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A CIDADE

DO VÍRUS
TRISTE

Heloísa Köhler
COLLECTION
MAILBOX
BOOKS
Heloísa Köhler

A CIDADE DO VÍRUS TRISTE

1998
FICHA TÉCNICA

Título original: A Cidade Do Vírus Triste.


Autora: Heloísa Köhler

Editora: Caixa Postal (Mailbox Books)


Cidade: Curitiba
Estado: Paraná
País: Brasil
Ano: 1998

Revisão: Elaine Novaes Falco e Eumar José Köhler


Revisão final: Inês Surnameless
Projeto Da Capa: Evandro Madeira

Colaborações Técnicas:
Vânia Ratto - Bióloga e Professora na
Faculdade de Ciências Bio -Psíquicas do Estado do Paraná
ÍNDICE

CAPÍTULO 1 ______________________________________________________________ 5
CAPÍTULO 2 ______________________________________________________________ 16
CAPÍTULO 3 ______________________________________________________________ 21
CAPÍTULO 4 ______________________________________________________________ 31
CAPÍTULO 5 ______________________________________________________________ 37
CAPÍTULO 6 ______________________________________________________________ 42
CAPÍTULO 7 ______________________________________________________________ 49
CAPÍTULO 8 ______________________________________________________________ 58
EPÍLOGO _________________________________________________________________ 62

©1998, Heloísa Hilário Köhler - All Rights Reserved


℗ 1998, Editora CAIXA POSTAL (Mailbox Books)
Curitiba, PR - Brazil

O
P 1998

MAILBOX
BOOKS
PREFÁCIO

--- Desmond Bailey


A Cidade do Vírus Triste 5

CAPÍTULO 1

O avião iniciava seu procedimento para o pouso. O passageiro loiro, de olhos muito claros, estava
enrubescido porque a prestativa aeromoça, com ares de preocupada, comentava ao mesmo tempo em
que se inclinava sobre sua poltrona:
- Está tudo bem com o senhor?
- Sim - respondeu prontamente, procurando disfarçar o desconforto que sentia naquele momento.
A moça esboçou um sorriso de cumplicidade fixando, por breves instantes, um olhar quase mater-
nal ao assustado passageiro e depois desapareceu pelo corredor, convencida de que ele estava mentindo.
Por um instante, a beleza da comissária fez desaparecer o seu mal-estar mas, em seguida, o
homem voltou a inquietar-se no assento.
Talvez um pressentimento... um mau pressentimento, pensou surpreso consigo mesmo, já que acostu-
mado ao raciocínio estritamente científico, procurou desviar a atenção ao colorido das nuvens que se
estampavam abaixo. Um sol glorioso anunciava o início da primavera.
Já estava acostumado a viagens aéreas e com alguma freqüência fazia vôos curtos entre as várias
cidades para as quais era convidado a proferir palestras. Talvez a sua inquietação se devesse aos co-
mentários de outros colegas sobre o tipo de público que o aguardava. Eram acadêmicos de uma das mais
conceituadas universidades do país e, como fora informado, esses alunos não reagiam de maneira afetu-
osa a determinados convidados. Como o assunto de sua palestra era com certeza polêmico, deveria estar
apreensivo pelo desgaste dos longos debates e justificativas, para ele quase óbvias, mas que exigiriam
um esforço maior para se fazer entender.
Fazendo uma curva acentuada para a direita o avião se alinhou ao início da pista. Já podia ter
uma visão geral do aeroporto e aquela sensação, que não conseguia definir, ficava cada vez mais intensa.
- Não espere uma reação inflamada daquela platéia! - dissera o Reitor que organizara a palestra.
- Eles são um tanto ensimesmados e, por mais que estejam satisfeitos com o que quer que seja, nunca
demonstram um sentimento caloroso. São jovens valorosos e de carreiras promissoras, um tanto frios eu
diria, mas com calma você os conquistará e terá o apoio para a continuação do seu trabalho também
naquela universidade.
Estava sentado imóvel, com as mãos ainda sobre as pernas e incapaz de conter o rumo de seus
pensamentos. - Não faz sentido, justificava-se. Por várias vezes fora admoestado pela intransigente defesa
de suas teses e, não fosse por isso, não teria sido indicado a prêmios científicos internacionais. Por que
um grupo de alunos deveria abater-lhe a autoconfiança? Deve ser a despressurização ...
Já no saguão, a imagem do final do corredor lhe causou um arrepio : como um painel fotográfico,
criteriosamente colocado por trás de uma moldura translúcida, descortinava-se a arquitetura moderna dos
arranha céus, construídos como peças bem escolhidas em um jogo e distribuídas de forma intercalada
entre grandes casarões e áreas verdes. Não era uma foto, mas a vista panorâmica da área central da
cidade. As enormes portas de vidro abriram-se automaticamente, como uma reverência de colossais guar-
diães saudando um novo visitante. À vista da cidade, ao longe, decretou: não eram os alunos, era todo o
lugar que lhe causava aquele desconforto.
Sempre tivera resistência em conhecer esta cidade, um dos centros culturais mais aclamados do
país, e não fizera o menor esforço para encontrar, em sua vasta agenda, uma data para a visita. Dentro
do seu grupo de relacionamentos ( desde os amigos mais íntimos até aqueles que encontrava vez por
outra), os elogios inflamados eram comuns, assim como um ar de mistério e indignação com relação ao
comportamento das pessoas. Imaginava ser exagero, má informação ou até inveja. O fato era que há
muito tempo sua curiosidade estava sendo trabalhada lenta e continuamente e, agora, seria satisfeita.
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Retornando quase de costas à área de desembarque, apanhou sua bagagem e foi até a lancho-
nete. Voltado para o balcão, encostou-se de lado e entregou a ficha para a moça de expressão cândida,
num uniforme azul claro.
- Expresso ou simples? - perguntou a balconista, atrás de um sorriso quase maroto de quem já
sabia a escolha.
- Simples, por favor.
Na verdade nem estava com vontade de tomar café. Sua intenção era estar perto de alguém normal
e desviar sua atenção daquela intrigante realidade. Enquanto mexia o açúcar, arriscou uma pergunta:
- Dizem que faz muito frio aqui, é verdade? – falou, procurando estudar a reação da moça.
Ela o encarou até onde podiam alcançar os seus olhos arredondados e respondeu, sem dar muita
importância:
- É, dizem, mas hoje está bem quente até. Depois, não é tão frio assim... As pessoas gostam de
exagerar um pouco - deu um leve sorriso e afastou-se, entregando-se a sua rotina.
Dr. Juliano já estava preparado para um diálogo insípido e convencional, repleto de conjecturas
meteorológicas, principalmente pelo fato de não haver mais ninguém para ser atendido naquele momento.
No entanto, ela limitou-se apenas em responder à pergunta. Isso só fez crescer a curiosidade do viajante
por aquele povo de que tanto ouvira falar nos últimos dias.
O coordenador local da palestra tinha se oferecido para apanhá-lo no aeroporto, mas ele preferiu
ir de táxi. Gostava de conhecer ele próprio o trajeto, fazer sua sondagem, observando detalhes da região
caso precisasse de exemplos conhecidos. Precisava estar preparado.
Evitou desta vez o saguão principal e saiu pela lateral em busca de uma condução. Segurava com
força, em uma das mãos, a pasta e, na outra, a pesada mala com alguns livros e muitas roupas. Eram
como âncoras que o prendiam à realidade. Lembrou-se que Raquel havia alertado para o fato das quedas
bruscas de temperatura mas, agora, sentia-se mais à vontade. Realmente fazia calor, talvez nem fosse
necessário o blaser de lã. Um casal beijava-se desinibidamente, sem dar importância aos curiosos. Com
certeza estavam se despedindo. Quem iria viajar: ele ou ela? Arriscou mais uma olhada para a cena. A
moça era bem mais alta que o rapaz, mas pareciam tão apaixonados que essa diferença chegava a de-
saparecer diante dos olhos dos espectadores. Sorriu descontraído e seguiu em frente.
Ao chegar à porta de saída sentiu uma baforada de ar quente. Desabotoou o paletó e afrouxou um
pouco a gravata. Usava um terno cinza escuro e camisa azul clara, roupa um tanto pesada para o calor
que estava fazendo, porém fora escolhida pela esposa atenciosa. Soltou ainda mais o nó da gravata e
sentiu que o mal-estar havia quase se dissipado.
Parado, observando o lugar, verificou que carro estava disponível, enquanto era tomado nova-
mente por uma desconfortante melancolia. Deu um suspiro fundo e sentiu que esta oportunidade poderia
ser mais que um destaque para o seu já repleto currículo. Tudo que necessitava agora era prender toda
a atenção no objetivo que o levara até ali. Quanto aos alunos, por mais reservados que fossem, não lhe
representariam nenhuma dificuldade. Com esse pensamento, seguiu para o carro cujo motorista já se
adiantava para ajudá-lo.
- Bom dia, senhor – disse, num tom quase solene, o motorista, abrindo-lhe a porta depois de aco-
modar a bagagem. Muito alinhado, provavelmente perto dos 40 anos, barba bem feita, mantinha no carro
um aroma agradável e uma placa sobre o porta luvas: "FAVOR NÃO FUMAR!”. Notou, ao largo, a limpeza
do pátio, mantida por garis bem uniformizados que dirigiram-lhe um cumprimento discreto de maneira
educada. Mostravam-se gentis e distantes. Pessoal interessante esse.
- Leve-me para o hotel... por favor – respondeu, mantendo um sorriso mais forçado que o habitual.
O motorista, com um aceno de cabeça, ligou o rádio bem baixinho, numa música, talvez não que-
rendo incomodar, e seguiu em frente. A viagem até o referido hotel durou aproximadamente 30 minutos.
Durante esse tempo, o motorista manteve-se em absoluto silêncio. Agia como se estivesse sozinho. Juli-
ano aproveitou o silêncio para prestar atenção em tudo o que via pelo caminho. As casas bonitas e bem
cuidadas de um bairro arborizado, crianças andando cautelosamente pelo acostamento, os carros, que
mantinham uma velocidade constante, sem aquele atropelamento de outras grandes cidades. Nada de
buzinas nem palavrões, nem mesmo quando se formavam alguns engarrafamentos. Pareciam estar todos
mantendo o ritmo das músicas que deveriam estar ouvindo em seus carros. Tudo isso começava a agradá-
lo. Sentia-se mais seguro e, com certeza, acabaria com aquele sensação de desconforto de vez pois
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notara claramente, até aquele momento, que os moradores da tal cidade não eram grosseiros e, sim,
reservados. Era só respeitar essa postura e tudo daria certo. Em dois dias estaria voltando para casa,
para sua cidade e levaria uma agradável impressão desse povo tão calado. Mesmo assim, repetia para si
o próprio currículum, reforçando orgulhosamente sua autoconfiança.
Dr. Juliano, 48 anos, homem culto, com vários diplomas, mestrado e doutorado nas melhores uni-
versidades, de renome científico e reconhecimento internacional. Jamais se sentira constrangido ou
mesmo inseguro em qualquer situação. Já havia perdido as contas de quantas palestras fizera durante
toda sua carreira como médico e cientista. Seu trabalho atual era na área da genética, assunto esse que
dominava com toda segurança e profissionalismo. Era um homem aparentemente calmo, mesmo quando
alguma coisa tentava sair do seu controle.
Recordou, nostálgico, o convite que recebera certa ocasião para prestar vestibular naquela uni-
versidade, para onde agora se dirigia como palestrante. E, por mais que a proposta fosse tentadora, rea-
gira de forma determinada. Não se sentira atraído, naquele momento, para tal investida.
- Você está é com medo de passar e ter que morar lá - dissera o amigo que fizera o convite. - Está
pensando que vai ficar tão mal-humorado quanto os moradores daquela cidade. Se as más-línguas dizem,
acredite: vai mesmo! - e ria debochadamente.
Não. Ao menos ele pretendia acreditar que não. Ouvira falar muito pouco da tal cidade e tudo que
sabia é que era fruto de colonização européia, muito bonita e promissora, nada além. Por que então a
negativa? Há alguns anos atrás, recebera o convite para a primeira palestra. Apesar da disponibilidade
em sua agenda, sentira-se melhor quando conseguira convencer os interessados de sua total impossibi-
lidade. No entanto, desta vez, não tivera como escapar. Nem mesmo o pedido carinhoso do seu filho
Raphael, dizendo que tinha um campeonato naquela data e o quanto era importante o pai estar presente,
foi capaz de convencê-lo. Precisava resolver o enigma. E agora estava ali, apavorado e lutando contra a
insegurança .

Na entrada do hotel, vem atendê-lo um recepcionista, com roupas impecavelmente engomadas e


ricamente bordadas com uma espécie de brasão, luvas brancas e polainas, além de um chapéu um tanto
exagerado, . Ele vai até a recepção verificar a reserva enquanto sua bagagem já está sendo transportada.
Realmente eram todos muito prestativos e atenciosos. O que falar de pessoas que nos tratam com tama-
nha boa vontade? Até aqui nada de anormal. Precisava contatar o pessoal da universidade.
A suíte era bastante espaçosa. Além dos requintes desnecessários e bem-vindos havia outros,
corriqueiros. Havia, também, uma mesa oval com quatro cadeiras almofadadas, que poderia servir para
uma eventual reunião e uma escrivaninha com uma cadeira giratória, perfeita e confortável para realizar
algumas ligações e analisar documentos. Obviamente havia tomadas estrategicamente colocadas, nas
quais poderia ligar o seu microcomputador. Foi o que fez. Tirou seu “laptop” da pasta e deixou-o ligado
para possíveis contatos com a InterNet.
Precisava desarrumar as malas mas preferiu conhecer o resto da suíte, que mais parecia um apar-
tamento. Enquanto andava, observava detalhes do local e, ao passar por um desnível que dava para uma
sala íntima muito bem decorada, imaginou estar em casa, ao lado da esposa e dos filhos. Um pensamento
contundente o surpreendeu.
- Papai, podemos ganhar o campeonato e você não vai estar presente... - dissera o filho, baixando
a cabeça com ar entristecido.
Sentira-se mal diante daquele comentário. Notara o olhar de reprovação de Raquel, mas havia
chegado ao ponto em que um novo adiamento seria interpretado de maneira desastrosa para a continui-
dade de suas pesquisas. E ainda, como dizer para a família que estava com medo? Como dizer que havia
uma sensação de estar indo ao encontro de si mesmo na busca de uma explicação para tanto temor e
que já era hora de enfrentar aquele bloqueio?
A camareira bateu à porta, delicadamente, tirando-o do devaneio. Era uma mulher bastante jovem,
de corpo bem torneado, aparência agradável e um leve e discreto sorriso. Por um momento, segundos
talvez, pensou : por que uma mulher tão atraente trabalha como uma simples camareira? Será falta de estudo?
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Falta de opção? Com o mercado tão escasso como anda, não é nem de duvidar que ela até possua algum diploma. É
tão educada...
- Gostaria de saber se o senhor deseja alguma coisa.
Era, sem dúvida, mais uma esquisitice: por que não o deixaram solicitar o serviço de quarto? Que-
rem ser gentis , só pode ser.
- Bem, já que a senhora se antecipou, gostaria que me passasse uma camisa que usarei logo mais
à noite - disse, colocando a sofisticada mala sobre a cama.
A mulher manteve-se parada à porta, tão hirta que parecia até um escoteiro em posição de alerta.
Não falava uma palavra, não fazia nenhuma pergunta. Para quem não gosta de ser incomodado, está aqui um
excelente lugar, foi o que lhe ocorreu mentalmente diante da figura da mulher, ao entregar-lhe a camisa
com um sorriso reservado, dando a entender que era tudo que necessitava naquele momento. A moça
retribuiu-lhe com outro sorriso inesperado e agradável e fechou a porta atrás de si.
Ele balançou a cabeça e virou-se para o outro lado. Precisava ligar para o tal rapaz - qual era o
nome dele mesmo? "Rone!”. Isso lá é nome? - De qualquer forma, precisava falar com alguém. Já estava
sentindo-se mal com todo aquele silêncio. Por mais que tentasse convencer-se de que o povo daquela
cidade era apenas reservado, sentia que alguma coisa estava lhe escapando. A maneira como olhavam,
como andavam, como se vestiam, pareciam todos fazerem parte de uma filosofia, uma confraria. Não
queria pensar muito sobre o assunto antes de saber qual o comportamento dos alunos durante seu dis-
curso, mas ficaria alerta. - Existe alguma coisa de sinistro nesta cidade.
(- ...deixe seu recado, assim que for possível retornaremos a ligação).
- Uma secretária eletrônica? Mas como? Eles sabiam que estaria aqui neste horário? Que gente
mais estranha!
Procurou certificar-se do número que discara. Talvez estivesse errado. Não acreditava que fizes-
sem uma desfeita destas com ele. Era um grande engano, só poderia ser. Puxou a cadeira da escrivaninha
e sentou-se, procurando novamente o número mas, ao invés de procurar na letra R, acabou teclando a E,
o que fez surgir na tela o primeiro nome: Ernani. Ficou ainda mais indeciso olhando para aquele nome e
resolveu ligar para o seu colega, o Professor Ernani. Ao menos nesse número tinha certeza que atende-
riam e que falariam com ele. Por certo o colega lhe daria melhores informações com relação àquele com-
portamento esquisito das pessoas. Ele já estivera ali mais de uma vez e falava do povo com certo conhe-
cimento. Também fizera algumas palestras, promovera até uma oficina, certa ocasião. Poderia, sem dú-
vida, tirá-lo desse estado de ansiedade.
- Ernani! Sou eu, Juliano - disse, tentando mostrar-se seguro.
- Ôba! Como é que chegou? Tudo bem?
- Ah, sim, estou no hotel. Pretendo ligar para os organizadores daqui a pouco, mas até agora nada
de anormal – falou, afastando a cadeira e cruzando as pernas. - A propósito, as pessoas aqui não são
nada grosseiras, nem estúpidas, como você quis me fazer acreditar. Pareceram-me até bastante amigá-
veis! Não falam muito, é verdade, mas são hospitaleiras.
- Há quanto tempo está aí? perguntou com voz debochada.
- Uma hora, creio. Por quê?
- Depois da sua palestra, me ligue. Quero saber se continua pensando do mesmo modo - fez uma
pausa e continuou - Não disse que são grosseiros nem estúpidos, não coloque palavras na minha boca!
Falei, sim, e tenho certeza disso, é que são frios, distantes e, pelo visto, você já deve ter percebido isso.
Está precisando de alguma coisa?
- Não, por hora nada. Até amanhã.
Desligou o telefone com ódio de ter falado com Ernani. Não tinha nada que antecipar as coisas,
sentia-se ridículo. E imaginava que a essa hora ele deveria estar se divertindo às suas custas. - Cretino!.

Passou ao número de Rone e solicitou ao computador que discasse automaticamente, evitando


um provável erro. - E se ele realmente não estivesse lá? Se caísse na secretária novamente? Que atitude tomar? O
mais correto seria ligar para o aeroporto e voltar para casa. Não seria insultado dessa maneira. Imaginou-se sozinho
naquela cidade de fantasmas, aquela cidade onde as pessoas não lhe davam a menor importância; pessoas que
passavam por ele como se de fato ele nem existisse. Será que eles existem realmente ou são apenas personagens em
um sonho? Será que existe realmente uma cidade lá fora, ou estou perdido no meio do nada? Sem dúvida nenhuma
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jamais fora tratado com tamanha atenção, mas com tanta frieza. Já não sabia se gostava daquele com-
portamento ou não. Precisava desligar-se por alguns momentos. Tentaria mandar uma mensagem para o
filho.
Enquanto olhava para o botão que deveria apertar recordou Raphael, seu filho temporão, sempre
reclamando que o pai não lhe dava a devida atenção. Às vezes Raquel também reclamava , mas esse era
seu trabalho: viajar e viajar. O menino, agora com 12 anos, era aplicado aos estudos, fazia tudo para ser
agradável. Parece até que sabia que fora ele o motivo do seu primeiro desentendimento com Raquel. Ela
queria abortá-lo, pois já beirava os trinta e sete anos e achava que era velha demais para ter filhos. A
única filha que tivera estava, na época, com dez anos. Felizmente, ele conseguira demovê-la da idéia. O
garoto agora estava entrando na adolescência e era o orgulho da família. Precisava passar mais tempo
com ele. ...podemos ganhar o campeonato e você não vai estar lá! Novamente a melancolia. O que estava
acontecendo de verdade? Nunca se sentira assim. Precisava dissipar aqueles pensamentos ou não con-
seguiria alcançar seus objetivos.
Foi até a janela olhar as pessoas na rua. Andava de um lado para outro dentro do quarto, alguma
coisa estava deixando-o aflito. Precisava ter certeza de que fora informado de maneira equivocada sobre
os habitantes daquele lugar. As pessoas andavam de maneira descontraída, rindo, sem muita pressa de
chegar a algum lugar. Não havia nada de extraordinário naquilo.

Discou o número, ainda meio inseguro. O telefone chamou uma, duas, três vezes e, desta vez,
alguém atendeu:
- Agência de eventos... em que posso ajudá-lo?
- Gostaria de falar com Sr. Rone. É o professor Juliano.
- Pois não, professor. Aguarde um minuto só - disse a voz delicada do outro lado da linha.
- Boa tarde, professor! Onde é que o senhor está? - perguntou o tal Rone, com um tenor encorpado
e alto.
- Já estou no hotel e gostaria que viesse até aqui para tratarmos de alguns detalhes para logo mais
à noite – respondeu, sentindo-se aliviado.
- Estarei aí em 10 minutos. Até já.
Finalmente iria conseguir falar com alguém. Talvez fosse até o local da palestra para dar uma
olhada e, quem sabe, até sugerisse para o seu anfitrião que o levasse dar umas voltas. Sabia que existiam
bosques e lagos muito bonitos na cidade. Isso o faria descontrair-se e sanaria de vez as suas dúvidas.
Enquanto organizava algumas coisas no armário, o interfone tocou informando a chegada do rapaz.
- Mande subir- falou secamente.
Rone era um rapaz de aproximadamente 25 anos. Usava um terno muito bem cortado de cor
caqui, adornado por quatro botões e tinha os cabelos tão bem cortados e penteados que parecia ter saído
de um salão de beleza. O corpo era de um modelo, magro, com mais ou menos 1,85de altura e uma voz
que intimidaria muitos locutores. Apertou sua mão com a firmeza de um gorila. Havia segurança em sua
postura, mas um sorriso reservado de quem não desejava muita proximidade. A imagem mental que fizera
de seu anfitrião era muito distante do menino que se lhe apresentava.
- Entre, Sr. Rone - disse, não querendo demonstrar espanto.
Na sala em desnível, para onde foi conduzido, havia um jogo de sofás de cor clara e, na mesinha
de centro, um grande arranjo de flores, encomendado especialmente para a ocasião. Rone sentiu-se feliz
pela maneira com que o hotel atendera ao seu pedido. Todavia notou, com certa decepção, que o profes-
sor não havia ainda lido a dedicatória no cartão que acompanhava o arranjo.

O Dr. Juliano sentou-se a sua frente, cheio de perguntas mas, ao notar o olhar de Rone, ficou
totalmente sem graça.
- Com licença- falou, pegando o cartão - não tive tempo de verificar tudo, mas devo acrescentar
que estou impressionado com a receptividade que estou tendo. Estão de parabéns - e arriscou uma meia
risada.
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- É, gostamos de receber bem nossos convidados - disse o rapaz, colocando uma pasta sobre o
sofá e esfregando uma mão na outra. - Gostamos que as pessoas sintam-se bem, sem serem incomoda-
das com os detalhes de organização dos nossos eventos.
A conversa começava a fazer sentido e o médico, aproveitando o vácuo, arriscou uma pergunta:
- Muito bem, já que tocou no assunto... - olhou para o rapaz tentando descobrir qual seria a sua
reação - já ouvi falar desse comportamento de vocês e devo admitir que, em todos os lugares por onde
andei, jamais conheci pessoas tão atenciosas e ao mesmo tempo cautelosas. Não que isso seja pejorativo,
de forma alguma, estou sendo até muito bem tratado - mostrou o cartão que acabara de ler. - O certo é
que estou me questionando quanto a minha postura para a palestra. Não gostaria de também eu ser mal
interpretado - ajeitou as costas na poltrona, pousando as mão por sobre as pernas cruzadas. - Minha
palestra é um tanto técnica e...
- Não se preocupe, professor, cuidaremos para que seja muito bem tratado. Sua presença já é
aguardada com bastante ansiedade – falou Rone, abrindo um envelope. - Sabemos da sua importância
na medicina, das descobertas que vem fazendo e, é claro, será uma grande honra também para eles
recebê-lo.
A voz do homem era cheia de vida e entusiasmo mas, mesmo falando de maneira tão clara, não
deixava transparecer nenhuma emoção, nem mesmo a falsa idolatria que seus agentes em outros estados
faziam questão de expor. Era tudo extremamente profissional. Será que a emoção dessas pessoas não passa
disso? Teria que aguardar até a noite e, pelo que podia perceber, não devia esperar grandes manifesta-
ções. O melhor era estar preparado.
- O senhor desligou o ar condicionado? - Perguntou o rapaz, encolhendo os ombros.
O cientista deu uma olhada para o painel e, em seguida, perdeu seu olhar no chão, depois olhou
para seu anfitrião com um trejeito caricato, segurando o queixo e esboçando um sorriso acanhado.
- Você está com frio? - perguntou diante da figura emproada do rapaz. - Realmente desliguei,
estava me sentindo sem ar. Não sei definir exatamente, mas é como se todo o ar estivesse sendo sugado
por uma máquina. Estava muito quente e senti vontade de chamar a recepção, mas logo verifiquei que
não havia nada de errado no aparelho. Era apenas eu que estava ansioso. Apertei um botãozinho e "puft",
acabou o calor insuportável.
Rone riu com a piada e convidou-o para conhecer o local da palestra e verificar os detalhes técni-
cos, como iluminação e som, aproveitando as horas que a antecediam . O médico parecia um tanto atra-
palhado para a personalidade que era, e seria melhor testar tudo antes.
O auditório era limpo e espaçoso, com capacidade para 900 pessoas. As poltronas eram de veludo,
bem confortáveis, o que de certa forma não o deixou muito à vontade. Aquele lugar poderia ser um convite
para alguém menos interessado deixar-se seduzir pelo apelo de Morpheu. Teria que rever sua palestra se
quisesse manter os espectadores atentos. Obviamente esse pensamento era um tanto estúpido, pois
aquelas pessoas estavam acostumadas com conforto e, com certeza, estariam concentradas em seu dis-
curso. Pelo menos era melhor ocupar-se pensando nisso.
A equipe técnica trabalhava como um relógio, algo raro para as experiências anteriores do Dr.
Juliano. Todos os detalhes eram anotados em várias folhas, com grifo em alguns dados técnicos impor-
tantes. Recursos alternativos e equipamentos para uma eventual reposição também estavam anotados,
portanto, disponíveis. Um senhor muito alto e ofegante ofereceu, sempre com "aquele" sorriso, a pran-
cheta para o aval do professor, informando sobre os procedimentos operacionais de microfones, equipa-
mentos e o posicionamento dos auxiliares durante a palestra. Também circulavam pelo local alguns estu-
dantes, convocados pela universidade para que se deslocassem entre a platéia e colhessem as perguntas
por escrito ou com microfones sem fio. Apesar dos ares de cumplicidade de toda a equipe, Juliano foi
informado que era a primeira vez que trabalhavam juntos.
- Dr. Juliano - disse Rone, de forma agradável. - A universidade estará lhe oferecendo um jantar
após a palestra, mas acredito ser conveniente fazermos uma refeição leve antes, pois poderemos nos
estender além do horário marcado. O que lhe parece?
O rapaz era cauteloso em suas colocações. Falava procurando as palavras de maneira discreta,
tentando ser gentil. Sua postura altaneira e sua voz de locutor transmitiam segurança. Uma segurança
de que Juliano começava a sentir inveja. Mas sentia-se bem na companhia dele e pensava que, se todos
agissem daquela maneira, estaria a salvo.
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- Para mim tudo bem. Ouvi falar maravilhas dos parques e bosques daqui e gostaria de conhecê-
los, degustar alguma coisa, - falava com simplicidade o médico, - depois é sempre bom um aperitivo ao
ar livre, isso refresca a mente antes de uma palestra. Além do mais, quero aproveitar a sorte de estarmos
com uma temperatura agradável, o que parece raro por aqui – disse, enquanto colocava uma pasta sobre
o capô do carro.
- Estamos na primavera e geralmente, nesta época, já faz até um certo calor - disse Rone, procu-
rando concordar com o homem. - O senhor não deve acreditar em tudo que se fala sobre este lugar, as
pessoas exageram um pouco. É bem verdade que, às vezes, temos as quatro estações no mesmo dia,
mas isso não é freqüente, e não é só aqui que acontece. É pura intriga. – falou, dando um tapinha nas
costas do Médico.
Enquanto se dirigia para o parque, cheio de orgulho nota, com certo receio, que o médico estava
bastante alheio a tudo a sua volta. Era como se apenas seu corpo estivesse presente. O olhar era perdido
nas distâncias, a expressão séria. Parecia compenetrado em algum lugar muito além de onde de fato
estava. Rone resolveu, então, tirá-lo do devaneio.
- O senhor prefere um restaurante? - perguntou Rone, meio desconfiado.
Ele tentou uma posição melhor, procurando não mostrar que estivera ausente durante todo o tra-
jeto, nem sabia se houvera alguma outra pergunta antes dessa. Sentiu que, se isso tivesse ocorrido, ele
teria começado mal.
- Bem, você conhece o lugar. Deixarei que escolha - deixou escapar um sorriso de canto, procu-
rando retribuir a gentileza e continuou - Não estou com fome, vamos apenas fazer um aperitivo, certo?
Gostaria de um lugar bem aberto, onde pudesse apreciar a paisagem.
O rapaz olhou meio de soslaio e pensou irritado:
Fiz um caminho mais longo para ele poder apreciar as belezas, no entanto ele passou o trajeto inteiro
olhando para si mesmo e agora me vem com essa? Olhar a paisagem... provavelmente não seria capaz de distinguir
entre um pinheiro e um pé de abacate. Mas tentou disfarçar o descontentamento. Provavelmente, se o médico
conseguisse ler pensamentos, sentiria que estava realmente começando muito mal. Notadamente, Sr. Dr.,
as pessoas desta cidade não são muito dadas a assediar seus visitantes, são apenas gentis, mas irritam-se facilmente
quando sentem alguma espécie de rejeição. E essa já era a segunda vez! - bradava o pensamento de Rone.
Durante o aperitivo, o médico falou sobre sua carreira, suas palestras, sua família. A filha de 22
anos, Carolina, que estudava Direito Internacional na Europa. Falou também sobre Raphael, e as cobran-
ças que este fazia a respeito das viagens do pai. Raquel, a esposa carinhosa, e o quanto a vida havia sido
generosa com ele. Rone ouvia com bastante atenção e, vez por outra, perguntava-lhe sobre as descober-
tas que já fizera ao longo da carreira e quais as perspectivas do futuro com relação ao tema de sua
palestra. Mas alguma coisa , que ninguém perguntava, ficava nas entrelinhas. E isso, de certa forma,
estava deixando o assunto um tanto vago.
Na volta para o hotel Rone pegou uma rua mais movimentada. Estava com pressa e também não
estava disposto a refazer o mesmo trajeto pois, além de ser muito mais longo, já havia escurecido. Não
havia mais nada de tão belo para ser visto, se é que ele conseguiria enxergar agora.

Rone era proprietário de uma agência de eventos que só trabalhava com palestras, seminários e
oficinas. Preferia as áreas mais técnicas. Já havia trabalhado com artistas mas, depois de algumas de-
cepções, resolvera optar por empresários, médicos, políticos,enfim, pessoas que dispensassem um exér-
cito de agentes de segurança e pessoal de apoio. Muitos jornalistas, economistas, pesquisadores haviam
feito trabalhos na cidade sob sua coordenação, mas nenhum parecia tão nervoso quanto o Dr. Juliano.
A impressão era que ele não observava as pessoas apenas por curiosidade: ele as fotografava com a
mente. Parecia querer levar consigo toda imagem captada, não como recordação mas, sim, como registro.
E esse comportamento estava deixando seu anfitrião um tanto desconfortável.
Ao virar na rua das ruínas, uma freada quebrou o silêncio. O motorista da frente se equivocara
num entroncamento e tentara fazer uma manobra arriscada, obrigando os carros que vinham logo atrás
a frearem bruscamente, quase provocando um transtorno. O médico riu da situação, sentindo-se meio em
casa com essa confusão. Mas a polícia logo chegou e dispersou os curiosos, liberando a rua. Como não
houvera nenhuma batida, as coisas voltaram à ordem.
A Cidade do Vírus Triste 12

- Com uma barbeirada dessa onde moro - disse o médico, rindo entre os dentes - provavelmente
sairia uma briga, pois o sujeito foi imprudente. Poderíamos ter batido caso você não tivesse o reflexo que
teve. Vocês são calmos demais... - arriscou Juliano, tentando forçar uma reação do rapaz.
- São uns estúpidos que tiram carteira por telefone. Mas hoje não estou disposto a me aborrecer –
disse, enquanto trocava a marcha, para o espanto do Dr. Juliano - Tenho coisas mais importantes para
fazer.
Rone estacionou o carro na frente do hotel e permaneceu sentado, com o motor ainda ligado.
Parecia ter pressa.
- Virei buscá-lo às 20:00h – disse, enquanto o médico tirava o cinto de segurança. - Acho melhor
chegarmos um pouco mais cedo para repassarmos algumas coisas, se for o caso. Mas não se preocupe,
as portas para a assistência só serão abertas às 20:30h, conforme o combinado.
- Estarei pronto – respondeu, agradecido.

Na suíte aconchegante, com a cama larga e convidativa, Juliano deitou-se tentando repassar os
acontecimentos. Pretendia descansar uns dez minutos antes de se preparar para sua grande noite. As
pessoas são meio ensimesmadas, mas você só tem que ‘entrar na deles’..., foi a última coisa que lembrou antes
de ser dominado pelo sono.
Teve sonhos confusos que não conseguia recordar direito e sentia-se cansado quando acordou,
assustado pelo adiantado da hora. Faltavam apenas 30 minutos para descer e, agora, precisava correr.
Sabia o quanto seu anfitrião era pontual e não queria deixar nenhuma margem que justificasse alguma
espécie de fracasso, caso sua palestra não tivesse a repercussão que esperava.

Repassados os últimos detalhes e no horário combinado, estava nervoso. Já havia escolhido vá-
rias abordagens diferentes sobre o assunto que iria falar. Olhou-se rápido no espelho do camarim, criti-
cando a escolha de Raquel, um terno bege claro, um pouco sem gosto. Ele já era loiro, deveria usar algo
mais escuro para realçar seus traços fortes.
A voz de Rone soou forte no auditório, enquanto fazia a apresentação do convidado. Com certeza
ninguém dormiria na sala com uma voz daquelas.
O discurso foi curto, apenas apresentando o Dr. Juliano que falaria sobre Engenharia Genética e
os perigos da clonagem de seres humanos. E, enquanto falava, o auditório permanecia no mais completo
silêncio.
Seria normal esse comportamento?- pensava o palestrante notando o suor correr-lhe sobre a testa.
Iniciou sua explanação informando que, devido à complexidade do assunto, abriria apenas no dia
seguinte um espaço ao debate mas, caso alguém desejasse, ele poderia responder a perguntas reserva-
damente, ainda naquele dia.
Estava demasiadamente inseguro para deixar aquele público todo calado. Preferia que eles o in-
terrompessem quando quisessem. Entretanto, tinha um roteiro a seguir. E se todos resolvessem fazer
perguntas no meio do discurso? Não conseguiria passar as informações necessárias. A insegurança es-
tava ficando tão transparente que sentia-se nu. O que está acontecendo com você,doutor? Que tal um copo de
whisky... sem gelo? Sem dúvida era isso que precisava para parar de se comportar de maneira tão infantil.

Utilizando todos os recursos audiovisuais que Rone disponibilizara, falou eloqüentemente por duas
horas e meia. Andava de um lado para outro, gesticulava com a performance de um ator interpretando
Shakespeare. A voz era calorosa e cheia de emoção. Parecia um ditador no comando de uma missão
suicida. Agia por vezes de maneira exagerada. Tentava desesperadamente arrancar dos ouvintes uma
reação vibrante. Eles podiam até serem quietos, mas faria com que tivessem um comportamento diferente,
afinal ele era o Dr. Juliano. Olhou para os espectadores procurando observar uma reação, mas nada.
Todos estavam atentos às explicações, o que não era de todo mal. Todavia, pareciam estáticos, como
bonecos colocados em cadeiras para preencher algum lugar vazio. Pela cabeça do médico passavam
duas coisas: ou eles estavam realmente prestando atenção e iriam surpreendê-lo durante o debate, ou
A Cidade do Vírus Triste 13

estavam apenas sendo educados, tentando manter os olhos abertos. Não estava habituado com esse
comportamento. Geralmente os participantes conversavam entre si, cochichavam e mostravam alguma
coisa no palco, de maneira curiosa. Existiam os que balançavam a cabeça discordando, outros confir-
mando, e tudo isso fazia com que ele já tivesse uma idéia do que iria responder quando fosse bombarde-
ado. Chegava a ser incômodo estar falando e notar que existia uma inquietação nos participantes, mas
esse silêncio era ainda mais desconfortante. Continuaria falando? Um pensamento lhe ocorreu, como
último recurso.
- Muito bem – disse, procurando ser gentil. - Vou encerrar a palestra por hoje. Creio que vocês
devem estar organizando suas perguntas para amanhã mas, se alguém quiser adiantar algo, fique à von-
tade. - Falava agora quase na ponta do palco. Cada vez que fazia um gesto, que dava um passo à frente,
notava que todos ficavam à espreita. Estariam torcendo para que ele caísse?
Nada.
Alguns pigarreavam, ouvia-se até o barulho de cruzar de pernas, vez por outra uns cochichos, mas
nenhuma manifestação.
- É realmente gratificante falar para pessoas tão compenetradas. Muito obrigado e até amanhã.
- Doutor!
Alguém falou lá no meio.
- Pois não – respondeu, aliviado.
- É possível que a influência de uma situação geográfica ou meio ambiente afete o desenvolvimento
genético dando características comuns a todos os membros de uma mesma espécie, como aos habitantes
de uma cidade, por exemplo?
Essa pergunta caiu como uma bomba. Aquela moça não era dessa cidade, não podia ser! E com
certeza estava encontrando dificuldade em se relacionar com os demais, sem dúvida! Ela havia percebido
a diferença no comportamento dos habitantes da cidade! Precisava agir depressa. Talvez essa fosse a
sua grande oportunidade de questionar suas suspeitas.
- Senhorita?
- Meri - respondeu prontamente a moça morena clara, de cabelos um tanto armados.
- Srta. Meri, importar-se-ia em discutir esse assunto logo após dispensarmos nossos exaustos
colegas?
- Ah, sim, será um prazer.
- Creio que teremos oportunidade de discutirmos este e outros assuntos amanhã. Boa noite!
Rone rodava em torno de si mesmo com ar preocupado. Esse tipo de questionamento poderia
durar a noite toda e o jantar estava agendado com os diretores. Precisava tomar uma atitude.
- Dr.! Não querendo ser inconveniente- pigarreou, colocando a mão na boca - mas quanto tempo
acha que vai durar sua conversa com a Srta. Meri?
- Ah! Precisamos ir ao restaurante, certo? – falou, passando a mão na testa. Parecia exausto. -
Acho que vou convidá-la para ir ao hotel amanhã. Nossa conversa pode ser longa.

Durante o jantar, mostrava-se inquieto. Às vezes pensava em falar sobre sua impressão com rela-
ção ao comportamento do povo daquela cidade, mas sabia que não seria bem interpretado, e, talvez, o
máximo que conseguisse seria: "Não somos diferentes, somos iguais a todo mundo, talvez um pouco
tímidos em virtude do frio, mas nada de anormal". O melhor era aguardar o dia seguinte. Falaria com a
moça, que também não se sentia à vontade naquele lugar. Bem, pelo menos foi isso que ela deixara
transparecer com aquela pergunta, e esperava estar certo.
Era uma hora da manhã quando o carro cor grafite estacionou em frente ao hotel. A temperatura
havia baixado consideravelmente em relação à tarde. Sentia o corpo gelado ao sair do carro e o vento
que batia sobre seu rosto deixava uma sensação horrível. Parecia, também, que os lábios estavam dor-
mentes, dificultando a circulação. Como podia fazer tanto frio de um hora para outra?- pensava, enquanto
se despedia do rapaz, que permanecia sentado no conforto do seu automóvel.
- Está um bocado frio aqui fora - disse, observando a fumaça que saía da boca.
- Aqui são normais essas mudanças bruscas - respondeu Rone, com as mãos entre as pernas. -
Não se esqueça de ligar o ar condicionado. Pode se resfriar, pois não está acostumado.
A Cidade do Vírus Triste 14

- Obrigado por tudo e até amanhã.


O carro arrancou rua abaixo, deixando uma fumaça branca e um forte cheiro de álcool.
Juliano permaneceu mais alguns segundos em frente ao prédio, olhando umas poucas pessoas
que passavam encolhidas. Pareciam tartarugas, com as cabeças enfiadas nas blusas. Através das lâm-
padas de mercúrio, era possível notar uma fina neblina de inverno. Como podem suportar a mudança de
estação, essas pessoas que saem de casa com 25 graus e voltam com 8 ? Balançou a cabeça e entrou no hotel,
esfregando as mãos.
- Como foi a palestra, Dr.? - perguntou o rapaz alto de terno azul, perto do balcão.
Era a primeira vez que alguém se mostrava interessado no seu trabalho. Como fazia bem essa
pergunta para quem se sentia deslocado, numa cidade tão calada! Encostado ao balcão grande, com as
mãos entrelaçadas, deixou transparecer toda sua alegria com relação àquela simples pergunta. Parecia
ridículo, pois sempre procurara sossego onde ia. Terminava as palestras e voltava exausto, querendo
apenas uma cama e nada de conversa.

“- Quando terminar a palestra vamos jantar frutos do mar. Já mandei reservar as mesas" - falara
seu anfitrião em uma outra cidade, tomada de calor. E, lá pelas 2:00h da madrugada, estavam rumando
para um restaurante. O falatório e as perguntas se seguiam, pareciam não ter fim. Como desejara naquele
dia estar num lugar igual a este. Hoje, era uma hora da manhã e já estava no hotel, sem cansaço, sem
irritação e sem perguntas. Exceto aquela do rapaz de terno azul.
Olhou de um lado para outro, com aspecto desconfiado e respondeu :
- Na verdade não sei se foi bom ou ruim - falava agora tão próximo do rapaz que este dá um passo
para trás. - Não entendo bem o comportamento do povo daqui. Ficaram me olhando assim! - Inclinou por
um momento o corpo com o rosto firme sobre os olhos castanhos do ouvinte e continuou falando sobre os
detalhes da palestra e de suas sensações.
O rapaz do terno azul ficou estático e de olhos arregalados ouvindo aquela figura que não parava
de falar. "Cada hóspede que aparece..." pensava, enquanto tateava sob o balcão, à procura das chaves.
- Boa noite, meu rapaz – falou o médico, sinceramente agradecido, enquanto se dirigia ao eleva-
dor.
Apertou o botão luminoso e fez um gesto com o indicador e sobrancelha soerguida ao espantado
rapaz que continuava estancado ao lado do balcão. Olhou os números sobre a porta. O elevador estava
no oitavo andar. Virou-se para o lado e, com o olhar perdido de quem procura alguma coisa distante, ficou
absorto olhando para os vários sofás e poltronas confortáveis, distribuídos de forma ordenada pelo sa-
guão, que parecia lhe convidá-lo a sentar-se e ler um jornal ou uma revista, quem sabe. Poderia ficar ali
mais alguns bons minutos observando as pessoas que trabalhavam à noite, pessoas que passavam pelas
ruas geladas. Sentia-se confortável agora, não tinha mais o desconforto do frio mas pensava em seu
quarto gelado.
Outro rapaz de terno azul observava de longe. Disfarçava rabiscando num bloquinho de papel,
onde eram feitas anotações diversas e deixados recados para os hóspedes mais solicitados, geralmente
os artistas que recebiam, sempre, bilhetinhos de fãs. Vez por outra levantava a cabeça e com o canto de
olho voltava a fitar aquela figura inquieta. O homem parecia confuso, olhava para a porta do elevador à
sua frente, como se não desejasse entrar. Dava voltas em torno de si mesmo com a cabeça baixa, voltava
a olhar para as poltronas, novamente para os números, que indicavam que o elevador agora subia e já
estava no terceiro andar. Poderia estar esperando alguém, mas porque não se sentava? "Que comporta-
mento mais estranho!", pensou o rapaz.
- Desculpe, senhor. Deseja alguma coisa? - disse mecanicamente, já ao lado do médico que nem
percebera seus movimentos.
O médico olhou fixamente para aquele sujeito magro, de pele clara e cabelos negros. Gostaria de
falar alguma coisa, mas não conseguia discernir o que realmente estava sentindo, uma angústia, um
medo, insegurança. Sentia-se péssimo, precisava dormir.
- Não, nada – falou, com voz vaga de quem não presta atenção no que está falando. Pegou no
ombro do recepcionista com um sorriso meio débil e entrou no elevador, que há algum tempo estava
parado.
A Cidade do Vírus Triste 15

Durante uma hora, mais ou menos, andou de um lado para outro na suíte. Olhava para o telefone,
pensando em ligar para casa, mas temia pelo adiantado da hora. Raquel já deveria estar dormindo. E se
também estivesse ansiosa por notícias? Pegou o telefone e pensou no que diria. Falaria que a sua pales-
tra, inflamada de emoção, só servira para manter os alunos acordados?
A Cidade do Vírus Triste 16

CAPÍTULO 2

Angélica virava-se de um lado para o outro da cama, pensando por que o marido ainda não havia
chegado. Como podia demorar tanto? Seria apenas um jantar, ou resolvera levar seu convidado para uma
noitada? Para aquela mulher insegura, tudo era motivo de desconfiança. Em meio ao devaneio, ouviu o
ruído do carro entrando na garagem. Moravam no primeiro andar de um prédio de três andares, a garagem
era numerada e a deles ficava exatamente em baixo do apartamento número dois. Idéia do síndico, um
senhor que vivia só, no último andar. Às vezes ela sentia um desejo incontido de que o tal fulano rolasse
do 3º andar e se espatifasse no chão. Talvez assim ele deixasse de ser tão inconveniente. Mas o que
fazer se ninguém queria assumir aquele cargo?
Ouviu a batida da porta do carro e, em seguida, a chave virando na fechadura. O seu Rone estava
de volta.
Ela saltou da cama, passando a mão nos cabelos, que já estavam esgadelhados e foi ao encontro
do marido.
- Você demorou! – disse, fechando o roupão de seda rosa claro.
- Por que não pergunta como foi, amor? – falou Rone, num tom frio e aborrecido.
- Desculpe, amor. Me conte como foi.
Passou as mãos sobre os ombros do marido e beijou-o com ternura. Às vezes ela era a mulher
que todo homem gostaria de ter, tão carinhosa e meiga mas, quando cismava com alguma coisa... Por
isso o marido mantinha-se cauteloso, pelo menos até descobrir qual o estado emocional dela.
- Vou tomar um banho antes de dormir, assim amanhã poderei acordar mais tarde, graças a Deus
– falou, pegando nas delicadas mãos da mulher e envolvendo-as em sua cintura.
Beijou-lhe na testa e rumou para o banheiro. Parecia abatido e sem vida, até sua voz era
meio lenta. Angélica aguardava, ansiosa. Alguma coisa na expressão do marido não estava de acordo,
parecia distante, alheio. O que teria acontecido para deixá-lo naquele estado de abandono?
Foi até o banheiro, não tinha paciência para esperar. Sentou-se no bidê, observando a fumaça que
cobria o box, deixando entrever apenas o vulto do corpo nu do marido. Sentiu-se tentada a entrar e
agarrá-lo, mas preferiu aguardar, pois não sabia como estava seu humor. Ele às vezes reclamava da
maneira fogosa da esposa. Parecia estar sempre disposta, como se não houvesse cansaço em seu corpo.
Por isso o melhor era esperar que ele se chegasse, mas alguma coisa no corpo dela pulsava como uma
máquina, era difícil conter. Sentia-se trêmula de desejo. Os pingos d’água escorrendo pelo vidro aumen-
tavam ainda mais sua excitação. Num impulso, arrancou o roupão e entrou no box.
- Você está se molhando toda, vai acabar doente. Não sabe o frio que está lá fora.
Ela se deixou molhar. O baby-doll rosa, da mesma cor do roupão, grudando no corpo, deixava
visível a silhueta esguia. Beijou o peito largo do marido, esfregando-se como uma gata manhosa. Rone
começou a devolver as carícias e, tomado pela mesma emoção, fizeram amor ali mesmo.
Na cama, abraçado à mulher, ele conta o quanto aquele cliente o deixava sufocado, parecia o
tempo todo estar querendo saber alguma coisa. Não se comportava como um palestrante, agia como um
investigador na missão de descobrir alguma coisa bizarra. Fazia perguntas desconexas, estava o tempo
todo à espreita, tinha um olhar penetrante e, ao mesmo tempo, gelado.
- Você foi avisado que ele era sistemático, não sei o porquê do espanto - disse Angélica, enquanto
entrelaçava as pernas nas do marido.
- Mas o Dr. Juliano não é apenas um excêntrico. Estava ansioso, parecia estar fazendo sua pri-
meira palestra. Tinha medo do público, agia com total insegurança. Era difícil saber qual a sua próxima
atitude, às vezes se portava de modo estilizado, outras vezes era tão vago... O que fazer para agradar
uma personalidade que ignorara um arranjo de flores com dedicatória, que andara quase 10km em meio
A Cidade do Vírus Triste 17

a lugares tão lindos sem sequer fazer um comentário? Poderia pelo menos ter sido gentil! O que ele
procurava afinal?
- E no jantar!
Continuava falando para a mulher, que tentava dormir.
- Marcamos um jantar num dos melhores restaurantes! Você pensa que ele notou? Não, só falava
sobre seu temor com relação aos alunos e porque eles não faziam perguntas. Ora, se ele mesmo marcou
as perguntas para amanhã! Não dá para entender.
- Onde vocês vão almoçar amanhã? - perguntou Angélica, sonolenta.
- Ainda não sei, fiquei de ligar para confirmar. Ele não sabe se vai sair do hotel para almoçar. O
cara é louco. Primeiro, ele deixou bem claro que as perguntas seriam feitas somente amanhã. Falou isso
novamente no final da palestra, acrescentando que, se alguém quisesse adiantar alguma pergunta, pode-
ria fazer naquela hora. Ficou todo mundo olhando para o sujeito, tentando entender o que, afinal, ele
queria. Acho que até por educação, talvez para quebrar o silêncio, uma moça da platéia fez uma pergunta
simples, daquelas que apenas demonstram um interesse pelo assunto. Pois o tal doutor se enrolou inteiro
e não respondeu. Pediu para conversar com ela em particular e dispensou a platéia. Então fui obrigado a
chamar a atenção dele para o jantar que já estava marcado. Aí é que foi engraçado. Marcou um encontro
com a moça por volta das 10:00h, no hotel sem saber, exatamente, quanto tempo a conversa iria durar.
Ela puxou o travesseiro para cima e ficou meio sentada. O sono havia desaparecido e não estava
mais gostando do rumo da conversa.
- Uma aluna no hotel? A troco? Hum! – falou, fazendo uma careta que lhe enfeitava o belo rosto.
- Não é nada disso que você está pensando – respondeu, procurando recuperar as cobertas que
já haviam escorregado. - A moça fez uma pergunta que ele não conseguiu responder. Parece que a tal
pergunta deixou-o meio atônito. Não sei ao certo, mas deu-me a impressão de que marcou para amanhã,
para ganhar tempo.
- Você é mesmo um tolo, Rone. Como é que um homem desses, preparado para perguntas
difíceis, não vai conseguir responder a uma? - A moça era bonita, pelo menos?
- Ah, não, amor! Você não vai mesmo entender! Vamos dormir?
Ela se ajeitou novamente, tirando as coberta outra vez de cima dele, mas ficou à espreita. Iria
acompanhar o marido no tal almoço, se houvesse. Essa história estava muito mal contada.

Raquel estava às voltas com Raphael, que ardia em febre. Aguardara que Juliano ligasse após a
palestra mas sabia também que os jantares, às vezes, eram demorados.
- Papai! ele chamava, choramingando, no grande quarto decorado com aviões pendurados pelos
cantos.
O quarto do garoto era o protótipo de um espaço reservado para a geração apartamento. Havia
um computador, usado mais para jogos que para estudos, contrariando os sonhos do pai e aparelhos de
som. Nesse espaço, ele já começava a receber alguns amigos para ouvirem aqueles Cds proibidos. Uma
grande janela dava para a cancha de esporte do condomínio, lugar preferido por Raphael, nas tardes de
sábado, quando as garotas do prédio se reuniam para jogar vôlei, com seus shortinhos apertados.

“- Papai, papai!” - continuava o menino, em meio ao desconforto provocado pela febre.


O termômetro marcava 39 graus. Raquel ligou para o pediatra. Sabia que era tarde, mas estava
sozinha e assustada.
- Ele reclamou de dores à tarde? - perguntou o médico, com voz enfadonha.
- Não, estava bem! Brincou com os amigos no play-ground quando chegou da escola. Faz menos
de uma hora que começou a reclamar. Estávamos esperando uma ligação de Juliano e assistindo a um
filme, por isso não dei muita importância. Mas agora, doutor - estava quase chorando - não sei se acredita,
mas ele tem uma ligação muito forte com o pai. Acho que meu marido não está bem. O Raphinha sente
quando o pai está triste, ou ansioso, não sei bem – continuou, ofegante.
A Cidade do Vírus Triste 18

- Procure acalmar-se, vou dizer o que tem que fazer. Caso não melhore em 30 minutos volte a me
ligar, mas com certeza ele ficará bom logo, logo.
No fundo, o pediatra sentia uma forte vontade de mandar aquela mulher procurar um psiquiatra,
ao invés de acordá-lo àquela hora. Mas era muito amigo de Juliano e teria que ter paciência. Indicou
alguns medicamentos corriqueiros, daqueles que todo mundo tem em casa e aconselhou que ela dor-
misse com o menino. O verdadeiro diagnóstico era manha, carência do pai herói e distante.

O dia amanheceu nublado e com uma garoa tão fina que era sentida apenas como partículas
pontiagudas e gélidas. Juliano abriu a pesada cortina, esperando vislumbrar um majestoso sol mas, para
seu total desconforto, o que lhe apareceu diante dos olhos foi aquela coisa cinzenta. Chateado, resolveu
nem abrir a janela. Estava apalermado com aquela mudança tão radical. Como era possível fazer um tempo
tão feio e frio justo na primavera? Sentia-se ainda mais abatido.
Precisava tomar um banho, lavar todo aquele mal-estar que voltava a invadi-lo. Uma olhada
rápida para o relógio. Já passava das 7:30h. Dormira um sono profundo, não se recordava de ter sonhado.
Deveria estar inteiro, entretanto sentia-se cansado. Espreguiçou-se, erguendo os braços por sobre os
ombros numa careta de relaxamento e quase conseguiu ouvir o estalar das articulações. Baixou as mãos
até as pontas dos pés e repetiu várias vezes esse exercício que sempre dava resultado. Tinha de estar
em forma para receber sua convidada e ainda precisava tomar café. O dever o aguardava sem tréguas.
Um pensamento rápido, mas um tanto preocupante, passou por sua mente. Parecia ter ouvido a
voz de Raphael. Sentiu um calafrio subir-lhe a espinha e arrepiar os cabelos da nuca. Será que aconteceu
alguma coisa ao menino?
Enquanto ia para o banheiro, repassava momentos agradáveis vividos ao lado do filho. Sorriu di-
ante do espelho, de posse do barbeador.
Recordou quando Rapha tinha dez anos. Sempre fora um menino saudável, cheio de vida e agia
como qualquer criança de sua idade, com exceção dos pressentimentos que vez por outra deixava esca-
par, como um presságio de algo que ainda não havia acontecido. Mas isso era tão raro, que os pais não
davam muita importância:
- Papai, você vai viajar semana que vem?
- Não, filho, não tenho nada marcado para este mês. Por quê? - perguntou o pai carinhoso.
- Acho que você vai viajar, sim. – falou, indo buscar a bola que rolava para longe.
Juliano observou o filho, correndo e sorrindo a cada vez que quase pegava a bola e ela rolava para
frente, como fugindo de suas mãos ágeis. Jogavam futebol no campo próximo ao condomínio, só ele e
Rapha. Algumas vezes contavam com a companhia de mais meninos e alguns pais. Eram divertidas essas
fugas, aliviavam os eternos problemas que envolviam seu dia a dia. Sentia-se criança novamente, e como
tinha sido feliz sua infância! “- Juliano, você já fez seus deveres?” - perguntava a mãe, enquanto ele
passava a toda velocidade com sua bicicleta prateada, sentindo o vento no rosto.
Raquel o aguardava na porta de entrada, com ar tristonho, quando ele regressou do passeio na-
quela tarde.
- Ligaram para você do hospital. Disseram que era urgente – disse, baixando a cabeça, como um
pressentimento que passou, acompanhado de um sentimento melancólico.
Raphael olhou com seu jeito maroto.
- Não disse que você ia viajar? - Deu uma risadinha entre os dentes com seu rosto todo sujo, e
saiu correndo para o banheiro.
- Que viagem? - perguntou Raquel.
- Não sei, meu bem. Ele que inventou essa.
Carolina estudava numa mesa nos fundos da sala e, ao notar a entrada dos pais, se aproximou
com ar brincalhão, enfiando uma caneta nos cabelos, prendendo-os atrás da nuca.
- Quer dizer que vai viajar novamente? Pensei em convidá-lo para meu aniversário mas, pelo que
vejo, cheguei atrasada – disse, fazendo um bico de manha.
Estava completando vinte anos e pretendia fazer uma recepção para alguns amigos, coisa íntima.
Mas gostaria da presença do pai, que estava sempre tão ausente, o pai que lhe pagava faculdade, que
A Cidade do Vírus Triste 19

iria enviá-la para o exterior e que lhe dera um carro de presente nos seus dezoito anos. O Herói, que
morava dentro de um avião.
Ele ligou para o hospital, apenas para confirmar o que já sabia:
- Como? – disse, franzindo o cenho – Não, dessa vez não vou poder atendê-los, tenho um com-
promisso muito importante este final de semana... – Falava, enquanto observava a reação de felicidade
das duas mulheres que o encaravam com expressão descontraída.
- Rapha tinha razão. Como era possível?
Falava mais para ele mesmo do que para as mulheres que o observavam. Parecia ensimesmado
num vácuo de dúvidas. Com o rosto fixo em um ponto invisível, ia deixando sua expressão tornar-se dura
e sem vida.
- Eles querem que eu vá participar de um debate de importância internacional... – falava, como
saindo de um devaneio. Obviamente teria que viajar.
- Mas pai!
- Não se preocupe minha filha, não aceitei. – Falou, agora puxando a moça para perto de si e
cobrindo-a com um forte abraço.
Entretanto, esse não era um caso isolado. Outras vezes Rapha fizera previsões que acabaram
sendo realizadas. E, ultimamente, estava mais voltado para os sentimentos do pai, uma espécie de anjo
da guarda, que sabia exatamente o que o pai sentia, mesmo estando ausente. Não via esses fatos com
bons olhos, preferia que o menino não fosse tão ligado, mas de qualquer forma...

Estava ainda se enxugando quando resolveu ligar para casa. Sabia que era cedo e que a esposa
dormia até mais tarde, mas sentia como uma dor no peito. Aquela sensação fazia com que visse o rosto
do filho em cada canto que olhava.

Certa tarde, Juliano surpreendera o filho olhando as meninas e preferira não incomodá-lo. Era seu
garoto, manifestando um gosto semelhante ao do pai: apreciar mulheres bonitas.
Enquanto observava o filho, recordava seus dezesseis anos, quando passara por uma experiência
nada agradável: pensava ter engravidado uma namoradinha do colégio. Ela era filha de um grande em-
presário e Juliano, filho de político. Caso a menina estivesse realmente grávida, ele estaria em sérios
apuros. Com certeza o pai da menina mandaria fazer um aborto, não iria querer um relacionamento com
um garoto menor de idade. Tentariam esconder o escândalo mas, de qualquer forma, essa seria uma
ferida difícil de ser curada na vida de um rapaz que tinha tantos sonhos. Ele fizera até uma promessa,
promessa essa que veio a lhe custar muito caro.
A moça de bochecha rosada ficou menstruada, para a felicidade de todos, mas Juliano... prometera
transar novamente somente com a mulher que desposaria. Talvez por isso casara-se com 21 anos,
quando ainda estava fazendo faculdade. Como parecia predestinado a fazer filhos ao primeiro toque,
acabou engravidando Raquel em um encontro clandestino no apartamento do irmão dela. Eles já namo-
ravam há algum tempo, mas ele resistia à tentação, mesmo com todas as provocações da namorada.
“- Você tem certeza de que gosta do sexo feminino? “- Foi o que ela perguntara num dia em que
os dois estavam completamente sozinhos, e ele tentava evitá-la de maneira desesperada.
Não podia contar o porquê da recusa pois, certamente, seria desastroso. Teria de contar sobre sua
primeira experiência, sua promessa e, com certeza, ela iria rir um bocado.
Naquele dia resistiu o quanto pôde mas, ou encarava os fatos, ou correria o risco de perder sua
doce Raquel e, o mais desagradável ainda, era ter a sua masculinidade questionada...!
Raquel também era filha de políticos e não foi difícil para Juliano ser aceito, uma vez que estavam
selando mais que uma união de famílias tradicionais, talvez uma aliança política ! O casamento foi mar-
cado em poucos dias e, apesar da pressa, a festa foi majestosa. E Caroline nasceu “prematuramente”,
aos 7 meses de gestação, pelo menos para a imprensa.

O telefone chamou várias vezes. Quando já pensava em desligar, ouviu o barulho do fone caindo
e, em seguida, a voz rouca de Raquel:
A Cidade do Vírus Triste 20

- Alô ...
- Desculpe, meu bem, se te acordei, é que...
Antes mesmo de completar a frase, ela o interrompeu:
- Ju! Esperei você ligar ontem, - falava com voz preguiçosa, - Como está indo?
Ele agora imaginava a mulher deitada sobre a cama larga, com o corpo seminu, às vezes com a
perna para fora do cobertor, pernas que, apesar dos quase cinqüenta anos, ainda mostravam suas formas
roliças e desejáveis. Olhou em direção da janela e recorda o tempo tenebroso que o aguardava lá fora. -
Vá embora desse lugar enquanto é tempo! Volte para sua casa, para sua família. Ele sentou ao lado da cama,
ainda envolto na toalha e uma leve dor de cabeça voltou a incomodá-lo.
- Alô! Ju! Ainda está aí? Você está bem?
- Está tudo bem, querida. Caroline ligou? Como está Rapha? E você?
- Calma, um por vez – disse, procurando uma melhor posição na cama. - Carol ligou, está adorando
a Europa, mandou lembranças, também está com saudades.
A voz de Raquel estava fazendo um efeito estranho na cabeça do marido. Parecia penetrar em
seus tímpanos como agulhas de anestesia. Sentia-se completamente aturdido. Um carro deu uma freada
na esquina e logo ouviu-se uma batida forte. Segundos depois ouviu-se o barulho de sirene. Com certeza
alguém se ferira, precisava verificar. Um movimento a essa hora da manhã... Parecia fora de propósito
para aquele lugar. Foi até a janela com o fone na mão, na tentativa de observar o que realmente estava
acontecendo.
- Ju! Pelo amor de Deus, o que está acontecendo? – falou, agora já angustiada pelo silencio con-
tinuado do marido.
- Desculpe, Raquel, - ele respondeu, ponderado, - É que houve uma batida aqui quase embaixo
de minha janela, mas parece que não foi nada de mais. Como está Rapha?
Ela passou a mão na cabeça do menino que, a essa altura, dormia a sono solto no quarto do casal
e notou que não havia mais febre. Preferiu não preocupá-lo. Em seu instinto feminino, notava que o marido
não estava muito à vontade, parecia apreensivo.
- Ele está bem - respondeu. - Está tudo bem. E você? Como foi sua palestra?
Juliano temia por essa pergunta, não queria responder. Estava curioso demais para saber o que
realmente havia acontecido com a tal batida e resolveu encurtar o assunto.
- Foi tudo bem, nada fora do habitual. Estou sendo muito bem tratado e as pessoas são um bocado
atenciosas aqui. Hoje à noite farei a parte das perguntas, então poderei ter uma melhor visão do resultado.
Ligarei à noite, preciso me arrumar. Tenho um compromisso às 8:30h e já estou atrasado. Um beijo.
Mentiu descaradamente, mas não pretendia esticar a conversa. Através das cortinas notava uma
aglomeração de pessoas em torno do carro de bombeiros. Alguém tinha morrido, caso contrário a ambu-
lância já teria saído do local.
Observou durante alguns minutos. As pessoas com suas blusas de lã circulavam em volta e
tentavam ver alguma coisa, mas a confusão era grande. Durante o café ficaria sabendo que uma senhora
de uns cinqüenta anos fora atropelada e morta por um motorista que fugira após ter roubado um carro. O
carro foi encontrado duas quadras à frente, mas o ocupante ... A polícia estava à procura. O fato mostrava
que a tal cidade não era tão pacata assim. Um roubo de carro às 7:30h da manhã, sob uma neblina
daquela, só podia ser coisa de profissional. Juliano balançou a cabeça enquanto apertava a gravata, di-
ante do espelho. Parecia ridículo ter que usar um colete de lã por baixo do paletó e, embora o terno fosse
de um tecido pesado, não estava disposto a ficar tremendo de frio na frente de sua convidada. E depois
iria enfrentar a rua. Lá fora parecia estar bastante frio, conforme se notava pelo modo encolhido das
pessoas andarem.
A Cidade do Vírus Triste 21

CAPÍTULO 3

Dez horas em ponto. O primeiro gesto da moça ao entrar na recepção do hotel foi conferir seu
relógio de pulso com o grande relógio em moldura de mármore do saguão. Somente depois dirigiu-se ao
balcão. Estava elegante. Havia escolhido um conjunto azul claro de microfibra e tinha os cabelos enchar-
cados de gel. Nas mãos, além de uma delicada bolsa, trazia também uma pasta que apresentava, no
lado esquerdo, as iniciais da faculdade e, na parte de cima, o nome do curso: “MEDICINA”. Tinha um jeito
meigo. Seus olhos amendoados e um tanto expressivos transmitiam segurança quando falava.
- Tenho um horário marcado com o Dr. Juliano – disse, com um sorriso reservado.
Um dos rapazes de terno azul, com uma cicatriz no queixo, encaminhou a moça para uma das
salas de reuniões, onde já era aguardada. Voltou à recepção, ainda impressionado com a beleza dela.
Imaginou aquela mulher vestida de branco, em um hospital, com suas mãos delicadas, abrindo o peito de
alguém, com um enorme bisturi, tentando salvar-lhe a vida , enquanto ele se encontra completamente
adormecido pela anestesia, nem se dando conta que seu coração estava sendo invadido. E não era pelo
amor avassalador de alguém importante, mas por tubos. Tubos de oxigênio ou máquinas, as quais, através
do seu monitor colorido, avisam quando você "já era"!... Aquele era, sem dúvida, um pensamento estú-
pido para aquela hora da manhã... mas distraía!...
- Bom dia, doutor - disse a Srta. Meri, com ar encabulado.
- Entre, por favor, senhorita.
Dr. Juliano estava com as mãos suadas. Parecia um adolescente recebendo, sem permissão, a
visita de uma garota em local proibido. Quase não conseguia disfarçar o nervosismo diante da aluna, que
se mostrava calma, com seu jeito infantil.
- Estava bastante ansioso pela sua chegada - falava, enquanto dirigia a moça para uma poltrona
ao lado da janela. - O que vai tomar, Srta.?!...
- Pode me chamar de Meri, por favor.
- Desculpe, é que estou um tanto deslocado, não sei bem... Enfim,...
- Eu tomo um café. Muito obrigada. – falou, colocando a pasta ao lado do corpo.
- Podia providenciar dois cafezinhos, por gentileza? - pediu para o rapaz, que saiu prontamente
em direção à copa.

- Dois cafezinhos para os açougueiros! - falou o rapaz da cicatriz, com um ar debochado.


- O que diabos deu em você hoje? - falou o gerente de cara amarrada. - É a segunda vez que faz
brincadeira de mau gosto com clientes. O que pensa que está fazendo?!...
- Desculpe, senhor. Acho que é porque já vi um “presunto” hoje e... - encolheu os ombros. - Sinto
muito; não vai mais acontecer.
Sentia uma enorme vontade de rir. Não sabia porque estava com aqueles pensamentos sarcásti-
cos, nem porque continuava sorrindo intimamente.

Dr. Juliano estava à beira da exaustão, em um caos mental. Tinha pressa de assimilar tudo o
quanto podia naquela manhã. Entretanto, notava uma certa insegurança em sua convidada. Parecia inco-
A Cidade do Vírus Triste 22

modada com alguma coisa que estava lhe escapando. De repente, o rosto da moça revelou uma expres-
são profunda de devotamento e respeito; então, ele se deu conta de que ela estava aguardando uma
resposta.

- Muito bem - começou - Você me fez uma pergunta ontem, um tanto complexa, pergunta essa
que ainda não consegui assimilar direito. Entretanto eu acredito que, juntos, poderemos resolver o enigma.
Levantou-se para buscar o café, que já estava sendo servido e, ao seu ver, demorou além da
conta. Enquanto servia a moça de fisionomia suave, procurava uma maneira coerente de colocar as pa-
lavras. Já estava sentindo-se ridículo demais diante da situação.
- Continuando, você me perguntou se o comportamento das pessoas de uma determinada cidade
pode ser resultado de uma mutação genética. - Veja bem... - ele falava usando as mãos de maneira
desordenada.
Meri olhava para aquele homem, sério e ao mesmo tempo suave, com seu terno impecável e pos-
tura militar. Definitivamente estava longe dos cientistas que conhecera. Parecia mais um político em seus
discursos evasivos, tentando chamar a atenção dos pobres eleitores que sempre acreditam nas promes-
sas, nem sempre cumpridas, dos seus candidatos. Não conseguia entender porque ele falava o tempo
todo andando de um lado para outro. Vez por outra ia à janela , olhava para fora, como quem está espe-
rando a chegada de alguém e continuava a falar.
- Se fôssemos citar um exemplo, eu diria que esta cidade poderia ser o resultado de uma influência
nesse sentido, como você já deve ter percebido, inclusive pelo comportamento dos moradores que pare-
cem fazer parte de uma mesma “espécie”. São calados, centrados, reservados, mal-humorados às vezes.
E dizem que é em virtude do frio. Eu cá tenho as minhas dúvidas...
Ele continuava a falar sem parar. Parecia estar falando para si mesmo e tentando se convencer de
alguma coisa que ela não entendia direito. Seus modos eram exacerbados, fora de propósito. Com certeza
havia se equivocado com a sua pergunta. A pergunta, para ela, deveria ter outra conotação. Precisava de
uma resposta científica; não apenas de uma comparação comportamental de pessoas que moravam numa
mesma cidade e, sim, de seres que se desenvolvem sob o mesmo clima. Ela não estava entendendo
onde ele queria chegar. As pessoas aqui, não são tão iguais ao ponto de serem comparadas como resul-
tado de formação genética.
- Não sei - continuava andando de um lado para outro. - Diz a história, o que leva o homem a
deduzir uma série de informações para si mesmo, que isto tem o intuito de esconder algo que de certa
forma assusta ou compromete. Às vezes eu tenho a impressão penosa e confusa de algo maravilhoso e
complexo. Entretanto, não posso confirmar minhas suspeitas.
Por mais que se esforçasse, a moça não estava entendendo nada mesmo - A que será que ele está
se referindo? - pensava. Ela o imaginava falando outro idioma, pois nada que dizia fazia sentido, não para
ela. Uma coisa entretanto não lhe saía da cabeça: por que será que o médico a tinha convidado para
resolver a questão no hotel? Era só responder sim ou não! Teria ele alguma outra idéia? Não, isso parecia
absurdo. "Esse é o verdadeiro cientista: o homem é louco..." pensou.
Ele deu uma volta em torno da mesa de centro, com as mão cruzadas nas costas, como quem faz
um discurso e, virando subitamente para a moça que, a essa altura, já estava pensando em sair, falou:
- Bem, você está me entendendo? – perguntou, dirigindo-se novamente para a janela. - Você me
fez uma pergunta ontem e, pelo que pude concluir, parecia também indecisa com alguma coisa relacio-
nada a esta cidade. Estou certo?
Ela se ajeitou novamente na poltrona, segurou a barra da saia para cruzar as pernas e falou, sen-
tindo-se totalmente desconcertada.
- De certa forma sim, mas a minha dúvida é com relação aos espécimes de uma mesma região.
Aqui existem pessoas de vários lugares, inclusive do exterior. Não sei se usaria minha cidade como
exemplo. - Mordeu a ponta do lábio, passando a mão na nuca.
A fisionomia do médico transformou-se bruscamente, adquirindo a expressão suave e quase de-
fensiva que assumia ao sentir-se acuado. Toda feição contraída desapareceu de sua face. O rosto, mar-
cado por algumas poucas rugas que se formavam ao redor da boca, exprimia uma certa inquietação.
Notando a maneira incomum de sua ouvinte, que parecia apalermada diante de suas explicações, resol-
veu mudar o rumo da conversa. Com certeza não estava se fazendo entender. Sentia-se estúpido por ter
A Cidade do Vírus Triste 23

convidado a moça para essa reunião onde, infantilmente, pensara que pudesse discernir suas próprias
dúvidas. A intenção, infelizmente, não era de dar a resposta e, sim, absorver algumas informações. Ela
lhe parecera, à primeira vista, quando se levantara no meio de todos aqueles alunos para lhe fazer a
pergunta, uma pessoa que não fazia parte daquela cidade. Pensou até que fosse de fora. Mas agora, para
seu total desespero, soube que a moça era nascida e criada naquela capital. E defendia o comportamento
das pessoas como se fosse uma coisa comum.
- Bem, Srta. Meri, acho realmente que não entendi direito sua pergunta, e peço desculpas se a
confundi com a minha resposta. Mas é que... Faremos o seguinte: eu tenho um almoço com o pessoal da
agência daqui a pouco e ainda tenho que providenciar algumas coisas. Agradeço a sua visita e prometo-
lhe que logo mais à noite responderei mais adequadamente a essa questão. Me desculpe.
Ela levantou-se meio indecisa, olhando para a maneira afetada do médico. Pensou que o melhor
era não falar mais nada ou ele poderia continuar aquele falatório fora de propósito novamente.
- Eu é que agradeço o convite, Dr. – disse, enquanto esticava a mão para se despedir. - Foi muito
bom poder conversar com o senhor. Até à noite.
Conversar? - Pensou. - Quem conversou aqui? Eu é que falei o tempo todo igual a um, a um... mas o que
está acontecendo comigo, afinal? Nunca tive essa atitude antes. Como pude convidar uma aluna para vir ao meu
hotel, para me ouvir falar um bando de asneiras
A moça afastou-se e ele foi para sua suíte. Estava abatido, sem brilho, parecia alguém que aca-
bara de passar por uma grande decepção, o que não deixava de ser verdade. Precisava reagir, controlar
essa insegurança sem lógica. Numa decisão nada casual resolveu que não se importaria mais com os
acontecimentos, com a palestra, com as pessoas. Voltaria à noite para a faculdade, responderia às per-
guntas, se é que haveria perguntas, coisa que agora não importava mais. Só queria terminar logo com
aquilo e retornar para sua casa, sua família. E, com esse pensamento, ligou para o Rone.
- Gostaria de falar com o Sr. Rone. É Dr. Juliano, por favor.
- Bom dia, Dr. - a voz de locutor soava forte em seus ouvidos. - Como passou a noite?
- Tudo bem, meu rapaz, mas liguei para avisar que não vou almoçar com vocês hoje. Pretendo
ficar aqui mesmo no hotel. - Falava de maneira objetiva.
- Doutor! - Rone arriscou uma pergunta - A Meri esteve aí?
- Oh! sim, mas já foi embora. Moça meio confusa, essa! – disse, procurando não demonstrar seu
total desconforto.
- Bem, vou deixá-lo à vontade - respondeu Rone, sentindo que o médico estava um tanto vago. -
Se desejar sair um pouco, ir a algum lugar, pode me ligar. Estarei à sua inteira disposição, à hora que
quiser.
- Obrigado, ligarei, mas agora preciso ficar sozinho um pouco. Tenho que rever algumas coisas
para logo mais à noite.
Desligou educadamente. Não queria devanear sobre o assunto mas, na verdade, precisava fazer
uma última tentativa, sondando de perto os moradores. E para isso era preciso agir sozinho. Passou o
resto do dia perambulando e pesquisando modos e comportamentos que lhe chamavam a atenção. Não
era possível continuar naquela angústia. Precisava de uma resposta. O primeiro passo foi procurar uma
banca de revistas e comprar um jornal local. Isso o ajudaria a dar seqüência à sua busca.
Parado em frente a uma banca, recordava o passeio que fizera com Rone e o quanto o rapaz
tentara ser gentil. Entretanto, ele não se sentia bem naquela tarde, tudo lhe parecia confuso. Sequer ob-
servara os lugares por onde passara. Quem estava agindo de maneira esquisita? Os moradores da ci-
dade, ou ele? Deu uma volta em torno de si mesmo e olhou um café do outro lado. Mudou de idéia.
Atravessou a rua com as mãos nos bolsos e entrou.
- Um cafezinho.
- O senhor tem que tirar uma ficha no caixa, por favor - falou a moça, olhando para o grande aviso
sobre a entrada: “ficha no caixa”.
- Ah! Desculpe, que estupidez.
De posse do café, recostado no balcão, observava uns senhores que falavam freneticamente sobre
política. Ele então resolveu se intrometer na conversa, obviamente concordando com o ponto de vista dos
desconhecidos, mesmo não entendendo direito o que eles reivindicavam, pois nunca fora ligado ao as-
sunto. E quando se sentiu inconveniente, despediu-se.
A Cidade do Vírus Triste 24

De volta à banca de revistas, procurou um jornal local que pudesse auxiliá-lo num direcionamento
mais claro.
- Você tem um jornal, ou revista, que fale exclusivamente desta cidade? - perguntou para o rapaz
distraído, que estava atrás de um monte de potes de balas.
- Não, senhor, apenas que fala sobre todo o estado - respondeu, empilhando umas revistas.
- Qual o jornal? – insistiu, já que o rapaz não se dignou a orientá-lo.
- Qualquer um dos três que está à sua frente.
Escolheu um que lhe chamou mais a atenção e procurou um lugar para folheá-lo. Ainda não sabia
exatamente o que procurava, mas todas as tentativas eram necessárias. Levantou a cabeça, olhando em
volta, e enxergou um banco vazio, É esse mesmo.
A princípio, as notícias lhe pareceram corriqueiras, nada fora do normal. Páginas de esportes,
economia, sempre falando as mesmas coisas, informática, sem muitas novidades, cadernos imobiliários
e uma coluna social. Essa lhe pareceu interessante. Iria saber quem estava em pauta na alta sociedade,
quem sabe até reconheceria alguns sobrenomes importantes. Mais uma vez, constatou que os colunistas
agiam sempre da mesma maneira, uma bajulação aqui, outra ali, um destaque interessante, outro nem
tanto. Enfim, voltou à estaca zero. Estava quase fechando o jornal, quando uma página o atraiu. Era um
caderno cultural, falava dos acontecimentos artísticos locais. Uma exposição de gravuras, várias peças
de teatros, shows e uma infinidade de eventos. Uma manchete destacava o patrocínio da fundação cultu-
ral. Parou um pouco, pensativo. Uma fundação cultural poderia dar-lhe algumas informações bastante
interessantes, só precisava ter uma idéia de como abordar, discretamente, a pessoa que o atendesse.
Colocou o jornal debaixo do braço e saiu à procura de alguém que pudesse informar onde ficava
a tal fundação. Uma senhora de andar lento, observando vitrines, pareceu-lhe adequada.
- Senhora! Poderia me dizer onde fica esta fundação?
A mulher, com um jeito meio desconfiado, olhou para aquele homem de ar abatido, com suéter
branco e camisa de listas, abotoada até o pescoço, parecendo sentir mais frio do que os demais.
- Bem, não sei se vai ser fácil localizar. Acredito que o senhor não seja daqui, estou certa?
- Sim - respondeu prontamente. - Cheguei ontem e não conheço nada.
- Vou lhe explicar mais ou menos. Terá que perguntar mais à frente. Vire a primeira esquina e
suba umas duas quadras. Vai encontrar uma praça. Lá o senhor volte a perguntar. Já estará bem próximo,
mas é melhor se informar direito.
- Agradeço muito, senhora, não sabe como é incômodo ficar fazendo perguntas no meio da rua.
Ainda bem que vocês são gentis.
A mulher deu um sorriso meio forçado, e afastou-se.
Ele foi andando e pensando no que estava procurando, o que falaria para a pessoa que lhe aten-
desse. Acho vocês muito esquisitos e preciso descobrir se estou enganado. Não! Precisava de uma abordagem
melhor. Mas pensaria nisso quando estivesse diante da situação.
De longe avistou a praça. Foi se aproximando, sempre à espreita, como quem está sendo obser-
vado, se deteve um pouco no centro da praça, pensativo. Alguma coisa naquele lugar parecia acalmar-
lhe o espírito. Olhou para as árvores como um sonhador. Grandes ipês amarelos carregados de flores lhe
cobriam a cabeça com suas sombras perfumadas, como um convite para que sentasse e procurasse
organizar suas idéias. Um casal afastou-se de um dos bancos, dando-lhe a oportunidade de ficar ali
mais alguns segundos. Sentado no banco, sempre segurando o jornal, inalou aquele aroma agradável das
plantas, da praça tão limpa e bem cuidada. Não existia nenhum fantasma naquele lugar. Tudo que podia
observar é que eram todos muito bem comportados. Sentia-se bem neste momento, mas precisava con-
tinuar sua busca. Novamente a mesma pergunta para uma moça que passava com pasta de estudante.
Ela o orientou sobre como chegar ao lugar desejado e afastou-se, balançando os cabelos negros.
Parado em frente ao prédio da fundação, ele ensaiou novamente como iria se apresentar mas,
antes de perder mais tempo com tolices, foi entrando.
- Em que posso ajudá-lo? - Perguntou o rapaz de uniforme que estava à porta.
- Gostaria de falar com alguém sobre a cidade. Não sou daqui e estou fazendo uma pesquisa, será
que pode me ajudar? - foi falando assim quase sem fôlego.
- Fale com a dona Jaqueline, talvez ela possa. É na primeira sala.
A Cidade do Vírus Triste 25

O coração de Juliano estava aos pulos. A primeira barreira fora vencida mas, daqui para frente,
teria que contar com uma grande presença de espírito.
- Senhora!.. desculpe interromper, mas estou desenvolvendo uma tese sobre cidades e gostaria
de saber se pode me ajudar.
- Tese sobre o quê, exatamente? - Perguntou a mulher.
Era uma senhora de meia idade, muito bem alinhada, usando uma écharpe colorida em volta do
pescoço, os cabelos bem penteados, um discreto batom. Mantinha aquele mesmo sorriso reservado de
toda a confraria.
- Sou pesquisador, quer dizer, sou médico - tirou a carteira do bolso e mostrou sua habilitação
médica. - Venho desenvolvendo trabalhos de pesquisas em várias cidades e, sempre onde chego, há
alguém esperando para orientar-me. Aqui, nesta cidade especificamente, eu preferi vir sozinho, pois foi
a que mais me chamou a atenção e não queria ser induzido a lugares previamente escolhidos.
A mulher franziu o cenho numa careta de incredulidade e pediu-lhe para que se sentasse.
- Posso ajudá-lo, mas o senhor vai ter que se explicar melhor.
Juliano sentiu as pernas tremerem. Caso a mulher soubesse que ele estava fazendo uma palestra
que não tinha nada a ver com aquele interrogatório, estava perdido. Como poderia explicar que um cien-
tista de renome internacional vai fazer uma palestra de cunho tão sério e se perde ao fazer perguntas
ridículas? Que tipo de interesse ele poderia ter na cidade, se não o de ministrar sua palestra e cair fora,
como sempre fizera? Sentia-se encurralado, mas nem ele mesmo conseguia explicar aquela postura.
Precisava de uma saída urgente.
- Bem, senhora, como já lhe mostrei, sou um médico, um geneticista, faço pesquisas, procuro
descobrir coisas novas. Estou aqui exatamente para isso. Já estive nas universidades, em vários labora-
tórios, mas... O fato é que existe alguma coisa nesta cidade, particularmente, que me incomoda. Não
saberia explicar-lhe agora, às vezes acho que são as pessoas, outras acho que é o clima, a atmosfera.
Precisava conversar com alguém, alguém que não me tomasse como louco. Preciso muito dessas res-
postas. Se estiver tomando seu tempo, pode falar, vou-me embora.
A mulher continuava com seu olhar desconfiado, mas não custava nada responder as perguntas
para o tal médico, se bem que tudo aquilo lhe soava de maneira bastante vaga. O que um cientista poderia
querer com uma cidade inteira?
- Muito bem, vamos ver se posso ajudá-lo, apesar de ainda não ter entendido direito. O que pre-
tende saber, exatamente?
- Já estive em várias cidades do mundo. Cada uma delas tem uma particularidade, todavia, esta
aqui... Não sei se devido a boatos que ouvi a respeito, que não foram poucos, mas o certo é que não me
sinto à vontade. É como se estivesse em outro país, onde as pessoas falam um idioma que não consigo
entender. São tão diferentes... e, por mais que falem que tudo não passa de imaginação minha..., não
sei, sou um cientista, não deveria sentir-me assim, entretanto... Vivo procurando novidades, mas nunca
me preocupei com comportamentos de pessoas e sim com genes, com fórmulas, com possibilidades de
encontrar cura para alguma enfermidade. Minha especialidade abrange uma série de coisas, menos es-
tudar enigmas de uma cidade. Mas este lugar incomoda-me sobremaneira, sufoca-me, sinto-me pés-
simo. Acabo de fazer uma coisa completamente fora do meu comportamento – falou, cruzando as pernas.
- Menti, quando disse que pesquisava cidades. Estou aqui fazendo uma palestra e, acredite, se alguém
souber que deixei de almoçar com pessoas importantes do meio para me perder em perguntas desta
natureza, provavelmente estarei desacreditado, mas não posso voltar para casa com esta dúvida. Seja lá
o que for que envolve esta cidade, tem que ter uma explicação.
- Já tentou falar a respeito com “as pessoas do meio”? Os que iriam almoçar com o senhor? –
Perguntou, meio enfadonha.
- É, parece ridículo, mas já fiz tantas trapalhadas aqui, com essa minha ansiedade, que não gos-
taria que os organizadores do evento soubessem exatamente o que sinto. Poderiam colocar em dúvidas
as minhas opiniões sobre outros assuntos da maior importância que estou expondo, e que nada têm a
ver com isso. Saí ontem com um rapaz que tentou me mostrar a cidade, mas não sei lhe explicar o porquê,
não consegui ver nada. Gostaria até de fazer o mesmo trajeto novamente, mas cadê coragem para pedir?
Seria uma grosseria de minha parte. Eu acho.
- Está sugerindo que eu o leve a dar uma volta? Doutor? - A voz era debochada.
A Cidade do Vírus Triste 26

- Na realidade, não sei o que estou fazendo aqui. - disse, descendo os olhos como quem perdeu
alguma coisa num vácuo de pensamento. - Procuro respostas onde acho que posso encontrá-las. Li al-
guma coisa no jornal que me chamou a atenção. - Tirou o jornal já bastante amassado devido ao manuseio
e mostrou para a mulher como se fosse seu troféu. Isso poderia ajudá-lo. Geralmente as pessoas têm
orgulho das suas realizações. Recordou as manchetes da coluna social. Esta mulher tinha todo o tipo de
gente de sociedade. Amaciaria o seu orgulho e teria a suas respostas. Colocou o jornal sobre a mesa,
deixando visível a parte do famoso colunista e continuou: - E por isso vim procurá-la. Mas ainda não sei
o que realmente pretendia encontrar. Em nosso trabalho, isso é uma coisa normal, anda-se às vezes
meio sem rumo e acaba-se deparando com uma grande descoberta. É, quase como um investigador –
falou, com um sorriso meio cortado. - Procura-se, apenas. Às vezes dá certo.
A mulher, recostada sobre a mesa, colocou a mão no queixo, com expressão distante. Tinha as
unhas tão grandes que por um instante o médico a imaginou, cravando-as em sua garganta e afastando
para sempre aquela presença indesejável de sua frente. Mas ela apenas lançou um olhar inquietante
para aquele homem indeciso, sem saber exatamente o que fazer. ” Dizem que todo cientista é louco, mas
este está passando dos limites.” Precisava dar um jeito de livrar-se daquele maluco sem ser grosseira,
pois sentia que qualquer coisa que falasse seria interpretada de maneira equivocada. “Mas era chegada
a hora de colaborar com a ciência”.
- Não posso abandonar meu trabalho para levá-lo a um passeio, doutor. Até porque acho difícil
que o senhor consiga enxergar alguma coisa além da sua imaginação. Já nos condenou, à sua maneira,
e nada que possa ver vai mudar o seu modo de pensar. - Agora a voz era de tristeza. Um sentimento que
ele jamais vira aflorou do fundo do coração daquela mulher, como uma súplica para que a deixasse em
paz. Olhando sobre uma grande janela, como quem pede ajuda aos céus, ela continuou: - Só me resta
dizer que acho-o um tanto perturbado. Não sei como responder às suas dúvidas. Podemos até ser
diferentes nas atitudes, mas acredito que isso não seja motivo para o senhor sentir-se assim, nessa
aflição. Não somos objetos de pesquisas científicas, se me permite. Nesta cidade faz muito frio, as pes-
soas quase não saem de casa em virtude da temperatura e, quando faz calor, não se tem muita opção,
pois os grandes empresários não se arriscam a investir em casas noturnas de grande porte para pessoas
que só saem quando faz calor. Talvez, por isso, sejamos mais calados do que os moradores do norte do
país, por exemplo. Mas o senhor fala como se fossemos portadores de uma doença contagiosa, e isso
me assusta. Acho melhor pensar um pouco, doutor. O senhor é um médico, um cientista! Santo Deus!
Como pode agir de maneira tão oposta aos seus valores? E desculpe-me a sinceridade, mas o senhor
não me parece um cientista. Portando-se desse jeito, parece mais um caça-fantasmas. E posso assegu-
rar-lhe que está completamente equivocado quanto ao nosso modo de viver. Já ouvi muita gente fazer
comentários sobre o nosso comportamento reservado mas creia-me, o senhor realmente superou a todos.
Sinto muito não poder ajudá-lo, mas gosto da minha cidade e, para mim, ela é perfeita. Portanto, não
posso concordar com a sua teoria. Desculpe-me.
Estendeu a mão para despedir-se, mostrando-se ofendida. Não perguntara onde o médico estava
fazendo a palestra, do que se tratava, nada. Apenas lançou-lhe um olhar frio e desprezível, tentando livrar-
se do incômodo daquela pessoa desequilibrada.
Juliano não sabia o que responder, pois a mulher tinha razão em várias colocações que fizera, até
em dizer que ele não se parecia com um cientista. Sentiu-se aflito com a maneira exacerbada com que
aquela senhora defendia a sua cidade, parecia uma mãe protegendo seus filhos de possíveis invasores.
Mas, apesar de tudo que dissera, ela não conseguiu convencê-lo. Ao contrário, aquela conversa só au-
mentou ainda mais a sua suspeita. As pessoas daquele lugar irritavam-se facilmente quando alguém me-
xia na ferida. Todavia aquela mulher, sem querer, acabara lhe abrindo os olhos para uma possível desco-
berta. Precisava retornar para o hotel e pensar na possibilidade. “O senhor fala como se fossemos porta-
dores de uma doença contagiosa”- foi isso que ela falou. Claro?!?
De volta ao hotel, ainda passou por uma locadora, pensou até em locar um filme para desanuviar
os pensamentos. Mas era tanta a burocracia que ele desistiu. Foi a uma loja de roupas femininas, procurar
alguma lembrança para Raquel, mas não tinha muito gosto para esse tipo de escolha. Com certeza,
qualquer coisa que levasse só iria fazer a mulher mostrar aquele ar de espanto com a novidade, e prova-
velmente jamais usaria. Pensou em comprar um CD para o Rapha, mas também não tinha idéia do gosto
do garoto. E, nesse momento, um pensamento melancólico invadiu-o novamente. Só agora sentia o
A Cidade do Vírus Triste 27

quanto era alheio às coisas domésticas, nunca prestara a devida atenção a gostos e a maneiras de agir
de sua família. Porém estava enlouquecendo, querendo descobrir as manias de uma cidade inteira. Só
podia estar ficando louco mesmo.
Vai a uma lanchonete, estava faminto. Ao fazer o pedido, recordou os sanduíches frios que às
vezes tinha que comer, entre uma olhada no microscópio e uma teclada no computador para verificar
resultados. Quantas vezes seu lanche ficava sobre uma mesa durante tanto tempo que, quando ia comer,
já estava gelado e sem gosto? Mas era bom. Pelo menos, quando estava tão envolvido em seu laboratório,
não pensava em nada, nada, além do resultado de suas pesquisas.
Após ingerir o lanche quentinho, acompanhado de um suco natural, ele resolveu que era hora de
retornar ao hotel. Precisava pensar sobre a cidade doente. Balançou a cabeça e riu do pensamento estú-
pido. Ao abrir a porta do quarto, lembrou: “- Somos doentes!” - “ O senhor não me parece um cientista”.
Mas ora essa!!! Sou um cientista e dos melhores, vou provar que sou capaz de descobrir coisas que estão o tempo
todo debaixo do nariz das pessoas e elas não percebem! - Sou um cientista, sim, minha senhora, vou lhe provar.
Doentes, é? Agora já sei porque vocês ficam tão irritados quando se fala sobre esse comportamento.
Jogou-se na cama de costas, com as mãos em volta da cabeça, sorrindo como uma criança que
acabou de conseguir aquele brinquedo tão desejado. Era isso! Tinha matado a charada. Aquela gente
agia daquele modo estranho não por influência geográfica, simplesmente. Era algo mais: um vírus! Sim,
e porque não? Toda a cidade era contaminada por um vírus. Uma espécie ainda desconhecida, associada
à influência contínua mantida na atmosfera daquele vale cercado de montanhas, como num caldeirão. O
ar daquela cidade estava contaminado por um enigma. A princípio, parecia bizarro, mas justificava aquele
comportamento. Rodou do outro lado da cama, sorrindo, sorrindo sem parar. Recordou que a Srta. Meri
falara : “ Existem pessoas aqui vindas de todos os lugares do mundo.”
Estava ficando claro. Se existia uma miscigenação de raças, algumas pessoas podiam se compor-
tar de maneira diferente, principalmente quem vinha do norte do país. Mas, ao contrário, tornavam-se
iguais. Precisava descobrir quanto tempo levava para que as pessoas se contaminassem com o tal vírus.
Vírus do quê? Precisava encontrar um nome para esse fenômeno.
Voltou a pensar na maneira centrada e calada das pessoas. Recordou novamente, procurando os
mínimos detalhes de tudo que vira e observara enquanto andara pelas ruas. E, em questão de segundos,
surgem à sua frente as particularidades do que mais lhe chamava a atenção. Eles não demonstravam
muita afeição por ninguém que vinha de fora. Mantêm aquele riso contido, aquelas feições sombrias.
Recordou uns poucos grupos de pessoas que conversavam em frente à lanchonete onde fizera seu lan-
che. Pareciam tão alheios ao que acontecia ao seu redor, tão envolvidos em seus colóquios. Sem dúvida,
aquele povo não agia daquela maneira somente em virtude do clima. Parecia loucura, mas teria que in-
vestigar isso mais a fundo.

O telefone tocou uma, duas, três vezes, enquanto ele tentava se livrar dos pensamentos.
- Alô!
- É seu filho na linha 2. O Sr. vai atender?
- Claro! Obrigado.
- Rapha! Como está o meu garoto?
- Papai! Tudo bem com você?
Aquela vozinha era como uma música na cabeça do médico. Às vezes, ficava horas pensando no
quanto iria sentir saudades daquela voz quando o menino se tornasse adolescente e mudasse, não ape-
nas a voz, mas tudo. Porque as crianças não ficam sempre crianças? .
- Eu estou ótimo meu filho, muito bem mesmo. E você?
- Com saudades. Sonhei que você estava muito triste, mas acho que foi só um sonho, né?
Uma dor aguda cortava o peito do médico, como uma faca afiada que atravessava de um lado ao
outro. Sentiu um nó na garganta, mas tentou disfarçar. Sabia que o filho podia perceber sua angústia. Não
era apenas angústia, eram saudades.
- Rapha, com certeza você apenas sonhou. Eu estou morrendo de vontade de abraçá-lo, de tomar
aquele sorvete, que tal?
- Legal, mas quando você volta?
A Cidade do Vírus Triste 28

- Amanhã, no primeiro vôo.


Ficou alguns minutos conversando com o filho e sentiu-se bem mais confortável. Amava o filho,
amava-o com toda a paixão. O certo é que amava toda a sua família. E aquele bate-papo aliviou a sua
mente cansada. Iria tentar desligar-se de toda aquela confusão caótica que estava em sua cabeça. Pode-
ria dormir um pouco, para recuperar as energias e, quando tivesse um tempo disponível, pensaria no
assunto. Agora, pelo menos, já tinha uma idéia meio vaga, mas era um começo. Um bom começo.
Quando Rone apareceu na recepção para buscá-lo, ele já estava a postos. Parecia entusiasmado,
o que deixou seu anfitrião bem mais aliviado.
- E daí,doutor! Aproveitou bem o dia? - perguntou Rone, meio desconfiado.
- Sabe, meu rapaz - falou, colocando a mão nas costas de Rone. - Geralmente, quando vou a uma
cidade pela primeira vez, costumo agir diferente dos demais. Prefiro andar sozinho, conhecer as pessoas,
seus modos, não sei se me entende. Os moradores da cidade, os organizadores de um evento, todos,
enfim, são de certa forma muito gentis e procuram nos mostrar o que há de melhor. Nem sempre perce-
bemos as particularidades com nossos olhos e, sim, como uma certa indução dos anfitriões. Não que
essa atitude seja negativa mas eu, particularmente, prefiro andar sozinho primeiro, depois posso tecer
comentários a partir do meu ponto de vista. Espero que não se ofenda. Você é muito prestativo. Devo-
lhe uma explicação. Eu estava bastante ausente, ontem, queria pedir-lhe desculpas. Mas vai haver outras
viagens e outros passeios. Com certeza, estarei mais à vontade. Quando não se tem o compromisso de
uma palestra tão técnica, tudo fica mais viável. Acredite!
Rone retribuiu com um sorriso entre os dentes, mas estava satisfeito. Só o fato de ver que o Dr.
Juliano estava à vontade, já lhe valera o dia.
Às 20:30h em ponto estava na faculdade para o término do seu trabalho. Olhava para aqueles
alunos à sua frente e imaginava que ali no meio existia uma moça de nome Meri que deveria estar rindo,
rindo da falta de capacidade que ele tivera, não respondendo a uma simples pergunta. Com um balanço
de cabeça, como que para "desmanchar" aquele pensamento óbvio e constrangedor, encheu os pulmões
de ar e continuou sua explanação do ponto onde a interrompera no dia anterior. Falava agora com segu-
rança e retornava a sua eloqüência característica. Procurou não exagerar nos gestos afetados e moderou
o tom efusivo que usara várias vezes nesta sua estadia, sempre lembrando-se de "quem" o estava assis-
tindo. Uma vez encerrada a discussão central, abriu a sessão de perguntas:
- Bem, fiquei devendo uma resposta para uma aluna, a Srta. Meri, que agora passo a responder:

Pergunta - O meio pode influenciar um padrão genético afetando todos os seres de uma mesma espécie
com características comuns, porém novas ou modificadas do seu padrão original?

Dr. Juliano - O fato de existirmos, tal como somos, é exatamente porque nossos ancestrais biogenéticos
tiveram que se adaptar às condições, muitas vezes adversas, desenvolvendo novas carac-
terísticas, como guelras ou garras nas nadadeiras e depois dedos, mãos e pés. Se dese-
jarmos, podemos seguir esta linha de raciocínio evolutivo. Consideremos, porém, que este
processo deve levar algumas centenas de milhares de anos. Por outro lado, se restringirmo-
nos apenas a um pequeno grupo de indivíduos e não contarmos com a intervenção cientí-
fica, considerando apenas as condições constantes de temperatura, pressão, radiação,
campos magnéticos e outros fatores, poderíamos diminuir este processo de adaptação,
talvez, para alguns poucos milhares de anos apenas. ( risos )

Era a primeira vez que conseguia arrancar uma reação generalizada daquela platéia. Se por um
lado ficou feliz com a espontaneidade, por outro perguntava-se se já estaria sendo contaminado e, por
isso, começando a ser aceito pela população. Balançou a cabeça, tentando tirar de vez aquele pensa-
mento absurdo.
A moça lá do fundo agradeceu, mas não conseguia entender a nova postura do médico, que pare-
cera um tanto confusa pela manhã.

Pergunta - Existe a possibilidade do vírus da AIDS ser um onco-vírus?


A Cidade do Vírus Triste 29

Dr. Juliano - Hoje em dia as pesquisas se preocupam muito mais em conhecer a biologia do vírus do
que em associar essa virose a um código genético. Então, todos os estudos se concentram
apenas em conhecer o seu ciclo vital. Como ele é, por que muda, como se reproduz, como
se monta inteiro, por que é uma retro-virose? Essas são perguntas que pretendo que alguns
de vocês respondam, a partir das pesquisas que sugeri neste encontro.

Pergunta - O Senhor apoia a lei da Biodiversidade ?

Dr. Juliano - Nosso país não dispõe de recursos (ou não disponibiliza) para pesquisas, por exemplo,
em biotecnologia. Nós temos a maior biodiversidade do planeta e não podemos pesquisá-
la. Assim, devemos nos associar a outros países que tenham a tecnologia e o interesse
necessários para a continuidade desses estudos. Agora, quem fica com o resultado da
pesquisa? Imagine o que é necessário para você alterar o código genético de uma bactéria
com umas 300 proteínas identificadas entre cerca de 100 mil compostos protéicos dife-
rentes. Para cada proteína estamos falando de aproximadamente 147 aminoácidos e,
para cada aminoácido, de uma infinidade de padrões a serem decodificados. E não pode-
mos trabalhar com "tentativa e erro", temos que acompanhar ‘in vitro" o que está aconte-
cendo para direcionarmos a alteração ao efeito desejado. Se considerarmos todo o pro-
cesso para a análise de um eucarionte, quantas vezes estaremos multiplicando estas eta-
pas? O nosso problema não é a lei, mas a quem aplicá-la.

- Mais alguma pergunta? – Indagou, sem mostrar aquela ansiedade do dia anterior.
Conforme as perguntas iam chegando, ele ia respondendo com clareza e determinação. Demorou-
se ainda em respostas mais técnicas, como com relação aos efeitos nefastos da clonagem de mamíferos
caso esta não fosse direcionada para razões médicas, como rejeição a transplantes e regeneração de
células, por exemplo. Não ligava mais para o comportamento dos participantes, agia de maneira descon-
traída. Respondera, em média, a umas 20 perguntas. Para um público de 900 pessoas, era um número
bem baixo, mas já estava preparado para esse acontecimento. Ppor volta das 22:00h, sob entusiástica
ovação, dava por terminada a sua palestra.
- Vamos jantar, doutor? - Perguntou Rone, mostrando-se amável.
Não podia fazer aquela desfeita e resolveu aceitar, mas procurou não se alongar muito.
- E então, doutor, qual a sua impressão com relação ao aproveitamento dos nossos discentes? -
perguntou um dos diretores.
- Muito boa, eu acho. As perguntas foram bastante inteligentes e isso mostra que estavam atentos.
A princípio fiquei um pouco apreensivo, mas isso é natural quando se está em um lugar que não se co-
nhece muito bem. Estou satisfeito e acredito seriamente que alguns darão início a pesquisas nesta área.
E, se considerarmos o potencial humano, logo esta cidade se transformará em um centro de referência
para todo o país.
Na realidade, Rone não queria mais conversar, mas o assunto interessou sobremaneira ao mestre,
que o inundou com idéias de projetos e propostas para intercâmbio com os técnicos de seu laboratório na
Universidade Central.

- Sr. Rone - disse o médico, enquanto seguiam para o hotel. - Gostaria de pegar o primeiro avião,
amanhã. Será que é possível?
- Mas... - pensou um pouco, depois continuou, cauteloso. - Aconteceu alguma coisa para o senhor
querer trocar o horário?
- É. Na verdade, recebi uma ligação e parece que o meu filho não está bem. Prometi para minha
esposa que voltaria logo cedo. Por favor. Desculpe não ter falado nada antes, queria fazer a palestra
primeiro. Sei que não é nada grave, mas não tenho mais nada para fazer aqui...
Aquela frase saiu quase como um alívio. Podia sentir uma forte emoção só em pensar que estava
saindo daquele lugar misterioso.
- Virei buscá-lo às 7:00h e tentaremos seu embarque no vôo das 8:15h.
A Cidade do Vírus Triste 30

- Eu agradeço, se puder fazer-me esse favor.

Raphael estava afoito. Mostrava-se tão alegre que Raquel chegava a ficar zonza com toda a ba-
gunça que ele estava fazendo. Já passava das 23:30h e o menino não manifestava sinal de sono. Ela
pensou em ligar para o hotel para confirmar a chegada do marido, mas resolveu aguardar que ele lhe
ligasse. Não demorou muito e o telefone tocou.
- Raquel!
A voz dele estava calma. Ela sentiu que alguma coisa havia mudado desde a última vez que lhe
falara, pela manhã. Parecia mais tranqüilo. Era, sem dúvida, o seu marido, carinhoso e atencioso.
- Não precisa ir me buscar pois não sei, exatamente, a hora em que vou chegar. Tentarei embarcar
no vôo das 8:15h, mas apanharei um táxi à chegada e tomaremos juntos o café da manhã. Estou morto
de saudades.
Muitas vezes o Dr. Juliano passava até 15 dias longe de casa. Sentia saudades da família,
claro, mas desta vez parecia ter passado uma eternidade. Sentia uma vontade louca que a noite termi-
nasse logo. Não conseguia pegar no sono e, depois de alguns minutos debruçado à janela, coberto por
uma manta como um monge, observava as poucas pessoas que ainda andavam pelas ruas geladas.
Pensava na sua suspeita de que elas eram contaminadas por um vírus. Um vírus da tristeza.
Sem dúvida, desta vez ele havia se superado. De onde, diabos, tirara aquela idéia? Por que tris-
teza? As pessoas não eram tristes. Olhando acima de um prédio bem alto, distinguia algumas poucas
estrelas obscurecidas pela luz diáfana da cidade e imaginava uma placa onde se lia: "A CIDADE DO
VÍRUS TRISTE". Tentou adivinhar o impacto que isso causaria na população: ou criaria uma balbúrdia
entre os moradores ou o aviso seria ignorado com pouco caso. O mais provável era que a polícia, ou os
políticos da cidade, mandassem procurar o infame que tivera essa estúpida idéia. Voltou para a cama e
tentou dormir.

A Cidade do Vírus Triste, e da temperatura inconstante, amanheceu com um sol radiante. Quando
Rone chegou à recepção do hotel, o médico já estava à espera, com toda sua bagagem.
- O senhor está com sorte, doutor - falou Rone, brincalhão.- Caso consiga lugar neste vôo, vai
também conseguir sair na hora! Raramente os vôos da manhã saem na hora em virtude do tempo. Mas
olhe só para isso! – falou, mostrando o céu limpo.
Não se recordava de uma sensação melhor do que essa que estava sentindo, pelo simples fato de
estar indo em direção ao aeroporto. Sentia-se aliviado, como se alguma coisa pesada estivesse saindo
de suas costas.
Após conseguir marcar a passagem, despediu-se de seu anfitrião como quem está fugindo de
alguma coisa. Tinha pressa. Uma pressa descabida, mas necessária. Parecia um vôo para a liberdade.
Precisava falar com Raquel sobre aquele pressentimento horrível que tivera e que levava desta cidade.
Já dentro do avião, olhou pela janela pensando que essa seria a primeira e a última vez que viria
a este lugar misterioso. Mas quando o avião levantou vôo, ele não sentiu apenas as costas colarem na
poltrona com o impulso. Sentiu uma dor forte, como se um pedaço dele estivesse ficando ali. Era uma
sensação desagradável, sentia vontade de mandar parar o avião, numa forma desesperada de buscar
aquela parte dele que ficara para trás. Será que já estou contaminado com o vírus? Este pensamento e o mal-
estar acompanharam-no até a aterrissagem, como uma premonição macabra.
A Cidade do Vírus Triste 31

CAPÍTULO 4

A viagem rápida pareceu uma eternidade. Como pude mudar de humor tão rapidamente? Porque a
felicidade de retornar para casa agora parecia um pesado fardo? E esta sensação de vazio, de estar incompleto,
seria realmente a manifestação do vírus? As perguntas martelavam em seu íntimo, no ritmo da obsessão.
Decidiu, então, tirar a prova da própria loucura. Após o pouso, ele foi até uma lanchonete, no intuito de
refazer o mesmo roteiro pelo qual optara na tal cidade. Precisava assimilar novamente o padrão de com-
portamento dos seus conterrâneos, coisa de que nunca tivera necessidade durante todos aqueles anos.
Sempre achara que todas as cidades deviam ter o mesmo ritmo, entretanto hoje já não tinha certeza.
- Um café, por favor! – disse, enquanto entregava a ficha para a moça simpática de rosto redondo,
esfregando as mãos em um pano que um dia fora de um branco imaculado. O mais prestativa que pôde,
ela apanhou a primeira xícara, encheu-a na máquina de "expresso" e entregou-lhe, parecendo muito
atenta à conversa de dois cavalheiros no balcão, mais à frente.
- O senhor está viajando ou chegando de viagem, Dr.? – disse, com aquele sorriso descontraído.
- Parece preocupado, tem medo de voar?
O que ela tem a ver com isso? Mas que intrometida! E quem disse que sou Dr.? Pensou irritado. - Estou
voltando. – Depois, olhando para aquela figura agradável, notou que estava sendo grosseiro. - Estou
vindo de uma cidade um tanto estranha. Acho que de um outro país. E a propósito, não tenho medo de
voar.
A moça ria enquanto oferecia o açúcar.
- Por que estranha? Onde fica?
- Brincadeira minha - virou o café num gole, quase queimando a língua. – Obrigado, Sra.
Só agora percebeu o quanto lhe fora incômoda aquela falação de uma balconista. Observou os
cabelos, um tanto esgadelhados, decorados com uma presilha barata, e o rosto sardento parecendo fer-
rugem. Poderia até achar graça da figura, mas não pretendia continuar com aquela conversa enfadonha.
Aquela moça lembrava-lhe uma auxiliar do laboratório que, quando começava a falar, não parava mais.
Era tão inconveniente que todos evitavam qualquer tipo de comentário na sua presença. " - É verdade que
o senhor perdeu um rato, hoje? - disse certa manhã, para André. - Se quiser, posso procurar. Dizem que
está para fazer uma grande descoberta, não é? Só não entendo porque tinha que ser aquele rato, tem
tantos aí na caixinha... " - Enquanto a cena se reconstrói na sua memória, agradeceu à balconista e
afastou-se, aliviado.
Deu uma olhada pelo aeroporto, procurando detalhes que ainda não tinha percebido. Era parecido
com o outro. Afinal, todos parecem iguais... Pessoas correndo de um lado para outro, expressões alegres e
descontraídas e outras um tanto apavoradas, crianças que choram sob o olhar de reprovação de homens
sisudos com seus ternos e óculos escuros. Era a mesmice de sempre.
Agora era hora de enfrentar o táxi. A temperatura, àquela hora da manhã, associada à poluição,
ao barulho e ao atropelamento de gente que parece estar sempre atrasada, estava longe de fazê-lo sentir-
se em casa.
- E daí, patrão, como é que foi de viagem? - disse um motorista de táxi, adiantando-se abrupta-
mente a dois outros para não perder o cliente. - Beleza de dia hoje, não?
Recordou o outro motorista, que estava sentado em seu carro, aguardando pacientemente que o
cliente o procurasse. Não tinha pressa, não falava, não dava importância.
Ele olhou aquela aparição à sua frente e pensou em buscar outro motorista, alguém que não fosse
tão atrevido. Mas são todos iguais nesta cidade em que quem não corre atrás do cliente fica de fora, sem
A Cidade do Vírus Triste 32

trabalho. É o instinto de sobrevivência de uma grande cidade. Acabou finalmente soltando a alça de sua
mala, que o motorista insistia em puxar, e entrou no carro.
O rádio ligado tocava um rock ou algo parecido, daqueles capazes de fazer alguém repensar o
motivo da sua existência. O sincronismo da porta fechando e do motor sendo ligado era algo digno de
livro de recordes ou menção honrosa em algum campeonato da categoria. A música, já ensurdecedora,
foi colocada num volume que agora passava do admissível.
- Está com pressa, patrão? - disse o rapaz de calça jeans e camiseta de propaganda de uma loja
de pneus - podemos pegar um caminho mais longo e assim fugimos do engarrafamento. O trânsito a esta
hora já está uma desgraça.
- Vá por onde achar melhor. E por gentileza, poderia abaixar um pouco o volume da música? Estou
com um pouco de dor de cabeça.
- Sem problema, meu chapa, aqui o freguês é quem manda.
Juliano estava irritado com a arrogância do sujeito. Como poderia falar tanto? Será que não des-
confiava que ele estava querendo ficar em silêncio? Precisava pensar, pensar na calmaria da cidade do
vírus, a cidade onde ele chegara a sentir-se sozinho, que ele odiara, cujo povo mal-humorado e calado
já estava lhe fazendo falta. E ele ainda nem havia chegado em casa.
Depois do dobro do tempo da viagem de avião, o carro parou em frente ao prédio de dezoito an-
dares, num bairro nobre da cidade. Dr. Juliano sentiu-se aliviado. Finalmente iria livrar-se daquela música
irritante e da tagarelice do motorista, que já estava tirando-lhe o sossego.
Uma vizinha do segundo andar, que saía naquele momento, veio ao seu encontro com aquele
aspecto de curiosidade e cordialidade.
- Bom dia, doutor! Como foi de viagem?
Era uma mulher delicada e prestativa, estava sempre de bom-humor. Algumas vezes ia tomar café
com Raquel e as duas falavam o tempo todo, parecia não ter fim aquele assunto. De certa forma essa
amizade era vista com tranqüilidade pelo médico. Raquel havia lecionado durante alguns anos, após o
nascimento de Carol mas, quando ficou grávida de Rapha, resolvera aposentar-se e dedicar-se inteira-
mente à família. Carol estava com 11 anos e exigia a presença da mãe, devido às constantes notas baixas
no colégio. E tinha também Rapha, recém-nascido, e as cada vez mais freqüentes viagens do marido.
Suas atividades se resumiam em administrar a família e promover alguns chás beneficentes com algumas
amigas do clube. A senhora do segundo andar era a que estava sempre mais envolvida com essa ativi-
dades.
- Tudo bem, Rute, tudo bem mesmo – repetia, mais para se fazer ouvir. Precisava convencer-se
que estava realmente tudo bem.
- Mais tarde passo lá para saber as novidades - disse Rute.
Ao entrar em casa, deparou-se com o apartamento em absoluto silêncio. Parecia estarem ainda
dormindo. Procurando não fazer barulho, mas um tanto decepcionado, ele colocou as malas num canto
da sala, com olhar distante. Recordou a suíte e deu um suspiro, não sabia se era de alívio por estar de
volta em sua casa, ou de saudades.
Raquel apareceu nos fundos do corredor, com seu roupão estampado. Parecia abatida, com olhei-
ras.
- Ju! não ouvi você chegar, - disse, abraçando o marido.
- Quanta saudade - falou o marido, retribuindo o caloroso abraço. Parecia ter passado um ano fora
de casa.
- Onde está Rapha?
- Dormindo ainda. Ontem ele estava terrível, foi dormir quase uma hora da manhã, parecia afoito.
Ah! Mas vamos tomar aquele café, enquanto você me conta tudo.
Raquel notou que o marido estava com aspecto cansado e abatido, mantinha um sorriso forçado
e agia de maneira preocupada. Na mesa da copa, onde ela havia providenciado um café digno de um
viajante que retorna ao lar, o silêncio paira por alguns minutos. Ele cortou uma fatia de queijo como quem
escolhe o lugar, olhando para um ponto qualquer, ausente.
- Como foi a sua recepção? - perguntou a mulher, tentando quebrar o silêncio incômodo. - As
pessoas são assim tão frias como Ernani falou?
- Não são frias, são doentes – falou, sem perceber.
A Cidade do Vírus Triste 33

- Doentes? - ela agora franziu a testa, sem entender. - O que quer dizer com doentes? Está me
deixando preocupada.
- Bobagem minha – respondeu, tentando corrigir o erro que, com certeza, iria incomodá-lo um
bocado. - Quer saber de uma coisa? Acho que Ernani queria me testar, pois fui muito bem tratado. O povo
daquela cidade é educado, atencioso, prestativo. Agem sempre com uma certa cautela e não são de muita
conversa, sabe? – disse, mais para si mesmo que para a mulher que o observava. - Eles não são hipócri-
tas. Quando gostam de alguma coisa, reagem demonstrando interesse mas, quando não gostam, não
sentem o menor pudor em deixar transparecer seu total desinteresse. Não creio que isso seja um defeito,
para mim soa mais como qualidade. Gostei do povo, da cidade, do tratamento, do hotel, de tudo.
Recordou, - não era isso que pensava quando chegou naquele aeroporto, estava aflito para que o
avião levantasse vôo- porque estou falando essas coisas?
- Você precisava ver o nível das perguntas que me fizeram! Me deram trabalho. Estavam prestando
atenção em tudo que eu falava, mas mantinham-se o tempo todo calados. Cheguei a pensar que não
estavam gostando, mas ontem...
Ele parou de falar, com a xícara erguida entre a mesa e a boca, balançou a cabeça e riu por entre
os dentes.
- Sabe, Raquel, acho que no próximo feriado vou levá-la para conhecer a cidade do v... - segurou
a palavra, tentando disfarçar.
- A cidade do quê?
- A cidade do vento frio. É impressionante, num dia faz 25 graus, no outro 8 e, no seguinte, 20
graus. Chega a ser divertido.
- Que horror! E você ainda quer me levar para um lugar desses? Odeio frio. Ui ! – disse, enco-
lhendo-se.
Ele queria falar sobre sua descoberta, sobre o suposto vírus e buscava uma maneira adequada de
se fazer entender. Recordou seu incidente com a Srta. Meri, do quanto sentira-se ridículo. Não pretendia
passar por aquilo novamente, mas precisava contar a Raquel. Ela precisava saber porque ele se referira
a "doentes". Não eram doentes- eram felizes, ou tristes. Talvez inteligentes demais para dar atenção a
um pobre mortal estúpido, que precisara de dois dias para responder a uma simples pergunta.
- Raquel?
- Papai! Raphael entrou, quebrando o clima.
- Oi, meu filho!
Ele beijou o menino, abraçou-o com força. O garoto sentiu o desconforto e reclamou:
- Ai! Nossa, parece que não me vê há anos! Estava mesmo com saudades, papai?
Raquel também tivera essa mesma impressão e não estava gostando nada do comportamento do
marido.
- Vou tomar um banho, depois vou ao laboratório. Preciso falar com Ernani sobre uma coisa que
descobri.

A camareira chegou por trás da recepção, com um papel nas mãos, e chamou um dos rapazes de
terno azul.
- Olhe o que encontrei no quarto daquele médico. Não é esquisito?
O rapaz pegou o papel e olhou, fazendo uma careta: "A cidade do vírus triste".
- Sr. Germano! – falou, virando-se para o gerente. - Olhe o que a camareira encontrou numa suíte.
O homem olhou para a frase com um sorriso de canto.
- Estava no quarto do cientista?
- É, do médico açougueiro - disse o rapaz, prontamente, enquanto se encolhia para ouvir nova
bronca.
- Ele não é apenas médico, é cientista e dos bons. Esses caras são tão loucos ... – disse, amas-
sando o papel.
A Cidade do Vírus Triste 34

- Será que se referia a nós? - Perguntou o rapaz, intrigado.


- Que diferença faz? - responde o gerente sisudo. - Você já ouviu falar em vírus triste? Existem
vários tipos de vírus: o vírus da gripe, o da AIDS e até de computador. Agora imagine um vírus sentando
num canto, encolhido e choroso. Ah! Vamos trabalhar, gente!

De volta ao transtorno do trânsito engarrafado, das buzinas, dos gritos, Juliano pensa que, se
pudesse transferir o vírus, ou o sintoma, ou seja lá o que envolvia aquela gente da cidade onde estivera
para este inferno onde se encontrava agora, com certeza não hesitaria. Quem sabe quando descobrisse
o mistério não tentasse contaminar também aquela cidade? Para que todo aquele nervosismo logo cedo?
- Bom dia, Juliano - disse Ernani, com seu sorriso debochado - e então, como foi sua estadia, a
palestra, enfim: qual a sua avaliação de 0 a 10?
Era um homem de rosto arredondado, andava pelos corredores do hospital arrastando o corpanzil
de mais de cem quilos, mantendo sempre aquele sorriso de deboche. Era como se para ele tudo não
passasse de um divertimento. Certa ocasião pegara um rato de laboratório para fazer uma experiência e,
antes de injetar a fórmula no animalzinho, ficara puxando o bicho pelas orelhas, brincando de maneira
sádica. Depois, disse que era para descontrair. Podia ser apenas um rato, mas havia vida nele. Como
podia ser tão vulgar?
- Dez, responde secamente.
- Ora, então foi um sucesso, heim? - disse o gordo, erguendo as calças.
- É. Bem melhor que eu esperava.
- Então meus parabéns!
- Obrigado.
- Você está bem? – Perguntou, aproximando-se do amigo.
- Por quê? Estou com cara de doente? Por que todo mundo me faz essa pergunta? Estou ótimo.
Mas que droga!
- Não é o que parece, meu amigo. Você me parece um tanto irritado. Só queria saber se houve
alguma coisa de anormal. Onde conseguiu esse mau humor todo? Será que foi contaminado pelo povo
da cidade?
Esta frase pegou o médico desprevenido. Sentiu vontade de falar para o colega sobre sua desco-
berta, mas percebeu que estaria se expondo novamente e resolveu mudar de assunto. No mínimo ele iria
cair na gargalhada. Ele é um cínico.
- Desculpe, Ernani – disse, pousando a mão no ombro do amigo - acho que vou pegar um belo
resfriado. Deve ser a mudança de temperatura. Imagine você que ontem fez o maior frio naquela cidade.
Mas, apesar do frio, queria dizer que fui muito bem recebido pelos alunos e todo o pessoal, caso alguém
pergunte. Agora vou voltar para casa, tomar um chá quente e me deitar um pouco.
Mudara completamente de idéia sobre o que iria fazer no laboratório, ainda estava muito confuso,
não tinha paciência para agüentar as brincadeiras de mau gosto do colega. Pegou uma pasta apenas para
justificar sua ida ao trabalho e voltou para o carro. Ernani acompanha-o, com seus olhos zombeteiros.
- É. Faça isso e veja se melhora esse humor. Você está péssimo!

Já era mais de uma hora quando Juliano retornou, com aquele ar meio impaciente e distante.
- Tem alguma coisa te incomodando? - perguntou Raquel, sentindo que o marido escondia algo. E
com comovente amabilidade sorria, tentando tirá-lo do sofrimento que o torturava.
Ele achou que aquela pergunta indicava a hora certa de desabafar e, tomado de coragem, procu-
rou na mulher a reciprocidade para sua narrativa.
- Na realidade, não há nada me incomodando, mas queria falar sobre uma coisa que descobri.
Vamos lá fora?
- Claro. Aceita um café antes?
- Não, nada de café, já estou ansioso demais.
- O.K.
A Cidade do Vírus Triste 35

Sentados nas cadeira de vime da sacada, de frente para um pequeno bosque, ele recorda a cidade
onde se perdera. Onde tivera a sensação de que, apesar de pacatos, aquele povo havia lhe roubado a
tranqüilidade.
- Bem- falou, tropeçando nas palavras. - Acho que fiz a descoberta do século, talvez do milênio.
Parece bizarro, mas faz sentido. É importante que acredite em mim – falava, de maneira afetada.
- Nossa, Ju, já estou ficando aflita.
E, por um momento, seus sonhos voltam como que concretizados: a casa nova, o Nobel do marido,
a futura mudança para o exterior...
- Você sabe que as pessoas falam que os habitantes da cidade onde estive são frios e distantes,
certo?
- Certo, e daí? - insiste ansiosa.
- Eles são e não são tudo isso... às vezes parecem assustados, com medo do que não conhecem.
É como se estivessem sempre por uma couraça, uma espécie de proteção invisível para se defenderem
do que não lhes agrada, não sei se está me entendendo.
- Mais ou menos – respondeu, ajeitando-se.
- Sabe, quando cheguei lá notei que eles eram educados mas um tanto arredios. Senti-me muito
mal, era uma sensação de sufocamento, misturado com uma ansiedade e até um certo medo.
- Notei isso pelo telefone, você me pareceu um tanto vago.
- Pois é, uma aluna fez uma pergunta bastante simples mas creia, eu não conseguia responder-
lhe. Não porque não soubesse a resposta, mas porque confundi tudo. Senti-me estúpido, foi horrível.
- Confundiu? Como assim?
- Era uma pergunta aparentemente fácil, mas eu estava muito confuso. Achei, veja você, que a tal
moça estava sentindo o mesmo que eu, estava assustada, talvez não fosse da mesma cidade e estivesse
deslocada. Mas não era nada disso. Entretanto, aquela pergunta ficou me martelando o dia todo e, no
final da tarde, após dar uma volta pela cidade, eu cheguei a uma conclusão. Através de várias respostas,
eu consegui matar a charada.
Ele levantou-se e foi até a sacada, deu uma olhada para baixo, recordando a hora em que essa
idéia lhe viera à mente. Precisava fazer Raquel acreditar, precisava de cumplicidade, alguém em quem
confiar. Como fazer-se entender, se até para ele era difícil a assimilação de tudo aquilo?
- Raquel! – falou, segurando os ombros da mulher. - Aquela cidade, é contaminada por um vírus.
Um vírus da tristeza - falou num impulso.
- Santo Deus, Ju - disse a mulher, levantado-se num pulo e derrubando para a inexorável destrui-
ção, em fragmentos desconexos, todos os sonhos. - Não fale isso na frente de ninguém, vão chamá-lo
de louco. Onde já se viu Vírus da Tristeza? Juliano, você está delirando! Por que tristeza? As pessoas são
tão tristes assim?
Encolhe-se num trejeito, mostrando uma expressão tristonha.
- Sabia que você não iria entender. Não são tristes, são... diferentes; a alegria deles é alguma
coisa mais contida, não é escandalosa. São calmos e esse comportamento não é em virtude do clima.
Este fato pode até influenciar, de certa forma, mas o que envolve aquele povo é muito mais que um clima
frio. Pode parecer absurdo, eu sei, mas se pesquisar um pouco, tenho certeza que vou encontrar uma
justificativa científica.
- Pesquisar o vírus da tristeza?
- Raquel, chamei o sintoma de vírus triste porque foi a idéia que me veio na hora, depois achei até
simpático. "A cidade do vírus da tristeza". É assim que chamarei a cidade daqui para frente, pois foi assim
que me pareceu.
- Você está estressado Ju. Sei que passa todo seu tempo em pesquisas e descobertas. Esse é o
seu trabalho, mas arrumar um vírus triste e ainda achar simpático, não acha que está exagerando?
- Querida, não é uma doença, é uma espécie de magia, é alguma coisa envolvente; você gosta
da cidade ou a odeia. Eu poderia chamar "O vírus da magia”, ou “místico” ou, ainda, “energético", tanto
faz. O importante é que esse sintoma é imperceptível. As pessoas acham que o comportamento delas é
normal, não se dão conta. Você entende? Mas, se prefere, vou chamá-la de "CIDADE DO VÍRUS
MÁGICO" ou "CIDADE DO VÍRUS MÍSTICO."
A Cidade do Vírus Triste 36

- É, e pelo jeito você já foi contaminado, mas eu diria que essa sua contaminação é bem perceptí-
vel. Até o Rapha já notou. Estou preocupada! Juliano, você já pensou na possibilidade de estar apenas
impressionado? Recorda o quanto estava inseguro em virtude dos boatos que envolviam o tal povo?
- Sim. É bem possível- disse, como quem já perdeu o interesse pela conversa. - Desculpe, eu estou
muito ansioso com a falta de novidades no laboratório e devo estar forçando uma descoberta. É isso.
Vamos esquecer o assunto. Vou ler um pouco até o almoço ficar pronto.
Levantou-se e saiu de cabeça baixa. Com certeza, a contar pela reação da sua própria esposa,
seria difícil alguém apoiar ou mesmo acreditar em sua teoria. Raquel tentou falar alguma coisa mas ele
não responde. Está mais calado que nunca e se tranca na biblioteca. Ela se sente arrependida. Sabe que
o marido não estava convencido, talvez fosse melhor ter dado mais importância para sua idéia, assim
saberia o que se passava na cabeça dele e poderia até acompanhar o raciocínio, se fosse o caso. Mas
agora ele estava magoado. Com certeza não tocaria mais no assunto com ela. "Sua estúpida," ela pensa,
enquanto vai para a cozinha verificar o andamento do almoço.
Durante alguns dias Juliano permaneceu calado com relação ao tal vírus, mas Raquel sabia que
ele andava pesquisando tais coisas. Tentava falar sobre o assunto, mas ele sempre desviava a conversa.
Mantinha sempre aquele ar distante, não era mais o mesmo.

- Recebi uma ligação um tanto estranha, hoje - disse Rone a Angélica, balançando a cabeça.
- É loira ou morena? – respondeu a esposa, rindo.
- Você não me leva a sério mesmo - ele falou, jogando uma almofada na mulher.
- Desculpe, era só brincadeira. Quem ligou? O que queria? Porque você está achando estranha?
- Recorda o Dr. Juliano?
- Claro, o cliente que não foi almoçar com você porque tinha que responder a uma pergunta para
uma certa senhorita, no Hotel e coisa e tal... - vai falando com o dedo em riste e rindo maliciosamente -
Recordo, sim...
- Não é bem assim e, se continuar de brincadeira, não falo mais nada.
- Desculpe de novo. Prometo - fez uma cruz na boca com os dedos.
- Ele me ligou pedindo algum livro ou recorte de jornal, qualquer coisa que fale sobre a fundação
da cidade.
- Se ele é um estudioso, o que tem de mais ele querer saber mais coisas a respeito de nossa
cidade?
- Disse que gostou muito daqui e que, sempre que uma cidade lhe chama tanto a atenção, ele
procura saber sua origem, história, etc. Foi um tanto vago. Você acredita nisso? – perguntou, franzindo a
testa.
Angélica riu diante da figura do marido. Olhando para aquela expressão, recordou o dia do seu
casamento. Quando ele foi colocar a aliança em seu dedo estava tão nervoso que, para disfarçar, franzia
a testa como alguém com dificuldade de enxergar. Foi muito divertido; parecia mais tenso que a noiva.
- Bem, é um tanto estranho, não há dúvidas. Mas para o que mais seria? De repente ele
gostou mesmo daqui e quer defender uma tese, quem sabe? Vai mandar?
- Bem, hoje eu tenho mesmo que passar na biblioteca, vou dar uma sondada no museu também,
não custa nada. Você bem que podia me ajudar – falou, acariciando os cabelos sedosos da mulher.
- Sabia que ia sobrar para mim. Sempre sobra. Mas vou cobrar, viu? – Ri, desmanchando o cabelo
do marido. - Tudo bem, eu vou à biblioteca e você vai ao museu. Combinado?
Os dois riem. Era final de expediente e Rone resolveu convidar a esposa para jantar fora. Andavam
trabalhando demais e precisavam de umas férias. Bem que podia fazer um levantamento de tudo que
encontrasse sobre a cidade e levar pessoalmente, assim aproveitariam para sair um pouco.

No restaurante, Rone comentou com Angélica sobre a possibilidade de dar uma esticada até a
cidade do Dr. Juliano e levar o material pessoalmente. Quem sabe descobriria o verdadeiro motivo do
interesse do médico em relação à cidade.
A Cidade do Vírus Triste 38

CAPÍTULO 5

Durante dois dias Angélica encarregou-se de vasculhar o que havia a respeito da descoberta e
colonização da cidade. Tudo que descobria ia deixando-a extasiada, nem ela mesma que nascera e fora
criada ali tinha informação de tanta coisa. Teria o médico percebido algo que estava lhe escapando?
Comentava com Rone sobre as novidades que descobria a cada documento que encontrava. Estava
adorando essa busca. Cuidadosamente organizou tudo em uma pasta, pronta para ser entregue ao curi-
oso doutor.
À noite, os dois liam e reliam a papelada. Era incrível como as pessoas não sabem o que acontece
em suas cidades. Uma das descobertas, entretanto, estava lhes chamando mais a atenção: a maneira
confusa com que eram colocados os nomes dos fundadores da cidade. Parecia que havia dois supostos
descobridores, ou fundadores. Um era citado de maneira vaga, sem muita referência. Era como se quem
escreveu não desejasse que o tal Sr. Fulano, como era literalmente citado, fosse realmente dado como o
fundador. Já o outro, que por vários tópicos não parecia muito ligado aos acontecimentos históricos, como
por exemplo em relação à sua chegada e a forma como se instalou, tinha o apoio de alguém que preferira
atribuir-lhe esse achado. Mas, com certeza, esses dados não estavam descritos de maneira clara.
No dia seguinte Angélica descobriu um livro raro, obtido no acervo pessoal de um amigo, que falava
sobre a fundação e descobrimento da cidade. Precisava resolver aquele enigma, não estava mais nem
preocupada em mandar o material ou em responder possíveis dúvidas do doutor. Agora era uma coisa
quase que pessoal. Por que aquela confusão no relato?
Enfiada de cara no volumoso livro notou, com tristeza, que as provas para verificar quem realmente
havia chegado primeiro neste lugar não existiam. Havia apenas suposições, nada de concreto. Mas An-
gélica, por questão de simpatia talvez, resolveu aceitar que o tal Sr. Fulano, que chegara na região fugindo
de algum tipo de perseguição, parecia o mais adequado para ser o fundador. Enfim, esse era apenas o
seu pensamento, coisa que talvez nunca fosse descoberta.
Discutia com o marido sobre suas descobertas e ficava cada vez mais fascinada por tudo que
acabara sabendo.
- Veja você - disse Rone, brincalhão - precisou um médico de fora vir até aqui e perceber coisas
que talvez a gente nunca percebesse, para despertar esse nosso interesse na história da cidade.
- Não é bem assim – disse, emburrada. - A gente estuda isso na escola, apesar da coisa toda ser
passada de maneira confusa, fragmentada.
- É, ou talvez a gente não preste muito atenção porque tem que estudar outras coisas. Quando
você pega um material desses com o único objetivo de desvendar curiosidades, sem o compromisso de
ter que fazer prova a respeito, fica muito mais interessante. De qualquer forma, agora estamos sabendo
muito mais coisas graças à solicitação do doutor. E, falando nisso, vou ligar para ele.
Pegou o telefone e ficou, por alguns segundos, admirando a bela mulher, ali, debruçada sobre
aquele amontoado de documentos e livros. Parecia o tempo em que estudavam para o vestibular. Um
sentimento melancólico começou a rondar sua mente. Às vezes sentia falta daquela confusão de ter que
trabalhar e estudar como louco, tudo para chegar ao pico. Quanto mais ainda teria que subir...
- O que houve? - perguntou Angélica. - Meu cabelo está desarrumado... ?
Ele continuou inerte, olhando a mulher e pensando se deveria realmente fazer aquela ligação. Por
um breve momento sentiu como se estivesse entregando uma bomba armada na mão de um inimigo e
não sabia o motivo. Talvez porque o médico não se tenha mostrado muito à vontade quando esteve ali,
não parecia ter simpatizado tanto com a cidade. E caso sua intenção fosse outra? Sem dúvida, ele e a
mulher seriam cúmplices.
- Amor! O que está havendo? Parece assustado. Que cara!
A Cidade do Vírus Triste 39

- Apenas um pressentimento, não dos melhores. Mas seja lá o que Deus quiser.
O telefone começou a chamar, enquanto o rapaz ia ficando suado, parecia agir contra seus princí-
pios. Era como se estivesse violando alguma regra proibida.
- Gostaria de falar com Dr. Juliano – disse, com a sua voz de locutor.
- Quem gostaria? - perguntou Raquel, olhando para o marido, absorto em seus livros.
- Um minuto só - respondeu, após certificar-se de quem se tratava.
Deu mais uma olhada para o homem ensimesmado e calado, no qual havia se tornado seu marido
nos últimos dias e sentiu vontade de dizer que ele não poderia atender. Entretanto, notou que isso de
nada adiantaria. Se ele continuava na busca de respostas para suas dúvidas, não iria desistir. Sentiu uma
espécie de revolta porque o marido não havia falado a ela que continuava com aquela loucura. Mas falar
o quê? Ela não lhe dera ouvidos quando fora procurada. "Paciência", pensou.
- É um tal de Rone, de voz grossa, quer falar com você.
- Ah! – falou, dando a entender que precisava ficar sozinho.
Mas Raquel resolve não se afastar, continuou disfarçando, procurando um livro do outro lado da
estante e, com o canto do olho, tentava observar, de maneira discreta, do que se tratava.
- Como vai, Sr. Rone?
- Encontrei seu material e, como estou de viagem, acho que vou entregá-lo pessoalmente. Só
gostaria de marcar um local.
... não vou perder a oportunidade de olhar na cara dele quando entregar toda essa parafernália. Alguma
coisa está errada nisso, pensou.
- Ah, sim, pode ser no hospital! Vai ser um prazer revê-lo. Anote o endereço. A que horas? Certo.
Podemos almoçar juntos. Até amanhã.
-Ju! Quem é esse homem? - perguntou Raquel, abrindo um livro, sem notar direito o que estava
lendo.
- Alguém que não acha que eu seja louco, um amigo - disse, baixando a cabeça sobre o volumoso
livro que tinha nas mãos.
- Quer trazê-lo para almoçar aqui? Eu preparo algo bem especial. Que tal lhe parece?
Ela estava tentando se inteirar dos acontecimentos e, para isso, precisava ser ágil, demonstrar
interesse. A resposta do marido fora um tanto grosseira, mas precisava ter paciência. Sabia que ele estava
necessitando de ajuda, talvez de um desabafo.
- Ainda quer falar comigo sobre o tal vírus? - continuou - Sei que não dei a devida importância,
mas procure me entender. Da maneira que você falou... me deixou preocupada. Não duvido de sua capa-
cidade de perceber coisas. Mas coloque-se no meu lugar. Uma cidade contaminada por um vírus é coisa
natural, mas um vírus da tristeza?
- Depende do ponto de vista de cada um. Sei o que estou fazendo. – Respondeu, secamente.
O clima se tornara tenso naqueles dias, recordou Raquel. Nem mesmo com Rapha ele estava mais
brincando e o menino já sentia a falta do pai. Na conversa com Carolina quase não falou nada, limitando-
se apenas em responder algumas coisas e oferecendo-lhe dinheiro, como quem quer se livrar de uma
conversa oferecendo um pagamento, para aliviar sua culpa. Raquel sentia vontade de falar-lhe para pro-
curar um médico, tirar umas férias num SPA, relaxar, voltar a ser o que era antes. Mas ele estava obce-
cado por aquela idéia, a descoberta do século. Uma descoberta que estava deixando-o doente.
- E então, posso providenciar o almoço para seu convidado?
Ele olhou para a mulher, sempre tão carinhosa, tão meiga, e recordou quantas vezes ela tivera
que providenciar almoço para seus amigos e sempre o fizera de boa vontade. Afinal, ela não tinha obri-
gação de entender suas ansiedades com relação àquela descoberta. Talvez ela lhe desse razão se viven-
ciasse a sua experiência, passando alguns dias na tal cidade.
- Certo, Raquel, se isso não lhe aborrece, posso trazer o rapaz para almoçar aqui, apesar de não
haver necessidade, pois nem tenho tanta intimidade com ele assim. Pedi apenas que me mandasse alguns
documentos de que estou necessitando e que podiam até ser passados via “InterNet”. Mas ele disse que
tem que vir aqui resolver alguns negócios e se ofereceu para trazê-los pessoalmente. Pretendia levá-lo
para almoçar em algum restaurante, numa forma de agradecer. Mas...
- Faço questão - enfatizou Raquel.
A Cidade do Vírus Triste 40

Não importava que o tal rapaz não fosse íntimo. O certo é que, de uma forma ou de outra, ele
estava trazendo alguma coisa para o marido. E ela não pretendia ficar de fora desta vez.

À noite, enquanto Raquel tentava puxar assunto com o marido, sem muito resultado, Rone e An-
gélica estavam às voltas com a arrumação das malas.
- Você precisa levar tanta coisa? - perguntava Rone, rindo.
- Não sei como estará o tempo por lá e depois, você sabe que eu gosto de estar sempre prevenida
caso aconteça algum convite de última hora, aquele modelito, essas coisas ...
- Não se esqueça que vamos ficar lá apenas dois dias. Não um mês.
- Tenho um pressentimento de que vou precisar de trajes especiais. A menos que você me prometa
que qualquer novidade... eu possa ir a um shopping... comprar algumas roupas... - Falava dengosa, ba-
lançando os ombros e segurando delicadamente a ponta do dedo mínimo.
- Não! Pegue mais uma mala!
Sabendo o quanto a mulher era vaidosa, ele resolveu não discutir. Ela era realmente capaz de
fazer um estrago em seu cartão de crédito e não pretendia ter surpresas no final do mês. Se seus pres-
sentimentos não eram nada bons com relação àquele encontro, pelo menos a sua conta no banco preci-
sava estar a salvo.

Logo cedo, Raquel foi ao supermercado providenciar alguma coisa diferente para o almoço. Preci-
sava mostrar para o marido que estava do seu lado.
Era quase uma hora da tarde quando Juliano chegou. Raquel havia preparado a mesa para quatro
pessoas, não contava com a mulher do “tal amigo". Por isso, ficou desconcertada quando foi receber os
convidados. Eles eram um tanto novos para um casal. Ela havia imaginado alguém de mais idade. O
rapaz bonito, com aquela voz maravilhosa, acompanhado daquela jovem mulher, igualmente bela e com
sorriso iluminado, fizeram com que Raquel se sentisse um tanto embaraçada. Passava as mão nos cabe-
los nervosamente, como quem tenta disfarçar o desconforto.
- Raquel, minha esposa - disse Juliano, apontando para a mulher.
- É um prazer conhecê-la, senhora - disse Angélica - não tínhamos a intenção de incomodá-la,
mas seu marido insistiu e...
- Nada de cerimônias, vamos entrar. O prazer é todo meu.
Por essa ela não esperava. O que o marido poderia querer com aquele casal? Ele havia dito que
pedira apenas alguns documentos, mas que documentos? Com certeza o casal sabia do que se tratava
e, pensando melhor, iria procurar conversar com a moça, quem sabe ela saberia alguma coisa.
Mas os documentos já haviam sido entregues e, durante o almoço, ninguém tocou no assunto,
para desespero de Raquel. A conversa girava em torno dos eventos promovidos pelo rapaz e os contra-
tempos que às vezes aconteciam, coisas que pelo visto não tinham acontecido com Juliano. A mulher de
sorriso meigo se limitava apenas a rir de maneira reservada, sem falar muita coisa. Mas Raquel não podia
deixar que eles fossem embora sem saber do que tratavam os tais documentos.
- Algum cliente seu já ligou pedindo documentos, ou meu marido é o primeiro? – falou, diante o
olhar de recriminação do marido.
Rone riu de maneira acanhada. Sentia um certo clima de hostilidade entre o casal porém Angélica,
sem perceber, tomou a dianteira.
- Acho que não. O Dr. Juliano foi o primeiro, mas graças a ele nós ficamos sabendo um bocado de
coisas a respeito de nossa cidade. Imagine, eu nunca tinha me preocupado em saber como e quem foi o
fundador da cidade, não da maneira que fiquei sabendo. Enquanto pesquisava as informações para o
senhor – falou, olhando para o médico - eu precisava ler para ver se era exatamente o que queria e, com
isso, fui fazendo descobertas fantásticas.
- Como por exemplo? - falou Juliano, ansioso.
A Cidade do Vírus Triste 41

- O senhor vai ver, quer dizer, não sei se essa parte vai interessá-lo. Não sei exatamente qual é o
seu objetivo com esses documentos mas se, por acaso, ler onde tratam sobre a fundação da cidade, há
coisas muito interessantes com relação aos verdadeiros descobridores. Prefiro que o senhor mesmo che-
gue à sua própria conclusão, pois posso estar equivocada. Pareceu-me um tanto confusa a parte sobre
estudos arqueológicos na cidade. Imagine que, recentemente, na década de 60 mais ou menos, durante
uma escavação onde é hoje o centro da cidade, foram encontradas lâminas de machado de pedra polida,
entre outros objetos muito curiosos e interessantes. Os arqueólogos queriam continuar suas buscas mas
o governo, não se sabe bem o porquê, não autorizou, mandando fechar os sítios. É, está tudo aí. - Apon-
tava para a pasta sobre o sofá.
O médico olhou para os documentos, ansioso para se inteirar das informações que aquela mulher
estava lhe passando. Entretanto, precisava descobrir mais coisas a respeito das impressões que ela ti-
vera. Parecia impressionada com tudo que descobrira.
Uma inquietação começou a envolver todos na mesa. Juliano parecia querer arrancar mais infor-
mações daquela moça, enquanto Raquel tentava disfarçar também uma certa curiosidade. Rone apenas
observava. Precisava perceber direito qual a intenção do médico com relação àqueles papéis. No entanto,
ele se mantinha calado, apenas observando a ansiedade de Angélica que, sem perceber, vai despejando
informações que poderiam passar despercebidas. Rone não sabia o porquê, mas as mãos começavam a
suar.
- Vamos tomar um café na outra sala? - sugeriu Raquel.
- Ótimo, assentiu Juliano.
Mas ele precisava fazer uma pergunta e não estava encontrando oportunidade quando Angélica,
sem querer, deu-lhe a deixa:
- Não é à toa que dizem que nós moramos em uma região mística e não é difícil perceber isso.
Quando se descobre que os maiores representantes de escolas filosóficas e de misticismo resolveram se
instalar na cidade, dá o que pensar.
- Você acredita que as pessoas de sua cidade têm aquele comportamento centrado em virtude
dessas filosofias? Quero dizer... Existe alguma coisa a mais do que o clima para fazer as pessoas serem
tão reservadas?
Juliano não conseguia esconder toda a sua ansiedade enquanto falava e Rone, novamente, tenta
em vão conter o frenesi da mulher que, inocentemente, continua.
- Dizem muito a esse respeito, mas eu não vejo nada de mais. Talvez porque tenha nascido e me
criado lá, ache tudo muito natural. Algumas pessoas de fora dizem que a cidade não gosta de visitantes,
que estes se sentem rejeitados, como se estivessem em outro país. Eu acho que são os visitantes que
não entendem o nosso modo desajeitado de gostar.
- E quanto ao senhor? Qual a impressão que teve? - Perguntou Rone, aguardando a resposta
para suas dúvidas.
- No começo não me sentia muito bem. Acho que você percebeu, certo?
- É, o senhor estava um tanto apreensivo quanto à receptividade dos alunos. Achei até que não
gostara da cidade, por isso me pergunto o porquê de tanto interesse.
- E quem não teria? - interrompe Angélica - Com certeza alguém deve ter falado que somos estra-
nhos e alguns outros adjetivos. Hum!
- É, isso é verdade. Depois me acostumei e, acreditem, gostei muito da cidade e quero estudar a
possibilidade de um trabalho paralelo na sua universidade. Por isso, estes e outros dados, como a fauna
e a flora características da região, por exemplo, são necessários. - sentencia o doutor depois de perceber
que, se falasse algo mais, estaria se expondo demasiadamente.
Raquel agora está mais à vontade. Com certeza o marido começaria a dividir com eles o assunto
de suas pesquisas, poderia acompanhá-los, apesar de achar que aquela conversa estava deixando o
homem ainda mais ansioso. No fundo, ela não acreditava em nada daquilo. Podia ser apenas crendice do
povo, uma forma de chamar atenção para si e, já que o marido estava tão empenhado em continuar, o
melhor seria dar-lhe cobertura.
Mas o assunto não se alongou. A ansiedade em mergulhar no material estava tão evidente que os
visitantes rapidamente perceberam e, com olhares cúmplices, despediram-se após mais algumas ameni-
dades. Durante todo o resto da tarde e até algumas horas da noite Juliano, leu e releu todo aquele material,
A Cidade do Vírus Triste 42

procurando encontrar uma pista que o levasse às suas suspeitas. Não estava envolvido naquela busca
tão somente como cientista e, mesmo que essa pesquisa estivesse fugindo um pouco da sua linha de
trabalho, considerou até a influência das ditas filosofias no comportamento das pessoas. A questão era
que, em virtude das evidências, tudo o levava a crer que se tratava realmente de uma contaminação
generalizada, como a provocada por algum tipo de vírus, ou mesmo por um problema genético. Sua ca-
beça estava confusa demais para chegar a uma conclusão imediata e, caso conseguisse provar que sua
teoria estava certa , de modo estritamente cientifico, estaria dando um passo à frente para muitas outras
dúvidas que ainda beiravam a enlouquecida cabeça de algum outro cientista.
A quantidade de documentos, entregue pelos seus convidados, era considerável. Havia relatos
sobre o descobrimento e fundação da cidade, bem como alguns artigos sobre ordens filosóficas e místicas.
Isso, sem dúvida, se devia ao fato do casal não ter idéia sobre o verdadeiro motivo daquele interesse.
Mas lia tudo com bastante atenção.
"A psicanálise nos oferece a opinião de que, quando um forte desejo é colocado na Mente Instin-
tiva, essa fase da mente continua a esforçar-se para sua realização, mesmo anos depois que ele já foi
conscientemente esquecido. (Dr. Rolf Alexander)" - dizia uma anotação no final de uma das páginas.
Juliano pára por alguns momentos olhando aquele pedaço de papel. Lera tal anotação umas duas
ou três vezes, sempre pensando porque aquele casal anexara esse documento que parecia ter sido tirado
deliberadamente de um livro no intuito de provocá-lo. Teriam eles suspeitado de alguma coisa que ele
não estava percebendo?
Precisava dormir antes de repassar aquelas informações pois, quanto mais lia, mais confuso fi-
cava.
Era um homem cético, que jamais acreditara em qualquer tipo de filosofia. Suas pesquisas eram
baseadas simplesmente em informações científicas. Nunca fizera terapia, primeiro porque não via neces-
sidade para isso e, segundo, porque entendia que tudo era palpável. Assim como percebia, agora, que o
sintoma que cercava as pessoas daquela cidade era, sem dúvida, algo que a ciência conseguiria explicar.
( Continua a esforçar-se para sua realização mesmo anos depois que ele já foi conscientemente esquecido) .
O que estaria sendo esquecido? Porque aquela frase martelava-lhe tanto a mente, já quase doentia
por aquela resposta? A sensação de que um pedaço seu tinha ficado naquela cidade começava a inco-
modar. Era como um estorvo em seu pensamento. Precisava dissipar esse mal-estar para dar continui-
dade ao trabalho, sem ser atropelado por pressentimentos levianos.
Durante o sono atribulado sonha com embarcações, garimpeiros, índios, animais. Vez por outra
via-se como alguém tentando não chamar a atenção, escondendo-se entre as sombras, uma coisa ma-
cabra.
- Juliano! Já passa das 9:00h - disse Raquel, com sua voz suave.
O corpo todo doía, estava exausto. Sempre que pensava em enfrentar aquele laboratório gelado
sentia uma forte vontade de continuar na cama, sob a proteção de seu cobertor. Mas o certo é que não
podia fugir. Tinham uma experiência para fazer ainda pela manhã e, com certeza, Ernani e André estariam
aguardando-o.
Seguiu para o banheiro com aquele mal-estar, recordando a fórmula que haviam implantado na-
quele camundongo. Precisava saber como ele estava reagindo. Seria demasiado desleixo deixar que os
amigos dessem continuidade à pesquisa sem a sua presença. Afinal, a idéia fora dele.
Enquanto se vestia pensava, ainda confuso com tudo que havia lido , com o sonho e com a expe-
riência que teria que fazer, a qual não estava de toda resolvida pois, em seu modo de ver, iria necessitar
de mais estudos para aplicar a tal fórmula na cobaia que, tal qual um condenado, aguardava no labora-
tório.
- Papai, podemos jogar bola amanhã? Você prometeu! - disse Rapha, abraçando-o com seu sor-
riso alegre.
- Está certo meu rapaz, pode se preparar, amanhã... - Fez um trejeito, como quem chuta uma bola,
e devolveu o abraço ao filho.

Precisava voltar para sua família, para sua paz e, com esse pensamento tomou o café na compa-
nhia da mulher. Foi para o trabalho. Demorou-se por alguns instantes, enquanto o carro esquentava,
pensando ainda nos documentos e naquela laboriosa procura, que iria ficar suspensa por enquanto.
A Cidade do Vírus Triste 43
A Cidade do Vírus Triste 44

CAPÍTULO 6

18º CONGRESSO DE PARAPSICOLOGIA - Palestra de abertura aberta ao público - informações


na recepção.
Os carros buzinam atrás de Juliano que, distraído lendo o out-door colocado em frente ao local do
evento, nem percebeu que o sinal já abrira. Pro inferno. E, movido por uma força que ele não conseguia
explicar, estava dando a volta na quadra e iria parar.
Uma aflição que não conseguia distinguir direito impelia-o a seguir em frente. Sentia que estava
se deixando levar, que faria papel de tolo, uma vez que seus amigos o esperavam para, quem sabe, dar
continuidade a uma descoberta genética da maior importância. Mas, mesmo com todos esses pressenti-
mentos, o carro parou na frente do grande centro de eventos.
- Gostaria de falar com o Dr. Richard - era o nome do palestrante, que ele lera na placa iluminada.
A recepcionista simpática observa serenamente a expressão séria do doutor, imaginando uma
maneira delicada de falar-lhe.
- Ele vai estar aqui para a palestra de abertura, mas creio que será difícil o senhor conseguir falar
com ele, a menos, é claro, que queira marcar um horário em seu consultório particular.
- Não preciso de um consulta, preciso apenas tirar uma dúvida. Se for o caso eu pago a consulta,
mas preciso falar com ele ainda hoje, por favor.
- Realmente gostaria de ajudá-lo, senhor, mas não creio que consiga tempo suficiente com o Dr.
Richard para tirar sua dúvida aqui. Por que não ...
- Eu sou médico-cientista, minha senhora, e só preciso de uns cinco minutos com meu colega.
Estou defendendo uma tese e só queria uma opinião.
A mulher começou a esfregar delicadamente uma cruz egípcia em forma de medalhão que osten-
tava pendurada em uma corrente dourada, como quem transfere para um objeto toda a energia que se
transformaria em palavras nada educadas. Percebendo que estava sendo insistente e que, com certeza,
uma opinião digna de ser considerada em uma tese, fosse ela qual fosse, não seria obtida em escassos
cinco minutos, Dr. Juliano pendeu a cabeça em resignação.
- O Senhor poderá encontrá-lo neste endereço às 14:00h. Vou avisar a secretária dele sobre a sua
solicitação e vamos ver o que podemos conseguir – falou, sorrindo docemente, enquanto lhe entregava o
cartão. - Se o senhor é colega de profissão, acredito não ser tão difícil.
- Obrigado, senhora, não sabe o quanto isso pode ser importante.
No cartão, meio azulado, estava escrito: "Dr. Richard Schimit - PhD., psiquiatra - terapia e regres-
sões hipnóticas. Especialização também em parapsicologia. Atendimento só com hora marcada.”
Tentando coordenar as idéias e imaginando o início da sua conversa, pensou no que iria falar para
o tal médico: Dr., acho que descobri uma cidade com milhões de habitantes, que estão contaminados por um vírus...
A idéia parecia um tanto absurda, mas ainda tinha muita coisa para fazer antes das duas horas da tarde,
o que lhe daria tempo para mudar de idéia com relação à abordagem e mesmo até se faria aquela visita.
"Somos colegas.” - foi o que falara à recepcionista. Estou ficando mesmo perturbado com isso tudo.
Mas Angélica havia falado sobre o misticismo que envolvia a cidade, esse bem que poderia ser um gancho para dar
início a uma conversa... Os moradores de uma cidade poderiam se deixar influenciar por esse tipo de crendice? É,
faz sentido.
A Cidade do Vírus Triste 45

Já no laboratório, discutiu com Dr. Ernani sobre a experiência que estava sendo desenvolvida,
insistindo que a achava um tanto arriscada. O certo era investigar mais um pouco antes de aplicar a tal
fórmula no animalzinho. As reações possíveis ainda não estavam todas previstas em nenhum dos relató-
rios. No entanto, em se tratando de Ernani, com a sua teimosia, o melhor era deixar por sua conta e risco
as conseqüências que tal atitude poderia acarretar. Entretanto... sabia que não estava agindo como pro-
fissional. Não podia deixar Ernani botar em risco todo aquele trabalho, mas tinha uma coisa mais impor-
tante para fazer.
Na volta para casa, passou novamente em frente ao centro de convenções. Precisava ter certeza
que não estava se expondo com aquele interesse pela parapsicologia.

- Juliano, está tão abatido! Alguma coisa que eu possa ajudar? - perguntou Raquel.
- Está tudo bem, querida, só estou preocupado com uma loucura de Ernani. Mas acho que estou
me precipitando. Ele deve saber o que está fazendo.
Não pretendia falar com ninguém sobre sua fuga para um consultório psiquiátrico. Sentia-se de-
masiado inseguro em suas dúvidas e tudo que desejava era que as horas passassem depressa. Iria visitar
o tal médico. Ao menos era isso que tinha como certeza absoluta. Não podia dispensar aquela oportuni-
dade.
A caminho do consultório, passou por uma praça antiga e recorda as vezes em que vinha até ali
com Raquel, tomar sorvete, quando ela ainda estava grávida de Carol. Tentava levar a faculdade com
esforço de uma mulher determinada, pois a sua condição não lhe permitia freqüentá-la com regularidade.
A gravidez, segundo os médicos, era de risco, e ela precisava manter-se em repouso mas, mesmo assim,
agüentara até o oitavo mês. Em muitas oportunidades fugiam da aula e ficavam ali tomando um sorvete
e imaginando como seria o rostinho da criança, uma menina que agora estava cursando faculdade em
outro país. Como o tempo passa depressa! Sentia saudades da filha, que queria ser uma grande advo-
gada. É, quem sabe não seria bom ter um grande advogado na família para forçar o pai a procurar um médico, ao
invés de um bruxo, completa.
Ao deparar-se com o prédio foi tomado de surpresa. O médico devia ser realmente importante.
Não era um bruxo e, caso fosse, seria dos bons, a notar pela localização do seu consultório. Um prédio
num dos lugares mais caros da cidade. A entrada era protegida por grades em forma de desenhos geo-
métricos, talvez para não deixar a visão tão pesada, como uma fortaleza. As escadas de mármore eram
de um branco tão intenso que pareciam registrar cada passo deixado por pacientes indecisos.
Andando através dos corredores, iluminados por uma luz fluorescente, ele vai pensando no que
dizer. Nada ali lembrava um lugar procurado por um cientista céptico. Parado em frente à grande porta de
madeira escura, observava uma discreta placa onde estava escrito em letras prateadas: "Dr. Richard Schi-
mit - Parapsicólogo". Ele foi tomado por uma enorme vontade de virar-se e nunca mais voltar ao tal lugar.
Perto do trinco, com formato de um globo todo de cristal, lia-se: "Entre, por favor". Novamente a
dúvida surgiu : entraria ou não? Mas o desejo que o envolvia superava todas as dúvidas.
A pesada porta deslizou maciamente, com apenas uma leve pressão. Um aroma agradável, que
vinha do interior da sala, penetrava nas narinas e parecia ir direto à mente, como um calmante. De repente
já estava em frente à mesa, onde uma moça muito bem vestida falava ao telefone enquanto o fitava com
expressão carismática. Fez-lhe, com a mão, um sinal para que se sentasse.
O ambiente era acolhedor. As grandes vidraças, com suas cortinas brancas e bem abertas, deixa-
vam uma claridade ainda maior. Havia alguns vasos de plantas verdes pelos cantos e uma enorme sa-
mambaia pendurada ao lado da janela, cujas pontas estavam quase tocando no chão e pareciam mover-
se ao som de um clássico de Bach.
Tudo naquele lugar lembrava o consultório de um médico extremamente zeloso com seus pacien-
tes. A música e o aroma agradável iam ditando o ritmo cerebral e deixando o indivíduo relaxado, tal como
ele se sentia naquele momento.
- Pois não? - perguntou a moça, quase menina, morena clara de inebriantes olhos verdes.
- Sou o Dr. Juliano, falei com...

Ela adiantou-se, mostrando que já sabia do que se tratava.


A Cidade do Vírus Triste 46

- Já sei, o senhor é o cientista. Estávamos aguardando-o, Dr..


Esta frase não o agradou, a princípio. Como eles poderiam estar aguardando-o? É certo que soli-
citara uns poucos minutos, mas pensara que iria aguardar entre uma consulta e outra, não que estaria
sendo aguardado como se fosse...mais um paciente, concluiu desconsolado.
- O Dr. Richard já vai atendê-lo. Aceita um suco ou um chá, talvez?
- Não, obrigado. Mas... Qual foi a informação que passaram a vocês sobre meu interesse nesta
consulta? - especulou, pensando em estar preparado para o que iria enfrentar. Parecia que aquela con-
versa estava deixando-o ainda mais exposto.
- A Sra. Edinéia me falou que o senhor é um cientista e precisava apenas de uma orientação para
uma grande descoberta que está prestes a fazer. Obviamente, tem interesse em dirimir dúvidas com re-
lação a um fator psíquico em sua descoberta ou em algum tipo de experiência ligada a ela. – Falava,
descansando o queixo sobre o dorso da mão - Sabe, Dr. Juliano, raramente somos procurados por médi-
cos querendo tirar dúvidas ou trocar qualquer tipo de informação. Os cientistas, na maioria das vezes, são
um tanto cépticos no que diz respeito à parapsicologia. Por esse motivo a sua solicitação nos chamou a
atenção. Vou avisar ao Dr. que o senhor já chegou. É só um minuto.
A postura da mocinha deixou-o tão aturdido que não se atreveu a pronunciar mais nenhuma pala-
vra. Ele não se recordava de ter falado nada daquilo, mas preferiu não fazer mais perguntas. Ela talvez
respondesse, o que o deixaria ainda mais confuso. Estava em terreno desconhecido e o melhor era aguar-
dar o rumo dos acontecimentos.
Quando a porta se abriu novamente, trazendo de volta a recepcionista, ele sentiu que alguma
coisa se abria dentro dele. Era como uma dor muito forte que começava na boca do estômago e ia subindo
sem piedade.
- O Senhor pode entrar – disse ela, enquanto segurava a porta dando passagem para o cientista.
- Boa tarde, Dr. Juliano, sente-se por favor - disse, apertando a mão do médico assustado.
De repente nada fazia sentido. Aquele médico tinha uma expressão um tanto apaziguadora mas,
mesmo assim, a dor aumentava em seu peito. Era como se alguém estivesse apertando-lhe o tórax.
Sentia uma espécie de ânsia e um terrível mal estar. Olhava para o homem à sua frente, era um senhor
de uns 65 anos, cabelos brancos, meio franzino, mas de olhar tão expressivo que o intimidava ainda mais.
Ele parecia analisá-lo dos pés à cabeça, sem fazer uma pergunta. Nunca se sentira tão transparente.
O homem era uma espécie de catalisador. De repente os sonhos voltaram à sua mente, a viagem,
o olhar sóbrio e “aquele” sorriso nas expressões que lampejavam em sua memória, a frase em destaque
nos documentos de Angélica, o sentimento de perda ao deixar a cidade, tudo em uma fração de segundos.
- Em que posso ajudar, doutor? - disse o médico, de voz calma.
- Bem, na verdade ainda não sei, estou um tanto confuso. Precisava de algumas informações e
trocar algumas idéias, achei que seria fácil, coisa de minutos. Mas agora, estando aqui, acho difícil expli-
car. Não quero em absoluto tomar muito de seu tempo, mas não sei se conseguiria me fazer entender,
mesmo em um dia inteiro de conversa.
- Entendo. O senhor parece-me um tanto perturbado com alguma coisa e nem sempre é fácil falar
sobre determinados assuntos. Infelizmente, devido ao Congresso, não teria hoje muito tempo para con-
versar com o senhor. Mas, se desejar, podemos nos encontrar novamente na terça-feira à tarde. Ainda
tenho umas duas horas vagas.
Terça-feira! Teria sábado, domingo e segunda-feira para pensar se ainda desejaria falar com o
homenzinho de rosto afinado. E ainda assim seriam mais quatro longos dias para remoer suas idéias e
dúvidas.
- Está certo, doutor, só ainda não sei se conseguirei me explicar. Sinto um forte desejo de dividir
com alguém mas, ao mesmo tempo, temo pela reação das pessoas. Penso ter feito uma grande desco-
berta, alguma coisa que seria um avanço na ciência, mas agora chego a pensar que pode ser algo que
está acontecendo comigo mesmo. Sinto-me frágil até para falar sobre o assunto. Talvez por isso vim
procurá-lo, quem sabe buscando coragem ou apoio. Não sei.

- Sinto-me lisonjeado por ter sido escolhido para partilhar de sua descoberta. O senhor deve estar
habituado a agir com uma certa cautela em determinados casos, mas existem algumas situações que nos
intimidam porque podem estar de certa forma ligadas a algum resgate do nosso passado inconsciente. E,
A Cidade do Vírus Triste 47

exatamente por esse fato, nos parecem absurdas. Como pode ver, não existe nada de extraordinário
nisso. Gostaria muito de ouvir sua história e, se puder ajudar, ficarei muito feliz.
A voz do médico era tão calma que a dor começou a desaparecer. Mas ele teria que voltar outro
dia, teria que conter sua ansiedade. Recordou trecho do livro do Dr. Rolf Alexander, aquela pequena
anotação num dos papéis que acompanhavam os documentos enviados por Rone e sua esposa. E,
olhando para o médico, pensa por que também ele diz: "situações ligadas a alguma coisa do nosso
passado." O velho e experiente senhor observa naquele homem de aparência saudável, ali na sua frente,
algum sofrimento, alguém já quase sem brilho, sem vida. O olhar era distante e sombrio. Precisava tentar
ajudá-lo, mas como, se ele se mostrava um tanto bloqueado?
- Muito bem, Dr. Juliano - disse o médico por fim, - noto que o senhor está um tanto ansioso e, por
isso, caso haja interesse de sua parte... amanhã é sábado e geralmente eu me dedico a atividades menos
profissionais, mas vejamos... - e passou as pontas dos dedos sobre a testa, como que tentando coordenar
seus pensamentos - pela manhã, já tenho um compromisso, mas quem sabe à tarde poderíamos nos
encontrar. Terei, então, bastante tempo para ouvi-lo. O que lhe parece?
- Concordo, Dr., se isso não for atrapalhá-lo. Onde posso encontrá-lo?
Falava com voz ofegante, de um atleta fora de forma, que tenta não demonstrar seu precário pre-
paro físico.
- Ligue para esse número amanhã ao meio-dia, e lhe direi onde - falou o médico, entregando o
número do telefone e esticando a mão para se despedir.

A caminho do laboratório Juliano dirigia quase como um autômato. Era como se entrasse num
lapso de tempo do qual só sairia no dia seguinte. Parou o carro na vaga número 12. Era essa sua vaga
há mais de cinco anos. Estacionava o carro quase que automaticamente, era como um vício. A mesmice
de todos os dias. Um pensamento nostálgico acudiu-lhe nesse instante de pura depressão: por que aquela
fixação para descobrir o que realmente existia naquela cidade? Estaria realmente querendo fazer uma
descoberta científica, ou provar a si mesmo uma teoria no mínimo absurda? Como pretendia fazer isso,
afinal? Captando partículas da atmosfera, para analisar possíveis vírus? E se descobrisse alguma coisa,
o que fazer? Provocar uma desordem em uma cidade tão pacata? Porque não esquecer tudo aquilo e
voltar a ter uma vida normal? Mas uma voz dentro de sua cabeça dizia: "porque esqueceu parte de você
lá, e enquanto não admitir isso vai sofrer". Estava neste devaneio quando ouviu um enorme barulho dentro
do laboratório e, em seguida, uma correria. Apressado, adiantou-se para saber o que havia acontecido.
Ao entrar, tropeçando em funcionários assustados, foi informado do acidente: um curto circuito
nas instalações estava provocando um incêndio. Os bombeiros já se aproximavam com suas sirenes
estridentes. O terceiro andar estava em chamas e o fogo se alastrava para os outros andares com rapidez.
O setor onde estavam armazenadas as mais valiosas informações fora totalmente destruído, com espan-
tosa rapidez, graças aos produtos químicos e inflamáveis nele existentes.
Ernani aproximou-se, com pequenas queimaduras nos braços e o cabelo meio sapecado, pare-
cendo um personagem de filme de terror. E, apesar do momento ser de total preocupação, Juliano sentiu
vontade de rir diante a figura do amigo.
- Pelo amor de Deus! O que aconteceu? Você está bem? Quero dizer...
- Tudo bem, vou sobreviver - respondeu Ernani, numa careta. - Sempre falei que estes equipamen-
tos precisavam de uma vistoria, que estavam caindo ao pedaços, mas alguém me ouviu? Não! Agora
‘tá aí esta desgraça. Trabalho de anos perdidos e por quê? – falava, soprando o braço. - Porque o governo
não quer gastar dinheiro, não quer investir. E depois ainda reclama que nós é que não estamos dando
resultados. Não podemos dar bons resultados sem a maldita verba. E agora, HUM?!? Aguarde a bomba.
O que vamos fazer, me diga? Eu quase morri tentando salvar alguma coisa, mas não consegui. Porra!
Vou para um hospital fazer um curativo, isso aqui dói prá danar.
- Eu levo você - disse Juliano, prestativo, - Já fomos expulsos do prédio mesmo, só nos resta
aguardar. E procure se acalmar, não é o fim do mundo.
Em frente ao prédio de três andares, eles ainda olham o movimento dos bombeiros, que corriam
entre a fumaça.
A Cidade do Vírus Triste 48

- Quanto trabalho jogado fora - falou Ernani, num suspiro. - Até meu rato foi pelos ares, e olhe que
eu já estava começando a gostar dele. – riu, ajeitando-se no banco do carro.
- Ernani! - comentou Juliano, apaziguador - todas as pesquisas realizadas, e que estavam nos
computadores, estão a salvo. Eu mesmo tenho cópias de tudo e sei que existem outras, não há porque
se desesperar. O prédio tem seguro, nem tudo está perdido. Quem sabe agora o governo se comove e
nos dá melhores condições de trabalho?
- Prá você pode estar tudo bem, primeiro porque não depende disso , segundo porque fez cópias
dos documentos, mas o estúpido aqui? Este lugar é a minha vida, venho aqui até nos finais de semana.
Depois, estava tentando uma descoberta que poderia ajudar, e muito, ia catalogando dados e combina-
ções, eram apenas hipóteses, nada de concreto, mas já estava bem adiantado. Agora terei que começar
do zero, isso se ainda me lembrar. E por quê? Porque sou um cretino. Fiz cópias, sim, mas deixei na
gaveta. A minha mesa, rapaz, eu tentei abrir a maldita gaveta, mas a chave não entrava, o fogo foi se
espalhando. Droga!!!
Juliano sentiu uma ponta de ódio. Então esse gordo estava fazendo pesquisas secretas? Trabalhavam
em equipe, todos dividiam suas dúvidas e possibilidades, como ele podia tentar esconder uma pesquisa
dos colegas? Onde estava o companheirismo? Isso sem contar que tal comportamento era até anti-ético,
para um grupo de cientistas que trabalhavam no mesmo espaço físico. Mas tentou disfarçar seu senti-
mento.
- Vamos! Desembuche - falou Ernani, incomodado com o silêncio do amigo. - Sei que está chate-
ado, queria fazer uma surpresa, você quase não pára nesta merda, não sabe o quanto as coisas andam
complicadas. Não tive a intenção de ser filho da puta. Precisava tão somente ter mais dados.
- Não estou falando nada - respondeu Juliano, com um sorriso meio forçado. - Vamos, vamos
cuidar dessas queimaduras, já estou me sentindo mal. No fundo pensa: também tenho uma novidade e não
pretendo dividi-la com ninguém, não por enquanto.
No consultório, o médico fez um curativo e depois disse:
- Vai doer ainda uns vinte minutos, mas não foi nada grave, não vai ficar nem sinal.
- Mais do que doeu até agora é impossível, mas vou sobreviver – respondeu, saindo para o pátio.
- Muito bem, meu chapa – disse, colocando o braço envolto em gases no ombro de Juliano - pre-
ciso de uma carona de volta. Tenho que pegar meu carro e verificar o que sobrou do prédio.
- Vamos sim, também preciso ver o estrago, e quer saber de uma coisa? Sinto muito por você e
suas pesquisas secretas, mas creio que nada pode fazer a respeito. Se aceitar um conselho, vá para casa
e descanse, deixe para pensar nisso a semana que vem. Quanto a mim, vou desligar, vou brincar com
meu filho e aguardar os acontecimentos.
- Não sei como é que você pode ser tão frio, Juliano. - disse, balançando a cabeça.
- Por isso ainda tenho mulher e filhos. E a Raquel ainda reclama que não dou muita atenção para
ela. Calcule quanto tempo ficaria casada com um homem igual a você.
- É, você tem razão. Depois de dois casamentos fracassados, resolvi que o melhor mesmo é ter
casos com ratos. Eles não te cobram nada, são apenas pequenas vítimas de alguns acidentes, às vezes.
- Riu quase para si mesmo, jogando a cabeça para trás. - Sem dúvida, a pesquisa é a minha grande
paixão.
- Isso já não é paixão, é exagero. Vai acabar pirado se não tirar umas férias.
- Já sou meio louco. – falou, passando a mão no cabelo. - Gostou do penteado novo? Acho que
não vou precisar de barbeiro por um bom tempo.
Os dois riram.
De volta ao laboratório, Juliano contemplou aquele lugar cercado por curiosos. Os bombeiros já
haviam se retirado, restando apenas uns dois que faziam a última vistoria para se certificarem que estava
tudo bem.
- Doutor! - falou um dos bombeiros - Sinto muito, mas o terceiro andar foi totalmente destruído.
Quanto ao resto, pouca coisa foi danificada. Fizemos tudo que estava ao nosso alcance.
- Obrigado pela informação, senhor – adianta-se Juliano, juntando os ombros - Fazer o quê?

O bombeiro despediu-se e Juliano aproveitou para também voltar para casa.


- Até mais Ernani, e vê se relaxa.
A Cidade do Vírus Triste 49

- Gostaria de ter sua calma, amigo, mas prometo que vou tentar.

À tarde, jogando bola com Raphael, Juliano parecia uma criança. Rolava na grama com o filho,
feliz, e gostava daquela sensação. Raquel preparara um jantar especial para o marido. Com certeza seu
velho Juliano estava de volta, e isso merecia comemoração. Foram tantos dias de hibernação naquele
escritório, envolto com aquela papelada que hoje, vendo sua disposição, a mulher sente como um milagre.
Chegara a pensar que o marido estava realmente precisando de um bom médico.
À noite, após o jantar, Julianao convidou a mulher para ouvir música na biblioteca. Rapha, perce-
bendo a intenção do pai, rumou para seu quarto para jogar em seu computador. Estava também bastante
cansado.
No sofá, que servia de cama para alguma visita inesperada, Juliano abraçou a mulher com carinho.
Ela retribuiu com um sorriso nos lábios, ao som da música do CD que ganhara em seu último aniversário,
uma coletânea de músicas Celtas que tanto apreciava. Aquela noite parecia tão mágica que até as estre-
las, que pontilhavam o céu como gotas douradas, participavam daquele momento perene que reinava na
casa dos Kravieks. Fizeram amor sob a luz da lua cheia, com raios que invadiam todo o espaço, tornando
aquele clima de ternura ainda mais completo de felicidade. Queria ficar ali para sempre, foi o que pensou
Raquel, ao sentir o cheiro forte e ao mesmo tempo agradável do marido.
Raphael ainda brincava quando o casal dirigiu-se para o quarto. Os dois passaram pelo quarto do
menino para dar-lhe um beijo de boa-noite e ele agradeceu com aquele olhar expressivo de criança feliz.
- Vê se não fica muito tempo na frente desse computador, Rapha - disse o pai, - Cuidado com os
olhos.
- Está bem, pai, só vou acabar esta fase... ele tem que passar ... por ali... e depois... ops!, de novo...
e aí...
- Boa noite! - disse o pai, resignado.

Após tomar o café naquela manhã de sábado, Juliano convidou Rapha para uma volta de carro,
quem sabe tomar um sorvete escondido de Raquel. Ela não achava certo o menino tomar sorvete pela
manhã. Como ele não estaria em casa à tarde, precisava aproveitar os poucos momentos para desfrutar
a companhia do filho.
- Você vai sair à tarde? - perguntou Raquel, arrumando o colarinho da camisa do marido.
- É! Sabe, depois de uma discussão com Ernani no laboratório, preciso providenciar algumas coi-
sas, mas acho que não demoro. São apenas precauções. Segunda-feira tenho uma reunião ainda não
sei que horas, do jeito que estão as coisas... sei não. É melhor eu ir hoje, caso contrário terei que ir
amanhã, e marcamos de ligar para Carol, recorda? Depois, acho que seria uma boa idéia almoçarmos
fora, já faz algum tempo que não saímos.
Raquel estava feliz, mas mesmo assim alguma coisa na voz do marido estava deixando-a inquieta.
O comportamento dele não era o costumeiro, agia como quem está se despedindo. Apesar dos carinhos,
estava sempre com aquele olhar vago, um olhar típico de quem esconde alguma coisa. Entretanto, não
queria quebrar o encanto daquele dia. Ainda podia sentir o calor do corpo do marido envolvendo o seu, a
cada abraço. Ele estava tão carinhoso. O que não faria para eternizar aqueles momentos?
O sol já estava bastante quente àquela hora da manhã, o que fez Juliano optar por uma roupa mais
leve. Vestia uma bermuda bege, deixando à mostra pernas peludas e tão brancas que pareciam nunca
terem tomado sol. E, realmente, isso não estava longe de ser verdade, pois nunca lhe sobrava tempo para
uma praia, um clube. Precisavam tirar umas férias. Quem sabe fazer uma visita de surpresa para Carolina,
ver de perto o que a filha andava fazendo no exterior? Mas Raquel, cautelosa como sempre, aguardava
o momento apropriado para falar com o marido. Podia ter aproveitado a noite anterior, mas estava inse-
gura. Quem sabe Domingo, durante o almoço?
- Papai, por que você está ligando de telefone público? - perguntou Rapha para o pai, durante o
passeio.
A Cidade do Vírus Triste 50

- Esqueci que tinha uma ligação para fazer agora ao meio dia e, talvez, até chegar em casa, a
pessoa já tenha saído.
Era sem dúvida uma desculpa deslavada. O certo é que não queria preocupar a mulher e sabia
que ela andava sondando suas ligações, na expectativa que fosse o pessoal da cidade fantasma, como
falava Raquel a cada vez que tinha que se referir àquela cidade. Achava mesmo que era um fantasma na
vida do marido.
Apesar dos cuidados do pai em esconder as artes que andara fazendo com o filho, o menino voltou
para casa com a boca meio suja de chocolate.
- Andou dando sorvete para ele, né? - disse Raquel, passando a mão na cabeça do filho. - Só
quero ver se vai almoçar.
- Foi só um sorvetinho, mãe, vou almoçar sim, estou morto de fome. Corri, corri- disse e saiu cor-
rendo para o banheiro.
- Raquel, vai precisar de mim agora à tarde? - Perguntou indeciso. - É que preciso saber se posso
me demorar ou não.
- No laboratório? - Ela perguntou, de maneira desconfiada.
- É. Preciso ter uma conversinha com Ernani. Você sabe o quanto ele é teimoso.
- Só tenho que fazer supermercado, mas isso faço sozinha, vá cuidar de suas coisas. O Rapha
me faz companhia. - Beijou a testa do marido e foi colocar a mesa.
Juliano tomou um banho e colocou uma roupa mais formal. Não sabia exatamente como se portar
diante do homenzinho que o aguardava. E, pensando nisso, almoçou meio calado para evitar perguntas.
Não gostava de ficar mentindo o tempo todo.
Ao entrar no carro naquela tarde, sentiu novamente uma dor lhe subindo pelo estômago. Era como
um alerta, um sinal para que estivesse preparado. Todavia, agora já sabia com quem iria falar, conhecera
o médico que a princípio até lhe pareceu bastante simpático. Não entendia porque ainda continuava a
sentir aquela dor. Colocou um CD e foi ouvindo enquanto afastava o carro para ganhar a rua. E, por mais
que tentasse prestar atenção na música, seu pensamento estava longe. De volta ao pesadelo, era assim
que se sentia quando recordava o real motivo de estar indo ao encontro daquele homem.
Marcara o encontro no apartamento do Dr. Richard. No começo não entendera direito, mas o mé-
dico o tranqüilizara, dizendo que assim ele poderia ficar mais à vontade e aproveitaria algumas anotações
ou livros de sua biblioteca particular, se precisassem consultar algo. Existia alguma coisa de peculiar no
comportamento daquele homem que transmitia segurança. Sua voz calma soava como um canto, parecia
relaxante. Era gratificante falar com pessoas que parecem não ter problemas.
A Cidade do Vírus Triste 51

CAPÍTULO 7

O prédio era de apenas oito andares, num bairro de classe média. Não havia nada de extraordi-
nário, além de uma entrada bem arborizada, com uma grama que mais parecia um tapete verde, uma
portaria bastante simples, pelo que pôde ver através do vidro, com um jogo de estofados e uma pequena
escrivaninha, onde ficava sentado o porteiro de bigode ralo e cara amarrada.
Antes de apertar o botão do porteiro eletrônico detém-se, como numa última tentativa de voltar a
uma racionalidade que estava lhe escapando. Que motivo ele teria para estar procurando um especialista
em regressão? Não conseguia uma explicação clara. O certo era que, movido por um impulso muito mais
forte do que desejava, sentia quase sem perceber a pressão do seu dedo na placa - "portaria".
- Gostaria de falar com Dr. Richard.
- É o Dr. Juliano? - perguntou o porteiro.
- Sim, sou eu mesmo - respondeu.
A porta se abriu com um ranger de filme de terror. Não saberia se foi mesmo esse ruído provocado
pela porta ou apenas sua imaginação, mas foi como soou em seus pensamentos conturbados.
- Apartamento 32, terceiro andar, pode subir.
Enquanto tomava o elevador, Juliano pensava em como o psiquiatra era cauteloso. E, por um
momento, não saberia dizer se gostava ou não de toda aquela formalidade. Apertou a campanhia, com
um fio de esperança de que não houvesse ninguém lá dentro. Ele daria a volta, e esqueceria por completo
aquele episódio. Mas a porta abriu-se, trazendo a figura carismática e acolhedora do homem que o aguar-
dava.
- Entre, meu amigo, sinta-se em casa. Estou acabando de preparar um chazinho para nós. Espero
que aprecie!
Ele imaginava um ambiente tão sofisticado quanto o do consultório mas, para sua surpresa, o
apartamento era bastante simples. Dois quartos, sendo que um deles fora transformado numa espécie
de sala íntima, com um sofá e duas poltronas, além da mesinha de centro. A sala era decorada por móveis
antigos e algumas plantas, nada mais. Se tivesse ido primeiro ao apartamento daquele homem, jamais
imaginaria a estrutura requintada que ele mantinha em seu consultório. Olhou para os lados, procurando
certificar-se de que estavam sozinhos e, depois, arriscou uma pergunta um tanto indiscreta.
- O senhor está só?
- Vivo só por uma questão de opção, desde que minha esposa faleceu e meu filho casou-se. Vivo
aqui, só eu e Deus. Além do mais, meu trabalho absorve uma grande parte do meu tempo. Diria mesmo
que quase todo ele...
- Há quanto tempo está sozinho, quero dizer, que está viúvo? Se é que não estou sendo inconve-
niente...
- Não, nada disso, gosto de falar sobre minha vida. Na verdade acho que é uma maneira agradável
de se começar uma conversa, não há nada de inconveniente nisso – disse, tentando demonstrar sua total
destreza para qualquer tipo de assunto.
Precisava conquistar aquele homem assustado à sua frente que procurava, de maneira desorde-
nada, um lugar para colocar as próprias mãos que insistiam em denunciar a sua total insegurança.

- Minha querida Estela me deixou há mais de quinze anos. E quer saber porque a opção de viver
tão só? É porque, na realidade, não me sinto só. Trabalho tanto que não tenho tempo para pensar em
solidão. Depois, meu filho vem me visitar periodicamente. Tenho dois netinhos, olhe só... Levantou-se e
A Cidade do Vírus Triste 52

pegou um porta-retratos onde estavam o filho, a nora e os dois meninos, de uns 10 e 12 anos aproxima-
damente. Juliano recordou sua família, e uma ponta de sentimento o invade. Podia estar em casa, brin-
cando com seu garoto, ao invés de estar ali, fazendo sabe Deus o quê- Um homem só deve casar-se uma
única vez - continuou o psiquiatra - principalmente quando esse casamento trouxe tantos momentos bons
– falava, enquanto buscava duas xícaras e colocava numa pequena mesa. - Acertar um casamento é
muito difícil e um segundo seria quase impossível. Optei por viver sozinho para não correr o risco e, assim,
me dedicar mais ao meu trabalho.
Foi até a cozinha e se deteve lá por alguns segundos, o suficiente para que Juliano desse uma
rápida olhada em volta. Tudo naquela sala parecia mágico: a decoração um tanto fora dos padrões nor-
mais, quadros exóticos sem nenhuma preocupação estética. Era alguma coisa um tanto futurista mas
agradável aos olhos e o aroma de flores, o mesmo que sentira no consultório, fazia com que se sentisse
mais à vontade.
Ele voltou com um bule de porcelana pintado a mão e alguns guardanapos. Juliano pensou em
dizer que odiava chá, mas não quis ser indelicado. Afinal, o homem nem se dera ao trabalho de perguntar
se ele gostava e não custava nada experimentar. Talvez fosse uma maneira de quebrar o gelo, mesmo.
O chá mantinha o mesmo sabor referente ao aroma ambiente. Não conseguia distinguir de que espécie
de planta se tratava, mas como seu conhecimento nesta área era um tanto limitado, resolveu perguntar:
- Hum! Muito bom, do que é feito? Que planta?
O médico riu por entre os dentes, sentindo-se satisfeito.
- É uma especialidade minha, meu amigo, uma mistura de várias ervas, mas pode tomar sem
receio, ele só faz bem - fala limpando o canto da boca com um guardanapo. - O que acha de me falar
sobre seu trabalho, suas pesquisas? Estou à sua inteira disposição.

O dia, que amanhecera com um sol majestoso e o céu limpo, começava a se cobrir de nuvens.
Tudo indicava que uma forte chuva estava a caminho. A televisão informava uma grande tempestade na
cidade do vírus triste, onde chovia ininterruptamente já há dois dias, e a cidade estava um caos.
Rone se preparava para buscar outro palestrante no aeroporto e ficou um tanto preocupado com
aquele tempo horrível. Isso aumentava ainda mais a sua ansiedade em saber como reagiria seu convi-
dado se, por uma eventualidade, ele fosse tão agitado como o Dr. Juliano. Estaria ali um bom motivo para
começar uma série de reclamações. Não tinha nem idéia se o avião iria conseguir pousar e, no fundo,
desejava que não. Ainda se sentia sufocado pela maneira estranha com que o tal médico havia se com-
portado. Entretanto, o visitante atual defendia pontos de vista governamentais, e políticos não se preocu-
pam muito com temperatura ou com o comportamento de pessoas.
Enquanto seguia para o aeroporto, sob aquela chuva que não parava, uma recordação lhe vem à
mente: será que o tal médico queria mesmo defender uma tese? Tudo nele soava de maneira tão vaga.
E se sua intenção não fosse a tese, mas alguma coisa que comprometesse a cidade? Com certeza ele e
sua Angélica estariam envolvidos até o pescoço, pois haviam sido eles os responsáveis pelo envio dos
documentos. Não queria falar com a esposa para que ela não ficasse preocupada. Afinal, fora ela mesma
quem levantara tantas dúvidas que poderiam ter passado despercebidas. Colocar dúvidas em relação ao
verdadeiro fundador da cidade, falar sobre escavações, arqueologia, isso poderia trazer alguns transtor-
nos para os habitantes. Precisava direcionar seu pensamento para o seu novo cliente. Mas, assim que
tivesse oportunidade, ligaria para o Dr. Juliano, inventaria uma desculpa, assim como " o senhor precisa
de mais alguma coisa? Como vai a sua tese?" Era isso. Sentiu-se feliz pela idéia e deixou escapar um riso
de canto, enquanto pegava o bilhete no estacionamento.

Juliano procurou uma posição na poltrona que lhe possibilitasse uma melhor visão do seu ouvinte.
- O senhor já deve ter consultado muitos tipos estranhos, não? – falou, sem saber se era isso
mesmo que queria perguntar.
A Cidade do Vírus Triste 53

- Eu não diria estranhos. Diria que já consultei pessoas que sentiam ter perdido alguma coisa no
passado e tentavam resgatar, para dirimir dúvidas do presente. Esse é o mais comum entre outros casos.
Tenho vários tipos de pacientes, mas principalmente os que me procuram porque sabem que trabalho
com regressão e hipnose.
- Os casos que li ou ouvi falar a respeito são de regressões de alguns anos e até mesmo à fase
embrionária. O senhor já foi mais além...? - Novamente a pergunta saiu sem que refletisse, era como se
ele já não tivesse domínio sobre seu próprio raciocínio.
- Sim. Mas agora entramos em um campo em que não podemos continuar sem admitir a possibili-
dade de que nossa evolução como seres humanos não esteja restrita aos parcos anos que compreendem
nossa existência física.
Desde o primeiro instante em que pusera os olhos no Dr. Juliano, o psiquiatra percebera qual era
a real intenção da visita. Não era simplesmente discutir algum tema acadêmico ou alguma opinião cientí-
fica sobre qualquer assunto. Sabia que a angústia de seu colega era algo mais subjetivo e, se desejasse
entrar no problema, precisava ter certeza de que ele teria a mente aberta para as revelações que se
fariam a partir daquela pergunta.
Juliano olhou para o médico sentindo-se um tanto confuso. Nunca havia parado para pensar da-
quela maneira. Agora era a oportunidade para mostrar-se estritamente racional e não continuar. Mas a
sua intenção já estava tão óbvia que simplesmente baixou os olhos e, com um aceno de cabeça, autorizou
o Dr. Richard a prosseguir.
- Para não nos envolvermos com conceitos místicos ou esotéricos que envolvem o tema, vamos
considerar apenas o fator genético, sua especialidade. Cada um de nós traz em sua cadeia genética não
só a bagagem hereditária, que atribui características físicas às nossas novas gerações, mas também to-
das as vivências que foram assimiladas pelos nossos ancestrais. Considere o pensamento, o raciocínio,
as lembranças, a personalidade, como uma combinação química. Um encadeamento de efeitos bio-elé-
tricos e bio-químicos. Trazendo esta hipótese simplesmente ao plano material é perfeitamente possível
buscarmos estas informações através da sensibilização de áreas restritas do cérebro, onde as técnicas
de relaxamento e hipnose são um bom exemplo para obtermos novamente as combinações destes agen-
tes e “visualizarmos”, assim, coisas acontecidas com um dos elos ancestrais de nossos genes. Lugares
que nunca vimos antes, pessoas que não conhecemos, um tempo que não vivemos. O quanto podemos
retroceder depende do volume das informações que ainda nos restam em nossa estrutura genética. Po-
demos voltar 300, 500 anos atrás, ou ainda mais...
Juliano estava extasiado. Agradecia intimamente pelo colega ter colocado a possibilidade de ma-
neira tão científica, permitindo que a conversa continuasse sem a necessidade de renegar sua formação
racional. Realmente achava sentido naquela simplicidade. Era, sem dúvida, uma hipótese polêmica, mas
perfeitamente possível. Porém, estava saindo de sua linha de raciocínio. Talvez o médico não estivesse
entendendo direito onde ele pretendia chegar. Preciso ser mais claro.
- Como geneticista, trabalho há muitos anos em pesquisas e jamais me preocupei com qualquer
coisa que fuja a essa minha linha científica de raciocínio. Entretanto, nunca tinha aventado esta possibi-
lidade. É realmente muito interessante e intrigante. Mas não é só essa a minha dúvida. Há algum tempo
fui fazer uma palestra numa determinada cidade e alguma coisa lá me chamou bastante a atenção. Acre-
dito que deva ocorrer algum tipo de influência na maneira de vida dos habitantes. Cheguei a imaginar
tratar-se de algum fenômeno paranormal. Nunca havia me preocupado com o fator comportamental de
nenhuma cidade, ou país, e olhe que já viajei por muitos. Mas, desde que estive naquela cidade, fui to-
mado por um sentimento jamais constatado. Não que me lembre.
Pegou a xícara e tomou mais um gole do chá, enquanto o outro apenas o observava, mostrando-
se bastante interessado em sua narrativa.

- Odiei as pessoas, assim que desci no aeroporto. - continuou - Foi como se de repente eu fosse
tomado por um mal-estar, um desconforto. Senti até vontade de voltar no mesmo avião. Isso nunca havia
acontecido. Passei dois dias como se estivesse fora da realidade, tudo me incomodava e tudo que dese-
java era voltar para minha casa, minha cidade. Foi aí então que uma coisa ainda mais bizarra aconteceu.
As mãos estavam trêmulas, o rosto começou a se cobrir por uma camada fina de suor. A respiração
do homem parecia ofegante. Ele levantou-se como para sair daquele estupor.
A Cidade do Vírus Triste 54

- Aceita mais um chá? - perguntou Dr. Richard, sentindo que seu cliente estava a ponto de desfa-
lecer.
- Doutor, não é fácil para mim admitir certas coisas, ainda não sei exatamente como tive a idéia de
procurá-lo. Obviamente li aquela placa iluminada chamando para um congresso, mas daí até eu estar aqui
à sua frente, existe ou deveria existir uma grande distância. Entretanto, fui tomado por uma vontade que
ultrapassava todos os meus conceitos.
- Eu estou compreendendo-o muito bem. Agora me fale o que foi que aconteceu de tão estranho.
- Tudo que eu queria era me livrar daquela gente, daquele lugar. Na volta, entretanto, quando entrei
no avião ainda pensando que jamais retornaria a tal cidade, fui dominado por uma forte sensação de que
uma parte de mim estava ficando ali. Não conseguiria explicar-lhe o tamanho do meu conflito. Eu queria
voltar, fazer parar o avião, passei mal a viagem inteira, com um sentimento saudoso, um nó na garganta.
Senti-me estúpido por não saber entender aquela angústia.
- Vou buscar o seu chá. Vai sentir-se melhor e não se preocupe: não estou aqui para criticá-lo, mas
sim para ajudá-lo, se assim o senhor o desejar.
Enquanto o homenzinho recolhia o bule e ia preparar mais chá, Juliano ficou estarrecido com a
maneira com que estava conseguindo esmiuçar todo aquele sentimento. Seria porque o médico não o
estava colocando em dúvida? O certo era que estava conseguindo desabafar e isso, por si só, já era um
grande alívio.
- A que conclusão o senhor chegou, se é que já chegou a alguma?
- Bem – disse, enquanto pegava a xícara e voltava a sentar-se. - Não creio em fenômenos para-
normais e concluí que o comportamento daquele povo tão calado poderia ser em virtude do clima frio ou
de algum outro tipo de influência do meio ou situação geográfica. Restou-me a hipótese de que isso devia-
se à contaminação por alguma espécie de vírus. Eu o chamei “ vírus da tristeza”. Não porque as pessoas
sejam tristes, mas porque são contidas, distantes, reservadas demais. São extremamente educadas, gen-
tis, mas ao mesmo tempo... elas não são de muita conversa. É isso. Mas veja bem, existem pessoas
vindas de todos os cantos do mundo naquele lugar, e todos agem da mesma forma. Como se fosse uma
religião, uma confraria. Cientificamente se eu conseguisse provar a existência de um vírus, seria uma
grande descoberta, mas daí vem a minha dúvida. Por que algumas pessoas não são contaminadas?
- Espere aí - agora o médico se ajeitou em sua confortável poltrona. Parecia que o seu paciente
estava um tanto confuso e também ele começava a ficar. - Deixe-me ver se entendi: o senhor acredita ter
explorado todas as hipóteses que justifiquem o comportamento de toda uma cidade e o que lhe pareceu
mais plausível foi a contaminação por um vírus, sendo que algumas pessoas são imunes?
- Tem razão, Dr., não me fiz entender. O certo é que as pessoas que não se contaminam não
ficam lá. Eu pesquisei a respeito. Não cheguei a esse resultado aleatoriamente. Passei o dia todo an-
dando, ouvindo conversas. Falei com poucas pessoas, é certo, mas obtive grandes resultados. Existem
pessoas que vão para a tal cidade com intenção de fixar residência. Vão atraídas pela publicidade ou por
melhor oportunidade de trabalho mas, ao chegarem, sentem-se sozinhas, deslocadas. E sempre em vir-
tude desse comportamento que elas não conseguem absorver. Acabam retornando para suas cidades de
origem, dizendo que não conseguiram se habituar ao clima. Outras dizem que se sentiram em outro país,
outro planeta. Algumas até dizem-se veladamente banidas. Enfim, essas pessoas podem ter algum tipo
de anticorpos. Entretanto, outras vão e, em pouco tempo, estão tão familiarizadas que tomam a cidade
como sua e a defendem como se houvessem nascido lá. Sei que parece absurdo, mas existe alguma
coisa estranha.
- O senhor diz que odiou a cidade, a princípio, mas depois sentiu que uma parte sua estava ficando
para trás. Seguindo o seu raciocínio, isto não seria um sintoma de que também já havia contaminado?
- Quando estava lá, eu reneguei tudo: aquele silêncio incômodo, o jeito ensimesmado, todo aquele
comportamento me fez muito mal. Entretanto, hoje, eu acho que a minha cidade é muito barulhenta, que
as pessoas falam demais, sinto saudade das pessoas que não admirei a princípio. É alguma coisa mais
forte que eu. Não me sinto contaminado, mas sinto medo pois, em todos os meus anos de vida, jamais
me vi numa situação dessas. Às vezes penso que preciso provar para o mundo, provar cientificamente,
que existe um vírus que contamina aquela cidade. Por que isso me incomoda tanto? Não tenho com quem
conversar. Doutor, estou precisando de ajuda, penso que estou enlouquecendo.
A Cidade do Vírus Triste 55

- Se a sua justificativa é científica e pode ser comprovada com a identificação de algum tipo de
vírus, por que me procurou?
- Procuro respostas para as minhas dúvidas, não importa onde. Desde que haja uma mínima pos-
sibilidade, vou atrás. Uma senhora comentou, meio sem querer, que as pessoas da referida cidade são
protegidas por algum tipo místico esotérico. Obviamente não acredito nisso. Entretanto, sei que a parap-
sicologia tenta provar cientificamente alguns fenômenos paranormais. Daí a curiosidade: talvez o senhor
possa me auxiliar, dando-me uma pista, quem sabe.
- Eu acredito que em alguns lugares existam energias positivas e, em outros, negativas. Mas veja...
– disse, levantando-se e indo trocar o CD. - Com certeza, não sei se conseguiria explicar-lhe esse fato
do ponto de vista científico.
Juliano continuava inquieto, sua feição mudava a cada resposta obtida do Dr. Richard, cruzava e
descruzava as pernas, passava a mão no rosto, tentando livrar-se de uma fina camada de suor que se
formava, às vezes, em volta da testa. Olhava em volta, como quem deseja uma resposta imediata para
seus enigmas.
- Doutor! Imagine se eu conseguisse captar, através de partículas atmosféricas, um vírus, e pu-
desse reproduzi-lo em laboratório. Com certeza estaria dando um grande passo no avanço da ciência.
Mas essa energia à qual o senhor se refere... sabe, ela me deixa meio impotente. Não sei se está me
entendendo.
- Nada é impossível para um cientista, meu caro, foi o senhor mesmo que disse esta frase. Agora
gostaria muito de saber o que faria, caso descobrisse ou pudesse descobrir esse suposto vírus na cidade?
Iria reproduzi-lo em laboratório e espalhá-lo por outras cidades? Ou procuraria uma cura para os morado-
res?
O médico ficou apalermado. Não havia pensado nesta possibilidade mas, estando de posse de tal
informação, com certeza encontraria várias utilidades para ela. Poderia aperfeiçoá-la para possíveis tra-
tamentos de pessoas depressivas, desequilibradas. Iguais a mim...- pensou.
- Honestamente, não conseguiria responder-lhe agora - disse pensativo - mas com certeza, além
de provar minhas suspeitas, estaríamos de posse de uma grande descoberta para a ciência. E esse é o
meu trabalho: pesquisar sempre qualquer possibilidade.
Parou um pouco, procurando uma resposta coerente para o seu ouvinte, que já se mostrava meio
irritado, pigarreou e continuou:
- Poderia convocar antropólogos, biólogos e uma infinidade de profissionais da área para juntos
chegarmos a um resultado. Todavia, um trabalho dessa natureza exige muito investimento e não sei se
meus colegas acreditariam em algum tipo de resultado positivo, nem mesmo se não colocariam em dúvida
as minhas suspeitas, induzindo-me a esquecer esse episódio. Preciso desvendar esse mistério sozinho,
pelo menos por enquanto.
Dr. Richard tentava mostrar paciente, afinal esse era seu trabalho, mas podia jurar que a intenção
do cientista era outra quando o procurou. Agora, diante de toda a incredulidade em que o médico colocava
qualquer possibilidade que fugisse a sua ciência, estava ficando difícil continuar aquela conversa, meio
sem sentido mesmo para um psiquiatra. Com certeza, o próximo passo, dentro de sua filosofia, seria
mandar aquele homem internar-se para a cura de um problema de stress muito grande. Mas tentou ser
cauteloso:
- O senhor já tentou ao menos falar com seus colegas sobre o assunto? – perguntou, encarando
o outro de frente.
- Não, e vou explicar-lhe o porquê. Às vezes, acho que tudo não passa de imaginação minha. Essa
angústia que venho sentindo desde que estive naquele lugar está me enlouquecendo. Não tenho uma
resposta científica para esse sintoma. Geralmente, quando estou pesquisando algo raro, fico ansioso pe-
los resultados. Mas desta vez é diferente. Às vezes me flagro pensando que ainda estou lá. É como já lhe
falei, parece que uma parte minha ficou para trás. Não consigo trabalhar direito, passo todo o meu tempo
só pensando nisso. Buscando uma fórmula de me livrar dessa sensação estranha. Se acreditasse em
bruxaria, diria que fui enfeitiçado.
Agora o psiquiatra achara uma brecha e iria bater de frente com aquele homem confuso. Não sabia
qual seria a reação, mas já estava cansado demais para continuar.
A Cidade do Vírus Triste 56

- Bem! – falou, ajeitando-se na poltrona. - Vou fazer-lhe uma pergunta um tanto direta, apesar de
saber de antemão o que vai responder, mas é a única maneira que tenho de ajudá-lo - fixou o olhar bem
entre os olhos do ouvinte e disse:
- Acredita na possibilidade de já ter estado lá antes? Quero dizer, em vidas passadas?
O homem retribuiu o olhar com firmeza. Parecia outra pessoa. Sua feição calma tornou-se dura. O
sorriso discreto desapareceu dos lábios, dando lugar a uma expressão de incredulidade.
- Desculpe Dr., mas sou um cientista. Para acreditar numa coisa dessas, teria que acreditar tam-
bém em reencarnação. E isso está completamente fora de qualquer comprovação científica. Só acredito
no que posso provar. Entendo onde o senhor pretende chegar. Sinto muito.
- Entretanto, não está conseguindo provar seus sentimentos - falou o médico, mostrando-se ofen-
dido.
- Quanto a isso, o senhor tem razão, mas estou procurando respostas e vou encontrá-las - parou
subitamente, olhando para o médico e disse: - O senhor acredita que já estive lá antes?
- Talvez! Não posso afirmar-lhe nada, mas essa sua angústia pode ter alguma relação com um
passado. Com o senhor, ou algum dos seus ancestrais que tiveram ligações com o lugar. Tudo é possível
e nem tudo se explica através da ciência.
- Se acreditar nisso, Doutor, pode ter certeza que estou realmente precisando de ajuda psiquiátrica.
Não consigo nem mesmo imaginar a hipótese. Não que esteja colocando em dúvida o seu trabalho, é que
para mim não faz sentido. Sei que estou angustiado, mas pensando bem... Acho que vou me dar um
tempo.
- O senhor é quem sabe. Estarei aqui, caso mude de idéia.
Juliano agradeceu a boa vontade do velho senhor e levantou-se. A cabeça parecia rodar em torno
do corpo, a dor no peito havia aumentado consideravelmente. Parado diante da figura carismática da-
quele homem franzino e de voz calma, deixoua aflorar um pensamento quase inesperado. Era, sem dú-
vida, um pensamento absurdo mas, por outro lado, não custava nada perguntar. Precisava descobrir um
vírus e sua dificuldade estava em como viabilizar tal descoberta, por onde começar. Precisava de uma
indicação, um caminho, uma pista, não podia voltar para casa sem aquela resposta que, por algum motivo,
acreditou que o médico teria.
- Doutor, se eu fizer uma regressão, o senhor acredita que vou voltar à tal cidade? Quero dizer,
existe a possibilidade de descobrir o que realmente existe?
- Se o senhor já esteve lá antes? É possível, sim, apesar de não poder garantir que consiga
resposta para todas as suas dúvidas. Assim como o senhor, trabalhamos com possibilidades.
- Quanto tempo demora uma regressão?
O médico olhou, meio incrédulo:
- Depende... Uma hora, mais ou menos. Mudou de idéia? – perguntou, satisfeito.
Juliano segurou o queixo com a palma da mão e pensou: sabia que não iria descansar enquanto
não resolvesse aquele quebra-cabeças. Não acreditava ter estado lá antes. Entretanto, recordou que mui-
tos cientistas tomavam suas próprias fórmulas como cobaias, antes mesmo de ter certeza absoluta do
resultado. Tudo para provar suas teorias, sem colocar em risco os incrédulos. Porque ele também não
podia ultrapassar alguns limites? Iria fazer a regressão, em nome da ciência.
- Muito bem, doutor. Pode me preparar, vou fazer a regressão. E não se preocupe, sei o que estou
fazendo.
- Doutor! Isso não é uma brincadeira, é coisa séria. Tem que estar preparado, tem que acreditar.
E mesmo assim, pode não acontecer nada. Sei o que o senhor pretende, admiro a sua coragem, mas...
- Já disse, não se preocupe. Caso não aconteça nada, não falamos mais nisto, certo? Preciso
tentar, Doutor. Qualquer coisa. Não importa. Só mais uma pergunta, por favor – falava, tentando mostrar-
se seguro - Quantos anos posso voltar?
- Não sei, o senhor é que vai me dizer. Se já esteve no lugar, voltará exatamente àquela época. -
Está com medo? - perguntou, com um leve sorriso.
- Apavorado, pode acreditar! Mas vou até o fim.
Dr. Richard pensava no que levaria um homem, respeitado em sua área de pesquisas, aparente-
mente céptico, em busca de alguma coisa tão além de sua realidade. Seria mesmo como ele se referira,
A Cidade do Vírus Triste 57

uma descoberta científica, ou outro sentimento que ele não estava percebendo? O homem suava sem
parar, andava em volta da sala, agoniado.
- Muito bem, Dr. Juliano – disse, pegando no braço do amigo. - Tem mais um detalhe, talvez o
mais importante: o senhor precisa estar bem calmo. Ansioso desse jeito é impossível. Precisa acreditar,
precisa realmente querer e, principalmente, precisa estar bem relaxado. Caso contrário, estaríamos per-
dendo tempo e nos desgastando inutilmente.
O coração de Juliano estava tão acelerado, que ele imaginava não suportar por mais tempo aquela
ansiedade. Uma parte dele pedia para parar imediatamente com aquela estupidez, mas a outra estava
inerte e, essa, tornava-se cada vez mais forte.
- Não costumo fazer esse tipo de trabalho em minha casa. Pode até parecer estranho, mas eu diria
que é anti-ético. No entanto, vou abrir uma exceção para o senhor.
- Eu fico-lhe muito grato, Doutor- disse, abaixando a cabeça.
Dr. Richard o levou para outro ambiente. Na pequena sala improvisada, a luz era quase azul e o
perfume, ainda mais agradável. Sentado em uma das poltronas, deixou descansar os braços e, como que
enlevado pelo ritmo suave da música ao fundo, sincronizou a respiração com os delicados acordes e foi,
cada vez mais, relaxando. Ele respirou fundo, enquanto era observado pelo zeloso médico que, da pol-
trona ao lado, ficou admirado por não precisar induzir também esta parte.
O médico, após certificar-se de que o seu paciente já estava calmo o suficiente para dar início,
começou com a indução. E, para seu total espanto, o homem “apagou” de imediato, fazendo com que Dr.
Richard se sentisse ainda mais surpreso. Aquele homem aflito não poderia ter se desligado tão facilmente.
Com certeza ele estava disposto mesmo a tal experiência. Com a voz suave, perguntou:
- Em que ano você está?
- 1630.
O médico ajeitou-se na poltrona. Onde estaria o homem, afinal?
- Sabe onde está?
- Alemanha, estou... nossa, mas o que é isso?
Sem dúvida, as suspeitas do médico estavam certas. Ao invés dele voltar para a cidade do vírus
triste, estava do outro lado do continente. E agora?
- O que está acontecendo? Pode ver?
- Meu pai! Ele quer que eu faça uma viagem... uma viagem para um país do novo continente. Não
entendo direito... preciso proteger alguma coisa! É numa região ainda selvagem, não existe uma cidade...
é uma espécie de aldeia indígena. Um lugar mágico. Estou com medo.
- O que você tem que proteger?
Ele está aflito. - Alguma coisa que não pode ser violada. Há garimpeiros nesse lugar, à procura de
ouro, e poderão encontrá-la. É algo muito especial para cair em mãos gananciosas. É um... Um... Meus
Deus! - Ele aumentou o tom da voz e se debateu, suando muito.
- Está tudo bem. Acalme-se! Você está seguro. Está só observando. Vamos, o que é que você
tem que proteger?
- É um Cinturão de Cristal. Eles não podem descobri-lo porque é o Cinturão que protege o lugar.
Tenho que impedir, nem que para isso tenha que dar minha vida.
- Mas por que você?
- Porque meu pai foi o escolhido para essa tarefa, mas está velho e não tem mais saúde. Nosso
parente, de um dos países da costa, ao morrer defendendo esta causa, passou-lhe automaticamente a
missão. Agora eu terei que cumpri-la. Está muito frio, estou com muito medo.
- Onde está esse cristal? - perguntou o médico, curioso.
- Não sei direito, é subterrâneo. Deve ser perto do mar, mas existe um mapa orientando. Preciso
descobrir o lugar exato para, de algum modo, mantê-lo velado.

Juliano foi narrando que, após uma certa resistência, acabou por obedecer à vontade do pai e
rumou para o tal lugar. Era alguma coisa ainda muito precária. Havia muitos garimpeiros, de vários cantos
da Europa, pessoas atrás de riquezas e de terras.
A Cidade do Vírus Triste 58

Desceu num porto e, de posse do mapa, seguiu os garimpeiros, tentando não chamar atenção.
Apresentava-se como um caça tesouros e fora informado da estranha hostilidade dos índios, que ataca-
vam alguns forasteiros mas conviviam pacificamente com outros tantos. Sentia-se demasiadamente inse-
guro principalmente porque, na realidade, não era nenhum explorador mas, sim, o guardião e protetor de
um segredo.
- Aquele lugar vai ser uma grande metrópole dentro de poucas centenas de anos. Será um lugar
cobiçado por muitas raças, mas estará protegido enquanto o cinturão de cristal se mantiver inviolado -
falava o pai. - As pessoas do lugar serão mais cautelosas, mais voltadas para a natureza e, por se sentirem
protegidas, num lugar de grande energia, tenderão a um comportamento mais reservado. O cristal fará
com que, mesmo com o aumento de imigrantes, a paz reine no lugar mas, para tanto, nunca, nunca
mesmo, ninguém poderá saber o que os protege. A violação desse cristal provocará desordem, catástrofes
e as pessoas estarão expostas a uma série de desgraças. O Homem é muito ambicioso e não poupará
esforço para destruir o que a natureza tenta proteger. Você deve passar isso para seus filhos e estes para
os filhos deles e, por séculos, isso deve ficar sob nossa proteção. E não se esqueça, meu filho, a violação
desse cinturão de cristal será a destruição de todo um povo.
Prosseguindo, Juliano conta que conheceu o Sr. Fulano, um homem que, pelo que soube, viera
para esse lugar fugindo de algum tipo de perseguição. Não parecia saber nada a respeito do Cinturão e
admirou-se do amor que o outro demonstrava ter por toda aquela região. Uma emboscada foi preparada
pelos perseguidores deste fidalgo e, durante uma de suas expedições em busca do local sagrado, foi
atingido por uma flecha envenenada lançada por um homem branco. Foi confundido e acabou morrendo
no lugar do Sr. Fulano, sem saber o local e sem passar a continuidade da missão para nenhum outro.
Juliano estava ofegante, enquanto o seu guia mal conseguia articular uma palavra. Fora tomado
de um espanto tamanho que parecia inerte em sua poltrona. Estava totalmente atônito com tudo que
acabara de ouvir. E não sabia se trazia seu paciente de volta, consciente do acontecido, ou não.
Era uma grande aflição. Se o paciente voltasse consciente, iria com certeza querer recuperar o
tempo perdido. O lugar citado era, provavelmente, a cidade que tanto inquietava o Dr. Juliano, mas agora
nada mais poderia ser feito. Sua angústia poderia ser ainda maior e, por outro lado, se ele não soubesse
de nada, também continuaria sofrendo. Uma coisa, entretanto, confortava o psiquiatra: se o cristal não
tivesse sido violado até a presente data, quem iria suspeitar que, no centro daquela cidade, existia algo
tão poderoso? Somente ele e Juliano sabiam e, com certeza, morreriam com o segredo. Pensando nisso
e ansioso em falar sobre o assunto com alguém, fez com que Juliano voltasse consciente.
O homem foi trazido de volta completamente pálido, abatido e com grandes olheiras, que se ha-
viam formado em questão de minutos. Ainda sentado, e com a cabeça baixa entre as mãos, ele ficou
algum tempo calado, sob a observação do médico, que o admirava com certa melancolia - O que dizer
agora? pensava.
- Dr. Juliano!
- O que foi que eu fiz? - disse Juliano, ainda com a cabeça entre as mãos.- O que é que vou fazer
agora? Me diga, Doutor!
- Estou todo arrepiado - disse o parapsicólogo. - Jamais, em toda a minha carreira, participei de
algo tão... tão... não sei, meu amigo, estou pasmo. E olhe que já vi coisas de que se duvidaria.
- Nunca aceitei convites para ir àquela cidade, isso desde os meus dezoito anos. Era como se
alguma coisa me impedisse. Agora eu sei, e daria tudo para não saber, mas fui eu mesmo que insisti.
Preciso resolver, aqui dentro de minha cabeça, o que fazer. – Falou, enquanto batia seguidamente na
testa com a palma da mão.
O pai de Juliano era um deputado federal de renome nacional. Sempre estava viajando de um lado
para outro em todo o país e, como tivera apenas um filho, acalentava sonhos de que ele seguisse a
carreira política. Por isso, vez por outra, convidava o filho para viajar. Recordava agora, nitidamente, as
viagens que fizera com o pai. Era boa toda aquela mordomia mas, sempre que a viagem era para aquela
cidade, ele inventava uma desculpa. Nunca se dera conta disso, até que fora convidado para prestar
vestibular. Sentira naquela época um certo repúdio pelo convite pois, mesmo sem perceber, tinha receio
do lugar. Não precisava mais fugir, estava tudo esclarecido agora. Não existia um vírus, mas alguma coisa
ainda maior, alguma coisa que ele devia ter protegido e pela qual ainda se sentia responsável.
A Cidade do Vírus Triste 59

Por alguns minutos, repassou tudo que viu, as pessoas, o clima, a cidade. Ainda eram um tanto
conservadores. Isso queria dizer que ainda estavam sendo protegidos e, por isso, a tristeza. Claro, mesmo
sem saber, as pessoas deviam ter um tipo de pressentimento com relação ao que as protegia. Era um
sentimento coletivo da gente que morava sob o cinturão de cristal. Que coisa mais absurda! Com quem
poderia falar sobre aquilo?
- Doutor, não se martirize tanto - disse o médico, diante da figura gelada do seu colega. - Volte
para sua casa, para sua vida, vá ver sua família e esqueça esse episódio. Imagine: se ninguém violou
esse tesouro até hoje, não irão fazer mais nada. Parece-me que, além de nós dois, ninguém mais sabe
disso. O fato do senhor não ter conseguido passar essa informação para ninguém, na época, pode até ser
uma coisa boa. A cidade continua sobre a proteção do cristal e, hoje, quem iria escavar uma cidade atrás
de alguma coisa que nem sabe que existe? Pense bem. Agora o senhor sabe que não há nada que possa
servir-lhe de descoberta para ciência. O que existe é algo que o senhor foi proibido de revelar. E, como
profissional, também estou impedido dessa revelação. O assunto está resolvido. O senhor pode pegar
sua família e voltar ao lugar, lugar em relação ao qual o senhor teve ou tem uma grande responsabilidade.
Faça isso e depois me conte. Vá ao centro da cidade e imagine-se a única pessoa a saber do segredo
embaixo daquele solo. Com certeza isso lhe fará bem.
Juliano soltou um sorriso meio encabulado mas, a princípio, gostou da proposta e era exatamente
o que iria fazer. Já não via a hora de chegar em casa e falar com Raquel. Precisava convencê-la a fazer
a tal viagem, sem contar o verdadeiro motivo. Aquele segredo, com certeza, ficaria guardado para sempre.
Despediu-se do médico ainda sentindo-se um tanto fragilizado, mas precisava chegar logo em
casa e já estava bastante tarde.
A Cidade do Vírus Triste 60

CAPÍTULO 8

O trânsito, bem mais calmo a essa hora, fez com que ele pudesse ir repassando todas as sensa-
ções que vivera, aquelas poucas horas no espaço aconchegante do Dr. Richard. E com certeza o médico
tinha razão, não podia fazer mais nada, apenas voltar e ver com seus próprios olhos o que outras pessoas
jamais sonhavam existir.
De repente um pensamento vago lhe vem à mente. Será que tudo aquilo havia realmente existido,
ou fora apenas um sonho? Não, era real demais para ser um sonho. Vira com nitidez cada lugar, as
pessoas, as roupas. Bastava fechar os olhos para rever tudo novamente. Até as feições do seu pai an-
cestral, usando um tipo de boina e meio magro, de olhos muito claros. Usava um discreto bigode amarelo
da cor do cabelo, tinha um ar muito sério. E a embarcação! Com certeza iria visitar o museu da cidade.
Caso eles tivessem alguma relíquia da época, ele a reconheceria. Estava feliz.
- Juliano, como você demorou! - disse a esposa, olhando para a figura amassada do marido. -
Estava preocupada.
- Estava precisando andar um pouco. Trouxe uns bombons para o Rapha. Onde ele está?
- No parque, andando de bicicleta. Você está bem? Parece tão abatido.
- Estou ótimo e vou ficar melhor, caso você concorde com um convite que tenho para lhe fazer.
- Convite, é? Vamos a ele.
- Segunda feira tenho algumas pendências para resolver no laboratório e o Rapha tem alguns dias
de recesso no colégio. Antes daquela viagem para a Europa, gostaria de voltar à cidade do cinturão.
- Onde?
- Desculpe, estou confundindo tudo. Estava falando de cinturão agora pouco com André e... aquela
cidade! A cidade do vírus triste. - Ela torceu o nariz - É só uma brincadeirinha, amor. Prometo que depois
nunca mais voltarei lá e nem falarei sobre o assunto. Só não queria visitar Carolina ainda com essa cisma
boba. Me acompanha?
- Se é assim... quando? - perguntou, mais aliviada do que curiosa.
- Tão logo resolva algumas pendências no laboratório. Mas antes que você imagine, estaremos
viajando.
- Desde que você esqueça esse assunto, eu vou. Faço qualquer coisa para tê-lo de volta. Não
suporto mais essa sua ausência constante.
Domingo. A família foi a um restaurante. Juliano escolheu um bem retirado, estava gostando de
dirigir naquela cidade. Mais calmo e sentindo-se aliviado, parecia que todo aquele tormento havia se dis-
sipado por completo de sua mente. No final da tarde foramvão até um cinema, coisa que há muito tempo
não faziam. Tudo parecia ter voltado ao normal.
Segunda-feira levantou-se bem cedo. Tinha pressa de resolver as coisas mas, ao chegar ao seu
laboratório, Ernani já estava a postos.
- Ernani! Caiu da cama? Pensei que seria o primeiro a chegar...
- Você não ouviu a mensagem em sua secretária? – disse, mostrando-se espantado. - Achei que
fosse esse o motivo de estar aqui a esta hora, também.
- Na realidade, não. Engraçado, sempre ouço, mas ontem eu estava desligado do mundo, preci-
sava dar atenção a minha família, e depois... o que houve?
- Já vai saber, mas esteja preparado para a bomba.
A Cidade do Vírus Triste 61

Uma reunião fora marcada para as 8:30h na sala da diretoria, no primeiro andar, o único espaço
que não fora atingido pela tragédia. Nestor, diretor responsável pela equipe, era um homem frio e insen-
sível, dotado de uma couraça impenetrável e um temperamento instável. Sempre que o assunto era com
ele, alguma coisa muito grave estava para acontecer. Juliano demonstrava uma estranha calma.
- Senhores! Como todos já sabem, ficamos sem o nosso espaço físico, pelo menos por um bom
tempo. Não podemos responsabilizar ninguém pelo ocorrido, entretanto, todos vamos sofrer as conse-
qüências desta tragédia. A nossa verba, que já era pouca, tende a ficar ainda mais escassa. Só nos resta
arregaçar as mangas e tentar uma alternativa viável para todos. Eu sugiro que cada um de vocês tire
umas férias forçadas e, neste meio tempo, procurem observar, analisar, buscar, fazer de tudo para retor-
narem com alguma coisa realmente extraordinária. Precisamos de uma descoberta faraônica. Algo que
mexa com as bases que nos viabilizam a realização de pesquisas. Espero poder contar com a colabora-
ção de vocês nesse sentido. Sei que todos trabalham até vinte quatro horas por dia, mas o certo é que há
muito tempo não conseguimos desenvolver alguma coisa realmente grande. Precisamos de nosso labo-
ratório e precisamos, também, mostrar que o merecemos.
Encerrou a reunião com aquele ar arrogante, sem nem mesmo perguntar se alguém tinha alguma
pergunta a fazer. Era próprio dele esse comportamento de superioridade. O mais viável era não dar im-
portância.
Juliano saiu da sala com a cabeça baixa. Olhava para as paredes meio escuras, devido aos resí-
duos do incêndio e pensava quanto tempo demoraria para que tudo voltasse ao normal. “Uma descoberta
faraônica”, foi isso que Nestor frisou. Um pensamento começou a rondar sua mente. Podia ir a uma loja
de antigüidades, comprar um pedaço de cristal, e tentar captar algum tipo de energia. Se as pessoas de
toda uma cidade podiam ser influenciadas por essa energia, não seria difícil captá-la. De volta ao começo..
Andando entre os corredores entulhados de tranqueiras, cadeira caídas, armários recostados e
algumas outras coisas que haviam sobrado do incêndio, ele ia divagando. Se conseguisse provar algum
tipo energético em algum cristal, poderia também comentar com os colegas sobre o tal cinturão. Com
certeza essa seria uma descoberta e tanto. Sem contar que o Cinturão iria envolver uma infinidade de
profissionais, arqueólogos, antropólogos, biólogos, pesquisadores. Muita gente seria beneficiada com
isso. Sabia que para tanto teria que enfrentar alguns entraves políticos mas, quando se está de posse de
uma informação dessas, com certeza consegue-se bons resultados. Não seria fácil, sabia, mas não cus-
tava nada tentar.
- O que vamos fazer agora? - perguntou Ernani, enquanto Juliano se dirigia para o carro.
- Me aguarde! Acho que já tenho uma solução. Só preciso amadurecer um pouco mais a idéia.
- Eu estou nessa? – perguntou, eufórico, o amigo.
- Obviamente que sim, mas antes tenho que tomar algumas providências.
Juliano entrou no carro com um único pensamento: teria que encontrar um cristal, mas um cristal
legítimo, não podia falhar. Poderia volta a procurar o Dr. Richard, falar sobre o seu interesse na energia
do cristal. Claro! Não seria difícil conseguir sua atenção. Entretanto, o velho era esperto, poderia também
descobrir qual sua verdadeira intenção, e não pretendia decepcioná-lo. Precisava antes de tudo respeitar
o trabalho e a crendice do homem que o atendera com tanto carinho.
Balançou a cabeça, procurando uma saída. Mesmo que descobrisse alguma coisa, não poderia
jamais violar o tal cinturão, precisava protegê-lo. Seria isso uma verdade? Tudo aquilo podia ser apenas
superstição e crendice. Se havia um cinturão de cristal, capaz de proteger uma cidade, com certeza este
poderia também ser uma nova fonte de energia ou, na pior das hipóteses, a melhor maneira de recuperar
seu prestígio e seu laboratório. Não pensava mais sobre a responsabilidade que tinha sobre aquela reve-
lação. De repente, a única coisa que realmente lhe importava era mostrar que era capaz, que era todo
orgulho e fixação por descobrir enigmas. O que Dr. Richard acharia de sua atitude agora? Com certeza
iria sofrer, pois para ele aquilo era alguma coisa realmente sagrada. Poderia, também, colocá-lo numa
camisa de força, suas credenciais lhe davam esse direito. E quando chegasse à clinica diria: “Esse cien-
tista maluco pretende destruir uma cidade inteira, à procura de um cinturão de cristal que ele viu num
sonho. E o pior, diz que fui eu quem o induziu a sonhar.” Riu por alguns minutos, imaginando a cena.
Porém o Dr. Richard jamais saberia de nada.
Um pensamento, entretanto, penetrava como um aviso: Você não sabe se tudo não passou de um sonho
mesmo.
A Cidade do Vírus Triste 62

Mas ele estava determinado, não queria pensar nas conseqüências, não acreditava nelas. Acredi-
tava, sim, que aquela informação caíra em suas mãos e não iria desperdiçá-la. Manteria a viagem, como
já havia prometido a Raquel, mas sua intenção seria não apenas verificar onde realmente poderia estar
o cinturão e, sim, sondar alguma maneira de investigar o tal enigma sem chamar atenção, pelo menos até
estar de posse dos dados necessários, referentes à sua descoberta, para torná-la pública. Uma coisa,
porém, estava lhe escapando: como falaria da descoberta? Falaria sobre a regressão? Ninguém acredi-
taria. Teve um pressentimento? Também não. A única solução seria buscar, nos documentos, informações
sobre objetos arqueológicos encontrados e levantaria a possibilidade de haver... O quê? Um cinturão de
cristal? Seria internado como louco, na clínica do Dr. Richard. Mas, antes de tudo, precisava fazer o teste
com qualquer cristal. Dependendo do resultado, pensaria em como fazer-se entender.
De volta para casa, passou numa loja de antigüidades, à procura do cristal.
- Senhorita? – chamou, meio encabulado, para a moça de roupa indiana e cabelos cacheados. -
Gostaria de comprar uma pedra de cristal, preciso fazer uma experiência.
A moça encarou-o meio incrédula, pois o homem não tinha cara de quem faz experiências místicas
mas... era um cliente e precisava ser bem atendido.
- Acompanhe-me, por favor - disse, enquanto dirigia o médico por um corredor estreito cheio de
tranqueira. - Aqui está, existem de vários tamanhos, pode escolher à vontade.
Uma pequena pedra, lá no meio chamou-lhe a atenção. Brilhava com tanta intensidade que parecia
ofuscar os olhos. Sem dúvida era essa, mesmo.
- Esta aqui está ótima – falou, segurando a pedra, admirando-a. - Quanto é?
Após acertar com a moça, pegou o objeto e rumou para casa. Estava ansioso para saber que
providência tomar para obter a tão sonhada resposta. Durante o resto dia, falou muito pouco com Ra-
quel, somente respondendo ao que ela perguntava. Estava o tempo todo calado, trancado no escritório,
observando a pedra e fazendo anotações no computador. Precisava do laboratório e da ajuda de um
especialista para tentar medir a tal energia.
Repassou todas as anotações que fizera desde a sua viagem para a cidade do vírus. As impres-
sões que teve, as perguntas que fez, as sensações estranhas e estúpidas. A suspeita do vírus e, por fim,
a regressão e o cinturão de cristal.
Deteve-se um pouco, lendo tudo novamente, depois gravou as informações num disquete, no qual
colocou o nome de “A CIDADE DO VÍRUS TRISTE”. Colocou o disquete ao lado do computador e recos-
tou-se na poltrona, ainda meio debilitado.
Após algum tempo, que nem vira passar, desligou o aparelho e foi jantar, sob os convites insisten-
tes da esposa. No entanto, permaneceu calado, não reagia nem com as brincadeiras do filho. Preferiu não
dar detalhes à mulher sobre o laboratório, uma vez que tinha certeza que conseguiria resolver todo aquele
impasse antes mesmo dela saber a verdade. Agia como se tudo já estivesse resolvido em sua cabeça. À
noite, custou a pegar no sono, pois estava aflito com tantos pensamentos. Aos poucos, sentiu uma espécie
de tontura, misturada com uma sonolência um tanto conturbada.
Um sonho levou-o de volta ao passado. Sentia a presença forte de alguém que tentava falar-lhe
alguma coisa. Era quase possível perceber a aproximação de um homem, uma espécie de vulto, não
distinguia direito.
“- Você não deve violar aquele lugar. Foi escolhido para protegê-lo, não deixe que a ambição o
leve a fazer coisas de que mais tarde pode se arrepender. Sabe do seu compromisso. Sabe que não
poderá contar isso a ninguém. Não percebe o que está querendo fazer? Nunca ninguém vai acreditar em
sua história! O máximo que irá conseguir é provocar um grande mal para todos os moradores pois, com
certeza, alguém irá conseguir, mais cedo ou mais tarde, encontrar o que deveria ficar adormecido para
sempre. E, quando isso acontecer, você se sentirá o único culpado. Esqueça isso enquanto é tempo.
- Não posso! Preciso reconstruir o laboratório, preciso mostrar que tenho capacidade para ir além
do que imaginam os incrédulos. Darei um jeito. Depois, não pedi para saber dessa história, sou um cien-
tista, não um mago. Tenho outros planos para aquele lugar. Quanta coisa poderá ser descoberta através
desse cristal... E porque só aquela cidade tem que ser protegida, não acha egoísmo? Pretendo descobrir
coisas que sejam de proveito para toda a humanidade, não apenas para uma cidadezinha isolada.
A Cidade do Vírus Triste 63

- Você não tem o menor respeito pela missão que lhe foi confiada. Sua ambição profissional está
acima de tudo e todos. Não tem intenção de ajudar toda a humanidade, precisa tão somente provar, para
si mesmo, que é o melhor!”
Toda a lembrança de sua regressão agora se misturava ao sonho. A dúvida em aceitar a incum-
bência do pai, o medo de ser descoberto, a procura desesperada mas, principalmente, o sentimento de
impotência que tivera antes de morrer pois não teria como prosseguir sua missão e ninguém o substitui-
ria... O sonho parecia real e ele... sentiu uma forte pontada no peito, virou-se para o outro lado, estava
com a respiração tão pesada que Raquel começou a se preocupar. Acordara com a inquietação do marido,
que parecia estar vivendo um pesadelo. Não sabia se o acordava ou não. Ficou por alguns minutos
observando, mas ele parece novamente tranqüilo e ela voltou a dormir.
Nesse momento, uma outra figura apareceu ao lado de Juliano. Ele agora conseguia distinguir as
feições de um velho senhor que, por um momento, lembrou-lhe o Dr. Richard. Era um indígena, de olhar
sereno e um semblante resplandecente, como que iluminado, ornado por um sorriso paternal.
“- Você não pode e não deve chegar até lá! Depois do seu desaparecimento, como o último guar-
dião, este velho índio indicou a localização do cinturão para os imigrantes, como sendo o local apropriado
para a fundação de uma cidade. E eles a construíram sem saber do segredo. O único meio de chegar até
ele seria destruir a cidade toda...”
O ar arrogante e prepotente com que falava e toda a dor foram substituídos por lágrimas. Sabia
que, mesmo que fosse a última possibilidade, não provocaria a destruição de mais nada. Sentia-se ele
próprio destruído. Agora tudo o que queria era simplesmente ver o Cinturão. Saber que não era um sonho,
crer em algo mais que sua razão.
“- Deixe-me encontrá-lo, por Deus... Eu só quero vê-lo...
- Então serei eu que terei de acompanhá-lo. Vou mostrar-lhe o caminho. Existe porém uma condi-
ção: não pode ir até lá em seu corpo físico. Está realmente disposto?
- Como assim?
- A única maneira de chegar onde está o cinturão de cristal é em espírito. Você foi, uma vez,
escolhido para protegê-lo e tem o direito de saber onde está. Quando sentir a sua energia, talvez isso
abra o seu coração.”
Juliano aceitou fazer a viagem espiritual. Afinal, já tinha quebrado outros conceitos quando aceitara
fazer uma regressão. não custava nada, mais uma aventura. A princípio pareceu-lhe bizarro tudo aquilo,
mas a curiosidade ultrapassava todos os valores científicos. O ancião entregou-lhe a ponta de um cordão
dourado e informou que devia segurar firme, pois a outra ponta era o caminho de volta, era o que o
manteria ligado à sua existência e a tudo que ela representava.
A figura, agora quase transparente à sua frente, pegou na mão do médico e o levou. Como que
para se certificar que não era um sonho comum, Juliano olhou para trás e viu, sem muita surpresa, ele
próprio deitado ao lado da esposa. Apertou mais firme o cordão e sentiu, na outra extremidade, a suavi-
dade da presença do velho. Era como um guia que o protegeria dos maiores perigos. Em seguida, notou
um grande clarão e sorriu debilmente diante da imagem que se descortinava à sua frente. Imaginava que
o tal cinturão fosse de cristal bruto e, no entanto, estava frente a um brilho jamais visto. Era realmente
uma enorme estrutura de cristal que brilhava com tanta intensidade que seria capaz de cegar uma pessoa
que não estivesse preparada. Entendia agora! Não conseguia parar de sorrir diante daquela maravilha e
uma enorme sensação de paz lhe acudiu à alma, como se estivesse flutuando em volta do lugar. Sentiu
dentro de si toda a energia que emanava daquela estrutura e agora entendia o porquê de se preservar
aquele segredo. Não era apenas aquela cidade que estava sob proteção mas ainda outras, em lugares
diferentes. O cristal parecia comunicar-se com outras fontes energéticas mantendo o equilíbrio, não só
daquele lugar, mas de todo o planeta.
Num impulso de êxtase e arrependimento por ter apenas pensado em se aproveitar do conheci-
mento que lhe fora gratuitamente ofertado decidiu, sem nenhuma dúvida no coração, que deveria conti-
nuar a sua missão. Iria tornar-se novamente o guardião do cristal e impedir que fosse descoberto ou
destruído. Olhou mais uma vez para o velho índio e, com o mesmo sorriso iluminado, soltou o cordão.
A Cidade do Vírus Triste 64

EPÍLOGO

- Juliano! Não vai trabalhar hoje? - pergunta Raquel, tentando tirar o marido do sono profundo em
que parecia estar.
Na segunda vez que voltou ao quarto, ela resolveu tirar-lhe as cobertas. Sabia que o marido cus-
tara a dormir, talvez por isso ainda não houvesse acordado, mas já passavam das 9:00h. Puxou a coberta
bem devagar. Não queria assustá-lo. Mas ele parecia inerte, não se mexia, não respirava. Ela deu um
pulo por sobre o corpo quase gelado do homem, tentando sentir-lhe o pulso, o coração, mas nada. Juliano
estava morto.
Raquel saiu gritando como louca, acordando Rapha e quase todos os vizinhos. O médico foi cha-
mado e o laudo indicou que Juliano morrera de uma parada cardíaca. Nada mais podia ser feito.
Ernani, ao saber a triste notícia, seguiu para a casa do colega. Pretendia dar um pouco de apoio
para a família, ou pelo menos era isso que queria demostrar. No entanto, sua real intenção nada mais era
do que vasculhar nos arquivos de Juliano em busca das informações que ele havia gravado, e tentar
recuperar o que pudesse.
- Raquel, mal posso acreditar - falou Ernani, mostrando-se espantado. - Estávamos juntos ontem
pela manhã, ele me pareceu tão disposto! Inclusive me falou sobre uns trabalhos que teríamos que resol-
ver juntos. Marcamos para hoje, aqui em sua casa, uma pequena reunião. Sabe, não temos mais o labo-
ratório e fomos incumbidos de achar soluções rápidas. Passei a noite eufórico com esse encontro e...
- Não tem mais laboratório? - perguntou Raquel, secando as lágrimas. - Como assim? Juliano não
me falou nada sobre isso. O que aconteceu? Foram despedidos?
Ernani não entendia por que o amigo não contara à mulher sobre o incêndio. Porque esconderia
da esposa, que sempre lhe dera tanto apoio, uma informação dessas? Precisava ser rápido, ou não con-
seguiria permissão para entrar no escritório do colega.
- Bem – começou, tropeçando nas palavras. - Acho que seu marido não quis preocupá-la, talvez
porque não seja nada tão grave assim. Um dos nossos aparelhos do laboratório foi danificado com um
princípio de curto nas instalações e precisaríamos ficar ausentes alguns dias, até serem consertados no-
vamente. Por isso, marcamos uma reunião aqui, eu, ele e André. Acho que ele tinha alguma coisa para
nos mostrar.
- Ainda bem que não conseguiu, pois acredito que foi essa coisa que o matou. Ele andava muito
perturbado com umas idéias nada sadias. Sinto muito mas, como vê, tenho tantas providências para to-
mar, não sei o que fazer - começou a chorar novamente.
- Raquel, não se preocupe com nada, amigo é para ajudar nas horas difíceis. Vou tomar todas as
providências necessárias. Vou falar com o médico legista, vamos liberar o corpo, tomarei conta de tudo.
Fique tranqüila.
Raquel agradeceu, pois estava exausta com toda aquele inesperado acontecimento. Sentia ódio
da tal cidade, a cidade fantasma que levara seu marido. Com certeza ele não conseguira suportar tanta
ansiedade, estava sofrendo demasiado para um homem que sempre fora tão forte. Precisava avisar Ca-
rolina e ainda não sabia como fazer isso.

Como uma premonição, Ernani se aproximou, meio lento, e perguntou:


- Você quer que eu ligue para a Carol? Posso fazer isso, estou em melhores condições emocionais.
O que lhe parece?
A Cidade do Vírus Triste 65

- Faça isso por mim. Não sei como ela vai reagir, estávamos de viagem marcada para lhe fazer
uma visita. Não via o pai há quase um ano e não vai vê-lo mais. Santo Deus, por que isso foi acontecer?
- Nada que eu falar vai acalmá-la ou trazê-lo de volta, portanto... chore bastante, isso alivia. Vou
fazer a ligação.

Enquanto tomava todas as providências, aproveitando o corre-corre, Ernani entra no escritório


quase sagrado de Juliano. Felizmente a porta estava aberta, coisa que sabia que raramente acontecia,
pois o amigo era cauteloso com suas coisas. Obviamente não imaginava amanhecer morto, com um
gordo estúpido mexendo em seus segredos.
Ao lado do computador estava tudo que Ernani precisava saber. Seus olhos, fixos naquele dis-
quete, pareciam saltar das órbitas, tamanha a curiosidade. “Será que era isso que ele estava pesqui-
sando?” Segurou o disquete com as mãos trêmulas de quem acabara de praticar o maior roubo da histó-
ria, o que não estava longe de ser uma verdade. Colocou o objeto no bolso do blaser, sempre observando
se não havia ninguém por perto e saiu, mostrando-se preocupado com o andamento das coisas.

- Vou até o hospital verificar a liberação do corpo, já providenciei uma funerária que cuidará de
tudo, capela, flores, túmulo, caixão, enfim... Não precisa ir à capela agora, o corpo ainda vai demorar um
pouco. Mais tarde me encontro com vocês.
Raquel, com o rosto vermelho, agradece, enquanto Ernani ruma para casa. Estava realmente in-
teressado somente em ler as tais informações do disquete. Rezava para que Juliano não tivesse colocado
uma senha de difícil acesso.
“Maldição! - pensou, enquanto colocava o disquete no aparelho. - Depois era eu que guardava
segredos. “Cretino” - Agora seja um bom menino e faça com que eu consiga ler esse seu segredo, quem
sabe até possa dar continuidade a sua pesquisa secreta.”
Mas, para a felicidade de Ernani, Juliano estivera tão envolvido com todo aquele enigma que não
lhe ocorrera velar as informações. E tudo ficou muito claro quando o monitor começou a mostrar todas as
seqüências lógicas, e às vezes duvidosas, seguidas por um homem que morrera na busca de uma das
maiores descobertas do século.
Debruçado sobre o computador, extasiado com tudo que acabara de ler, Ernani é tomado por um
forte desejo de convocar seus melhores companheiros de equipe para, juntos, tentarem dar continuidade
ao trabalho grandioso do seu ex-colega. “E por que não?” Com um suspiro fundo, sentindo toda a
reviravolta que aquela nova possibilidade iria proporcionar para todos, pega no telefone para convocar o
primeiro da lista.
- Por favor! Gostaria de falar com o Dr. André?!?

Fim.
℗ 1998, Editora CAIXA POSTAL (Mailbox Books)
Curitiba, PR - Brazil

O
P 1998

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A CIDADE
DO VÍRUS
TRISTE

Heloísa Köhler
Uma história de ficção que acontece principalmente na cidade brasileira de Curitiba,
no estado do Paraná. O personagem vive momentos marcantes nesse ambiente e, após
um certo tempo de convivência, passa a perceber que as pessoas dali são, na verdade,
muito mais amigáveis do que ele tinha ouvido falar. E alguns fatos vão, até mesmo, dei-
xar em sua memória lembranças de grande valor quando ele retornar à sua cidade natal.

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