Puxo-o para dentro e o Steve arranha-lhe os tornozelos até que ele se
baixa para o coçar atrás das orelhas.
– Não sabia se tinhas jantado – diz ele, ao passar-me o saco –, mas achei
que, no mínimo, podias comer o que sobrar amanhã de manhã. Ou à tarde,
se por acaso não achas que as sobras sabem melhor frias às dez da manhã
de um domingo.
– Espera. Tu achas?
– Claro, porque não sou um monstro que queira obliterar o sabor da
comida de restaurante com um micro-ondas.
– Piza fria, sim. Mas estás a dizer-me que comerias de bom grado, tipo,
lasanha fria? Ou um prato frio de enchiladas?
– Comeria, e já o tenho feito.
Abro o saco.
– Comida tailandesa? Do Bangkok Bistro? Está tudo perdoado.
– Há umas semanas disseste que era o teu takeaway preferido – diz ele
com um encolher de ombros, como se não fosse nada de mais.
Ele trouxe comida para mim. Para nós. É querido, talvez demasiado para
o que quer que seja esta situação de amigos coloridos. Por outro lado, talvez
a minha mensagem desesperada já tenha esbatido essa linha. Neste
momento, estou demasiado esfomeada e emocional para me preocupar com
isso.
Vamos até à cozinha, onde tiro os pratos e os talheres enquanto ele
desembrulha pad thai de frango, caril verde e sopa tom yum.
– Era capaz de tomar banho nesta sopa – digo-lhe. – Obrigada por teres
feito isto. Estou cheia de fome.
Ele afaga-me o braço com as pontas dos dedos enquanto eu empilho
pratos perto dos recipientes da comida.
– Não tem problema.
Como a comida continua quente, faço-lhe uma visita guiada rápida à casa,
indicando-lhe todos os lugares acolhedores que o Steve reclamou como
seus. Dominic encosta-se à ombreira do meu quarto enquanto lhe mostro as
paredes que finalmente decidi pintar de verde-menta no fim de semana
passado, e tem um ar tão natural ali que nem consigo corresponder-lhe ao
olhar.
– Queres beber alguma coisa? – pergunto, enquanto o levo de novo para a
cozinha. – Água, cerveja, vinho? Lamento, mas não tenho vinhos de marca
branca. São um bocadinho refinados de mais para o meu gosto.
Em resposta, ele esboça um pequeno sorriso, mas parece incomodado.
– Pode ser água – diz ele. – E a tua casa é fantástica. Devias estar
orgulhosa. Tens uma casa em Seattle e ainda nem fizeste trinta anos. O
mercado imobiliário anda...
– Eu estou orgulhosa – digo, interrompendo-o antes que se aproxime
demasiado das queixas de Ameena. Enquanto lhe sirvo um copo de água,
apercebo-me de que é verdade: tenho orgulho deste espaço que consegui
tornar meu.
Levamos os pratos para a sala de estar, onde me deixo cair no sofá ao
lado dele. A sua presença faz-me sentir um pouco menos pesada do que
com Ameena. É demasiado fácil descalçar-me e cruzar as pernas, ficando
com os joelhos a tocar nos dele. E pergunto-me se para ele será fácil pousar
uma mão no meu joelho, com o polegar a acariciá-lo. Pergunto-me se sabe
sequer como isso me tranquiliza.
– O Steve está bem? – pergunta-me.
Aponta com o garfo para o sítio onde Steve se encontra, do outro lado da
sala de estar, a fitar intensamente a parede.
Contenho-me para não devorar a sopa de um só trago.
– Oh, isso. Agora faz essa coisa como se tivesse uma anomalia técnica.
Não consigo descrevê-lo de outra maneira. Fica com a perna parada
enquanto se coça, a olhar para o nada durante algum tempo. Ou entra na
casa de banho e fixa a parede durante dez minutos. É absurdo.
– Que cãozinho mais bizarro.
– Que cãozinho mais bizarro e perfeito – corrijo, e depois chamo-o. O
Steve sai do transe e salta para o sofá entre nós, a empurrar-me para
conseguir alguns dos carinhos aparentemente superiores que Dominic lhe
faz na cabeça. Que cãozinho mais bizarro e desleal.
– E tu estás bem? – pergunta-me Dominic enquanto o coça. O Steve
entrou noutra espécie de transe. – Podemos falar, se quiseres. Na tua
mensagem parecias um bocado...
– Em pânico?
– Bem... sim.
Bebo um grande gole de água antes de pousar o copo na mesa de centro.
– Sabes que algumas escolas têm aqueles concursos de superlativos no
último ano? Maior sedutor, melhor vestido, essas coisas?
Dominic esfrega a nuca, com um ar envergonhado.
– Votaram em mim para, hã, quem tinha maior probabilidade de ser bem-
sucedido.
Bato-lhe com uma almofada.
– Oh, meu Deus, é claro que sim. Bem. Então, contei-te que o meu pai
morreu quando eu estava no décimo segundo. E, oficiosamente, mas
suficientemente oficial para eu saber que toda a gente falava disso, tornei-
me a Rapariga Cujo Pai Morreu Quando Ela Andava no Décimo Segundo
Ano. É assim que toda a gente da escola secundária se lembra de mim, com
essa história triste. Eu sei que não sou a única pessoa a ter perdido o pai ou
a mãe, mas parece que nunca consegui livrar-me desse rótulo.
– Lamento – diz ele. – Não vou fingir que sei como seja isso. Mas porque
é que isto vem à baila agora? O que aconteceu?
Conto-lhe o que se passou no que devia ter sido o jantar de celebração de
Ameena e ele inspira longa e lentamente.
– Ela não pode culpar-te por isso – diz ele. – Tu sabes, não sabes?
– Logicamente, sim. Mas... – Inspiro fundo, a admitir o que me tem
preocupado desde que Ameena mo atirou à cara, ou talvez até já durante
mais tempo do que gostaria de admitir. – Às vezes pergunto-me se estou
demasiado ligada à rádio. Para o caso de não teres reparado, é basicamente
a minha vida inteira.
Mas não me parece trabalho, quando preparo o nosso episódio sobre luto,
agendado para daqui a duas semanas.
Ele fica calado durante um momento.
– Mas tu adoras apresentar. E tens jeito.
– Já andamos enrolados. Não tens de me dar graxa.
– Não era graxa. Tens mesmo. És capaz de reagir depressa, és divertida
sem esforço e é simplesmente... é engraçado ouvir-te.
Quero desfrutar daqueles elogios, mas não consigo deixar de pensar no
que aconteceu no bar com Ameena e TJ.
– É verdade que adoro estar em direto. Não é tanto a questão de
apresentar, mas mais de ter tido o mesmo emprego desde que acabei o
curso. Isso é normal?
– Se encontras a coisa certa, claro. – Fita-me intensamente. – Eu vou ser o
teu «ex» durante todo o tempo que queiras. Eu sei que dissemos seis meses,
mas estou contigo até ao fim. Espero que saibas isso.
– Eu... não sabia. – O alívio é morno e imediato. – Mas obrigada. Acho
que pensava apenas que, por esta altura, já teria tudo resolvido. Tenho quase
trinta anos e não sei se me sinto mais perto disso do que quando tinha vinte
e um ou vinte e cinco. Há tanta pressão para ter estas merdas todas
resolvidas e eu não faço ideia do que ando a fazer. Queria o tipo de
casamento que os meus pais tiveram, e se calhar até queria uma família,
mas isso ainda nem é uma coisa que eu consiga imaginar. Só há, tipo, duas
coisas que eu sou capaz de cozinhar como deve ser. A maior parte das
coisas que como vem de kits pré-preparados. Sou sócia de um ginásio, mas
nunca lá vou. Passo a maior parte dos fins de semana a trabalhar. Às vezes
parece-me que estou a fazer de conta que sou adulta, como se estivesse
sempre a olhar à volta, à espera de que um verdadeiro adulto me diga o que
fazer se o triturador de lixo começar a fazer um barulho esquisito ou se
devo pôr mais dinheiro no meu fundo de poupança para a reforma. Só que...
sinto-me completamente perdida.
Rio-me, apesar do que sinto, mesmo com lágrimas a arderem-me nos
olhos.
Tiro os óculos e passo a mão pela cara, a tentar que ele não repare. Chorar
em frente ao tipo com quem se tem uma relação descomprometida – é capaz
de também não ser permitido. Mas é claro que ele vê e, quando me puxa
para si no sofá, deixo que o faça.
– Eu acho que tu és incrível – diz ele. – Intimidas-me desde que comecei
a trabalhar na PPR.
– Pois.
– A sério. – Passa os dedos pelo meu cabelo e eu sinto, com um aperto no
peito, que está a desenredá-lo delicadamente. – Eras tão confiante, falavas a
linguagem da rádio com tanta fluência que me fazias parecer um idiota por
não perceber.
– Desculpa – digo, e encolho-me.
– Mas eu era um idiota – continua ele. – Havia tanta coisa que não sabia
e, apesar disso, vinha cheio de mim só por ter um curso avançado. E, para
além disso, estás a manter um cão de quatro quilos vivo. Eu acho que isso é
um certo sucesso. Eu mal me lembro de dar água às minhas plantas, e elas
só precisam de ser regadas uma vez por semana.
– Três quilos. Mas tem energia de cão grande.
Ele limita-se a rir e a abraçar-me com mais força, enquanto os seus dedos
me massajam o couro cabeludo. É cruel que saiba tão bem – porque é claro
que é passageiro. Não sei qual será a nossa data de validade, mas, nalgum
futuro próximo, ele vai deixar de ser meu. Mal o é, agora.
– Eu também achava que tinha as coisas resolvidas – diz ele. – O
mestrado, a namorada de há muito tempo. Pensava que íamos viver juntos
para algum sítio, que ela continuaria a estudar medicina e eu faria
reportagens nobres, para abater uma empresa malvada, e que depois a
pediria em casamento e teríamos uma cerimónia grande e cara.
– Gostavas de ter isso? – pergunto.
Ele hesita apenas um momento antes de responder:
– Não. Não gostava. Durante os primeiros meses depois de termos
acabado, sim, absolutamente. Isso era quem eu era. Não sei se teria acabado
de crescer sem conhecer essa dor. E agora é apenas algo que trago comigo,
assim como tu trazes o teu pai.
Estendo a mão para lhe afagar a face. A barba já começou a crescer –
sentia-lhe a falta. Ele não tem todas as respostas porque ninguém poderia
tê-las, mas pelo menos faz com que tudo pareça mais leve.
Eu estava convencida de que sem compromissos seria seguro, por ele ser
tão diferente de qualquer outra pessoa com quem eu tenha andado antes;
todos eles pareciam ter as suas vidas resolvidas. É absurdo que este tipo, o
meu suposto ex-namorado, pudesse ter sido um grande namorado. Eu
achava que gostava do perigo de estar com ele, do segredo que escondemos
de toda a gente no trabalho há duas semanas, mas sou capaz de gostar mais
disto.
Preciso de parar de pensar estas coisas.
– Hoje almocei com um velho amigo, um rapaz chamado Eddie – diz
Dominic de súbito. – Éramos os únicos coreanos na nossa turma do sexto
ano e eu achava que isso nos uniria para sempre, mas perdemos o contacto
um com o outro depois da secundária. Ele trabalha numa startup
ultramoderna e provavelmente vai ficar milionário assim que forem
comprados. Ainda agora acabou com a namorada e também precisava de
falar com alguém. E foi ótimo. Até somos capazes de repetir.
– Ganhaste-me. Tenho andado a pensar convidar a Ruthie para bebermos
um copo depois do trabalho um dia destes, mas acho que tenho tido... outras
coisas em mente.
Ele acena com a cabeça e depois beija-me, e eu consigo bocejar a meio.
– Desculpa – digo, e tapo a boca. – Prometo que beijar-te não me dá sono.
Vejo as horas no telemóvel: é quase meia-noite. Não me tinha apercebido
de que tínhamos estado tanto tempo à conversa.
Ele aponta para a porta.
– É melhor...?
– Não – digo de imediato, ciente de que isso vai contra as regras do nosso
acordo, mas não me importa. – Detestaria que tivesses de conduzir a estas
horas. Se calhar podias... passar cá a noite?
– Tens a certeza? – O peso do seu olhar prende-me ao sofá.
– És capaz de ter de lutar com o Steve para conseguires um lugar na
cama, mas sim. Se quiseres.
– Eu gostava – diz ele.
Ao que parece, também não se importa que tenhamos acordado que não
dormiríamos em casa um do outro.
Tenho lembranças de Orcas assim que lhe passo uma escova de dentes
nova. Nada do que tenho lhe serviria, pelo que ele dobra as roupas com
cuidado antes de as deixar em cima da minha cómoda e mete-se na cama a
meu lado só de boxers.
– Estou mesmo cansada – digo, virando-me para ele. O cansaço dá cabo
de mim. Se calhar estou mesmo a ficar velha. – Se preferires ir embora, não
faz mal.
– Achas que me vou embora porque não vamos fazer sexo esta noite?
– Bem... sim.
Isso parece perturbá-lo.
– Podíamos estar a ouvir gravações antigas do Kent que eu continuaria a
querer ficar aqui contigo – diz ele. – Estou aqui por tua causa.
Mas as preocupações voltam a martelar-me o cérebro. Agora que optámos
por esta coisa descomprometida, ele deve querer explorar algo mais. Deixa-
me um bocado maldisposta, a ideia de Dominic ir à descoberta de outras
mulheres.
Penso de novo no que Ameena disse, acerca de que me agarrar ao meu
trabalho e aos meus confortos para que nada tenha de mudar. Isso não é
verdade. Neste momento, sinto-me absolutamente desesperada por uma
mudança. Se assim não fosse, não teria adotado o Steve, começado a
apresentar o programa ou a ir para a cama com Dominic. Ao manter isto
descomprometido – estou a proteger o programa, sim, mas, acima de tudo,
estou a proteger-me a mim mesma.
– Isto pode parecer ridículo, mas... queres conhecer a minha família? –
pergunta Dominic na penumbra. O candeeiro da minha mesa de cabeceira
ainda está aceso e agradam-me as sombras que projeta no seu rosto.
– O quê?
– Andam um bocado preocupados comigo. Por causa da história toda de
não ter amigos. Por isso, perguntaram-me se eu queria convidar a minha
coapresentadora para jantar.
– Mas não podem saber que nós...
– Não. Não podem.
Má ideia. Má ideia. E, apesar disso, não consigo impedir-me de
concordar.
– Claro – digo. – Não posso dizer que não esteja curiosa quanto à origem
de tudo isto. – Aponto para todo o seu corpo e ele sorri antes de se pôr em
cima de mim, pressionando-me contra o colchão.
Só nos beijamos, parando de vez em quando para nos rirmos, para
conversar ou para nos maravilharmos com o talento que o Steve tem para
nos empurrar aos dois para arranjar espaço para si mesmo. Amanhã vou
estar exausta, mas não me importa. Talvez seja masoquista, por gostar de o
ter aqui na minha cama, sabendo que não podemos ser mais do que isto.
Que até isto é esticar os limites do que somos e que é apenas uma questão
de tempo antes de estalarmos.
Não é a sério.
Mas não deixo de pensar: se não é, porque é que adormecemos com a
cara dele aninhada na parte de trás do meu pescoço e a sua mão na minha
anca?
DE: Yun, Dominic <d.yun@pacificpublicradio.org>
PARA: Goldstein, Shay <s.goldstein@pacificpublicradio.org>
DATA: 14 de maio, 15:52
ASSUNTO: Estúdio C

Olá, Shay,

Como verás no nosso calendário partilhado, reservei o Estúdio C das 16h às 16h15. Há
uma coisa que quero que oiças. Acho que vais gostar bastante.

Cumprimentos,
Dominic

DE: Goldstein, Shay <s.goldstein@pacificpublicradio.org>


PARA: Yun, Dominic <d.yun@pacificpublicradio.org>
DATA: 14 de maio, 16:19
ASSUNTO: Re: Estúdio C

Caro Dominic,

Tinhas razão. Foi um trecho de áudio que me agradou particularmente.

Com os melhores cumprimentos,


Shay
27

– Gostava de dizer que ouvimos falar imenso de si – comenta Margot Yun


depois de pegar no meu casaco no átrio de entrada da casa de infância de
Dominic. – Mas, francamente, não ouvimos quase nada.
Ponho um sorriso no rosto enquanto descalço os sapatos de milho que um
patrocinador nos enviou há umas semanas.
– A minha mãe queixa-se do mesmo – digo-lhe. – Eu e o Dominic somos
só... discretos.
– Eu acho que isso é louvável. – O pai de Dominic, Morris, tem menos
uns bons dez centímetros do que a mulher. Torna-se evidente a que lado da
família Dominic foi buscar a altura. – Não há necessidade nenhuma de
pespegar tudo nas redes sociais. Não há muito que as pessoas agora
guardem só para si. Se bem que é verdade que acabo de conseguir perceber
como funciona o Snapchat. Conta-lhes, Margot.
– Ele tem andado muito orgulhoso – diz ela. – Manda-me fotografias da
loja quando não estamos a trabalhar juntos, mas não percebo porque é que
desaparecem ao fim de uns segundos. Parece que nunca consigo
reencaminhá-las!
– Já tentei explicar-te que o objetivo é esse!
– Não tenho coragem de lhe contar que já ninguém usa o Snapchat – diz-
me Dominic num sussurro teatral.
Foi uma semana longa e eu não sei ao certo o que sentir quanto a
conhecer os pais de Dominic. Ainda que tenha a certeza de que são pessoas
encantadoras, a minha relutância está profundamente ligada aos meus
sentimentos por Dominic. O resto da minha vida não anda mais fácil de
gerir. Eu e Ameena não voltámos a falar desde aquela noite, embora TJ
tenha feito de intermediário, dizendo-me que apanharam um avião hoje de
manhã para a Virgínia, onde vão ver apartamentos. Por mais que queira que
as coisas entre nós voltem ao normal, não consigo esquecer o que ela disse.
Apesar de saber que não tenho culpa de ela não ter aceitado aquele emprego
há tantos anos, as suas palavras cravaram-se em mim como garras e
alvoroçaram uma ansiedade a que regresso sempre que o trabalho abranda.
Seguimos os pais dele para a sala de estar. São um pouco mais velhos do
que esperava, coisa que devia ter calculado, dado que Dominic é o mais
novo de cinco irmãos. Morris Yun é calvo, com rugas firmes à volta da boca
e uns ombros encurvados que o fazem parecer ainda mais baixo. Pelo
contrário, Margot é esguia e esbelta, com o cabelo grisalho cortado pelo
queixo e as roupas primorosamente ajustadas.
Se eu não soubesse já que têm uma loja de antiguidades, a casa revelaria
isso mesmo. É uma moradia espaçosa de dois andares em Bellevue, um
subúrbio abastado de Seattle que se torna mais yuppie a cada dia que passa.
Têm tapeçarias penduradas nas paredes ao lado de quadros em molduras
elaboradas, e todas as superfícies estão decoradas com pequenas estátuas,
vasos, espelhos, relógios e até um gramofone antigo a um canto. Apesar
disso, não parece atulhada. Tem uma aura de museu, mas de um museu
onde se quer viver.
Pelo caminho, Dominic falou-me de como foi crescer na zona leste.
– Lembro-me de que ir a Seattle era uma coisa excitante – disse ele. – Eu
passava semanas a ansiar por isso.
– Que fofo – digo. Nascida e criada na cidade, não podia deixar de gozar
com ele. – O bebé Dominic na grande cidade.
Agora sento-me ao lado dele no impressionante sofá vitoriano que parece
saído de um filme dos anos 1950, a querer desesperadamente que os pais
dele gostem de mim, embora não saiba ao certo porquê.
– Têm uma casa linda – digo, e ambos parecem ficar satisfeitos.
– Estamos orgulhosos dela – diz Margot, sentada num sofá de dois
lugares a condizer com aquele em que estamos. – É como um ser vivo... de
vez em quando mudamo-la porque nos apetece, ou porque encontramos
algo que ainda não somos capazes de levar para a loja. O Dominic cresceu
aqui, praticamente. Mas suponho que já saiba isso tudo, ainda que nós não
saibamos nada acerca de si.
– Mãe – exaspera-se Dominic, e parece um aviso.
Anseio pela realidade alternativa em que Margot não fica imediatamente
à defesa.
– Nunca foste tão zeloso da tua privacidade – continua Margot, a alisar a
bainha da sua saia de gaze. – Ele costumava publicar uma data de
atualizações no Facebook e depois ficava danado quando o primeiro
«gosto» era meu. Até me ligou uma vez da faculdade, a pedir com jeitinho
para que eu deixasse de o fazer, porque todos os seus amigos viam.
Nunca tinha visto Dominic tão corado.
– Já não faço isso – diz ele. – Nem me lembro da última vez que estive no
Facebook.
– Ao menos agora temos a oportunidade de a conhecer – continua
Margot. – O que faz a sua mãe, Shay?
Agradeço o facto de Dominic certamente os ter avisado quanto ao meu
pai.
– É violinista na Orquestra Sinfónica.
O rosto dela ilumina-se e eu sinto uma explosão de orgulho, grata por isto
me ter valido uns quantos pontos.
– A sério? Ainda na semana passada fomos assistir à Sinfonia de Júpiter,
de Mozart. Incrível. Deve estar sempre a ir vê-la.
– Não tanto quanto antigamente – admito. – Mas foi interessante crescer
com alguém tão snobe no que se refere a música como a minha mãe.
Quando comecei a ouvir os Backstreet Boys, ela achou que era um ataque
pessoal.
Isso provoca um sorriso a Dominic e não adoro o que isso me faz ao
coração.
– Podia arranjar-vos bilhetes, na verdade – acrescento.
– Não quero abusar de ninguém.
– A sério, não custa nada. A minha mãe tem sempre uma data deles para
oferecer.
– Bem... obrigada. É muita amabilidade sua – diz ela, suavizando-se. – E
já trabalha na estação de rádio há algum tempo?
– Desde o estágio da faculdade. – Não é nada um tema sensível. Não,
não. – Costuma ser só o Dominic a estar cá?
Morris sobe os óculos pela cana do nariz.
– Por norma, vemos a Kristina e o Hugo no Natal, pois vivem noutros
estados. E a Monica e a Janet visitam-nos mês sim, mês não. Mas o
Dominic parece que não se farta de nós.
– Não digo que seja o melhor filho porque venho a casa com mais
frequência do que os outros, mas...
A mãe pisca-lhe o olho e, a sério, o que é que se passa comigo? Aquele
piscar de olhos faz-me querer tanto fazer parte disto... não como amiga,
nem como coapresentadora ou qualquer coisa falsa, mas como namorada.
– Mesmo que as circunstâncias sejam estranhas – diz Morris –, é bom
conhecê-la. É evidente que a Shay e o Dominic criaram uma coisa especial
e, ainda que não seja um programa que eu ouvisse se não fosse vosso,
parece que muitas pessoas estão a identificar-se com ele. E é ótimo que
tenham conseguido continuar amigos. – Levanta-se. – Vamos acabar o
jantar, se quiseres mostrar a casa à Shay...
– Podemos ajudar? – pergunto.
Margot acena com uma mão.
– Está quase pronto. – Ela sorri e acrescenta: – E, bem, não detestamos
mostrar a nossa casa.
– Acho que vou mostrar-lhe o meu quarto de criança – diz Dominic. – Só
para que ela possa rir-se mais um bocado à minha custa.
*

– Tens muitos Beanie Babies.


Olho para eles: prateleiras e prateleiras, cada um na sua bolha pessoal,
alguns em caixas de colecionador. Ursos, pássaros, macacos, leões e
lagartos de todas as cores, todos com as etiquetas vermelhas características
ainda intactas. E aquelas prateleiras... parecem ter sido montadas
expressamente para armazenar Beanie Babies.
– É uma doença – declara Dominic, de cabeça pendida.
– Como é que isto aconteceu? Como é que se adquirem tantos Beanie
Babies?
– Trezentos e vinte, para sermos exatos. Alguns foram oferecidos pelos
nossos parentes da Coreia à minha irmã Kristina, quando nos visitaram. –
Aponta para um urso azul com a bandeira coreana escarrapachada. –
Estavam mesmo entusiasmados com este. Mas, como a Kristina não ligava,
deu-mos, e, não sei porquê, eu adorei-os. Era uma daquelas pessoas que
achavam que um dia iam valer muito. E estava completamente enganado.
– Mas ainda eram populares quando eras pequeno?
– Nem por isso. Já percebes porque é que só perdi a virgindade quando já
andava na faculdade.
– Estou só... – calo-me, a abanar a cabeça. É hilariante, mas enternecedor,
imaginar um jovem Dominic a dispô-los com todo o cuidado naquelas
prateleiras. – Não sei se posso continuar a ir para a cama com alguém que
tem trezentos e vinte Beanie Babies.
– Que triste. Sabia que ia dar nisto. Bem, foi bom enquanto...
Interrompo-o encostando a boca à dele ao mesmo tempo que fecho a
porta com o pé. Ele puxa-me para si, com as mãos nas minhas ancas. O
calor da sua língua, o cheiro a madeira do sabonete, que lhe disse que era
muito melhor do que o da água-de-colónia. Estou sempre à espera de
quando podemos voltar a estar sozinhos, e embora não tenhamos passado
mais noites em casa um do outro, temos estado juntos quase todas as noites
desde Orcas.
Já nos conhecemos suficientemente bem para sabermos ao certo como
gostamos de que nos toquem e, quando ele se debruça sobre o ponto entre o
meu pescoço e o meu ombro, solto um gemido suave que também sei que
ele adora ouvir. Já está duro contra mim, e é sempre uma emoção, saber que
ele me quer.
Um estrondo na cozinha assusta-nos e faz-nos separar.
Ele tira os dedos das presilhas do meu cinto e dá um passo atrás. Sinto a
pele do pescoço a arder.
– Provavelmente é melhor assim – diz ele, com um sorriso envergonhado,
a apontar para os Beanies. – Ias passar dias com pesadelos.
Enquanto recupero o fôlego, examino o resto do quarto. Há uma colagem
de fotografias ao lado da secretária dele, uma colagem que não é atualizada
há anos.
– Ah, é a tua fotografia do décimo segundo ano? Eras giro na secundária.
Eu teria tido uma paixoneta por ti, sem dúvida. – Deixo-me cair na cama
dele. – Nem consigo acreditar que já tinha acabado a faculdade quando tu
ainda estavas na secundária. Bela maneira de me fazer sentir velhíssima.
Ele senta-se a meu lado.
– Tinhas um telefone de discar? E CD? Como era a tua coleção de CD?
– Hum... muito NSYNC, Mandy Moore, Blink-182 e uma mancheia de
Now That’s What I Call Music. E não vou pedir desculpa por nada disso.
– Mandy Moore, tipo, do This Is Us?
– Oh, meu Deus, nem fales comigo até teres ouvido a «Candy».
O meu quarto em casa da minha mãe não está tão bem conservado quanto
o dele, mas talvez isso tenha sido mais uma decisão pessoal do que um
comentário profundo sobre a passagem do tempo. O que também está
afixado àquela placa de cortiça é um bilhete antigo de avião para Seul. E
uma fotografia dele em frente a um lindíssimo palácio verde e vermelho.
– Então a tua mãe nasceu na Coreia e o teu pai aqui?
Ele acena com a cabeça.
– Ela cresceu em Yeoju, que é uma cidade mais pequena nos arredores de
Seul. Na verdade, nem era uma cidade quando ela vivia lá, só um condado.
Eu só lá fui umas quantas vezes... por estranho que possa parecer, sai caro
fazer muitas viagens internacionais com cinco irmãos. Sobretudo quando se
é o quinto filho. Mas tanto o meu pai como a minha mãe são filhos únicos e
queriam uma família grande.
– Parece que se saíram bem – digo. – Esta casa é mesmo impressionante.
– Eu sei que a minha mãe gostou de ouvir isso. E sim, saíram, mas
demoraram algum tempo.
Da vez seguinte que nos beijamos, não é com força e rapidez, como
costumam ser muitos dos nossos beijos. É um beijo delicado, reverente, e
acontece tão devagar que me convenço de que o tempo também para.
Depois ele afasta-me o cabelo para me depositar um beijo sobre a orelha. E
outro. Faz-me estremecer, a delicadeza dos seus lábios na minha pele, a
passagem do seu polegar ao longo do meu maxilar. Do meu malar. Como se
ele estivesse a memorizar-me ou apenas até a... apreciar-me.
Aterroriza-me. Tudo isto – os pais dele, o quarto e as partes de si que ele
não partilha com mais ninguém. Faz com que me pergunte se, afinal, não
será assim tão errado para mim. Se continua a tocar-me desta maneira,
como se eu fosse uma coisa preciosa, uma coisa delicada, ainda acabo por
ficar mesmo caidinha por ele.
Já sou capaz de estar a ir por esse caminho.
– Vemo-nos depois do jantar? – pergunta ele. A sua voz é doce como o
mel, marcada por uma aspereza que não deixa dúvidas quanto ao que está a
imaginar que faremos depois do jantar.
– Acho que não consigo. – Tento ignorar a pontada amarga de
arrependimento. – Combinei encontrar-me de manhã cedo com a minha
mãe. Coisas para o casamento.
Pelo menos não é mentira.
O seu rosto abate-se e a mão que me acariciava o rosto com tanta ternura
cai-lhe no colo.
– Claro. Não tem problema.
É melhor assim, tento convencer-me. Espaço. É disso que precisamos.
*

Só que... não obtenho muito espaço durante o jantar. Não enquanto


Dominic me vai dando toques com o pé debaixo da mesa, não quando a sua
mãe admite que «sei que não namoram, mas ficam mesmo muito giros
juntos», não quando os pais pedem pormenores sobre os nossos
«encontros» no outono, obviamente ávidos por saberem mais sobre essa
parte da vida que o filho não lhes teria revelado. É um jantar muito
agradável, mas, se eles soubessem a verdade, eu não seria bem-vinda aqui.
Tenho a certeza.
O nível mínimo de pânico que me tem acompanhado toda a noite torna-se
uma espiral de ansiedade completa e, quando nos despedimos e vamos para
o carro dele, eu já tropeço em rachas inexistentes do acesso da casa.
– Obrigada por esta noite – digo-lhe. – Os teus pais são o máximo. O teu
pai faz-me partir a rir.
– É uma personagem. – Dominic faz as chaves girar à volta do dedo
mindinho. – De certeza que não podes ir lá a casa? – pergunta-me, e as suas
palavras soam tão controladas que me convenço de que está a esforçar-se
para que não pareça que está a implorar. Isso dá cabo de mim. – Só por um
bocadinho?
– Já disse que não posso – respondo num tom um pouco duro.
Ele levanta as mãos.
– Pronto, pronto. Desculpa.
Preciso de distância para pôr os sentimentos em ordem. A minha vida
profissional e pessoal já estão baralhadas, agora que lhe mando mensagens
sobre os meus problemas e que conheci os seus pais, e não posso tê-la nas
duas. A nossa relação descomprometida tem de acabar agora, para termos
alguma esperança de sucesso a longo prazo para o programa.
Quando me deixa depois de uma viagem em silêncio, não me inclino para
o beijar. Não o olho nos olhos. Não sei o que me vai sair da boca quando a
abro, só que provavelmente me vou arrepender, mas...
– Não sei se consigo continuar a fazer a coisa descomprometida.
Ele puxa o travão de mão.
– O quê?
Meu Deus, não me obrigues a repetir. Mas repito e, quando sinto a sua
mão no meu ombro, encolho-me contra o assento. Detesto que o seu toque
pareça tão feito para mim.
E essa é a razão para ter de pôr fim a isto, de impedir que algo
aparentemente sem compromissos me destorça a noção da realidade quando
receio que já o tenha feito.
– Por causa... dos meus pais? – A confusão é evidente no seu tom de voz.
– Não. Não é isso. Bem, em parte, mas... não.
Gosto demasiado de ti para continuar a fingir que não gosto. Gosto
demasiado de ti para não me apegar, porque já estou bem mais apegada do
que alguma vez julguei que ficaria, e mais qualquer coisa vai dar cabo de
mim.
– Isso faz imenso sentido.
– Desculpa – digo. – Quero... quero ser capaz de te explicar, mas não sei
se consigo. Com o programa, é só... demasiado complicado. – Pronto. Pode
ser essa a minha desculpa.
O ar dele é como se eu lhe tivesse dito que queria acabar com ele – o que,
de certa forma, é verdade. O seu rosto é uma mescla de confusão e dor, as
suas sobrancelhas estão unidas e os olhos arregalados. Se continuar a olhar
para ele, sou capaz de tentar voltar atrás.
– Shay – diz ele –, vamos falar sobre isto. Por favor.
Abano a cabeça.
– Não posso. Desculpa. Simplesmente não... não posso.
E, antes que ele diga mais alguma coisa, abro a porta do carro e vou para
casa.
Tenho de me obrigar a não olhar para trás.
28

Dominic tem sido uma distração.


No final do fim de semana, já me convenci disso por completo. Ameena
estava enganada – eu não estou há demasiado tempo na rádio pública. O
que se passa é que me tornei complacente, deixei que Dominic e Kent
falassem por mim quando eu também tenho um microfone. Nem sequer
defendi a minha própria ideia. Foi o Dominic quem o fez. Na altura senti-
me agradecida, mas devia ter sido eu a fazê-lo.
A partir de agora, serei.
Depois de uma prova de bolos de saciar a alma, que a minha mãe tinha
mudado para outro dia depois da viagem inesperada à ilha Orcas, atiro-me
ao trabalho como há meses não fazia. Acampo num café, peço uma caneca
de chai do tamanho de um prato de sopa, e ponho os auscultadores na
cabeça.
Tivemos um enorme empurrão publicitário no início, o qual, ainda que
com relutância, tenho de admitir que aconteceu graças a Kent. Depois
Dominic usou o seu contacto com Saffron Shaw. Eu participei em toda essa
promoção, claro. Mas é quase como se estivesse tão habituada a estar nos
bastidores que, ao deixar de o estar, já não soubesse o que fazer. Temos
alguns ouvintes leais, mas não há dúvida de que o burburinho inicial
diminuiu. Nada dura, disse Kent. Eu vou provar-lhe que se enganou. Vou
arranjar-nos mais impulso.
Ele disse que era possível que fôssemos à PodCon – estou determinada a
fazer com que isso aconteça. O alinhamento completo ainda não foi
anunciado e no mês passado enviámos uma mancheia de amostras de
episódios para lá. Vou tornar impossível ignorarem-nos.
Os meus seguidores nas redes sociais têm-me assustado um pouco; até o
sinal azul de conta oficial junto ao meu nome é algo a que ainda não me
habituei. Ainda assim, abro a minha conta do Twitter e procuro o nosso
hashtag. As pessoas continuam a falar de nós, a descobrir-nos todos os dias.
Os nossos números de subscritores continuam a aumentar.
Tuíto um pedido desavergonhado para que os nossos ouvintes nos
avaliem e deixem comentários sobre o programa no iTunes, no Spotify, no
Stitcher. O pedido é partilhado vinte, trinta, cinquenta vezes numa questão
de minutos e é difícil ignorar a sensação de validação que me causa.
Acrescento um formulário na nossa secção do website da PPR a encorajar
os ouvintes a submeterem as suas histórias de encontros e também publico
um tweet acerca disso.
Depois volto a ouvir os nossos episódios mais populares, seleciono
citações dos nossos convidados e transformo-as em gráficos para as redes
sociais que Ruthie poderá publicar nas nossas contas oficiais do Twitter e
do Instagram ao longo da semana. Não – eu trato disso. Agendo os tweets e
os posts, espaçando-os de forma a não bombardear ninguém.
Desço pelas listas dos meus amigos, em busca de alguém que esteja
ligado a algo maior – antigos funcionários da Pacific Public Radio que
tenham sido levados pela NPR, conhecidos que também tenham podcasts.
Raios, até entro em contacto com produtores de alguns dos maiores
podcasts sobre relações e volto às redes sociais para lhes promover até mais
não os próximos episódios.
Não é um trabalho glamoroso, mas a rádio muitas vezes tem disto. Não
vemos as pessoas a juntar cuidadosamente trechos de áudio, a esperar que
ficheiros sejam carregados, a refrescar os números de subscritores. Vemos
os programas que voam mais alto do que alguém poderia ter sonhado, os
Serial e os My Favorite Murders tal como os podcasts apresentados pelas
celebridades que tenham decidido dar início a um podcast nessa semana.
Felizmente, eu não desconheço de forma alguma a parte menos
glamorosa dos bastidores, pois passei aí dez anos. Estou a produzir esta
merda como deve ser e, se há alguma coisa de que tenho a certeza, é de que
fui uma bela produtora.
*

Lenta mas paulatinamente, o meu trabalho de produção faz a sua magia.


Na segunda-feira, temos umas dezenas de novas avaliações no iTunes e
de histórias de encontros e ruturas submetidas por ouvintes.
Na terça-feira, assinamos um contrato de patrocínio com uma grande
empresa de colchões. E tanto eu como Dominic recebemos colchões de
graça.
Na quarta-feira, alguém da NPR responde a um email que eu tinha
enviado, pedindo desculpa por escrever tão em cima da hora para perguntar
se podem transmitir o nosso episódio sobre o luto ao mesmo tempo que nós.
Isso faz-me derramar café quente pelo teclado todo.
– Merda – resmungo, desatando a correr até à copa para ir buscar papel de
cozinha.
– Está tudo bem? – pergunta-me Dominic quando regresso.
Limpo o café derramado o melhor que posso.
– Se bem quer dizer que a NPR vai transmitir o nosso episódio sobre luto
amanhã ao mesmo tempo que nós, então sim.
Ele desvia o olhar do seu ecrã. Não temos andado a olhar diretamente um
para o outro durante esta semana e eu tenho-me mantido afundada em
trabalho para não ficar obcecada com isso. Desde que não abrande, não
tenho de pensar nas suas mãos, nas suas ancas ou na sua boca. Na sua voz
rouca junto ao meu ouvido a perguntar-me se estou quase lá.
Sim, claro que isto é saudável.
Falo-lhe da NPR e depois contamos a Kent e a Ruthie, e também à minha
mãe e a Phil, e, oh, meu Deus. É capaz de ser desta. É capaz de ser isto que
nos faz chegar à PodCon, o que nos faz passar de podcast local engraçado
para uma daquelas histórias de sucesso tremendo.
Só temos de entrar a matar.
*

A minha mãe põe os auscultadores na cabeça como se tivesse medo de


que eles lhe mordam.
– Vais ser maravilhosa – digo-lhe, do outro lado da mesa. – Todas as
noites sobes ao palco em frente a centenas de pessoas.
– Sim, mas elas não me ouvem falar – riposta ela. – E não sou transmitida
em direto pela NPR.
Ruthie espreita para dentro do estúdio.
– Precisam de alguma coisa, Leanna, Phil? Água, café?
– Água seria ótimo – diz Phil, sentado ao lado da minha mãe. – Obrigado.
Dominic está sentado a meu lado, como de costume, mas parece que há
mais espaço entre as nossas cadeiras do que nas quintas-feiras anteriores.
Não penses no cheiro dele. Ou no facto de ele estar a usar a tua camisa às
riscas preferida. Ou que tenha arregaçado as mangas.
Pergunto-me se seria assim que me sentiria se tivéssemos mesmo
namorado.
É mais fácil tranquilizar a minha mãe do que tranquilizar-me a mim
mesma. Quando falámos com a produtora da NPR, uma mulher chamada
Kati Sanchez, ela disse-nos que não mudássemos nada no programa. Que
escreveria o material promocional introdutório para as estações que fossem
transmitir o nosso segmento depois. Tudo o que temos de fazer é um
episódio clássico de Fala Com o Ex, sermos nós mesmos e isso tudo.
Sabendo que o nosso público muito possivelmente será multiplicado por
milhares.
Ruthie regressa com copos de água e Jason faz a contagem decrescente
sobre o resumo noticioso da NPR. Eu atiro toda a minha angústia em
relação a Dominic para dentro de uma caixa na minha mente e fecho-a a
sete chaves, determinada a deixá-la aí durante a próxima hora.
Quando nos apresentamos, não falamos num tom tão ligeiro quanto é
habitual.
– Hoje vamos fazer uma coisa um pouco diferente – anuncia Dominic. –
Vamos falar do que acontece quando se perde um cônjuge, ou um
companheiro e, mais especificamente, de histórias acerca de encontrar o
amor depois de uma perda.
Parece-me ainda pior mentir à minha mãe em direto estando ela mesmo a
meu lado. Mas o que está aqui em causa não sou eu. Pelo menos, não só.
Inspiro profundamente e falo para o microfone numa voz tão firme
quanto sou capaz.
– Este episódio é particularmente pessoal para mim, porque perdi o meu
pai quando tinha dezoito anos. Estava no último ano da escola secundária. –
Faço uma pequena pausa; uma pausa inesperada porque, embora não
pareça, estando aqui sentada, que há milhares de pessoas à escuta, sei que
haverá. Estão agora, em direto, e vão ouvir-nos mais tarde. É como perdê-lo
de novo, e de novo. – Foi o meu pai que me fez interessar pela rádio. Ele
tinha uma loja de reparações de produtos eletrónicos. A Goldstein Gadgets.
Talvez alguns dos nossos ouvintes de Seattle ainda se lembrem dela. E, está
bem, é certo que a minha voz não é a voz ideal para fazer rádio... – Espero
que Dominic se ria um pouco disto, mas não o faz. Pigarreio e continuo: –
Mas o meu tinha uma voz de rádio perfeita.
«Por isso, para falarmos de amor depois da perda, pensei: quem melhor
para trazer ao programa do que a minha mãe? Ela também o perdeu... de
uma forma diferente da minha. Hã, mãe... obrigada por teres vindo. Por
favor, apresenta-te.»
Ela aperta-me a perna por baixo da mesa.
– Chamo-me Leanna Goldstein. Toco violino na Orquestra Sinfónica de
Seattle há cerca de vinte e cinco anos. E sou sagitário.
Isto provoca alguns risos.
– Podes contar-nos como conheceste o meu pai?
– Dan Goldstein – começa ela, e já sabia que começaríamos assim, mas
nada nela parece ensaiado. É natural, mas com uma compostura
maravilhosa, como se estivesse em palco, só que melhor ainda, porque esta
é a sua voz. – Conhecemo-nos na sua loja. Eu tinha um metrónomo que
andava a dar-me problemas e pensei que era improvável que tivesse
conserto, mas levei-o à loja para ver se ele conseguiria arranjá-lo. E, para
grande surpresa minha, ele conseguiu. E, raios, como tinha um ar adorável
enquanto o fazia. – A sua expressão dá lugar ao pânico. – Bolas, será que
posso dizer «raios»?
Asseguro-lhe de que não faz mal – a Comissão Federal de Comunicações
não vai cair-nos em cima por causa disso.
– Temos a sorte de ter também connosco no estúdio Phil Adeleke, outro
violinista da Orquestra Sinfónica de Seattle – diz Dominic.
– Sou eu – afirma Phil com a sua boa disposição habitual.
– E o Phil e a Leanna sentam-se um ao lado do outro há...
– Quase vinte e cinco anos – completa Phil, após o que ele e a minha mãe
se riem.
– Pode falar-nos da sua mulher?
Aquela alegria não desaparece por completo, mas diminui um pouco.
– Eu e a Joy conhecemo-nos na faculdade, Boston, numa associação de
estudantes da África Ocidental. Ambos éramos nigerianos, ambos viemos
para os Estados Unidos para estudar. Ela estudava história, eu música, e
pedi-a em casamento no dia em que recebemos os nossos diplomas.
Diz-nos que não foi um casamento perfeito, porque obviamente não há
casamentos perfeitos. Nem sempre tinham dinheiro suficiente, e o primeiro
embate de Joy com o cancro, ao fim de um ano de casados, quase os
destruiu. Mas ela lutou e a doença entrou em remissão e, durante muito
tempo, estiveram bem. Mudaram-se para Seattle, onde ela trabalhava numa
biblioteca universitária e ele na Orquestra Sinfónica. Quatro filhos. Uma
hipoteca. Uma gata. Gatinhos inesperados.
E depois o cancro voltou.
– Não sei como conseguiste passar por tudo isso – diz a minha mãe a
Phil. Como se os dois estivessem a ter uma conversa sem que qualquer um
de nós estivesse presente, e é aqui que a rádio se torna realmente fantástica.
– Para mim, foi de repente. Num dia, o Dan estava aqui, perfeitamente
saudável, e, no seguinte, tinha desaparecido. Foi incrivelmente injusto, eu
sei. Mas o meu coração parte-se só de pensar naquilo que tiveste de
suportar.
– Não temos de fazer uma competição a ver quem ganha as Olimpíadas
da tragédia – diz Phil, com uma gargalhada triste. – Aquilo por que passaste
foi terrível. Aquilo por que eu passei também foi. Nada o torna menos
terrível.
Eu e Dominic recostamo-nos, deixando-os contar as suas histórias que se
entrelaçam.
– Eu achava mesmo que para mim tinha acabado – diz a minha mãe. –
Tivera a sorte de ter um grande amor, e para mim chegava. Não conheci
novas pessoas, não fiz perfis online nem abri contas em aplicações, como
alguns dos meus amigos queriam que eu fizesse. Passaram-se cinco anos, e
eles achavam que estava na altura de eu «voltar ao jogo». Sete anos, e ainda
nada. – Ela abana a cabeça e eu tenho vontade de lhe dizer que ninguém a
vê fazer isso. – Não havia jogo a que voltar.
– Sentávamo-nos mesmo um ao lado do outro – continua Phil –, e não
fazíamos ideia de que ambos sofríamos da mesma maneira. Durante tantos
anos.
É nesse momento que os meus olhos procuram os de Dominic pela
primeira vez em todo o episódio. Sinto um sobressalto no peito que se
transforma numa pontada quando ele é o primeiro a desviar o olhar.
Mais perto do final, atendemos algumas chamadas. Os ouvintes querem
falar com a minha mãe, com Phil. Uma mulher que perdeu o marido no mês
passado diz à minha mãe que é ótimo ouvi-la tão evidentemente feliz. Diz
que ela lhe dá esperança e eu fico a desejar que tivéssemos mais do que
uma hora para falar disto. Para ouvir histórias.
Quando faltam apenas uns minutos para o programa terminar, aponto para
onde os violinos da minha mãe e de Phil já estão instalados com microfones
no canto do estúdio.
– Dado que nos encontramos na presença de dois dos melhores músicos
da Orquestra Sinfónica – digo –, lembrámo-nos de que talvez pudessem
terminar o programa.
A música é séria, mas não lhe falta esperança. Talvez eu nunca tenha
adorado música clássica, mas a minha mãe adora, isso é óbvio. Nunca
teremos o que eu tinha com o meu pai, mas temos outra coisa.
Por fim, o sinal de a gravar desliga-se. Pelos auscultadores, ouvimos
uma explosão de aplausos no estúdio ao lado. Ruthie tem os olhos
marejados e pede um abraço tanto à minha mãe como a Phil. Eles acedem
com todo o gosto.
Quando acaba, detesto que a única pessoa com quem quero celebrar seja
Dominic.
E detesto ainda mais que ele saia tão depressa do estúdio.
Avaliações do Podcast no iTunes
Duo icónico

Ouvi cada episódio três vezes e não consigo parar de trautear a música do genérico. Os
meus amigos já estão fartos. A minha família já está farta. Será que preciso de ajuda?
Talvez! Deem-me só mais Shay + Dom.

Adoro adoro adoro

Não sei o que adoro mais: se o otimismo cauteloso de Shay, se o cinismo enternecedor de
Dominic. Seja como for são perfeitos juntos *beijo de chef nos dedos*. Quinhentas estrelas.

Perspicaz e empoderador

Um podcast divertido, surpreendentemente perspicaz. Só lhe tiro uma estrela porque às


vezes as chamadas dos ouvintes duram demasiado.

Lixo

Esforcei-me mesmo por gostar disto, mas os temas são superficiais e os apresentadores
não são tão encantadores como se julgam. Serei o único que quer lá saber se já andaram
um com o outro? Porque é que isso interessa? Passo.

tlm

se a shay e o dominic não voltam a andar, deixo de acreditar no amor


29

Nessa sexta-feira, voltamos a constar do Top 100 do iTunes, na posição


número 55, e eu fico tão aliviada, tão grata e tão orgulhosa que até seria
capaz de chorar. E choro, um bocadinho, à hora de almoço na casa de banho
das mulheres.
Melhor ainda é que a PodCon nos quer em Austin para o mês que vem. É
um acrescento de última hora ao alinhamento, mas, ainda assim, é ótimo.
Faremos um episódio ao vivo, o nosso primeiríssimo, e temos mais dois
grandes patrocinadores interessados em juntarem-se. Dominic empalideceu
quando Kent o anunciou, e lembrei-me do que me contou antes do nosso
primeiro episódio, acerca de ter medo do palco. Bem. Vai ter de lidar com
isso, ainda que eu em parte só queira tranquilizá-lo.
Tudo isto parece surreal, o que torna mais fácil esquecer que o criámos a
partir de uma mentira. Era o que queríamos, não era? Tenho vontade de
contar a Ameena, mas continuamos a não falar uma com a outra. Estás a
ver? É claro que eu quero isto. Como é que o meu pai pode estar a prender-
me, se vou à PodCon? Se calhar, se ela vir esta evidência que prova que se
enganou, vai voltar atrás no que disse.
Por sorte, hoje é a minha saída com Ruthie. Decidimos ir jantar a um
restaurante de comida de Oaxaca, em Ballard, que tem tortillas caseiras e
sete tipos diferentes de molhos. Depois de ter passado a semana a trabalhar
até às dez da noite, estou absolutamente exausta, acabada e a precisar
desesperadamente de sal.
– A PodCon – diz Ruthie, enquanto mergulha uma tirita de milho em pico
de gallo. – Não acredito. Ainda nem emitimos dez episódios e vamos estar
na porra da PodCon.
– É incrível, mesmo – concordo. Passo uma tirita por salsa verde e
mastigo-a pensativamente. Agora que a excitação inicial esmoreceu, sinto-
me... esquisita. Quero que o entusiasmo ilimitado de Ruthie me contagie.
– Pareces um bocado estranha. – Ruthie franze o sobrolho, como se
estivesse a sopesar o que quer dizer a seguir. – Posso fazer-te uma pergunta
um bocado pessoal?
– Hã... talvez?
Ela ri-se.
– Estás à vontade para não responder. É só que eu passo o dia inteiro
contigo e com o Dominic, cinco dias por semana. E, ultimamente, vocês os
dois têm andado particularmente esquisitos.
– Reparaste?
Ela assente com a cabeça.
– Vocês... – interrompe-se, a abanar a cabeça. – Nem acredito que vou
perguntar isto, mas... aconteceu alguma coisa entre vocês? Desde que
acabaram, quero dizer?
Como não respondo, ela fica boquiaberta.
– Shay – sussurra, a abanar a cabeça, mas sem me julgar. – Oh, meu
Deus. Eu bem que tinha um pressentimento, e não é para me gabar, mas eu
nunca me engano em relação a essas coisas. Nunca. Juro que não conto a
ninguém.
– Obrigada – digo-lhe. – Ainda estou um bocado mortificada com tudo
isto... – Mas não é essa a palavra certa. Não me sinto mortificada quando
ele passa uma mão pelo cabelo, nem quando se baixa para pegar na sua
pasta e os seus ombros se contraem debaixo da camisa. – Mas não sei se
ainda somos alguma coisa. – Penso em como Dominic foi capaz de ser
corajoso com o seu amigo de infância. Se ele conseguiu fazer isso com
alguém com quem partilhava um passado, eu devia conseguir fazê-lo aqui.
– Só aconteceu umas quantas vezes.
– Uma recaída – diz ela. – Se calhar tinha de acontecer, convosco a
trabalharem tão próximos um do outro. Aconteceu depois de Orcas, não
foi? Ou em Orcas?
Volto a ficar calada e ela solta um guinchinho.
– Em parte, tenho vontade de dizer «parabéns», porque, bem, ele é lindo.
Quando aquele rapaz se encosta à parede...
– É verdade – concordo.
– Mas estás bem com isso?
Ruthie é demasiado boa. Não a mereço – não quando até este pedacinho
de verdade está marcado pela desonestidade.
– Estamos a tentar ser profissionais. Eu... a modos que acabei com ele na
semana passada. Outra vez – apresso-me a acrescentar.
– E queres estar com ele?
– Não tenho a certeza. Não. – Porque é que toda a gente me pergunta isso,
como se fizesse alguma diferença? – Como achas que as pessoas iam
reagir? Se soubessem?
– Acho que daria rádio boa como o caraças, para começar. Se o programa
vos fizesse voltar a andar um com o outro? As pessoas iam perder a cabeça.
Não tinha pensado naquilo assim.
– Mas é complicado, quanto a isso tens razão.
Beberico a minha sangria.
– Bem, é oficial, estou farta de falar de mim. Por favor, sente-te à vontade
para falares de ti durante o resto do jantar.
– Tem graça que aches que sou assim tão interessante – diz ela. – Bem,
acho que o Marco me deixou pendurada, mas tenho andado a trocar umas
mensagens com uma miúda chamada Tatum e anda a correr bem...
Ouço-a. A sério. Ruthie é impecável, mas eu quero que isto seja um
bálsamo para a minha solidão, coisa que não pode ser enquanto lhe minto.
E, definitivamente, enquanto me minto a mim mesma.
*

A meio da semana seguinte, Dominic não está com bom ar. Quero dizer,
sim, continua a ser um exemplar muito atraente do sexo masculino, mas há
dois dias em que chega depois das nove e meia, praticamente não faz a
barba e, quando sorri – coisa rara –, o sorriso mal lhe chega aos olhos. A
sua bola Koosh permanece imóvel sobre a secretária, triste e sozinha.
Sinceramente, eu também não ando fantástica. Sinto-me acabada, deitada
abaixo pela combinação de demasiado trabalho, dos preparativos para a
PodCon e de passar a vida à procura das mensagens de texto que nem ele
nem Ameena me mandam.
Voltei ao hábito de ficar a trabalhar até tarde, pois não quero correr o
risco de acabar sozinha com ele no elevador. Por isso, quando ele vem ter
comigo às seis e meia de uma quarta-feira e me toca ao de leve no ombro
com as pontas dos dedos depois de toda a gente se ter ido embora, quase
grito.
– Merda, pensava que já te tinhas ido embora – digo, com uma mão no
peito. – Tens mesmo pezinhos de lã.
– Desculpa. – Ele encosta-se à sua secretária. E parece mesmo
arrependido.
– Eu sei que as nossas secretária ficam lado a lado – digo-lhe. – Mas às
vezes gosto de fingir que há uma linha invisível entre elas, e tu acabaste de
entrar na minha bolha. Gosto da minha bolha.
– Mais uma vez, desculpa – pede ele, com um suspiro. – Ena, pronto, isto
não está a correr como eu esperava. Olha, só quero mesmo falar comigo.
– OK. Fala – digo, virada para o meu ecrã.
– Não aqui.
A dor nas suas palavras obriga-me a olhar para ele.
Não se parece nada com a fotografia de arquivo de «business casual» que
eu costumava idealizar. A sua camisa habitualmente impecável tem pelo
menos três vincos inteiros. Se eu ficar a olhar muito tempo para ele, vou
começar a rever o que fizemos na ilha, na cama dele, na minha, no meu
sofá... A minha força de vontade é limitada. E, quando ele olha para mim
assim, sinto a determinação a fraquejar.
– Se vamos estar em palco na PodCon daqui a umas semanas, gostava de
que pelo menos falássemos um com o outro – diz ele. – Por favor, ouve-me
desta vez e, se não quiseres voltar a falar depois disso, prometo que não
torno a insistir.
É difícil recusar um pedido assim – pelo que não o faço.
Estão quase vinte e cinco graus – uma vaga de calor para Seattle –, pelo
que arrumamos as coisas e vamos até ao Green Lake. Parece que toda a
gente de Seattle teve a mesma ideia, dada a quantidade de pessoas a passear
cães, a andar de patins e a correr com carrinhos de bebé por que passamos a
caminho de um banco virado para o lago.
– Hoje está toda a gente tão bem-disposta – diz Dominic, sentando-se no
banco a meu lado. – Mal passa dos vinte graus, todos começam a sorrir.
Sempre gostei disso.
Ele tem razão – o bom tempo muda as pessoas. A introversão sombria
está-nos tão enraizada no ADN que basta um pouco de vitamina D para
transformar os habitantes de Seattle em criaturas estranhamente gregárias.
– Estás a empatar – digo com ligeireza.
– Será empatar dizer-te que adorei mesmo fazer aquele episódio com a
tua mãe? Ela parece ser muito fixe.
– É mesmo. Obrigada. E sim.
A perna dele não para de abanar, como costuma acontecer quando está
nervoso.
– Tenho andado tão confuso ultimamente – diz ele, depois de cerca de um
minuto em silêncio, enquanto observamos um bando de patos a afastar-se
pela água azul e turva. – Já revi mentalmente aquela noite em casa dos
meus pais muitas vezes, a tentar perceber o que fiz mal.
– Não fizeste nada de mal.
Não percebo ao certo o que ele quer – se pretende convencer-me de que
devíamos retomar a relação descomprometida, ou se devíamos esquecer que
tudo aquilo aconteceu, começar do zero. Não pode sentir assim tanto a falta
do sexo, pois não? Não vou dar assim tanto crédito às minhas capacidades
no quarto.
– Não fui completamente honesto contigo – diz ele. – Quando te disse
que sexo era algo muito sério para mim... não era só o sexo. É todo o
conceito de uma relação.
– Eu... eu percebi isso.
Faz sentido, embora não explique ao certo porque é que estamos a ter esta
conversa.
– E não só em termos românticos. Sabes que não tenho muitos amigos
aqui. Quero dizer, dou graças pelo Eddie, que ainda é mais espetacular em
adulto do que quando éramos miúdos. Mas... a ideia de me aproximar tanto
de alguém outra vez... é aterradora.
– Não era esse o objetivo de ter uma relação descomprometida? – Cruzo
uma perna por cima da outra, como se, ao mostrar-me apropriadamente
casual, seja capaz de falar disto como se não fosse nada de mais. – Olha, se
me trouxeste até aqui para me dizeres que sentes falta de ir para a cama com
alguém com uma certa regularidade, faz-me um favor e passa já para essa
parte, que é para não termos de arrastar isto.
A sua expressão altera-se para uma de horror.
– Espera. O quê? Era isso que achavas que isto era?
– Bem... pois. Mais ou menos.
– Estaria a mentir se dissesse que não sinto falta disso – diz ele, com os
lábios a curvarem-se num sorriso que me provoca um choque elétrico de
satisfação –, mas não. Não era disso que eu queria falar.
– Então não percebo! – Atiro as mãos ao ar, com a frustração a aumentar.
– Tu disseste que querias uma coisa descomprometida. Por isso, não vejo
qual é o problema de passar de sem compromissos para nada. Porque é que
não podemos não ser nada e pronto, Dominic?
Mesmo enquanto o digo, soa-me mal. Falha-me a voz e estremece-me o
coração, e a palavra nada ressoa-me dentro da cabeça. Também estou a
mentir agora. Há muito tempo que «nada» não é o que quero.
Dominic comprime os lábios antes de deixar escapar um suspiro.
– O que estou a tentar dizer-te é que, quando começámos isto... nunca foi
descomprometido para mim.
E é claro que isso despoleta a repetição em câmara lenta por trás das
minhas pálpebras. A excitação da adrenalina provocada por aqueles toques
novos, o facto inegável de nunca ter tido um orgasmo tão bom como com
Dominic.
O facto inegável de nunca ter falado tão francamente com um homem
como com Dominic.
– Só sugeri que assim fosse porque tu insistias em falar do assunto e eu
achei que era porque não querias que eu ficasse com a ideia errada. E sabia
que o programa era... é muito importante para ti – continua. – Não queria
correr o risco de arruinar o programa, se tu não sentisses o mesmo que eu.
– O mesmo?
– Para mim isto nunca foi descomprometido. – Os dedos dele dançam
pelo rebordo do banco, a poucos centímetros da minha coxa. – Nem na ilha,
nem aqui. É uma tortura, estar sentado aqui ao teu lado e não poder tocar-te.
Tu és esperta como tudo, sexy e divertida, e passar tempo contigo torna
tudo... um pouco menos difícil.
Agora sinto a pulsação a latejar-me nos ouvidos. Procuro agarrar-me a
qualquer ponta de lógica, com todas as defesas erguidas. Quero tanto
acreditar nele.
– Mas daquela vez no programa, com aquela ouvinte... disseste que
estavas interessado em alguém.
Ele revira os olhos como se eu fosse o ser humano mais estúpido do
planeta, e talvez seja.
– Pois. Em ti.
Rebenta um dique dentro de mim. Escapa-se numa grande enchente
emocional tudo que tenho andado a conter. Estou tão farta – de arranjar
desculpas, de mentir, de tentar convencer-me de que sou capaz de ignorar o
que sinto por ele.
– Oh – digo, a sentir-me uma idiota chapada. – Ena, é mesmo difícil
decifrar-te.
Isso fá-lo rir, mas é um riso nervoso. Os dedos dele sobem para o meu
joelho, o polegar descreve um círculo lento.
– Levei-te a conhecer a minha família – continua ele. – És a primeira
pessoa com quem estou desde a Mia. A única desde a Mia. Tenho-te dado
sinal atrás de sinal.
– Eu disse-te que tenho tendência a apegar-me demasiado. E sou mais
velha do que tu, e não sabia se querias algo sério. Não queria encher-me de
esperança, acho. Convenci-me de que, se tivéssemos apenas algo
descomprometido, não me magoaria quando me dissesses que não querias
estar mesmo comigo.
– Shay. Mostrei-te a porra dos meus Beanie Babies.
Não posso deixar de rir.
– Não sei o que dizer.
– Ajudaria muito se me dissesses que também gostas de mim.
Contenho um sorriso e aproximo-me mais, inclinando-me para lhe
segurar o rosto na palma da minha mão.
– Dominic. Gosto tanto de ti. Achava que era óbvio. Gosto de que a
pessoa que me mostras não seja a mesma que todos os outros veem. Já
deves saber que me sinto ridiculamente atraída por ti. E cuidas tanto das
coisas importantes na tua vida... o trabalho, a tua família, o Steve Rogers
Goldstein.
– E a Shay Goldstein – diz ele, acrescentando o meu nome à lista, e eu
sou capaz de nunca querer sair deste banco.
– Pareceu-me demasiado real, estar na tua casa. – Passo o polegar pela
barba que lhe cresce na face. – Foi por isso que tive de acabar. Não queria
estar lá sem ser tua namorada.
Um dos cantos da sua boca arrebita-se. Senti a falta daquela covinha.
– Queres ser minha namorada.
– Mais do que quero um convite pessoal do Ira Glass para o substituir no
This American Life.
Então, ele sorri a sério. E beijamo-nos e é como se eu tivesse passado a
vida inteira sem chocolate e só agora, aos vinte e nove anos, descobrisse a
sua doçura.
As mãos dele sobem até ao meu cabelo, desfazem-me o rabo de cavalo.
– Meu Deus, como senti a tua falta – diz-me enquanto me encosto ao seu
peito, com um ouvido junto ao seu coração forte a bater.
30

Notícia de última hora: faz calor no Texas. O Texas, em junho, merece o


seu próprio círculo do inferno. O meu pobre corpo da costa noroeste do
Pacífico não foi feito para isto.
Já se passaram duas semanas a manter o tipo de segredo que me faz sorrir
nas alturas mais aleatórias: enquanto barro um bagel com manteiga de
amendoim, enquanto lavo os dentes, enquanto fico parada no trânsito a
caminho de casa.
Porque, na maior parte das vezes, estou a ir para casa dele.
O voo parte cedo e temos a sorte de Ruthie e Kent irem noutro, mais
tarde. Apesar de ter descarregado bastantes podcasts, devo ter adormecido
assim que descolámos. Quando abro os olhos, o piloto está a dizer que
aterrámos em Austin, onde são 13h40 e a temperatura atinge uns
incompreensíveis trinta e cinco graus.
– Estavas a observar-me? – pergunto a Dominic enquanto endireito as
costas da cadeira.
– Resmungas enquanto dormes.
– Não resmungo nada.
– É giro – diz ele, com um pequeno sorriso culpado.
– Tenho a certeza de que poderia ser, mas eu não faço isso.
Como só vamos gravar o nosso episódio ao vivo amanhã à tarde, fazemos
o check-in no hotel, onde a estação nos reservou dois quartos, pois
evidentemente não dissemos que só precisaríamos de um. Depois passamos
o dia a explorar Austin, já que nenhum de nós alguma vez esteve aqui.
Experimentamos o melhor churrasco da cidade e, quando voltamos a ter
fome, umas horas depois, paramos noutro sítio que proclama ter o melhor
churrasco, e assim asseguramo-nos de que não vamos voltar a querer sequer
olhar para carne de porco enquanto formos vivos.
Andamos de mãos dadas pela 6th Street e admiramos os bares e os
edifícios históricos. Há bandas a preparar-se, música a sair de concertos aos
vivo. Tenho a certeza de que não corremos o risco de que nos reconheçam
numa cidade tão grande mas, por via das dúvidas, usamos óculos de sol e
Dominic tem um boné de beisebol dos Chicago Cubs.
É como se fôssemos um casal a sério.
Ficamos algum tempo num bar com esplanada, que é muito mais raro – e
possivelmente menos interessante para os habitantes locais – aqui do que
em Seattle. Aqui, a vida pode ser menos complicada. Aqui, posso parar de
pensar que ainda não fiz as pazes com Ameena, em como terá sido a sua
primeira semana no trabalho novo e em TJ a encaixotar todo o apartamento
deles. Ele vai ter com ela à Virgínia para a semana e, embora ambos
venham para o casamento da minha mãe, não sei quando tornarei a vê-los
depois disso.
– Tive uma ideia – diz Dominic quando vamos na segunda cerveja,
arrancando-me aos pensamentos obsessivos. – Então, o interesse do
programa é sermos ex-namorados. Não podemos começar a andar um com
o outro de repente.
– Nem pensar.
– Por isso... e se reatássemos a relação?
Paro com o copo a caminho da boca.
– Tipo, publicamente?
Ele acena com a cabeça.
– Pensa nisso. Seria um verdadeiro testemunho do poder unificador da
rádio. Os ouvintes iam adorar.
É claro que é cativante. TJ sugeriu o mesmo depois de eu ter voltado de
Orcas.
– Shay – pergunta Dominic, dando-me um toque no braço. – O que
achas?
– É uma boa ideia. Mas continua a ter uma mentira na base. Eu sei que
não há volta a dar-lhe, já não, mas continuo a sentir-me mesmo mal acerca
disso.
– Eu entendo. Mas não teríamos de continuar às escondidas. Gosto tanto
de estar contigo. Sejamos realistas, não sabemos quanto tempo este
programa vai durar, e detesto ter de o esconder, não poder contar a
ninguém. Continuaríamos a ser ex-namorados. Ex-namorados que voltaram
a namorar devido ao poder da rádio e dos podcasts. E de uns sapatos feitos
de milho.
Talvez ele tenha razão. Talvez não seja importante que tenhamos ou não
sido ex-namorados – apenas que voltámos a ser um casal.
Não quero ter de escolher entre o trabalho que achava que nunca teria e o
rapaz que sou capaz de estar a começar a amar.
– O que acontece se... se acabarmos?
A relação ainda parece tão nova, tão delicada. Tenho a certeza de que
aguentamos uma pergunta franca como esta, mas detesto fazê-la.
Ele fica calado durante uns momentos.
– Eu sei que estás a tentar ser racional, mas... acho que não é possível
saber isso agora. Não posso prever o futuro. Tudo o que sei é que me fazes
mesmo feliz e que não contar a ninguém está a dar cabo de mim.
Estendo o braço por cima da mesa e aperto-lhe a mão. Quero tanto
acreditar nele. Quero que seja possível ter este dia todos os dias.
– E se o anunciássemos amanhã? No festival? Na gravação ao vivo?
Dominic faz um sorriso sardónico.
– Achas que o Kent ia perder a cabeça?
– Mais um motivo para o fazermos.
– Bem visto.
– Vou contar a todos os nossos milhares de ouvintes que adoro como
resmungas enquanto dormes.
– Então eu revelo-lhes a tua coleção de Beanie Babies.
– Não te atrevias. Os Beanies são sagrados. – Ele empurra os óculos de
sol para cima, com o olhar excitado e cheio de carinho. – Anda cá – diz-me,
e um segundo depois, estou no seu colo, a passar os braços à volta dele, sem
querer saber de quem possa ver-nos.
É então, quando o meu coração bate tão em uníssono com o seu, que
amo-te quase me escapa pelos lábios.
Mas, sempre que isso me aconteceu, as coisas complicaram-se. Não quero
correr o risco de não obter a resposta desejada se ele ainda não estiver nesse
estádio.
Opto por dizer outra coisa:
– Vamos a isso – declaro, ciente de que, assim que o fizermos, não
poderemos voltar atrás.
*

Regressamos ao hotel antes das oito da noite e, no elevador a caminho do


nosso andar, faço uma piada sobre estar velha e ter de me deitar cedo. Só
que, quando Dominic fecha a porta do quarto, encosta-me contra ela e
beija-me durante muito, muito tempo, e cada passagem ociosa da sua língua
faz de mim chocolate derretido.
De cada vez que tento agarrar-lhe o cinto, ele afasta-me a mão. Tinha-me
esquecido do quanto ele gosta de provocar e ser provocado.
– Devagar – avisa.
Tenho os lábios inchados e apanhei demasiado sol hoje, e já estou
demasiado tonta e excitada para protestar.
Ele sobe uma mão pela minha coxa, por baixo da minha saia curta.
Escapa-me um gemido quando ele passa um dedo pela minha roupa interior
húmida. Levo a mão à frente das suas calças de ganga e esfrego para cima e
para baixo, mas ele põe os dedos à volta do meu pulso para que eu pare.
Solto uma gargalhada frustrada e ele ri-se.
– Quero perguntar-te uma coisa. – Agora não está a rir. O olhar dele
prende-me à porta, com os olhos de um negro derretido. – Alguma vez te
masturbaste a pensar em mim?
– Sim – respondo, sem sequer ficar envergonhada.
– Podias... podias mostrar-me? – pergunta ele, numa voz grave. – É... uma
espécie de fantasia minha.
Não sei porquê, já estou sem fôlego.
– Posso fazer isso.
Ficamos um instante em silêncio e ele afasta a mão da minha saia. Engulo
em seco, levando-o para a cama, feita na perfeição com lençóis de hotel.
Com as mãos a tremer, descalço as sandálias e dispo a saia, deslizo as
cuecas pelas pernas. Nunca fiz isto à frente de alguém. Sempre me pareceu
muito íntimo... mais íntimo do que sexo.
Ele senta-se ao meu lado na cama, completamente vestido.
– Tens de me dar alguma coisa – insisto, e puxo-lhe a bainha da camisa, e
ele acede.
Deito-me com a cabeça numa almofada, de coração a latejar. Ao início
não sei se consigo realmente fazer-me vir à sua frente, ou se ele quer que
chegue a tanto. Mas a intensidade do seu olhar, a expectativa, faz-me
avançar. Nunca me entreguei tanto a alguém, mas, com ele, quero fazê-lo.
Durante todo esse tempo, estou ciente do seu olhar em mim, da forma
como o seu maxilar se contrai, como se se obrigasse a não reagir. Isso acaba
por tornar a coisa mais ardente, saber que ele está a conter-se. É o que me
impede de me conter.
– Meu Deus, sim – diz ele, e envolve-me o tornozelo com a mão quando
acelero o ritmo. – És tão incrivelmente sexy.
Ele solta um gemido suave. Estendo a mão para a sua boca e ele suga-me
os dedos antes de eu os levar de novo ao meio das coxas. O orgasmo
apanha-me de surpresa, com o prazer a subir-me em catadupa pela coluna.
Ainda estou perdida na sensação quando a sua boca esmaga a minha.
– Isso foi a coisa mais excitante que eu alguma vez vi – diz ele, e saber
que o excitei deixa-me ávida por mais. – Tens de ver como és linda quando
te vens.
E puxa-me da cama até ao espelho de corpo inteiro, ao mesmo tempo que
abre as calças de ganga e despe os boxers.
Põe-se atrás de mim, a segurar-me os seios e a beijar-me o pescoço.
Tenho a pele ruborizada e o cabelo já desgrenhado.
– Ficamos bem juntos – digo-lhe quando a sua mão desce até ao meio das
minhas pernas e, sem mais, estou pronta de novo.
Vejo-o pelo espelho a molhar um dedo em mim antes de o subir pelo meu
abdómen, deixando um rasto de humidade. A provocação é uma tortura e eu
adoro.
– Deixas-me louco – diz ele. – Perco a cabeça quando estou assim
contigo.
Quando a pressão começa a aumentar, a aumentar, a aumentar, ele recua
de novo. Escapa-me algo semelhante a um gemido. Ainda assim, ele não
me penetra, continuando a usar os dedos até que me venho de novo, com a
respiração ofegante a embaciar o espelho.
– Tens um autodomínio incrível.
Uma gargalhada sufocada.
– Não, não tenho. Estou a morrer. Só queria ver-te a vires-te pelo menos
algumas vezes antes de passar o resto da noite dentro de ti.
Por esta altura, já tenho as pernas feitas em gelatina, pelo que é com todo
o gosto que me deixo cair de novo na cama, e mais ainda quando ele se põe
em cima de mim. Nunca hei de não adorar a sensação de o ter dentro de
mim, o calor, a pressão e o seu toque sedoso. Vamos devagar, durante
algum tempo, movimentos lânguidos que me distendem centímetro a
centímetro, sem que os seus olhos se afastem dos meus. Mais fundo. Apesar
de ele gostar de provocar, nunca fazemos isto assim tão devagar, quando já
estamos assim ligados – por esta altura, costumamos estar já demasiado
sequiosos um do outro. Este novo ritmo que encontrámos é uma tortura.
– Vem-te comigo, querida – diz ele, e não sei se é a ordem, se o nome
carinhoso, ou as duas coisas, o que me faz perder-me de novo com ele.
Ficamos abraçados durante muito tempo, como se à espera de que as
réplicas passem. Cheira a suor, a sexo e a um ambientador de quarto de
hotel qualquer, mas não quero nem pensar em tomar duche.
– Isto foi... – começo, sem saber bem como verbalizá-lo. Preciso de saber
que sentiu a mesma intensidade que eu. Que também lhe pareceu diferente.
Ele encosta a minha cabeça ao seu peito.
– Eu sei.
Por fim, vamos para a casa de banho para tomarmos banho juntos, o que
nos leva bastante mais tempo do que qualquer duche deveria levar e, já
agora, é também o melhor duche da minha vida. Vestimos uns roupões
felpudos e brancos do hotel e encomendamos comida ao serviço de quartos,
após o que nos metemos na cama e procuramos um mau filme na televisão.
– Amanhã – diz ele, a apertar-me a mão.
– Só falta um dia. Estás nervoso?
– Tenho um bocado de medo do palco – reconhece ele. – Mas, desde que
saiba o que estou a fazer, e já andamos a planear isto há semanas, a coisa
corre bem. E conheço o programa. Sinto-me bem. Não estás com dúvidas,
pois não? Quanto a contar a toda a gente?
Abano a cabeça.
– Não. Isto, entre nós... está certo.
Os olhos dele cerram-se um pouco e ele diz:
– Ao início fiquei tão furioso com a ideia de apresentar isto contigo. Não
só por não irmos ser completamente honestos, mas porque tu és tão gira,
caramba, e eu sabia que ia ficar todo atrapalhado perto de ti.
– Deixa-te disso – digo, dando-lhe uma palmada no peito. – Não pensaste
nada!
– Juro! – Ele põe a mão sobre o coração. – Tu eras a produtora gira do
Puget Sounds e eu era um repórter arrogante que só queria saber das
notícias, e tu detestavas-me.
– Repórter com um mestrado – corrijo. Depois admito: – Está bem, está
bem. Também te achei giro. Mas definitivamente arrogante, o que tornava
muito irritante que também fosses giro. Assim que arregaçaste as mangas
da camisa, deste cabo de mim. Fiquei frita. – Passo as mãos pelos seus
braços. – Acho os teus braços tipo... inexplicavelmente sensuais.
– Ah – diz ele. – Se ao menos tivesse sabido isso antes... Teria usado
camisas de manga curta em todas as gravações de Fala Com o Ex para te
seduzir.
– Pff – troço. – Não sou assim tão fácil.
– Não – concorda ele –, mas vale muito a pena o esforço.
Acabamos o filme e as duas fatias de bolo red velvet que nos levam ao
quarto antes de nos livrarmos dos roupões e de nos metermos de novo na
cama.
– Devíamos ir de férias a algum lado juntos. – Os dedos dele remexem-
me o cabelo, demoram-se no meu pescoço e percorrem-me a coluna. – Não
para o trabalho. Só para nós.
Isso de repente parece uma ideia tão, tão boa, e ouvi-lo sugeri-la aperta-
me o coração.
– Pois devíamos – respondo num tom melancólico. – Onde gostarias de
ir?
– À Grécia – diz ele sem a menor hesitação. – Talvez seja um cliché, mas
tenho uma obsessão pela mitologia desde a escola primária. Disfarcei-me de
Hermes três Halloweens seguidos.
– Eu alinhava numa viagem à Grécia. Ou a Espanha. Ou à Austrália.
– Uma volta ao mundo. – Ele encosta os lábios ao meu cocuruto. – Vai
ser perfeito. Nada de emails, nada de internet... só nós os dois, a explorar
ruínas antigas e comida excelente.
– Perfeito.
Esse desejo pesa, sobretudo com o que temos de fazer amanhã. Quero
ficar neste mundo de fantasia durante o máximo de tempo possível, neste
lugar onde podemos falar sem receio acerca do futuro e saber que fazemos
parte da forma como cada um de nós o vê. Isto é a sério. Tenho de continuar
a recordar-me disso, porque, caso contrário, não tenho a certeza de
acreditar.
Ele adormece primeiro e os seus dedos param no meu cabelo. Fico assim
imóvel durante algum tempo, aninhada nele, a ouvi-lo respirar. Ainda não
percebo bem como chegámos aqui, mas continuo fascinada.
O amor que me pareceu sentir há umas horas... agora tenho a certeza de
que existe.
31

Também não demoro muito a apaixonar-me pela PodCon. Vamos fazer a


gravação ao vivo num dos auditórios mais pequenos, já que a nossa base de
fãs não se aproxima sequer dos números de alguns dos podcasts mais
populares. Apesar disso, nunca vi nada assim, nem sequer no ano em que a
PodCon teve lugar em Seattle. De manhã cedo, eu e Dominic andámos com
Ruthie pela zona de exposição, a brincar com o equipamento de áudio e
outros materiais que os patrocinadores do festival tinham exposto.
Conhecemos produtores e apresentadores de podcasts que ouço há anos, e
tudo isso foi tremendamente surreal. Uma coisa é ir vendo as menções que
nos fazem no Twitter. Outra é ver gente a sério em fila à nossa espera.
Todas estas pessoas ligadas por algo que a maioria de nós faz
completamente sozinha, com auscultadores, a bloquear o resto do mundo –
é mágico.
– Estão quase prontos para nós – anuncia Ruthie, ao voltar para os
bastidores.
Dominic está a fazer exercícios respiratórios a um canto e eu estou no
sofá, a rever as notas do episódio. Ontem à noite, procurei no Google dicas
para combater o medo do palco e insisti que ele comesse uma banana antes
de vir para cá, já que as bananas podem acalmar as náuseas. Também me
assegurei de que chegávamos uma hora mais cedo. É claro que quero que o
programa corra bem, mas, mais do que isso, quero que ele se sinta
confortável quando ali estivermos. «Não consigo imaginar não me sentir à
vontade no palco, tendo-te a meu lado», disse ele hoje de manhã, o que me
fez querer voltar a puxá-lo para a cama.
Quando vê Ruthie, Dominic dirige-se para o sofá. E parece realmente
mais descontraído.
– Como estão os nervos? – pergunto-lhe.
Ele faz-me o gesto foleiro de apontar com os polegares para cima.
– Acho que vou ser capaz de me aguentar sem vomitar.
– Vocês os dois vão ser fantásticos – diz Ruthie. – Eu ia esperar para vos
mostrar mais tarde, mas estou demasiado entusiasmada. Temos crachás! E
T-shirts! – E, com um floreado, saca da mala um monte de crachás e uma T-
shirt azul-fluorescente. A T-shirt tem o nome do programa e um desenho
linear dos rostos de um homem e de uma mulher, com um microfone no
meio. A mulher até tem a minha franja descaída e os meus óculos. O crachá
tem a mesma imagem, juntamente com #aradiopublicadeixamelouc@, que
Ruthie inventou há umas semanas. – Vamos vendê-los depois do episódio.
Dominic aponta para a Shay ilustrada.
– Estás tão gira – comenta a sorrir, mas logo se põe sério ao olhar de
relance para Ruthie.
– Não faz mal – apresso-me a dizer. – Ela sabe.
Isso não é inteiramente verdade, mas, nos tempos que correm, o que é que
é? Mas está lá perto, embora lho devesse ter contado antes.
– Oh. – As suas sobrancelhas franzem-se. – Bem... bom. Que alívio.
– E apoio-vos a cento e dez por cento – diz Ruthie.
– Nesse caso – continuo, a ganhar mais confiança –, estamos a pensar
contar ao público hoje. Que voltámos. – Se Ruthie alinhar, é porque é a
decisão certa.
Ela leva a mão à boca. Tem as unhas pintadas com a mesma cor
fluorescente da T-shirt.
– Adoro. Oh, meu Deus. Isto vai ser incrível. Onde é que está o Kent? Ele
sabe?
– Nós, hã, não lhe dissemos – confessa Dominic, um pouco
envergonhado.
– É uma decisão nossa – digo. – Não dele.
– Está bem – responde Ruthie enquanto acena firmemente com a cabeça.
– Estou convosco, então.
Dominic aperta-me o ombro e eu não posso deixar de me lembrar da noite
passada. Que fomos francos um com o outro de uma forma como eu nunca
tinha sido. Que adormecemos juntos e acordámos juntos. De súbito, a ideia
de acordar sem ele parece-me demasiado triste.
Estou apaixonada por ti, penso.
Até sou capaz de estar preparada para lho dizer depois do programa.
O episódio ao vivo vai ser acerca de contar histórias. Temos alguns
convidados locais e depois vamos encorajar membros do público a ir ao
microfone e partilhar as suas histórias de encontros e de fins de relação.
Depois, para o podcast, faremos intervalos para publicidade.
Não estou nervosa – ou, pelo menos, os nervos que me agitam o
estômago assentam também em alívio. Quando contarmos a toda a gente
que «voltámos a estar juntos», poderemos respirar de novo. Por fim,
poderemos ter uma relação normal.
Um dos voluntários do festival bate à porta.
– Estão todos prontos?
Kent continua a não ter aparecido, apesar de me ter dito que iria ter
connosco aos bastidores. Deve estar algures entre o público, a fazer de
espectador.
– Estamos – digo, enquanto Dominic endireita o colarinho da camisa.
Um locutor da rádio pública de Austin apresenta-nos e nós acenamos ao
entrar em palco. O público não é tão exuberante como em gravações
anteriores de podcasts, mas tenho a certeza de que tenho uma perceção
distorcida aqui em cima. Embora as luzes estejam fortes e ao início precise
de semicerrar os olhos, percebo que quase todos os lugares estão ocupados.
O palco tem duas cadeiras cor de laranja no meio, cada uma com um
microfone inclinado para o assento. O logótipo da PodCon está
escarrapachado numa faixa atrás de nós.
Sentamo-nos e ajusto o microfone para que fique à altura da minha boca.
– Olá, Austin! – cumprimento. Há tanto tempo que espero por isto, quero
aproveitar cada momento.
Quando o público responde, fico convencida de que não só é mais
silencioso do que outros públicos, como também está hesitante. Há pelo
menos uma pessoa por fila agarrada ao telemóvel.
Dirijo um olhar preocupado a Dominic, mas ele limita-se a encolher os
ombros. Na lateral, Ruthie fita-nos com uma expressão esquisita que me
deixa o estômago contraído. Ruthie, sempre tão calma e ponderada, que
sabe sempre como tranquilizar-nos.
E percebo de imediato que algo se passa.
*

O episódio vai ficando cada vez mais estranho. Em palco, tudo corre bem
– Dominic parece à vontade, talvez um tudo-nada menos confiante do que
no estúdio, e os nossos convidados, incluindo um crítico gastronómico que
se apaixonou por uma chef depois de escrever uma crítica arrasadora do
restaurante dela, são perfeitamente encantadores. Mas alguns membros do
público vão-se embora a meio – limitam-se a levantar-se e sair, embora eu
ache que estamos a apresentar algum do nosso melhor material. Outros
continuam a ver os telemóveis, como se isso não fosse a coisa mais mal-
educada que se possa fazer num evento ao vivo como este.
Antes, eu e Dominic decidimos anunciar a nossa relação mesmo no final.
Vamos dizer que passámos tantos longos dias juntos, a trabalhar no
programa, que isso nos recordou de como gostávamos um no outro. E que
apreciamos o apoio dos nossos ouvintes, mas que queremos esforçar-nos ao
máximo por manter a relação privada que temos separada do programa.
Agora não faço ideia de como o público irá reagir.
Quando convidamos o público a usar o microfone para partilhar as suas
histórias e fazer perguntas, o nó de pavor já se instalou na minha garganta e
as mãos de Dominic tremem visivelmente.
Uma mulher salta do seu lugar na terceira fila e avança rumo ao
microfone como se essa fosse a sua missão.
– Sim, eu tenho uma pergunta – diz ela. – Acham que foi engraçado
enganarem assim os vossos ouvintes?
Uma onda de murmúrios percorre o público. Não conheço a mulher, tem
trinta e tantos anos e usa uma T-shirt do podcast Welcome to Night Vale.
Dominic parece tão perdido quanto eu.
– Desculpe, o que disse? – pergunto, com a voz a falhar-me. Espero que
ela não dê por isso. Espero que nenhum deles dê por isso.
Ela mostra-me o telemóvel e acena com ele, embora eu obviamente não
consiga ver o ecrã a esta distância.
– Está por todo o lado nas redes sociais. O vosso embuste. Vocês nunca
andaram... eram só colegas que se juntaram para uma patranha.
Os espectadores que não estavam já agarrados aos telemóveis atiram-se
às malas e aos bolsos, centenas de pessoas a mexer furiosamente nos seus
aparelhos.
Nunca andaram.
Só colegas.
Uma patranha.
Agarro-me aos braços da cadeira. Se não o fizer, sou bem capaz de
desatar a fugir. Tenho de me ancorar, de lhe dizer que não é verdade, não é
verdade, não é...
– Nós... hã... – tenta Dominic, mas não consegue formar uma frase
inteira. Nem todos os exercícios respiratórios do mundo poderiam ter-nos
preparado para isto.
Como raio é que isto aconteceu?
Olho para as laterais, para Ruthie. Para a nossa produtora inabalável.
Espero que ela nos diga o que fazer, como eu fiz sinal a Paloma Powers
tantas vezes quando nos calhava um ouvinte hostil ou um convidado
enfadonho. Mas ela parece abalada a olhar para o seu telemóvel e eu
percebo que o que quer que tenha sido publicado, o que quer que esteja a
expor-nos... ela também está a descobri-lo pela primeira vez.
O público está um caos, com outros a correr para o microfone. A primeira
mulher, claramente satisfeita depois do ataque público, volta para o seu
lugar.
Um tipo que parece ter vinte e muitos anos é o seguinte a ocupar o
microfone.
– Eu também tenho uma pergunta – diz ele, e eu descontraio um pouco,
com uma parte ridícula de mim a preparar-se para uma pergunta legítima,
como se ainda houvesse forma de salvar isto. – Estou curioso, foi pelo
dinheiro? Ou foi alguma espécie de experiência social bizarra?
O público volta a enlouquecer.
Kent.
Só pode ter sido ele. Não sei porquê, e não sei o que fez, mas a única
outra pessoa que sabe é Ameena e, por extensão, TJ. Mesmo que não nos
falemos agora, ela nunca faria uma coisa destas. E, tanto quanto sei,
Dominic ainda não contou a ninguém.
– Será que podemos, hã, repor a ordem nas perguntas – digo, mas
ninguém me ouve. Estão a falar connosco, mas não esperam respostas.
Querem a controvérsia, o ultraje... mas não a explicação. É assustador vê-
los a virarem-se contra nós.
– E nós caímos na vossa esparrela – diz a pessoa a seguir –, acreditámos
que eram privados nas redes sociais. E que tinham imenso medo de
começar uma relação nova.
– Isso é verdade! – exclamo, perguntando-me se isto quererá dizer que
admito que o resto não.
– Mas que importa que tenham distorcido a verdade? – pergunta a
rapariga a seguir. – Era boa rádio, certo? Mantinha-nos entretidos durante
uma hora por semana, ajudava-nos a esquecer, pelo menos durante algum
tempo, que o mundo está a arder.
Sim, pessoa aleatória, obrigada.
– Nós ouvíamos o programa por causa deles e da relação que tinham – diz
outra pessoa. – Imaginam como seria descobrir que a Karen Kilgariff e a
Georgia Hardstark não eram mesmo amigas?
Não aguento isto. Não posso deixar que sejam eles a controlar a narrativa.
Arranco o microfone ao suporte e avanço para o meio do palco.
– OK – começo. – OK. Têm razão. Antes de termos começado a trabalhar
neste programa, na verdade nunca tínhamos namorado.
Quando me viro para Dominic, ele está pálido e colado à cadeira, incapaz
de estabelecer contacto visual. Ajuda-me, imploro-lhe, mas o meu pedido
não o alcança e não posso deixar de pensar não só no seu medo do palco,
mas também na sua moral jornalística, que nos últimos meses foi arrasada e
pulverizada. Isto tem de ser o seu pior pesadelo.
Inspiro devagar e tremulamente. Se o meu destino realmente é contar
histórias, talvez ainda seja possível dar a volta a isto.
Não... já chega de dar voltas.
– No início, éramos apenas dois colegas que não gostavam muito um do
outro, e a premissa do programa parecia ótima. Dois ex-namorados a dar
conselhos sobre relações. – Solto uma pequena gargalhada, a lembrar-me da
reunião onde apresentei a proposta. – Nunca nos agradou a componente da
mentira. Mas o que vimos foi uma oportunidade de fazer algo diferente na
rádio pública e de salvar a nossa estação.
Talvez, talvez esteja a reconquistá-los. Algumas das pessoas que já iam a
caminho da porta pararam e voltaram para os seus lugares.
– E depois, à medida que começámos a trabalhar juntos, bem... – Estou a
suar em cem sítios diferentes, mas sinto-me animada por uns quantos gritos
e assobios do público. – Apercebemo-nos de que gostávamos um do outro.
Foi uma situação difícil, mas, ao fim de uns meses a andar à volta do
assunto, agora estamos juntos. Oficialmente.
Isso vale-nos mais aplausos. São poucos, mas audíveis. Algumas pessoas
estão do nosso lado... isso parece bastar.
Dominic estava tão convencido de que os nossos ouvintes ficariam felizes
por nós. Eu não estou preparada para a alternativa: a de que isto tenha
acabado.
– É verdade, Dominic? – pergunta alguém ao microfone, e é então que me
apercebo de que ele ainda não disse nada. Eu queria resolver isto, mas não
posso fazê-lo sozinha. A história não funciona se eu for a única a contá-la.
Faço-lhe sinal para que se junte a mim.
– Dominic? – chamo-o, a obrigar a voz a ser mais calorosa do que o que
sinto. A ansiedade é brutal, mas eu também estou a sofrer aqui. Devíamos
ser uma equipa. Ele tem de perceber como isto é importante. Afinal, foi ele
quem sugeriu revelar que estamos juntos porque já não aguentava guardar
segredo.
Diz qualquer coisa, imploro.
– Ela... nós... – tenta ele. Abana a cabeça, como se estivesse a tentar
acalmar-se. – Eu... – Uma tentativa de uma inspiração profunda, a mão a
fazer pressão contra o peito. – O programa...
O público desata aos gritos, mais acusações. Perdemo-los.
Por fim, Dominic levanta-se. Sem microfone, pronuncia apenas uma
palavra, tão baixinho que só eu ouço:
– Desculpa.
E depois foge do palco.
32

Na rádio pública, trinta segundos são uma eternidade. Trinta segundos


bastam para que alguém fique entediado, mude de estação, passe para outro
podcast. Cancele a subscrição. Trinta segundos podem acabar com uma
carreira.
Foram precisos menos de trinta segundos para que Fala Com o Ex
colapsasse.
É Ruthie quem encontra Kent no seu quarto de hotel. Para nosso espanto,
ele deixa-nos entrar.
Deixa-nos entrar.
Não sei ao certo como é que saí do palco. Acho que Ruthie me ajudou a
apanhar um Lyft. Acho que ela deu a morada do hotel. Apesar de saber que
a arrastámos para isto, Ruthie continua aqui. Dominic não.
Eu não devia estar a ver as redes sociais, mas não consigo evitá-lo.
Preciso de ver como é que tudo isto começou. Demoro menos de trinta
segundos a procurar a conta do Fala Com o Ex no Twitter e encontrar o que
foi publicado antes de entrarmos em direto.
*

ANÚNCIO IMPORTANTE PARA OS OUVINTES

Lamentamos muito, mas, agora que o programa se popularizou, sentimo-nos


obrigados a revelar a verdade.
Shay Goldstein e Dominic Yun nunca foram um verdadeiro casal. Eram colegas e
sempre tiveram alguma rivalidade amistosa, e achámos que seria fácil fazê-los
passar por ex-namorados para melhorar a premissa deste novo programa. Tudo
acerca da relação anterior que teriam tido foi completamente inventado.
Mais uma vez, as nossas desculpas, e esperamos que mesmo assim vão assistir à
nossa gravação ao vivo no #PodCon.
*

Há meses, eu convenci-me de que não fazia mal mentir. Era apenas contar
uma história, não era? E agora a verdade apanhou-nos. Não sei ao certo o
que é pior: que toda a gente saiba que somos uma fraude, ou que isso tenha
arrasado Dominic de tal maneira que ele nem sequer tenha conseguido fazer
parte da conversa.
Tínhamos um plano. Éramos coapresentadores, parceiros, aliados.
Em palco, não fomos.
Estou sentada numa das camas de casal do quarto enquanto Kent se
encosta à secretária ao canto, com o Twitter a atualizar-se freneticamente no
ecrã de computador atrás dele.
– Olhem – diz, fechando por fim o portátil. – Só preciso de um momento
para explicar.
Aceno com o braço.
– Força. Começa a falar.
Como que a sopesar como explicar a sua traição, ele puxa a gravata, que
hoje é de um padrão de microfones minúsculos, cada um deles a gozar
comigo. Ruthie está de pernas cruzadas na outra cama, agarrada à sua mala
à tiracolo.
– O programa tem sido um sucesso – diz ele. – Tu e o Dominic são
ótimos e é óbvio que os ouvintes vos adoram.
Não me dou ao trabalho de lhe dizer que devia ter dito tudo aquilo no
pretérito.
– Há algum tempo que a direção se tem mostrado preocupada. Foi preciso
bastante persuasão para os interessar, ao início, mas consegui. Acabaram
por ficar entusiasmados por terem uma coisa nova no ar, sobretudo algo
cujo interesse ia para além da nossa pequena estação. – Suspira e volta a
ajeitar a gravata. – Mas, ultimamente, a direção tem começado a sentir que
o programa é um pouco... sugestivo de mais para a estação, para a rádio
pública em geral. Que é muito mais adequado para um podcast. Não
podemos arriscar-nos a violar uma norma da Comissão Federal de
Comunicações.
– Nesse caso – atalho –, porque é que não se limitaram a acabar com o
programa em direto e em fazer só um podcast? – Custa-me acreditar que a
direção não seja composta sobretudo por velhos brancos heterossexuais.
Ele abana a cabeça.
– Também não queriam isso. Para eles, a única opção era dissociar por
completo Fala Com o Ex da Pacific Public Radio.
Ruthie intervém.
– Mas porquê... – Ela olha de relance para mim, com um olhar incerto por
trás dos óculos de armação transparente. – Não consigo deixar de pensar
que a Shay e o Dominic aceitaram mentir desde o início. Que todos vocês
me trouxeram para este programa sem me contar.
– Ruthie, lamento imenso – digo. – Eu sei que não há desculpa, mas... eu
quis contar-te. Tantas vezes.
– Éramos amigas – diz ela, o que me magoa mais do que qualquer coisa
que Kent tenha dito.
E, no entanto, qualquer coisa não bate certo ali.
– Mas porque haveriam de nos sabotar? Porque é que não se limitaram a
tirar-nos do ar? A deixar que o Dominic voltasse a ser só um repórter? – O
nome dele deixa-me um sabor amargo na língua.
– Havia... interesse. De uns grandes distribuidores de podcasts. Eu sabia
que eles viriam buscar-vos, que vos ofereceriam dinheiro com que não
poderíamos competir. – Passa a mão pela cara enrugada e envelhecida. –
Vejo agora que foi um erro terrível, mas não queria que a estação vos
perdesse. Faças o que fizeres na estação, Shay, seja produzir ou apresentar,
és uma funcionária excecional. Não temos mais ninguém como tu.
Engraçado que nunca me tenha dito isto antes, nem quando lhe propus o
meu episódio sobre luto, nem quando o Puget Sounds foi para o galheiro.
Que conveniente que venha agora à baila.
Pergunto-me se, na verdade, excecional quererá dizer obediente.
– E querias ficar com o Dominic.
Um sorriso culpado.
– Bem... claro.
– Então sabotaste-nos, mesmo antes do episódio mais importante das
nossas carreiras. Fizeste as coisas de maneira a que, se a PPR não pudesse
ficar connosco, mais ninguém ficaria? Essa decisão não devia ter sido tua! –
Pus-me de pé num pulo, com a raiva a pulsar-me nas veias. Nunca senti
uma fúria assim. – Como podes ser tão vingativo?
– Não sabia que as coisas seriam assim – insiste. Tem a lata de parecer
arrependido. – Shay, lamento mesmo muito. Nunca pensei que o público
fosse reagir desta maneira.
Não acredito nele. Acho que planeou as coisas para acontecerem
exatamente assim. Sempre o tinha julgado bem-intencionado – um pouco
insistente, mas, no fundo, um bom tipo. Um bom tipo que queria o melhor
para a sua estação e para o seu pessoal. No entanto, ei-lo, capaz de me
destruir a carreira com um só clique.
Um só clique depois de meses a mentir sem que eu o pusesse em causa.
– Não sabes como é difícil manter esta estação à tona – diz Kent. – Achas
que todos os meios de comunicação são tão nobres como o Dominic julga?
Achas que toda a gente nesta área tem como motivação fazer o bem? O que
as pessoas querem são cliques. Já ninguém quer conteúdo. É assim que nos
mantemos vivos, Shay.
Avanço na direção dele, a desejar ter pelo menos uns centímetros da
altura de Dominic.
– Não. Nem toda a gente. Recuso-me a acreditar nisso. O jornalismo não
é isso.
– Tu aceitaste fazer isto. Se ainda tens alguma ideia altiva do que é o
jornalismo, estás a contar-te uma mentira, tal como fizeste com o teu
público. Isto é uma selva, e nós estamos todos só a tentar sobreviver.
O programa também extirpou essa integridade a Dominic. E talvez ele
tenha sido cúmplice, talvez tenha sido encurralado, mas alinhou. Alinhámos
os dois.
– E agora o que fazemos? – pergunta Ruthie. Quase me tinha esquecido
de que ela continua aqui, e detesto-me por isso.
Kent puxa uma cadeira e senta-se o mais calmamente possível debaixo de
uma paisagem serena pintada a aguarela. Se eu pudesse redecorar este
quarto, punha-lhe cortinados vermelhos e cor de laranja e esfaqueava as
almofadas fofas. Dava cabo disto tudo.
– É aqui que a coisa se complica e, acreditem, detesto fazer isto, mas são
ordens da direção. Eu sou só o mensageiro. – Mais a porra de uma mentira
transparente. – Não posso manter-vos os três na folha de pagamentos, agora
que o programa foi ao ar. Sou capaz de arranjar maneira de manter o
Dominic como pesquisador, pelo menos até isto tudo amainar, e depois
posso voltar a pô-lo no ar como repórter. Mas provavelmente só poderia
ficar com uma de vocês como produtora em part-time... – Os seus olhos
expectantes dardejam para nós.
A minha vontade é pegar fogo a tudo. Ao que parece, não sou
«excecional» que chegue.
– Claro, tens espaço para o Dominic – atiro-lhe. – Estás a falar a sério?
Estás a dizer que eu e a Ruthie podemos escolher quem fica com a tua
oferta especial de produtora a tempo parcial? Eu dei dez anos à merda da
estação e tu achas bem dares-me um prémio de consolação, enquanto o
Dominic fica com um emprego jeitoso pelo qual centenas de pessoas
matariam? Alguma vez te passou pela cabeça que se calhar a estação passa
mal por causa de ti, Kent, e da forma como a geres?
– Eu sei que estás um pouco fragilizada – diz Kent numa voz calma,
como se estivesse a tentar acalmar uma criança que está a fazer uma birra. –
Estamos todos a sentir-nos emocionados...
– Eu não estou nada fragilizada, e tu podes ir para o inferno com a tua
conversa sexista codificada. – Avanço para a porta. – Para mim chega.
Mesmo que tivesses mais do que meio emprego para mim, eu não o
quereria.
Dez anos, e já não interesso à estação. Kent nunca me teve qualquer
espécie de lealdade.
Saio do quarto, pronta para despejar a fúria na única pessoa que me
deveria alguma lealdade.
*

Ele está no nosso quarto de hotel.


Está no nosso quarto, a guardar calmamente a roupa na mala de viagem
como se as nossas carreiras não tivessem acabado de implodir.
– Boa notícia – digo-lhe, surpreendida por a voz me sair tão firme. –
Ainda tens emprego.
Ele larga o par de meias que tinha na mão e vira-se para mim. Tem as
faces coradas, os ombros tensos e, não sei como, parece muito pequeno,
como se se tivesse dobrado a si também para caber na mala ao lado das
camisas e do champô de tamanho de viagem.
Na noite passada, achei que estava apaixonada por ele.
Hoje, talvez o pior de tudo isto seja que ainda estou.
– Shay – diz ele. – Lamento imenso, porra. Eu...
– Falei com o Kent – digo, pois, por mais que queira uma explicação,
tenho de o pôr a par da reunião a que não foi porque fugiu do palco depois
de me embaraçar em frente a centenas de pessoas. Milhares nas redes
sociais. – Foi ele o responsável pelos tweets. Afinal, a direção queria tirar o
programa do ar, e o Kent tinha receio de que fôssemos levados por um
distribuidor. Por isso, lixou-nos. Mas, como te disse, tu estás à vontade para
ficar na estação como pesquisador, enquanto eu e a Ruthie podemos lutar
uma com a outra a ver quem fica com um lugar de produtora em part-time.
Dominic fica boquiaberto.
– Eu nem... o quê?
Vou até à minha mala de viagem semiaberta na cama semifeita em que
dormimos na noite passada e começo a atirar coisas lá para dentro ao acaso.
Estou demasiado nervosa, demasiado furiosa para organizar o que quer que
seja.
– E isso nem é o pior. Quero lá saber da merda do programa. – Tenho
lágrimas a arder-me nos olhos. – Só queria não me ter sentido sozinha
enquanto o público nos destruía. E tu mal conseguiste dizer uma palavra
que fosse!
– Lamento imenso – repete ele, ainda aflito e a perder mais dois
centímetros de estatura. Como se, fazendo-se suficientemente pequeno,
conseguisse o meu perdão. Mas o pedido de desculpa parece-me vazio. –
Achava mesmo que ia estar bem. Tínhamos tudo planeado, e tu estavas a
ser fantástica, e depois... e depois tudo descarrilou. E não tinha um guião.
Não discordei de nada do que disseste. Tu sabes isso. Só fiquei paralisado.
Queria dizer alguma coisa, mas... não fui capaz. Nem conseguia respirar,
quando as acusações começaram.
– Nem eu! – grito. – Humilhaste-me. Ontem à noite, nós... – interrompo-
me, empurro os óculos para cima e faço pressão com os dedos nos olhos
para que as lágrimas não me caiam. – Dissemos que íamos tentar uma
relação a sério. Eu sei que és inexperiente, mas, sabes que mais, os
companheiros não se abandonam uns aos outros assim.
Mas a verdade é a seguinte: passada a raiva, sou capaz de o perdoar. A
seu tempo. Ele não é o seu medo do palco e, quanto mais distância eu tiver
da PodCon, mais serei capaz de ver isso. Vou precisar de tempo para lamber
as feridas, mas talvez seja possível recuperarmos parte do que tínhamos.
Éramos tão bons juntos antes disto. Eu estava tão convencida de que a
nossa relação ia durar.
– Eu posso voltar lá e falar com o Kent...
– Vais aceitar o emprego? – pergunto. – Queres mesmo continuar a
trabalhar para aquele merdoso?
E ele limita-se a olhar para mim, como se não aceitar o emprego fosse
algo que nunca lhe tivesse passado pela cabeça.
É um olhar que destrói qualquer esperança de reconciliação. Era por isto
que não queria entregar-me demasiado. Amo demasiado, demasiado cedo, e
a outra pessoa não é capaz de corresponder. Desiludem-me sempre. Não
param de arranjar novas formas de o fazer, estes cretinos inovadores.
– Eu... não sei – diz ele. – Talvez? Não consigo pensar bem agora.
– Não, não, deves aceitar. Tu é que és o verdadeiro jornalista, certo? Vai
lá falar com o teu amiguinho Kent. Um tipo em quem se pode confiar, esse.
Sempre te preferiu, seja como for.
– Porra. – Ele passa uma mão pelo cabelo, desce-a pelo rosto. Tem o
cabelo despenteado pelo qual eu ainda ontem quereria deslizar as mãos. –
Porra, Shay, tudo o que quero é compensar-te. Por favor, diz-me como
posso fazê-lo.
– Claro. Porque é que não corres para o palco e contas a toda a gente que
também fizeste parte disto, que eu não era a única idiota ali em cima? –
Quando ele fica calado, abano a cabeça. – O pior – continuo, ao mesmo
tempo que atiro uma escova de dentes para a mala, sem saber se é dele ou
minha – é que pensava que estava a apaixonar-me por ti. Mas acho que isso
era só o meu coração estúpido a voltar a fazer-me apegar a alguém que não
merece.
Observo-lhe o rosto, com uma parte masoquista em busca de uma
indicação de que ele sente o mesmo. Há um vislumbre de emoção, mas
tenho a certeza de que é apenas tristeza. Não amor.
– Não sei o que dizer.
Ele deixa-se cair na cama, entre as nossas malas.
– Parece ser uma coisa recorrente em ti. – Tento fechar a mala, mas enfiei
tudo lá dentro tão mal que não fecha. – Se calhar era o que querias desde o
início. Tu é que tinhas dúvidas em relação ao programa. Agora já não tens
de continuar a fazê-lo.
– Posso ter sentido isso, ao início – reconhece ele –, mas adorei fazer o
programa. Adorei fazer o programa contigo.
– Mesmo que isso seja verdade, o programa foi uma má decisão desde o
princípio. – Mais um empurrão à mala. Anda, vá lá, fecha-te. É a única
coisa que tens de fazer. – Foi tudo mentira. Incluindo nós.
– Não podes estar a dizer isso. Que isto entre nós não é a sério. Olha,
deixa-me ajudar-te.
– Eu trato disto – resmungo entre dentes cerrados, pondo todo o peso em
cima da mala para obrigar o fecho a correr e ficando sem fôlego depois de o
conseguir.
Quero tanto dizer-lhe que é claro que tudo o que lhe disse foi a sério. É
claro que quero meter-me na cama e deixá-lo abraçar-me até já não me
sentir tão completa e desesperadamente perdida. É claro que fomos a sério.
Mas, sinceramente, já não tenho a certeza.
– Vamos voltar a Seattle e dar algum tempo – diz ele. – Podemos falar
sobre isto quando estivermos mais calmos?
– Eu estou calma. – Passo a mala para o chão, com estrondo. – E estou
farta de conversa. Por isso, acho que a próxima vez que te ouvir vai ser
quando voltares à PPR.
As lágrimas começam a cair assim que bato com a porta depois de sair.
33

Não me lembro da ida para o aeroporto, do voo que consigo antecipar ou do


caminho até casa. Estou entorpecida quando tiro a mala do tapete das
bagagens, entorpecida quando vou buscar o Steve ao hotel para cães,
entorpecida enquanto atualizo as redes sociais vezes sem conta até desativar
as minhas contas porque é tudo demasiado.
O meu nome é um hashtag.
Sou uma piada.
Sou motivo de riso para toda a rádio pública.
Dominic tem a lata de me mandar uma mensagem.
*

Shay, não consigo sequer começar a dizer-te o quanto lamento.


*

Quero compensar-te.
*

Podemos falar?
*

Apagar, apagar, apagar.


Quando acendo as luzes em casa, produtos de patrocinadores miram-me
de todos os pontos. Aqueles sapatos de milho que, a propósito, cheiram
muito mal. O suporte para o arco do pé que me pareceu superconfortável
durante um dia mas que depois me deixou aflita dos pés. E, se tiver de olhar
para mais alguma barrinha de frutos secos, vou desatar aos berros.
Meto-me na cama – em cima do meu colchão viscoelástico grátis que, de
certa forma, me mudou a vida – e enterro a cara no pelo do Steve.
Ele parece perceber que estou em baixo, porque é uma versão mais
apagada da sua personalidade habitualmente enérgica. Vou ter pena de mim
sozinha e sem vergonha. Se ninguém souber, ninguém poderá julgar-me.
– Isso inclui-te, Steve – resmungo quando o apanho a olhar para mim com
um ar particularmente brutal.
Passo os dias seguintes como um zombie. Ignoro as chamadas e as
mensagens de texto da minha mãe, de Ameena, de TJ e de Ruthie, ignoro
mais mensagens de Dominic. O casamento é para a semana e eu sei que
terei de ver Ameena e explicar a toda a gente como sou mentirosa. Mas não
estou preparada. Ainda não.
Não deixo que nenhum dos podcasts que escuto se atualize e não ligo a
rádio. Sei que a angariação de fundos que vamos... que vão fazer será em
breve e não sou capaz de os ouvir pedir dinheiro. Se ligar agora e contribuir
no mínimo com vinte dólares por mês, vai receber uma T-shirt da KPPR...
eu costumava ficar ansiosa por ver como seria a T-shirt de cada ano. Tenho-
as todas na gaveta, da mais antiga para a mais recente, em variados níveis
de maciez, devido a intermináveis ciclos de lavar e secar. Adoro aquelas T-
shirts. Vou sentir a falta delas.
Oh, meu Deus. Quantas destas T-shirts do Fala Com o Ex vão acabar
numa loja solidária ou num caixote do lixo?
Devotei toda a casa dos vinte à rádio pública e parece-me injusto que ela
se tenha virado contra mim desta maneira. E, apesar disso, o mais estranho
é que... quando penso que não tenho de voltar à PPR, sinto uma espécie de
alívio. Claro, o alívio está soterrado debaixo da mágoa e da humilhação,
mas está presente. O programa chegou ao fim. A minha carreira na rádio
pública talvez também tenha acabado, mas já não ter de carregar aquela
mentira faz-me sentir que posso andar um pouco mais direita. Tenho andado
a esmifrar-me, há anos que trabalho à noite e ao fim de semana. Sem
pausas. Talvez agora tenha tempo para decidir o que quero realmente.
Talvez depois de as reações nas redes sociais acalmarem, quando eu
deixar de beber uma garrafa de vinho por dia, consiga ver que isto, na
verdade, é uma coisa positiva.
Afinal, salvou-me do maior erro amoroso da minha vida.
*
Dia quatro pós-PodCon e finalmente ligo o portátil. Arrasto-o para o sofá
e afasto uma embalagem de takeaway para arranjar espaço para mais meia
garrafa de vinho. Em vez de ir diretamente para as redes sociais ou para a
conta profissional de email, que de certeza já terá sido desativada, abro um
ficheiro em que não mexia há séculos.
O meu pai tinha todo o género de gravadores, alguns deste século, outros
do século passado. Discutíamos a diferença entre analógico e digital nos
intervalos das gravações dos nossos «programas de rádio». Eu acabei por
guardar tudo no meu computador, numa pasta identificada apenas com as
suas iniciais, DG. Como se, de alguma maneira, fosse mais fácil olhar para
apenas duas letras.
O problema de se perder alguém é que não é uma coisa que aconteça só
uma vez. Acontece sempre que fazemos algo ótimo que gostávamos que
essa pessoa visse, sempre que não sabemos o que fazer e precisamos de
conselhos. Sempre que falhamos. Isso erode-nos a noção do normal e o que
cresce no seu lugar definitivamente não é normal, mas continuamos a ter de
perceber como avançar.
Dez anos e continuo a perdê-lo todos os dias.
Ao início, custa-me mesmo muito ouvir a sua voz pelas colunas do
portátil. O nosso equipamento de gravação era demasiado bom – não há
estática, nada que faça parecer sequer remotamente que o áudio envelheceu.
– Dan e Shay Apresentam as Notícias – diz ele, naquela voz perfeita, e eu
bebo mais vinho.
Ouço-me com onze anos a rir.
– Não, não, devias dizer o meu nome primeiro.
– Ups, desculpa, esqueci-me. – Vamos lá tentar outra vez. Dan e Shay
Apresentam as...
– Paaai, fizeste o mesmo outra vez!
– Oh, bolas, a sério? Mais uma vez...
Ele estava a fazer de propósito, claro. Agora percebo.
Ouço-nos a discutir, rir, contar histórias. Isso aperta-me o coração, dói,
mas não me dá o tipo de clareza que eu esperava.
Facto: adorava fazer aqueles programas com o meu pai.
Facto: quando crescesse, queria estar na rádio.
Sonhava contar histórias que levassem as pessoas a sentir qualquer coisa
– o mesmo que a rádio fazia por mim. Durante algum tempo, apresentar um
programa de sucesso pareceu-me uma resposta às perguntas que eu tinha
feito durante toda a vida. Era validação.
O Fala Com o Ex deu-me isso, apenas durante algum tempo, mas, sendo
honesta comigo mesma, há muito, muito tempo que não o sentia no
programa de Paloma.
Continuo a clicar nos ficheiros. Já estou no fundo do poço, por isso, que
diferença faz um pouco mais de sofrimento?
O mais engraçado é que o meu pai teria adorado o que aconteceu no
nosso programa ao vivo. Oh, sem dúvida, ficaria desiludido comigo, mas
ele adorava quando as coisas na rádio fugiam ao guião. Ansiava por esses
momentos humanos, pelas alturas em que se viam as pessoas por trás das
personagens.
Bom, aqui tens, pai. Foi assim que dei cabo da rádio pública.
34

A minha mãe casa-se no pátio da casa onde cresci, num dia soalheiro de
julho.
Estão quase vinte e cinco graus, perfeito para um verão em Seattle, e ela
está radiante no seu macacão azul-escuro, com o cabelo ruivo arranjado
num coque sofisticado com alguns cabelos a cair-lhe pelos ombros. Phil usa
um fato de linho cinzento-antracite e uma gravata azul-escura, e nenhum
deles consegue parar de sorrir.
O casamento é pequeno, há apenas uns trinta convidados. Os meus pais
sempre tiveram orgulho no nosso jardim das traseiras – sabe Deus que o
meu pai passava imenso tempo a cuidar dele. Afinal, tem espaço suficiente
para uma chuppah, várias filas de cadeiras e uma pequena pista de dança.
Tudo está adornado com rosas amarelas, jarros elegantes, uma união das
flores preferidas da minha mãe e de Phil, e acendemos velas ao longo do
muro. Um quarteto de cordas de amigos deles da orquestra sinfónica está
presente e, mais tarde, eles também vão tocar.
Apercebo-me de que nem toda a gente tem a oportunidade de ver um pai
ou uma mãe tão profundamente apaixonado e isso faz-me sentir afortunada,
poder ter acesso a este lado da minha mãe.
Tê-la visto tão apaixonada não uma vez, mas duas.
Os meus novos meios-irmãos e os filhos são suficientes para que uma
pequena festa ganhe vida e energia e, embora sinta saudades das
celebrações serenas que tinha com os meus pais, acho que podia habituar-
me, bem, à diversão.
Há tanto para preparar que nem tenho uma oportunidade para falar com
Ameena e TJ, que chegam quando a cerimónia está quase a começar. Sei
que, a dada altura, terei de falar com eles, mas estou a adiar isso ao
máximo. A minha mãe é a minha prioridade máxima.
A cerimónia propriamente dita é curta e enternecedora. A minha mãe e
Phil escreveram os seus próprios votos, ambos adequadamente lamechas.
Incorporam a tradição judaica de partir um copo – após a qual todos
gritamos Mazel tov! – e uma tradição nigeriana em que os convidados
fazem chover dinheiro sobre os noivos, que escolhem doá-lo a uma
fundação de apoio a pacientes oncológicos, numa homenagem à primeira
mulher de Phil.
– Como tens passado? – pergunta-me a minha nova meia-irmã, Diana,
depois da cerimónia, quando estamos em fila para o pequeno bufete ao lado
da pista de dança.
– Oh... bem – respondo, pois ainda não temos a intimidade necessária
para que eu seja completamente franca quanto ao facto de andar a afogar-
me em autocompaixão com uma dose saudável de autodesprezo. Mas talvez
um dia venhamos a ter. – Só... à procura de emprego. Por estranho que
pareça, ninguém me tem vindo bater à porta a oferecer-se para me contratar.
– É um mundo duro. Olha, se quiseres tomar conta de crianças – diz, a
agitar as sobrancelhas –, andamos à procura de uma ama.
Obrigo-me a sorrir. Ainda que goste dos filhos dela, não sei se aguentaria
tantas horas com eles. Ainda nem sequer sei se quero ter filhos.
– Oferta tentadora, mas vou ter de recusar – digo, ao que ela estala os
dedos.
– Raios. Estava mesmo com esperança de conseguir um desconto
familiar. As amas não saem baratas.
– Estás a tentar convencer a Shay a ser a nossa ama? – pergunta o marido
dela, Eric, ao aproximar-se com um copo de vinho branco.
– Sim, e não está a funcionar. Quem é que os miúdos estão a aterrorizar
agora?
– Estão sossegadinhos a comer ravioli. Pelo menos durante os próximos
minutos. – Inclina o copo para mim. – Shay, posso trazer-te alguma coisa?
Na última semana, bebi o vinho equivalente ao de ir a dez casamentos,
por isso se calhar é melhor não.
– Estou bem – digo. Meu Deus, são mesmo tão simpáticos. Não sei
porque é que alguma vez me senti relutante em relação a isto. – Obrigada.
Como esperei que toda a gente se servisse do bufete antes de mim, levo o
meu prato com comida para a única mesa que tem cadeiras vazias. Claro
que é aquela a que Ameena e TJ estão sentados. Ela está a usar um vestido
lilás que me lembro de que comprámos numa venda de garagem no ano
passado, e pergunto-me se se lembrará da butique em Capitol Hill onde
comprei o meu azul-claro. Tudo o resto nela me parece tão familiar que
nem dá para acreditar que se passaram meses desde a última vez que
falámos.
TJ dá-lhe um toque delicado para que ela avance.
E eu... vou-me abaixo.
*

Vamos mais para o fundo do jardim para conversar.


– Nem acredito em tudo o que aconteceu – diz ela, sentada ao meu lado
num banco de pedra que o meu pai instalou há tantos anos.
– A mim também não me entra na cabeça – admito. – Às vezes parece-me
um pesadelo, mas depois acordo e não, continuo extremamente não
empregável e envergonhada.
Ela aperta-me o ombro e eu inclino-me para ela.
– Quem me dera poder ter estado aqui a apoiar-te. Não odeio Seattle,
juro. Estava só desejosa de uma mudança. Tudo o que disse foi
completamente injustificado.
– Talvez – concordo. – Mas não acho que estivesses totalmente errada. O
mais estranho disto tudo é que sinto alívio. Estou aliviada por não ter de
continuar a mentir. E um bocadinho aliviada por poder perceber se há um
emprego para mim que não seja na rádio pública.
– A Shay Goldstein fora da rádio pública – diz ela, com um arquejar
exagerado. – Mas a que ponto chegou o mundo?
Essa é a parte mais aterradora: que a rádio pública me tenha definido
durante tanto tempo que eu nunca me tenha perguntado quem sou sem ela.
Talvez a verdade seja que tenho tido medo de o descobrir.
Ameena abre a sua bolsinha com contas.
– Eu sei que não é tradição dar um presente à filha da noiva – diz ela. –
Na verdade, mandei fazê-las antes da nossa discussão. Ia dar-te a tua antes
de ir embora, mas...
– C’um caraças. Não! – Desembrulho uma pulseira de prata feita à
medida com as letras OQFUHBM gravadas. – Arranjaste-me uma pulseira
de OQFUHBM.
– Para que nunca te esqueças – diz ela a sorrir.
– Dizes-me que tens uma a condizer?
Ela tira outra e põe-na no pulso.
– Claro!
Continuamos a pôr a conversa em dia. Ameena fala-me mais do seu
trabalho, da Virgínia, da humidade para que o seu cabelo não estava
preparado de todo. Passado algum tempo, TJ encontra-nos e convida
Ameena para dançar. Ela arqueia as sobrancelhas e olha para mim e eu
faço-lhe sinal de que não tem problema. Nós também vamos ficar bem – ou,
pelo menos, vamos tentar.
Regresso para junto dos convidados e sento-me numa cadeira livre ao
lado da minha mãe.
– Como é possível que tenhas passado as últimas duas horas a dançar e
ainda estejas impecável? – pergunto-lhe.
– Oh, deixa-te disso – diz ela, mas está encantada. – Eu sei que estás a pôr
boa cara para o casamento e aprecio isso, mas podes ser honesta comigo.
Como andas?
Gosto que não me tenha julgado por ter mentido em direto a milhares de
ouvintes. Deve saber que já tive suficiente disso de todos os lados da
internet.
– Não estou bem – reconheço, e passo os dedos pelas pétalas de um jarro
perto de nós. – Mas estou a tentar ficar.
– E o Dominic?
– Voltou para a PPR. Como pesquisador. – As desculpas dele deviam ser
mesmo vãs, se aceitou manter-se na estação, a trabalhar com Kent. O facto
de ele continuar lá, de se pôr do lado de Kent, parece-me uma traição
tremenda. Se ao menos o meu coração percebesse isso... – Acho que me
deixei levar de tal maneira pela ideia do programa que não me importava
que estivéssemos a mentir, que as pessoas nos dessem dinheiro por
acreditarem na nossa mentira e, pensando nisso assim, parece... mesmo
merdoso.
– Querias fazer boa rádio – diz ela simplesmente. – Enganaste-te. Ao que
parece, o Dominic cometeu o mesmo erro.
– Tudo estaria bem se eu conseguisse deixar de o amar.
– Sabes quantas vezes achei que as coisas seriam muito mais simples se
eu conseguisse deixar de amar o teu pai? – Abana a cabeça, e talvez seja
estranho falar dele no dia do seu casamento, mas isto só prova que ele
nunca desaparece. – Todos os anos de terapia, de solidão, de tristeza... se eu
pudesse simplesmente carregar num botão e parar, teria sido mais fácil,
certo?
– Isso teria sido horrível – digo eu. – Mais fácil, claro, mas ainda assim
horrível.
Agora estou a pensar em todas as vezes, em relações anteriores, em que
disse amo-te demasiado cedo. Tenho a certeza de que estava a ser sincera,
mas nunca tinha sido nada como o que sinto por Dominic. Anseio pelas
coisas mais pequenas, mais simples: a covinha rara, as piadas acerca da
nossa diferença de idades, a sua paixão por panelas e tachos de ferro
fundido. Como era tê-lo na cama, sim, mas também a forma como me
confiava as suas memórias dolorosas e eu lhe confidenciava as minhas.
Talvez essas coisas não fossem assim tão pequenas e simples.
O quarteto passa para uma cover de «September» e a pista de dança
enche-se mais.
No entanto, a minha mãe parece perdida em pensamentos.
– Sabes, eu costumava ter ciúmes de vocês. De ti e do Dan.
– Costumavas o quê? – pergunto, com a certeza de que ouvi mal.
– É um disparate, não é? Ou, pelo menos, agora parece disparatado. Tu e
o teu pai tinham uma coisa que adoravam. Tu herdaste toda a paixão dele
por isso, e era engraçado ver-vos juntos, mas... às vezes eu também
desejava, só um bocadinho, que também pudesses ter gostado de música.
Oh. Não fazia ideia de que ela sentisse isso. É impressionante ouvir um
pai ou uma mãe confessar algo tão... humano.
– Mãe – digo em voz baixa. – Eu... peço desculpa.
Ela acena com a mão.
– Não tens culpa! Gostavas do que gostavas. Não podia obrigar-te.
Tentaste aulas de piano, tentaste aulas de violino e tentaste o coro, e
simplesmente não sentiste um «clique» com nenhuma dessas coisas. E não
faz mal.
Ela está a ser generosa. Eu era terrível, não tinha ritmo nem paciência. A
música na rádio, sobretudo o tipo de música que a minha mãe ouvia, não
me entusiasmava como a NPR. E talvez eu fosse a única miúda de nove
anos com uma pancada pelo Car Talk, mas isso não me importava.
– Eu adorava que vocês tivessem essa ligação especial – continua a minha
mãe. – Mas entra-se nisto de se ser pai com uma esperança, talvez egoísta,
de que os filhos adorem aquilo que nós adoramos e de podermos partilhar
isso com eles.
– E eu desapontei-te.
– Não – replica ela com firmeza. – Sobretudo agora, sinto-me muito,
muito feliz por teres tido esse tempo com ele.
Encosto a cabeça ao seu ombro ela passa os dedos pelo meu cabelo até
que Phil a leva de novo para a pista de dança. Observo os casais à medida
que o sol vai descendo no céu e as estrelas vão aparecendo, mas não me
sinto deslocada, como um pau de cabeleira. Não me sinto propriamente
sozinha. Não preciso de alguém ao meu lado, não tenho pressa de encher
um vazio. O que se passa é que quero uma pessoa em particular e é essa
pessoa que não sei como perdoar.
Costumava pensar que, sem o meu pai, nunca mais voltaria a sentir-me
inteira. Mas talvez seja isso o que todos somos – pessoas mais ou menos
quebradas em busca de algo que nos alise os rebordos irregulares.
35

Por fim, Dominic deixa de me mandar mensagens. Suponho que isso


confirme que o que quer que fosse que tivemos chegou mesmo ao fim.
Não esperava sentir tanto a sua falta, mas o amor perdura como uma
nódoa negra, dói-me mesmo quando não estou a pensar ativamente nisso.
Nunca me senti tão mal quando as outras relações chegaram ao fim. Talvez
isso se deva a ter querido obrigar esses tipos a ocupar um espaço que
achava que precisava de ser preenchido, ao passo que Dominic entrou
muito naturalmente na minha vida. Como um querer, não uma necessidade.
De vez em quando, Ruthie manda-me uma mensagem para ver como
estou. Continua a processar o que aconteceu, mas diz que quer apoiar-me e
continuar a ser minha amiga. Acho que não seria capaz de me perdoar se
também tivesse destruído essa relação.
Tenho poupanças suficientes para durar até janeiro se não surgir nenhuma
crise de maior, mas não estou habituada a estar parada. Por isso, concentro-
me na procura de emprego. Se Dominic consegue dar-se por satisfeito a
trabalhar na Estação Que Não Deve Ser Mencionada, eu posso pelo menos
enviar uns quantos currículos. Não sei o que pode haver para uma locutora
de rádio pública caída em desgraça. Tento um canal de televisão, umas
quantas firmas de relações públicas, uma mancheia de empresas à procura
do que quer que seja um criador de conteúdos. Mas nenhum peixe morde.
Talvez me faltem qualificações, ou talvez os empregadores façam uma
pesquisa no Google e não adorem o que encontram.
A meio de agosto, recebo uma mensagem de texto de Paloma Powers que
quase me faz cair da cadeira da cozinha.
*
Soube o que aconteceu. O Kent é um cabrão. Diz-me se precisares de alguma
coisa.
*

Antes que comece a pensar demasiado, respondo à mensagem e, sem


mais, marcamos um almoço para o fim de semana. Não sei o que
conseguirei ao encontrar-me com ela, mas nunca trabalhei durante tanto
tempo com alguém como com ela. A parte otimista que existe em mim, por
mais que tenha minguado, quer acreditar que poderá ajudar-me.
*

Encontramo-nos num restaurante novo que ela diz que faz a melhor
panzanella de Seattle. É uma coisa tão típica de ela dizer que me sinto logo
reconfortada.
Está a usar um dos seus xailes mais ligeiros, para o verão, e tem o cabelo
mais comprido, a rasar-lhe os ombros.
– Parece que não consigo encontrar um produtor tão atento como tu eras –
diz ela com um suspiro enquanto bebe o seu sumo de curcuma. – Mas está a
correr bem. Pensava que não gostava de jazz e, afinal, adoro. Portanto, isso
foi um alívio. E é muito menos stressante do que o que fazia no Puget
Sounds. Stress é a última coisa que quero agora na minha vida.
– É bom ouvir isso – digo. É estranho, este almoço com ela. Quando
trabalhávamos juntas, nunca nos tinha considerado amigas. Nunca fomos
almoçar juntas. Não era que não gostasse de trabalhar para ela. Respeitava-a
e havia uma hierarquia. Ou parecia-me que havia.
Ambas pedimos a panzanella, que eu fico encantada ao descobrir que é
uma salada de pão. Torna-se de imediato o meu tipo preferido de salada.
Ela conduz a conversa como se fosse um programa de rádio.
– O Kent sempre foi um merdoso sexista, desde que o conheço – diz ela.
– Disfarça bem.
– Acho que sempre fui muito rápida a arranjar-lhe desculpas, ou então
tinha medo de dizer o que quer que fosse, porque, bem, ele era o meu chefe.
– Penso na forma como ele dava prioridade à opinião de Dominic sobre a
minha, ou como pedia a uma mulher que tomasse notas numa reunião,
nunca a um homem. Porque a mulher tinha «muito jeito para os
pormenores». Era como se fosse um tratamento especial que nos dava. –
Mas era óbvio que ele adorava o Dominic e eu sentia-me como se fosse de
uma casta abaixo, apesar de estar há imenso tempo na estação.
– É assim que ele age, o sacana matreiro. É muitíssimo simpático para
compensar o facto de não ter o mínimo respeito pelas mulheres. É capaz de
nem se aperceber disso... a misoginia interiorizada é uma droga poderosa.
Mas isso não o desculpa. Também o ouvi gabar-se de contratar pessoas de
cor, como se estivesse a resolver sozinho os problemas de diversidade deste
setor. – Inclina-se para mim com um ar conspirador. – E sabes que uma vez
me convidou a sair com ele?
– O quê?
– Pois. Eu ainda não me tinha assumido no trabalho e, quando lhe disse
que não estava interessada, reagiu como se não tivesse importância. Na
altura ele era o diretor de um departamento noticioso e eu era repórter, e
então começou a atribuir-me as histórias que mais ninguém queria cobrir.
Histórias tão insípidas que a estação nem sequer devia dar-lhes atenção e,
por vezes, ele nem as punha no ar. Tentei falar com ele sobre isso, mas ele
insistia que eu tinha de cumprir a minha parte. Isto durou um ano, até me
chamarem para apresentar o Puget Sounds.
– Meu Deus – digo. – Paloma, lamento imenso.
– O que tornou tudo pior foi que todas as outras pessoas pareciam adorá-
lo tanto, respeitá-lo tanto – continua ela. – E, por causa dessa hierarquia
tácita, eu não podia dizer nada.
A nossa comida chega e ficamos caladas durante alguns minutos, só a
comer.
Por fim, encontro as palavras necessárias para lhe falar das minhas
próprias inseguranças.
– Eu senti um bocado essa hierarquia quando trabalhava contigo –
admito.
– Sim? Por minha causa?
E ela parece tão abalada que tenho vontade de dar o dito por não dito,
mas obrigo-me a continuar:
– É a dinâmica estranha que há entre produtores e locutores, acho. Vocês
são o «talento» e o nosso trabalho é facilitar-vos o vosso.
Apercebo-me de que digo «nosso» como se ainda fosse uma produtora,
como se não tivesse apresentado um programa de sucesso, ainda que depois
fracassado. Talvez, no fundo, ainda o seja.
– Lamento – diz Paloma depois de uma pausa. A seguir, sorri. – Se ajuda,
agora sou eu quem compra as minhas próprias sementes de chia. Uma lição
de humildade.
– Foi difícil deixar a rádio pública?
– Foi difícil ser mandada embora – diz ela. – Tenho a certeza de que o
Kent andava há anos à procura de uma razão para se livrar de mim. Mas
acho que estava na hora de mudar, mesmo que, na altura, me tenha sentido
relutante. Uma coisa é certa, não sinto falta das angariações de fundos.
– Espera, não gostas de implorar a desconhecidos que te deem dinheiro? –
digo eu, e ela ri.
– A rádio pública não tem de ser a tua identidade – diz ela. – Bem, isto
vindo de alguém que se definia completamente dessa maneira. Mas tu ainda
estás no início da tua carreira, e as pessoas têm uma capacidade de atenção
reduzida. Se queres voltar a fazer rádio, podes. Isto não tem de te ser
roubado. Terei todo o gosto em escrever-te uma carta de recomendação, se
achares que isso ajuda. Mas, se não tens a certeza, e se podes... não tem mal
nenhum demorares algum tempo a ponderar sobre qual será o teu próximo
passo.
– É que faço rádio há tanto tempo que não sei para que mais terei jeito.
Ela lança-me um olhar estranho.
– Shay Goldstein – diz ela –, se é isso que achas de ti, não és a pessoa que
eu pensava.
36

Deslizo a pulseira do OQFUHBM, que tenho no pulso, para cima e para


baixo. Ameena tem estado a enviar-me fotografias do seu apartamento novo
e, sim, é muito maior e mais barato do que qualquer coisa em Seattle.
Temos planos provisórios para eu ir visitá-la em novembro, quando ela
estiver mais instalada.
A namorada de Ruthie, Tatum, trabalha num café vegano na zona norte
de Seattle e fornece-nos comida de graça enquanto eu e Ruthie enviamos
currículos e nos comiseramos acerca do desemprego. A comida gratuita
ajuda. O álcool gratuito ajuda ainda mais, mas, sinceramente, eu devia
mesmo começar a beber menos durante o dia.
Os fins de semana não me parecem tão vazios como achava que poderiam
ser, se bem que isso talvez seja porque os meus dias de semana também
continuam um pouco vazios. Hoje tive uma entrevista para copywriter
numa agência de marketing, um emprego que eu não tinha a certeza de
querer – calhou apenas ser o primeiro sítio de onde me chamaram. A meio
da entrevista, alguém bateu à porta e pediu para falar com a gestora de RH
e, quando esta voltou, mostrou-se definitivamente mais fria do que antes.
– Podes sempre ir comigo para a rádio comercial – diz Ruthie, a passar
uma batata doce frita por aioli de sriracha. – A KZYO ofereceu-me o meu
antigo emprego, mas ainda não sei se vou aceitar. Ando a tentar ver que
opções tenho.
Beberico o meu rosé.
– Para ser sincera, não sei se aguentava os anúncios.
– Não são assim tão maus.
Ela começa a desfiar um refrão conhecido e, atrás do balcão, Tatum grita:
– Ela está a cantar outra vez a cantiga dos picles? É que está proibida de o
fazer a menos de três metros de mim, é uma regra que nós temos.
Ruthie leva um dedo aos lábios.
– Pagam mesmo be-em – cantarola ela.
– Vou pensar nisso – prometo.
Voltamos aos nossos portáteis, com o matraquear dos nossos teclados a
misturar-se com o girl pop punk que toca nas colunas do café. Não está
muito cheio – na verdade, somos as únicas pessoas aqui, mais Tatum e um
cozinheiro na cozinha.
– Se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, dizes-me, certo?
– pergunto-lhe ao fim de uns minutos. Continua a ser estranho, estar sentada
à frente dela depois de ter passado cinco meses a mentir-lhe.
As mãos de Ruthie detêm-se sobre o teclado, com os anéis a refletir a luz
da tarde.
– Já te disse cem vezes que te perdoo – responde. – Tenho a sensação de
que aquilo por que estás a passar já basta. Não preciso de passar sal na
ferida.
– És demasiado boa para este mundo.
– Eu sei – diz ela. – Quase não quero perguntar, mas... há novidades do
Dominic?
Abano a cabeça.
– Ainda mandou umas mensagens durante algum tempo, mas depois
parou. Se bem que eu também não estava propriamente a responder-lhe. –
Deixo escapar um suspiro. – Não sou capaz de falar com ele se ele continua
a trabalhar lá.
– Eu percebo – diz Ruthie. – Lamento muito. Estava mesmo a torcer por
vocês.
De repente, atrás do balcão, Tatum exclama:
– Oh, meu Deus!
E corre até à nossa mesa, com o rabo de cavalo escuro a saltitar. Espeta o
telemóvel à frente de Ruthie.
– A ver o Twitter em vez de trabalhar? – censura ela, a abanar a cabeça
enquanto faz tss, tss. Mas os seus olhos arregalam-se ao ver o que está no
ecrã. – Oh, meu Deus – ecoa. Arranca o telemóvel da mão de Tatum e
começa a descer pela página.
Eu inclino-me para a frente, a tentar ver o que será.
– O que se passa?
Quando trabalhamos numa redação, habituamo-nos a este tipo de reações
quando algo horrível acontece algures no mundo: pessoas reunidas em
torno de um telemóvel, com a mão a tapar a boca. Mas elas parecem apenas
chocadas, não transtornadas.
– Liga na Pacific Public Radio – diz Ruthie, dando uma palmadinha no
meu telemóvel. – Estou a ficar sem bateria.
Solto uma risada.
– Não, obrigada. Vou simplesmente ver o Twit...
– Shay. Liga a porra da rádio – repete Ruthie com tanto vigor que não me
atrevo a desobedecer-lhe.
Com relutância, vou até à página da PPR e carrego no pequeno ícone de
um microfone para dar início à emissão em direto. Tatum baixa o som do
sistema do café e todas nos inclinamos para ouvir... uma notícia de última
hora da NPR, acerca de um jacaré na Florida que finalmente foi apanhado,
tendo escapado de um jardim zoológico no início da semana.
– Agora... interessamo-nos por jacarés?
Ruthie revira os olhos.
– Espera só até ao final das notícias.
Tatum senta-se no banco ao lado de Ruthie e esperamos. Quando a
emissão da PPR regressa, torna-se evidente que estão a meio de uma
campanha para angariação de fundos, o que me provoca uma pontada
estranha no peito. Nem me tinha dado conta de que isso ia acontecer esta
semana.
«E estamos de volta, a falar de como podemos apoiar o bom jornalismo
local» diz uma voz familiar. «O que coincide com a segunda hora da minha
ronda de pedidos de desculpa. Se acaba de sintonizar a nossa estação, eis o
que aconteceu até agora.»
Nem consigo respirar.
«Havia uma miúda», diz Dominic, e eu tenho receio de que o meu
coração pare mesmo de bater. «É assim que estas histórias costumam
começar, não é? Então. Havia uma miúda, e é a miúda mais esperta e mais
interessante que alguma vez conheci. Trabalhámos juntos nesta mesmíssima
estação. Ela estava na Pacific Public Radio há dez anos e é uma profissional
fantástica. Basicamente, é uma enciclopédia da NPR. Até tivemos a sorte de
apresentar um programa juntos... mas isso não correu exatamente conforme
planeado. O programa assentava numa mentira – a ideia de que tínhamos
namorado e que formávamos uma equipa para dar conselhos sobre relações
e ouvir histórias de outros desencontros amorosos. Mas a coisa torna-se
mesmo, mesmo complicada quando começamos a apaixonar-nos por uma
rapariga com quem os ouvintes acham que já andámos e que já esquecemos.
Sobretudo quando a nossa secretária fica mesmo ao lado da dela.»
– Shay – diz Ruthie, agarrando-me o braço. – Shay.
– Eu... oh, meu Deus.
O café desaparece à minha volta. Tenho a visão afunilada e
definitivamente não é só por causa do rosé. Tudo o que vejo é o ícone do
microfone no meu ecrã e tudo o que ouço é a voz de Dominic. Soa tão à-
vontade no ar, mais do que nunca.
«Mas eu fiz asneira», continua ele, e depois interrompe-se com uma
pequena gargalhada que me sobressalta o coração, o leva a voltar a bater.
«Sempre tive um pouco de medo do palco e, infelizmente, fiquei paralisado
quando ela mais precisava de mim. Não a apoiei, mesmo depois de termos
prometido que seríamos uma equipa. Hoje estou aqui para vos dizer a todos
que lamento profundamente a mentira na qual Fala Com o Ex se baseou,
mas, mais do que isso, lamento, Shay. Estou incrivelmente arrependido e
tudo o que quero é voltar a falar contigo.»
Isto está mesmo a acontecer. Dominic, a pedir desculpa pela rádio.
– Está por todo o Twitter – diz Ruthie, a mostrar-me o telemóvel, mas eu
não consigo decifrar qualquer texto. – Ao que parece, antes esteve a dizer
qualquer coisa acerca de Beanie Babies?
– Isto é a coisa mais romântica que eu alguma vez vi – diz Tatum. – Ou
ouvi, acho.
«Não sei se ela está a ouvir», diz Dominic «mas não me ocorre outra
forma de lhe dizer como estraguei tudo. Se ela me der outra oportunidade,
mesmo que eu não a mereça, farei tudo o que estiver ao meu alcance para a
compensar. E, mais do que isso... preciso que ela saiba que a amo. Estou
apaixonado por ela desde que fomos àquela ilha, talvez até antes disso. E
estou morto por lhe dizer isso pessoalmente.»
Surge outra voz na rádio, que reconheço como sendo de Marlene
Harrison-Yates.
«E se quiser ligar-nos com um donativo para manter o Dominic no ar,
para nos ajudar a continuar, o número é o 206-555-8803, ou também pode
doar online, em KPPR.org.»
– Oh, meu Deus – repito, sem saber se tenho mais palavras no meu
vocabulário. O meu primeiro instinto é desligar aquilo, calá-lo, ignorar
tudo. Insistir que ele não pode voltar a entrar na minha vida com falinhas
mansas. Fecho os olhos por um instante, a tentar agarrar-me à realidade. –
Ele continua na estação. Continua a trabalhar para eles. Tudo isto é... uau,
mas não muda o facto de ele ter aceitado o emprego depois de praticamente
me expulsarem de lá.
– Não achas que deves ouvi-lo? – pergunta Ruthie.
No fundo, eu sei que ela tem razão. Para haver alguma possibilidade de
resolvermos as coisas entre nós, tenho de falar com ele.
– Ele ainda está em direto. O que hei de fazer?
– Ir até lá e dizer-lhe que estás perdidamente apaixonada por ele? –
sugere ela. – Quero dizer, é apenas uma ideia.
– Não posso simplesmente ir lá. Demiti-me, lembras-te? Eles
praticamente despediram-me. – Com as mãos a tremer, pego no telemóvel.
– Eu... eu vou ligar.
Não faço ideia do que vou dizer, mas é a única opção que parece fazer
sentido no meu cérebro baralhado.
O número já faz praticamente parte do meu ADN, embora eu nunca o
tenha marcado. Ainda assim, estou tão atrapalhada que, à primeira, me
engano num dígito.
– Linha dos ouvintes da Pacific Public Radio, que comentário quer
deixar? – pergunta Isabel Fernandez, e é emocionante ouvir a sua voz.
Durante as angariações de fundos, é frequente ouvintes ligarem para
partilharem uma história acerca da estação e explicarem porque é que a
apoiam. Nem acredito que tenha conseguido estabelecer ligação tão
depressa.
– Isabel, é a Shay. Shay Goldstein.
Se desse para ouvir alguém a esbugalhar os olhos pelo telefone,
provavelmente o som seria o do silêncio petrificado de Isabel.
– Shay?! Espera, deixa-me pôr-te em direto. Isto vai ser espetacular!
– Não, espera... – digo, mas é demasiado tarde.
É estranho, ouvir a emissão da rádio no portátil e depois pelo telemóvel
enquanto espero por entrar em direto. E, durante todo este tempo, nem
acredito bem que estou a fazer isto, estou mesmo a fazer isto, caramba.
– Parece que temos uma ouvinte em linha – diz agora Dominic ao meu
ouvido.
– Dominic. – A voz treme-me.
Ruthie e Tatum estão inclinadas sobre a mesa para ouvir, Ruthie a
agarrar-me o braço, Tatum a agarrar o de Ruthie.
Silêncio na linha. Tenho vontade de o criticar, de lhe dizer que ar morto é
mortal.
– Shay? – A voz dele também está trémula. – Não achei que fosses ouvir.
Quero dizer... esperava que ouvisses, mas imaginei que estivesses a evitar a
rádio, e... ena. Ena. – Tento imaginá-lo ali no estúdio, a andar de um lado
para o outro, a passar uma mão pelo cabelo, a arregaçar as mangas da
camisa. – É tão bom ouvir a tua voz.
Sinto a cara a abrir-se num sorriso. A sua voz não me chega. Tenho de o
ver, e tenho de o ver já.
– Fica aí – digo-lhe. – Vou ter contigo.
– Espera – diz ele. – Espera... Shay...
Ruthie e Tatum estão a fitar-me, boquiabertas.
– O que é que está a acontecer? – diz Ruthie.
– O que espero que seja o momento mais romântico da minha vida.
*

Estou demasiado estonteada para conduzir, pelo que Tatum deixa o


cozinheiro a tomar conta do café para que ela e Ruthie possam levar-me.
O carro de Ruthie está estacionado na esquina. Sento-me no desarrumado
assento traseiro, cheio de recibos e sacos de lona, dois sapatos
desirmanados e uma mancheia de CD.
– Tens CD? – pergunto, ao mesmo tempo que levanto um pé para não
pisar os grandes êxitos de Hall and Oates.
– É um carro velho – diz Ruthie. – Não dá para tocar mais nada.
– Para além disso, pode pôr-se toda hashtag retro – comenta Tatum.
– Detesto que os CD sejam retro – refilo enquanto Ruthie acelera para a
autoestrada. Devemos demorar uns vinte minutos a chegar à baixa. Vinte
minutos em pânico no assento traseiro.
– Desculpa a desarrumação aí atrás – diz Ruthie. – Mas, se encontrares
uma pastilha elástica, diz-me.
– Deixa a rapariga respirar – atalha Tatum. – Acabou de receber uma
declaração pública de amor. – Vira-se para mim. – Queres que ligue a
rádio?
– Não sei. – Parece-me tão invasivo que toda a gente esteja a ouvir isto.
Mas era isso que estávamos a fazer com o programa, não era? – Se alguém
me convencesse de que não vou estragar tudo, seria fantástico.
E, abençoadas sejam, elas tentam. Quando chegamos ao edifício familiar
e Ruthie dá a volta ao quarteirão sem conseguir encontrar lugar para
estacionar, sinto o coração na garganta.
– Tu és capaz – diz-me ela com firmeza. – Estaremos aqui mesmo se
precisares de nós. Em parte porque não conseguimos encontrar lugar, mas
sobretudo porque acho que precisas de subir sozinha.
– Boa sorte – diz Tatum. – Vamos ficar a ouvir.
Assinto com a cabeça e engulo em seco.
– Obrigada. Muito obrigada às duas.
Com as pernas bambas, avanço até à entrada, apercebendo-me de que
nem sequer sei se me deixarão subir se tocar à campainha. Passo
pateticamente o meu cartão pela fechadura, mas é claro que foi desativado.
Por isso, com um suspiro trémulo, carrego no botão.
– Pacific Public Radio – atende a voz cheia de estática de Emma
McCormick.
– Olá... Emma – digo, a carregar no botão. – Sou eu, a Shay Goldstein.
Queria subir para falar com o Dominic. Ele está em direto...
– Shay, oh, meu Deus! – guincha ela. – Nem acredito nisto. Quem me
dera que alguém fizesse uma coisa assim por mim. Que sorte tens. As linhas
telefónicas têm estado de loucos e já ultrapassámos os nossos objetivos para
toda a angariação de fundos. É mesmo...
Ouve-se ruído ao fundo e depois outra voz conhecida.
– Shay? É a Marlene Harrison-Yates. Vou abrir-te a porta.
– Oh... obrigada – respondo enquanto ouço o clique da porta. Hoje nada
faz sentido.
Depois chego ao átrio e ao elevador mais lento de todos os elevadores
lentos, a desfazer o rabo de cavalo e a voltar a fazê-lo, a limpar as lentes
dos óculos à T-shirt, a tentar ficar com um ar menos assustador. Mas
Dominic já me viu no meu pior, viu-me em pânico e sem maquilhagem e
com lágrimas a correr-me pela cara, e ama-me.
Ele ama-me.
Quando chego ao quinto andar, Marlene está a segurar a porta da estação
para que não se feche.
– Não resisto ao amor verdadeiro – diz ela com um encolher de ombros. –
E a Emma não estava a fazer-te chegar suficientemente depressa.
Emma encolhe os ombros como quem pede desculpa, mas sem perder o
ânimo.
Mal tenho tempo de observar a entrada da estação, como é acolhedora
com as paredes cobertas de discos de vinil, quando Kent se lança na minha
direção.
– Shay! – exclama, num tom tão falsamente entusiasmado que me dá a
volta ao estômago. – Estávamos a pensar se aparecerias. Eu sei que é pouco
convencional, mas as redes sociais estão em polvorosa. Nunca vi uma coisa
assim. É mesmo impecável da tua parte que ponhas tudo isto para trás das
costas e...
– Não estou aqui por ti. – Meu Deus, como é incrível a sensação de o
interromper. Aponto para a entrada. – E, por mais que antes tenha adorado
este lugar, não estou aqui pela estação. Vim pelo Dominic e nada mais.
Depois, vou-me embora.
A boca de Kent contrai-se e ele acena bruscamente com a cabeça. A saia
comprida de Marlene balança quando ela passa à frente dele e, quando nos
entreolhamos, uma expressão breve de compreensão perpassa-lhe o rosto.
– Vai – encoraja-me, e eu baixo a cabeça, agradecida.
Os meus antigos colegas parecem ter-se apercebido do que está a
acontecer e juntam-se a nós no corredor, a fitar-me, boquiabertos, enquanto
eu avanço para o sítio onde costumava sentir-me mais à-vontade.
Respirações profundas. Um pé à frente do outro. Sou capaz de fazer isto.
Cerro os olhos e, quando os abro, ali está ele, no meio do estúdio como se
estivesse a fazer um discurso para impedir uma votação. Tem as roupas
impecáveis mas o cabelo em desalinho, tal como eu tinha imaginado. A
sombra escura da barba ao longo do maxilar, os auscultadores do estúdio
sobre as orelhas. Lindo, sensual, doce e amável. O tipo pelo qual eu receava
apaixonar-me demasiado.
Quando os seus olhos me veem, o seu rosto muda por completo. Os seus
lábios abrem-se num grande sorriso. Os seus olhos escuros animam-se e a
sua postura parece descontrair de alívio. É incrível assistir àquela mudança.
Ele avança para a porta e deve esquecer-se de que está de auscultadores,
porque o fio o puxa de novo para a mesa. É adorável vê-lo atrapalhado com
aquilo, a tentar desenredar-se.
– Ponham-lhe um microfone – diz alguém, nem sequer sei quem.
E depois empurram-me para dentro do estúdio com o homem que acaba
de me revelar tudo o que sente em direto na rádio. Põem-me uns
auscultadores nas orelhas, e será que sempre foram assim tão pesados?
– Estamos numa pausa para notícias – diz-nos Jason Burns pelos
auscultadores. – Têm quatro minutos antes de voltarmos a estar no ar.
– Olá – diz Dominic. A palavra é uma exalação ofegante.
– Olá.
Achava que ia correr para ele, que ele me envolveria nos seus braços, me
beijaria apaixonadamente. Que o mundo exterior desapareceria, acabaria,
com os créditos finais a passarem.
Só que nada disso acontece. Os meus pés transformam-se em betão.
Fitamo-nos um ao outro, como se nenhum de nós soubesse bem o que fazer.
– Estás... estás ótima – diz ele, com a voz um pouco rouca. Devia ter
trazido pastilhas para a garganta.
– Obrigada – digo, a passar uma mão envergonhada pelo cabelo. – Tu...
hã. Tu também.
Ainda temos tanto por dizer, mas, agora que estou aqui com ele, não sei
por onde começar. Claro que sonhei que nos reconciliávamos, mas nunca
imaginei que aconteceria assim, com Dominic à minha frente a parecer não
ter a menor ideia do que fazer com as mãos.
– Tens estado... bem? – pergunto. – Desde que o programa foi cancelado?
Ele acena com a cabeça, mas depois faz um esgar.
– O trabalho tem sido... sabes. Normal. Mas tenho de ser sincero. Tenho
andado na merda.
E isso faz-me sorrir – não por ele se sentir mal, mas por eu ter andado na
merda também.
– Eu também – confesso, com a voz sumida.
– Faltam trinta segundos – diz alguém.
– Tenho de voltar para o ar – diz ele.
Merda, merda. Praticamente nem falámos.
– Tu... – Ele engole em seco. – Queres ir para o ar comigo?
Começámos isto no ar. Quero acabá-lo – independentemente de qual seja
a conclusão – no ar também.
– Sim – respondo em voz baixa.
O resto da PPR reuniu-se no exterior do estúdio e Kent está a ver um
tablet. Tenho de me concentrar em qualquer coisa que não seja ele.
– Estou de volta com a Shay Goldstein – diz Dominic quando o sinal de A
GRAVAR se acende, e uf, a nostalgia atinge-me com tanta força que tenho de
me sentar.
– Olá – digo e aceno com a mão, embora saiba que ninguém me vê.
Dominic senta-se ao meu lado.
– Então, eu passei as últimas duas horas e meia a revelar tudo o que sinto.
– Eu ouvi. – Obrigo-me a rir. – Nem sei porque é que estou a rir, na
verdade.
– Até tem graça – concede ele. – Conseguimos fingir que éramos ex-
namorados porque discutíamos imenso. Depois apaixonámo-nos um pelo
outro. E depois passámos algum tempo a esconder isso de nós mesmos e,
quando finalmente o admitimos um ao outro, tivemos de o esconder do
público. Mas depois tudo se desmoronou e agora... agora nem sei o que
somos.
– Quando ficaste calado em Austin, e depois quando desapareceste... –
Abano a cabeça, ainda incapaz de bloquear aquela humilhação. – Nunca me
tinha sentido assim. «Envergonhada» não chega sequer para começar a
descrever o que senti. Passei o último mês a tentar perceber se devo
trabalhar na rádio, mas agora que estou de volta... posso ter deixado a
estação, mas isso não quer dizer que tenha deixado de adorar isto, foda-se.
Ups, Comissão Federal de Comunicações.
Vai sair caro à estação.
E apercebo-me de que não me importo nem um pouco.
– És boa no que fazes, foda-se – diz ele, o que me leva a arquear as
sobrancelhas. É ele que ainda trabalha aqui, não eu.
– Trabalhei aqui desde os tempos da faculdade – digo, a falar mais com o
público do que com ele. – E por isso, ter o meu emprego de sonho, subir ao
palco, e depois ver a minha carreira jornalística acabar tão depressa... não
estava preparada para isso.
– A tua carreira jornalística não acabou – atalha ele. – Desde que não
queiras que acabe.
– E eu sei isso – respondo, pois, no fundo, sei que ele tem razão. – Acho
que o que me tem magoado mais é o facto de, depois de tudo ter rebentado,
tu teres continuado a trabalhar aqui. Que tu continuasses a ter um emprego,
um lugar aqui e eu não. É isso que não consigo ultrapassar.
Ele acena com a cabeça, deixa a frase a assentar.
– Eu queria explicar. Precisava de explicar, e não te julgo por não teres
respondido às minhas mensagens porque eu provavelmente também não
teria respondido. – Aproxima a cadeira da minha, toca com o sapato no meu
e isso faz-me lembrar daquela vez que ficámos até tarde na estação, a criar
uma história para nós. Foi das primeiras vezes que me apercebi de que era
capaz de sentir algo por ele, embora estivesse decididíssima a negá-lo. –
Não fico no meu melhor em frente a grandes grupos. Nunca fiquei. Era
capaz de fazer o programa contigo aqui, mas tive o pior medo do palco da
minha vida em Austin. E isso é só uma desculpa parcial, eu sei. Tudo
também estavas a passar por um horror no palco. Estavas a ser tão
bombardeada quanto eu. Mas é a verdade. A ansiedade fez-me ficar
paralisado, e, algures nas profundezas dessa espiral de pensamentos, tive
medo de que o que quer que eu dissesse pudesse destruir-me a carreira
jornalística. Durante imenso tempo, quis ser um repórter sério e, algures
pelo caminho, esqueci-me disso. Só que, quando voltei para o trabalho, tudo
me parecia mal. Deu cabo de mim aceitar o emprego, continuar a vir
trabalhar todos os dias sem que tu estivesses aqui. Qualquer sucesso
profissional que possa ter é irrisório se o resto da minha vida está mal.
Envergonhei-te, e arrependo-me imenso disso. Se pudesse voltar atrás, iria
apoiar-te a cem por cento. Não tenho a mínima dúvida disso.
Ele inspira antes de continuar e eu tenho de levar uma mão ao peito de
novo para acalmar o meu coração.
– No primeiro dia em que voltei ao trabalho, quis despedir-me. Mas sabia
que vinha aí uma angariação de fundos e achei que era capaz de ser a minha
última oportunidade.
– A tua última oportunidade de quê, ao certo?
Surge uma caixa de chat no ecrã ao nosso lado. OS DONATIVOS
ESTÃO UMA LOUCURA, CONTINUEM! Mas nós não estamos a fazer
isto por eles.
O meio-sorriso familiar de Dominic curva-lhe os lábios. Quero sentir
aquele meio-sorriso junto à minha nuca, ao meu pescoço. Quero perdoá-lo.
– Sabes aquilo que disse em direto – diz ele.
– Diz-mo a mim. – Inclino-me para a frente e os nossos joelhos tocam-se.
– Diz-me como se fosse a única pessoa aqui. Como se não houvesse
centenas de pessoas a ouvir.
– Milhares – sussurra ele, e não posso deixar de sorrir. – Quero tentar de
novo. Sem mentiras, sem fingimento. Tudo completamente às claras.
Os dedos dele tocam os meus.
– Tenho um historial de dizer às pessoas que as amo e de não ouvir o
mesmo em resposta – digo-lhe. – Talvez seja um problema meu... precipito-
me. Mas... desta vez quero ser corajosa.
– Eu também – diz ele e, com um movimento ágil, estica-se para a frente
e desliga-nos os auscultadores, o que nos tira efetivamente do ar.
Fora do estúdio, os nossos colegas atiram as mãos ao ar e batem com os
punhos no vidro, mas ninguém entra de supetão.
– Amo-te – diz-me só a mim, com uma mão a segurar-me a face, o
polegar a percorrer-me o maxilar. – Estou apaixonado por ti, Shay.
– Dominic. – Temos a respiração sincronizada, tão constante como o
metrónomo da minha mãe. – Amo-te. Amo-te tanto. Amo a tua voz de rádio
e as tuas panelas de ferro fundido e a forma como embrulhaste o meu cão
quando ele estava com medo e até a tua coleção de Beanie Babies.
Com uma mão, ele liga de novo os auscultadores, ainda a segurar-me com
a outra.
– E, já agora, despeço-me, foda-se.
E então, porque estou a sentir-me poderosa:
– Vai-te foder, Kent – digo ao microfone, bem percetível, a adorar a força
da minha voz. – Desfruta da merda das multas! – E só depois puxo o fio do
auscultador para o desligar de novo.
– Amo-te – digo outra vez a Dominic, incapaz de parar. Agarro-o pelo
colarinho e puxo-o para mim enquanto as suas mãos deslizam pelo meu
cabelo. – Amo-te, amo-te, a...
A boca dele junta-se à minha, quente, doce e certa. O meu passado e o
meu futuro – porque, com ele, sempre me senti em casa.
E, apesar de estarmos numa cabina insonorizada, juro que ouço aplausos.
Epílogo

– Podes tirar-me o EKTORP e a MALM, mas não podes tirar-me a


VITTSJÖ – diz Dominic, a passar um braço protetor à volta da estante na
sua sala de estar.
– Mas não condiz com a minha mobília!
– Não, não, não – replica ele. – O que o design minimalista do IKEA tem
de bom é que fica bem com tudo.
Dou um passo atrás, a avaliar, e cedo.
– Suponho que pudéssemos pô-la no nosso quarto de hóspedes.
Até é capaz de ficar bem lá. Essa divisão precisa de ser retocada.
Dominic anima-se, com aquele sorriso encantador a abrir-se-lhe no rosto.
Tem feito muito isso desde que o convidei para viver comigo, há umas
semanas.
– Nosso – repete ele, e é capaz de ser a minha nova palavra favorita. –
Isso agrada-me muito.
Demoramos umas horas a meter tudo na carrinha das mudanças, com uma
pausa para takeaway tailandês que comemos no chão depois de nos
apercebermos de que não devíamos ter começado por guardar as cadeiras
todas.
– Estás preparado para te despedires deste sítio? – pergunto-lhe quando
estamos à entrada, a passar uma última vista de olhos pelo apartamento. As
paredes estão despidas e tudo está empacotado na carrinha ou foi doado à
Goodwill.
– Sinceramente? Estou preparado desde que me mudei para aqui. – Passa
um braço à volta dos meus ombros e deposita-me um beijo no alto da
cabeça. – Mas fico mesmo feliz por esta ser a razão para estar a acontecer
agora.
Na carrinha, Dominic vai passando as estações predeterminadas, com o
pânico a revelar-se-lhe nos olhos quando uma delas é a 88.3 FM. Não
consigo ouvir a PPR desde que entrei pela estação durante a angariação de
fundos, há três meses. Ainda não. Ajuda que Kent esteja suspenso, mas
ainda tenho demasiadas memórias tristes associadas àquilo.
Por isso, surpreendo-nos a ambos ao dizer, antes que ele mude de estação:
– Deixa estar.
– Tens a certeza?
Engulo um nó que se me formou na garganta e assinto com a cabeça. É a
hora certa, por isso ouvimos um pausa noticiosa da NPR. E, raios, aquelas
vozes da NPR continuam a ser a canção de embalar jornalística que mais
me serena.
Porém, depois de uns segundos a ouvir uma história local de Paul Wagner
acerca do mercado imobiliário de Seattle, desisto.
– É tudo o que aguento por hoje – digo, e mudo para o programa Jumpin’
Jazz, com Paloma Powers. Ao que parece, agora gosto de jazz. Os seres
humanos são mesmo capazes de mudar.
O Steve está à nossa espera e arranha-nos as pernas até ter recebido as
festas que considera suficientes. Depois dou-lhe um novo brinquedo de
borracha para que se entretenha enquanto desencaixotamos roupas,
produtos de higiene e material de cozinha de Dominic.
– Como é que conseguiste trazer isto? – pergunto, a segurar numa caixa
de vidro de colecionador com um Beanie Baby lá dentro. Um urso branco
com um coração no peito.
– Mantemos o Valentino mais uns anos e estamos garantidos. – Dominic
dá um toquezinho na caixa. – Este tipo vai pagar a faculdade dos nossos
filhos, tenho a certeza.
Depois de esvaziarmos a carrinha, dou um passo atrás e observo a minha
sala de estar – a nossa sala de estar. Temos muito que reorganizar, o que nos
vai manter ocupados durante os próximos dias, mas não detesto a confusão
das mudanças. Trocámos o meu televisor pelo dele, que é maior, pusemos
uma manta com franjas por cima do sofá. Uma das paisagens que Ameena
pintou nas sessões de Blush ‘n Brush está pendurada no corredor ao lado de
uma fotografia emoldurada de mim e de Dominic a fazer uma caminhada na
ilha de Orcas. Apesar de termos tirado muitas fotografias desde então e de,
oficialmente, não estarmos juntos quando tirámos essa, continua a ser a
minha favorita.
O quarto de hóspedes também tem um ar muito menos triste. Para além
da estante VITTSJÖ, acrescentámos um candeeiro vintage da loja de
antiguidades dos pais dele e temos planos para pintar a casa toda juntos
quando estivermos completamente instalados. Em breve, talvez recebamos
Ameena e TJ, ou amigos da faculdade de Dominic. Isso será uma novidade:
hóspedes para o quarto de hóspedes.
Esta casa parecia-me uma espécie de símbolo do estatuto de adulta.
Talvez não tivesse o resto da minha vida resolvido, mas tinha aquelas
paredes e janelas, aqueles objetos sem memória. Era tudo o que eram:
coisas a que eu não ainda tinha atribuído qualquer significado. Tornou-se
um lar bem antes de termos decidido viver juntos, e o Steve ajudou, mas,
mais do que qualquer outra coisa, acho que só precisava de tempo para
aprender a gostar dela à minha maneira. Fui aprendendo a apreciá-la, a
apreciar este espaço, e nem acredito que em tempos quis apressar isso.
Estamos tão arrasados que, às nove da noite, já estamos na cama. O
roupeiro novo e maior chegará para a semana, mas, por agora, gosto da
forma como as roupas de Dominic vivem ao lado das minhas. Tudo isto é
novo para mim, e digo-lhe isso quando nos metemos debaixo dos lençóis.
– Mas vai ser bom – diz ele. – Mal posso esperar por aprender todas as
coisas esquisitas que fazes quando estás sozinha.
– Não podem ser piores do que usares um cobertor como capa e fingires
lançar feitiços ao Steve.
– Isso foi só uma vez! E eu achava mesmo que ainda estavas no duche.
Aninho-me mais nele, a rir-me contra o seu ombro. Ele envolve-me nos
seus braços, com um polegar a acariciar-me o espaço entre as omoplatas.
Ainda não me habituei à ideia de podermos adormecer assim todas as
noites, de poder acordar a seu lado todas as manhãs.
– Adoro ter-te nesta casa – digo. – Pensei isso da primeira vez que cá
vieste. Estava demasiado assustada para dizer o que quer que fosse, mas
parecias-me tão certo aqui. Era o pior, sentir todas essas coisas e não saber
se tu também as sentias.
Ele aperta-me com mais força.
– Sentia. Sentia-as tanto que dava cabo de mim ter de ir embora. Dava
cabo de mim todas as vezes.
Mesmo agora, ouvir isso faz qualquer coisa ao meu coração.
– Acreditas que há um ano nos detestávamos?
– Eu acho que queres dizer que, há um ano, íamos no nosso terceiro ou
quarto encontro. Acho que foi nesse que eu demonstrei alguma da minha
energia sexual pura.
– Sou capaz de precisar de que me refresques a memória – digo-lhe, mas
ele já está a fazer-me passar para cima de si, com as mãos nas minhas ancas
e, juntos, descobrimos que se calhar não estávamos assim tão exaustos.
*

A campainha toca às dez e meia da manhã seguinte, enquanto Dominic


está na cozinha a estrear uma das suas novas frigideiras de ferro fundido.
Com uma frittata de espinafres e pimento vermelho. Já cancelei o meu
serviço de entregas de refeições.
– Desculpa ter chegado tão cedo, estava só muito entusiasmada... – diz
Ruthie quando vou à porta. Fareja o ar. – Que cheiro maravilhoso!
– Olá, Ruthie – chama Dominic. – Serve-te.
Instalamo-nos os três na mesa da cozinha, a pôr a conversa em dia. Ruthie
começou a trabalhar em relações públicas e está a adorar, o que é um alívio
enorme.
– Mas ainda não tenho a certeza de que seja o meu emprego para a vida –
comenta.
Ergo o meu copo de sumo de laranja.
– Junta-te ao clube.
– Vais encontrar alguma coisa – diz Dominic, e aperta-me o ombro. – Não
tem mal querer esperar pela coisa certa.
E eu sei que ele tem razão. É o que estou a fazer: a aproveitar este tempo
para explorar de uma forma que nunca antes fiz.
– Vocês os dois parecem estar aqui a preparar muito bem o ninho. –
Ruthie levanta-se e estica o pescoço para espreitar para o fundo do corredor.
– Mas vão obrigar-me a implorar para ver?
Eu e Dominic entreolhamo-nos, com a boca dele a formar um meio-
sorriso.
– OK – diz ele, e levamo-la até à divisão que costumava ser o meu
escritório e que eu ainda usava com menos frequência do que o quarto de
hóspedes.
A mão dela voa até à sua boca.
– C’um caraças, está lindo.
Há dois microfones idênticos sobre a secretária, uns auscultadores
gigantes ligados a um sistema de gravação novo em folha. Painéis acústicos
nas paredes, para insonorizar o espaço.
Um pequeno estúdio só nosso.
Dominic vai buscar uns copos de água e as notas em que temos
trabalhado no último mês. Ruthie instala-se confortavelmente na cadeira
mais perto do computador.
– Preparados? – pergunta.
Inspiro fundo, com o olhar fixo no de Dominic. A determinação no seu
rosto dá-me coragem e o calor no seu olhar dá-me a certeza. Estou. Estou
preparada porque isto sempre me esteve no sangue. Porque, para mim, a
rádio nunca teve que ver com hashtags, rankings ou fama. Sempre teve que
ver com as pessoas.
– Sim – digo, e depois carregamos no botão para começar a gravar.
Metas de Relações, Episódio 1
Transcrição

SHAY GOLDSTEIN: Então, acho que temos de começar por um pedido


de desculpas.
DOMINIC YUN: Temos pedido muitas desculpas ultimamente. Acho que
nos tornámos bastante criativos em relação a isso, não?
SHAY GOLDSTEIN: É verdade. Acho que nunca mais serei capaz de
aceitar um pedido de desculpas a menos que seja feito em direto, durante
uma campanha da rádio pública para angariação de fundos.
DOMINIC YUN: Mas, falando a sério, pedimos sinceras desculpas a
qualquer pessoa que tenha ouvido Fala Com o Ex e julgado que tínhamos
namorado. Fizemos parte da mentira desde o início e estamos
profundamente arrependidos.
SHAY GOLDSTEIN: A mais pura das verdades, dado que agora tudo o
que queremos é ser honestos, é que ardemos na rádio pública. E eu
apercebi-me de que passei toda a vida na rádio pública, enquanto o nosso
programa teve mais sucesso como podcast. Aproveitamos para agradecer à
nossa nova distribuidora, a Audiophile, que nos abordou com esta ideia para
um novo programa. Portanto, eis Metas de Relações, em que vamos
concentrar-nos em todo o género de relações interessantes, não apenas
românticas. Vamos esforçar-nos mesmo muito para compensar quem quer
que tenha sido fã do primeiro programa.
DOMINIC YUN: E para quem quiser uma atualização acerca do estado da
nossa relação, estamos juntos a sério há três meses, desde aquela angariação
de fundos.
SHAY GOLDSTEIN: E está a correr bem. Na verdade, ontem começámos
a viver juntos.
DOMINIC YUN: Está a correr mesmo bem. É a típica história de amor
entre colegas que se tornam inimigos que se tornam coapresentadores que
se tornam verdadeiros companheiros românticos.
SHAY GOLDSTEIN: Eu sei, eu sei, está um bocado gasta.
DOMINIC YUN: E podemos dizer asneiras!
SHAY GOLDSTEIN: Foda-se, se podemos! E temos um nome conhecido
a ajudar-nos nos bastidores. Ruthie, queres cumprimentar a malta?
RUTHIE LIAO: Olá a todos!
SHAY GOLDSTEIN: A Ruthie é a nossa produtora fantástica e talvez se
lembrem dela tanto de Fala Com o Ex como de Puget Sounds, um programa
local em que trabalhámos juntas na Pacific Public Radio. Mas ela não gosta
de falar na rádio, por isso...
RUTHIE LIAO: Adeus a todos!
SHAY GOLDSTEIN: Tentamos encarar este podcast mais como um hobby
do que como um emprego, o que quer dizer que sim, continuo à procura de
emprego. Contar histórias sempre foi o que mais adorei na rádio, e tenho
curiosidade quanto a explorar isso noutros meios. Tenho tido aulas, feito
pesquisa... bem, ando só a tentar resolver o que fazer com a minha vida
adulta.
DOMINIC YUN: E eu tenho colaborado com uma startup que está a
construir uma nova plataforma para angariação de fundos sem fins
lucrativos.
SHAY GOLDSTEIN: Ele é ótimo a fazer isso.
DOMINIC YUN: És cá uma graxista...
SHAY GOLDSTEIN: Uma graxista gira?
DOMINIC YUN: Obviamente.
SHAY GOLDSTEIN: A rádio pública vai ter sempre lugar no meu
coração, mas ambos estamos muito entusiasmados com esta nova aventura.
Esperamos que nos acompanhem.
DOMINIC YUN: Não sabemos ao certo até onde isto irá, mas acho que vai
ser uma bela história.
SHAY GOLDSTEIN: E agora, uma pausa para ouvirmos os nossos
patrocinadores.
Agradecimentos

Durante imenso tempo, quis escrever um romance sobre a rádio pública, e


de maneira alguma poderia tê-lo feito sozinha. A minha agente, Laura
Bradford, encorajou-me desde o início e deu-me conselhos preciosos, e
continua a ser uma defensora espetacular dos meus interesses. Obrigada por
me ajudar a encontrar a minha carreira de sonho. Parece-me surreal poder
ganhar a vida a escrever livros. Sinto-me tremendamente grata por ter
encontrado o lar perfeito para Fala Com o Ex na Berkley e com a Kristine
Swartz. Kristine, o seu entusiasmo e a orientação editorial experiente que
me deu tornaram o processo tão divertido! Obrigada por adorar os meus
coapresentadores tão complicados quanto eu. Agradeço à diretora de arte,
Vi-An Nguyen, por esta capa sensacional – estou obcecada por ela!
Agradeço também ao resto da fantástica equipa da Berkley.
Erin Hennessey e Joanne Silberner – este livro não existiria se não
tivessem apostado em mim há dez anos, se não me tivessem encorajado
com o vosso conhecimento sobre a rádio pública. Erin, tomaste café comigo
e contaste-me tudo acerca da KPLU quando não sabias praticamente nada
acerca de mim. Joanne, foste o ponto alto do meu último ano na
Universidade de Washington. Tenho uma sorte brutal por ter aprendido
convosco. Muito obrigada também aos outros jornalistas com quem tive o
prazer de trabalhar na KUOW, na KPLU (que agora é KNKX) e no The
Seattle Times.
Tara Tsai, és a minha pessoa favorita para falar de romances e podcasts.
Rachel Griffin, obrigada pela tua compaixão e por saberes sempre o que
dizer. Kelsey Rodkey, obrigada pelo título perfeito e por me dizeres para
parar de pedir desculpa. Muito carinho para todos os que leram este livro,
total ou parcialmente, nas várias fases da sua vida: Carlyn Greenwald,
Marisa Kanter, Haley Neil, Monica Gomez-Hira, Claire Ahn, Sonia Hartl,
Annette Christie, Auriane Desombre, Susan Lee e Andrea Contos. Nunca
me senti realmente integrada até ter conhecido outros escritores e, por isso,
sinto-me também muito grata a Joy McCullough, Kit Frick, Gloria Chao,
and Rosie Danan.
Aos leitores, livreiros, bibliotecários, bloguistas e instagrammers que têm
mencionado os meus livros ao longo dos últimos anos – «obrigada» nunca
chegará. A vossa criatividade e generosidade arrasam-me todos os dias.
Cada publicação, cada fotografia é de uma importância incomensurável
para mim. À minha família e, sobretudo, a Ivan, agradeço o entusiasmo
acerca deste livro. O jornalismo e a rádio fizeram parte da nossa história
quase desde o início, o que torna perfeito que o meu livro sobre a rádio seja
romântico.
Por fim, quero agradecer a todos os podcasts que eu atualizo-atualizo-
atualizo até o episódio mais recente aparecer, aos programas sem os quais
não seria capaz de imaginar a minha vida, aos apresentadores em que penso
como amigos e que me fazem rir até nos piores dias. Espero ter-vos feito
justiça e capturado parte dessa magia.
Rachel Lynn Solomon trabalhou na rádio pública até que a sua paixão
por contar histórias a levou para a ficção. É autora de vários livros para
adolescentes e adultos e dirá a quem quer que a ouça que não chove assim
tanto em Seattle, onde vive com o marido e um cão minúsculo.

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