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ANTICRISTO

Confesso que às vezes me ponho a ler coisas desagradáveis, difíceis de engolir. E o faço para
conhecer opiniões diversas, assim como vez por outra polemizo com amigos para olhar a cena
por outro ângulo. Por vezes reforço convicções, mudo alguma opinião ou robusteço a
musculatura dos meus argumentos. Naturalmente isto ocasiona algum desgaste e por vezes
pode revelar a fragilidade de uma amizade que imaginava indestrutível. Faz parte.

Já escutei alguns jovens citando uma ou outra frase de Nietzsche, como se conhecessem sua
obra. Como a grande maioria nunca leu sequer um livro deste alemão, trata-se de um recurso
pobre, na busca de autoridade, com o objetivo de acuar o interlocutor. Uma tentativa de ganhar
no grito sem elevar a voz. Também conheci adultos que lançavam mão do mesmo expediente e
revelo que fiquei constrangido por eles.

Já comentei algures a forte impressão que me causara a obra “Um breve conto sobre o
Anticristo”, de Vladimir Soloviev. Li numa madrugada, que avançava em direção à aurora
enquanto volta e meia me arrepiava. Soloviev prognostica uma eventual apostasia, concretizada
pela sedução de uma figura messiânica. Algo próximo de tomar a barca para o inferno sob a
crença de ter tomado assento na espaçonave que nos levará ao Éden.

Num mundo que não sabe mais o que é santidade, um enganador aparece, logrando sucesso
com suas mentiras, seduzindo e enganando até mesmo os crentes. Eleito sem votação, é
proclamado soberano do mundo e lança um manifesto: “Povos da terra! As promessas se
cumpriram! A paz eterna e universal foi consolidada. Qualquer intento de perturbá-la agora
encontrará uma insuperável oposição, porque de agora em diante se estabelece no mundo um
poder central mais forte que qualquer outro, seja individual ou coletivo. Este poder invencível, e
capaz de tudo conquistar, pertence a mim, eleito Imperador da Europa e comandante de todas
suas forças. O direito internacional estabeleceu, finalmente, as sanções ausentes por tanto
tempo. De agora em diante nenhum país se atreverá a dizer: guerra, quando eu digo: paz! Povos
da terra: a paz esteja convosco”. Tal absurdo seria possível porque Deus, ao conceder a
liberdade aos homens, permite “que creiam na mentira”.

Eis que tropeço em “O Anticristo”, de Nietzsche, e decido lê-lo, por conta da influência que o
autor tem sobre a juventude, que não o lê e, se o faz, não tem o filtro para delimitar sua
influência. Como antecipei, leitura indigesta mas, quem sabe, pedagógica.

De pronto Nietzsche se coloca entre os hiperbóreos, povo mítico que habita o norte da Europa,
livre de doenças e guerras, que leva uma vida sem deuses, perfeita. Um povo feliz, que é feliz e
encontrou “a saída de milénios inteiros de labirinto”. Convenhamos que é uma presunção e
tanto, a partir da qual ele passa a disparar em tudo e todos: “Os Judeus são ... o povo mais
funesto da História Universal: no seu efeito ulterior, de tal modo falsearam a Humanidade que
ainda hoje o cristão se pode sentir anti-judeu, sem a si mesmo se compreender como a última
consequência do judaísmo”.

Do início ao fim Nietzsche dispara no Cristianismo. Como Deus pode ter admitido o sacrifício de
seu Filho? A resposta lhe parece absurda. Deus entregou o seu Filho como sacrifício para
remissão dos pecados: “Como de súbito se acabou o Evangelho! O sacrifício expiatório, e claro
está, na sua forma mais repulsiva, mais bárbara, o sacrifício do inocente pelo pecado dos
culpados! Que paganismo horroroso!”.

Sarcástico, sugere que o “Deus antigo, inteiramente «espírito», inteiramente sumo-sacerdote,


plena perfeição, passeia aprazivelmente no seu jardim” mas se aborrece, porquanto “Também os
deuses lutam em vão contra o tédio. Que faz ele? Inventa o homem – o homem distrai... Mas eis
que também o homem se aborrece”. Deus então criou outros animais, mas o homem não os
achou divertidos e sequer quis ser um deles. “Deus criou, então, a mulher. E, efectivamente,
cessou o tédio, mas também ainda muitas outras coisas! A mulher foi o segundo erro de Deus.
«A mulher é, por essência, uma serpente, Eva». Todo o sacerdote sabe isto; «pela mulher vem
todo o mal ao mundo» – também isto o sabe todo o sacerdote. «Logo, a ciência também vem
dela»... Foi só pela mulher que o homem aprendeu a saborear a árvore do conhecimento. Que
aconteceu? Um pânico de morte se apoderou do Deus antigo. O próprio homem tornara-se o seu
maior erro, ele criara um rival, a ciência iguala a Deus: se o homem se torna científico, é o fim
dos sacerdotes e dos deuses! Moral: a ciência é a interdição em si, só ela é proibida. A ciência é
o primeiro pecado, o germe de todos os pecados, o pecado original. Eis a única moral”. Cá entre
nós, quanta bobagem. Sem contar que sua menção às mulheres deveria alijá-las prontamente
de seu fã clube. Ou não? Não necessariamente. Afinal, antes de tudo é preciso que o leiam.

Nietzsche prossegue afirmando que culpa, castigo e ordem moral foram invenções contra a
ciência para manter o homem preso ao sacerdote: “O homem não deve olhar para fora de si,
deve olhar para si mesmo; não deve olhar para as coisas com sagacidade e circunspecção,
como aprendiz, não deve ver absolutamente nada: deve sofrer... E deve sofrer de maneira a
precisar sempre do sacerdote. Fora com os médicos! Precisa-se é da salvação”.

O Cristianismo faz oposição à boa constituição intelectual e a razão cristã, doente, toma o
partido de tudo o que é idiota. A fé e a caridade são apanágios dos fracos e “ todos os caminhos
direitos, legítimos, científicos, para o conhecimento devem ser repelidos pela Igreja como
caminhos proibidos”.

Misturando alhos e bugalhos, sobra também para a esquerda: “A quem é que eu mais odeio na
ralé de hoje? É à escumalha dos socialistas, aos apóstolos dos tchandala, que minam o instinto,
o prazer, o sentimento de moderação do trabalhador com o seu pequeno ser – que o tornam
invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais reside em direitos desiguais, encontra-
se na pretensão aos «direitos iguais»... O que é mau? Mas eu já o disse: tudo o que brota da
fraqueza, da inveja, da vingança”. Creio que os esquerdistas que o leram também devem ter
rasgado seu carnê de nietzscheniano ...

Ainda que a Igreja Católica seja o alvo maior, Nietzsche também dispara para os cismáticos: “Os
alemães têm também na consciência a menos limpa espécie de Cristianismo que existir pode, a
mais incurável, a mais irrefutável, o Protestantismo... Se não se acabar com o Cristianismo, os
Alemães é que terão a culpa...”.

Por fim, reitera sua convicção: “Condeno o Cristianismo, lanço contra a Igreja a mais temível de
todas as acusações que, alguma vez, um acusador pronunciou. Ela é a maior de todas as
corrupções que pensar se podem, teve também a vontade para a derradeira corrupção apenas
possível. A Igreja cristã nada deixou intocado pela sua corrupção, fez de cada valor um não-
valor, de cada verdade uma mentira, de toda a probidade uma vilania das almas”.

Conclui sua obra com o que denomina “Lei contra o Cristianismo”, com sete artigos, que
encerram sua catilinária e não os reproduzo porque seria como semear erva daninha.

E dizer que sua pregação encontra guarida em solo cristão ... É preciso ler os contrários, não só
como bagagem cultural, mas para opor-lhes o bom combate.

Em tempo: seu pai, que perdeu aos cinco anos, era pastor luterano. Mais que isto, provinha de
uma linhagem de pastores. Sou tentado a vê-lo como um ressentido, um sujeito mal resolvido.

Morreu em Weimar, com problemas psíquicos. Parece ter levado à risca sua visão de que a vida
“é uma irracionalidade cega e cruel, marcada por destruição e dor”. Por mais inventivo que tenha
sido, não o colocaria como um farol na escuridão.

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