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A RECEITA

Jorge Andrade

Montagem do NAC – Núcleo de Artes Cênicas do SESI SJCampos

Direção: Roberval Rodolfo

PERSONAGENS

JOVINA
CHICO – marido de Jovina
DEVAIR – filho de Jovina
CARLINDA – filha de Jovina
IRANIDES – filho de Jovina
JUPIRA – filha de Jovina
DOUTOR MARCELO – médico
COLONOS
(Cenário: cama e poucos elementos de uma casa de pau-a-pique. Para ambientar a
cena – e só para isso – devem ser projetadas sobre o chão do palco e sobre os atores,
slides de pessoas pobres e em filas; de postos de saúde, de expressões pessoas
doentes; de salas de aula bem equipadas e laboratórios antissépticos; de estudantes
de medicina, sadios e alegres, em seus uniformes. Nenhum dos slides deve ser
projetado em telas ou em paredes brancas. As formas estranhas, criadas pela
projeção de slides sobrepostos, devem dar a impressão de ambiente gangrenado. Ao
se abrir o pano, Marcelo, sentado, escreve a receita sobre sua perna. De vez em
quando, relanceia os olhos á sua volta, observando os colonos. Marcelo é bastante
jovem, risonho e saudável. Seu sorriso vai morrendo, pouco a pouco, até que seu
rosto pareça mais envelhecido. Devair, imóvel, solta gemidos abafados pela colcha.
Carlinda sentada ao pé da cama, olha fixamente para o rosto coberto de Devair;
disfarçadamente, levanta a colcha e olha o pé do irmão. Mais distante tentando
esconder-se, Jupira está sentada em um canto. É ainda muito jovem, mas já bastante
estragada; a tentativa de disfarçar sua condição de prostituta foi inútil. Sua presença
é tentação para os colonos. Chico, sentado de cabeça baixa, olhos fixamente para o
chão. Sentimos, em sua posição, uma vergonha imensa que ele tenta esconder.
Furtivamente, observa a filha Jupira. Embora não definida, paira no ar a
possibilidade de uma ligação de dependência entre os dois. Jovina, como as outras
mulheres, tem os seios muito caídos e é seca de corpo. A velhice prematura, os
cabelos muito caídos no rosto, a pele encardida e escaiavrada , não conseguem
esconder o ter sido moça e bonita. Ela tenta ver o que Marcelo escreve, embalando o
filho; sua preocupação pelo tamanho da receita é visível. Iranides, á porta, observa

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curioso. Percebem-se outras pessoas atrás dele. Todos estão de olhos fixos em
Marcelo).

JOVINA: Tudo isso doutor? O senhor gosto de barro.


não para mais de rabiscar! (descrente)
MARCELO: São remédios necessários JOVINA: Sei não doutor.
(escrevendo). Além dos remédios, o MARCELO: E ovos de galinha?
seu filho necessita de alimentos ricos (em guarda)
em soja. JOVINA: Que que tem?
JOVINA: Soja? MARCELO: A senhora tem?
MARCELO: É. Isto que parece feijão, (preocupada)
não conhece? JOVINA: A gente cata por aí. Por quê?
JOVINA: Conheço, doutor. Mas tem MARCELO: Devair precisa comer ovos
gosto de “Maria Fedida”. Nem porco todos os dias.
come. JOVINA: Todos os dias?
MARCELO: É ótimo alimento. MACELO: Todos os dias. Dê a ele, de
JOVINA: Mas que tem a soja com o pé manha, ovos frescos. Se possível com
do meu filho? manteiga.
MARCELO: Ele precisa ficar mais forte JOVINA: Acontece doutor, que justo
para... (hesita) Para se recuperar mais agora, eu botei as galinha pra chocar. A
depressa. gente carece de ter frango. É o que
JOVINA: Nóis não tem soja, doutor. garante as despezinha.
MARCELO: Seu filho tem necessidade CHICO: Eu bem falei pra você, Jovina.
de boa alimentação. É por isso que a (agressiva)
receita é grande. Os remédios JOVINA: Você queria era comer os
substituem os alimentos ovos. Não carecia pagar a carrocinha do
indispensáveis. (subitamente). Há Salim?
algum rio aqui perto? MARCELO: Carrocinha?
IRANIDES: Tem um ribeirão numa JOVINA: O Salim passa vendendo coisa
caminhada regular. de precisão. A gente troca carretel de
MARCELO: Não é rico em peixes? linha, botão, pano... Essas coisa.
IRENIDES: Sábado, a gente costuma CHICO: Tinta de cara também.
encontrar alguma miudeza. (Instintivamente leva a mão ao rosto)
MARCELO: O que é isso? JOVINA: Também, e dai?
IRANIDES: Traíra, lambari, cascudo. Das IRANIDES: A galinha do pescoço pelado
veis da pra encher uma forquilha. tá botando lá no pé da figueira.
Conforme a lua, aparece papa-terra. (Olha furiosa para Iranides)
JOVINA: Acha que seu irmão vai comer JOVINA: Se é de precisão...
peixe com gosto de barro? Vê o que (Ainda sem compreender a aparente
fala, infeliz. avareza de Jovina)
MARCELO: É só tirar o fio que a papa- MARCELO: Claro que precisa. Se não
terra tem no lombo. É dele que vem o tem alimentos ricos em proteínas,

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preciso receitar remédios que possam (natural)
substituí-los. JOVINA: É. Não tinha mostrado ele,
JOVINA: Que é isso, doutor? doutor?
MARCELO: Tinha sim! (passa a mão na
cabeça como se não soubesse o que
MARCELO: As proteínas formam a
fazer) Devair não poderá mesmo
massa muscular.
trabalhar... Por uns tempos.
(Jovina parece ainda não entender)
JOVINA: Não fosse aquele estrepe
MARCELO: São elas que nos dão
lazarento!
músculos.
(observando uma colona que embala
JOVINA: Ora, doutor! Devair tem
uma criança no colo)
musculo pra todo lado. Machado é que
MARCELO: Vocês não deviam trabalhar
faz músculo. Não conheço caboclo mais
descalços.
sarado que meu filho. Verdade!
JOVINA: Ora, doutor. Nosso pé é mais
Ninguém pode com ele num eito. Mais
grosso que couro de anta. Não é isso
resistente que aroeira. Não existe
não. A desgraceira entra é pra toda
mulher casada ou moderninha que não
parte.
anda com os olhos derretidos em cima
MARCELO: Sei... Devair não podia ter
dele. Não tem uma que ele não deita
voltado ao trabalho. Foi por isso que
no chão.
piorou.
(Foge do assunto)
JOVINA: Se não voltasse, como é que ia
MARCELO: O problema é que... Pode
ser doutor? Meu marido é esse
sobrevir uma gangrena. (De repente)
emplastro que o senhor tá vendo.
Porque não procuram o Posto de
(grita) Levanta a cabeça macutena!
Saúde?
Ouve pelo menos o que o doutor tá
JOVINA: A gente procurou, mas aquilo
falando. Não tem animo nem pra
parece formigueiro. Mandam o infeliz
levantar a cabeça. Também... Essa
pra todo lado... E a gente não entende
lesma não sai da porta da venda.
das coisas.
(fremente)
MARCELO: Com este medicamento
É aquela vaca que mora lá. Mulher sem
teremos tempo para esperar.
dente e de boca pintada. Abrindo as
JOVINA: Esperar o quê, doutor?
perna pro marido vender mais. Fala se
(disfarça)
não é verdade.
MARCELO: Que ele... Fique mais forte.
MARCELO: Essas coisas não me
JOVINA: E se começar a subir pela
interessam. Vocês moram na fazenda e
perna? No começo era só o dedo.
não tomam leite, não fazem queijo, não
Agora e o pé inteiro! Devair precisa de
comem pão. Não sabem fazer nada!
andá muito pra trabalhar.
JOVINA: A gente mora é nesta casa,
IRANIDES: É só não trabalhar mãe.
doutor. A única vaca leiteira que meus
JOVINA: Cala a boca, filho duma puta.
filho teve fui eu. E eu não tive
(contrafeito)
nenhuma. Pão, a gente come o que o
MARCELO: Não é seu filho?

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diabo amassa com o rabo. (Olha Chico, ataque, nem cinco homem segura ela.
retesando-se) Queijo é comida de rato Aí, as força brota nos braço, nas mão,
na prateleira daquela venda. Ainda de pra todo lado.
Chico pudesse cumprir os trato. (Compreende o mal de Carlinda e,
Trabalhar no lugar do Devair. Andar condoído, aproxima-se estendendo a
légua pra ver jogo de bola, ele anda. mão)
Andar pelas estrada, trocando perna (Carlinda olha com carinho a mão de
feito cavalo, ele anda. Viver caído em Marcelo e sorri)
trilho, com a cara em bosta de vaca, MARCELO: Pode pegar. Não fala?
também sabe. (Carlinda, ainda olhando a mão de
(olhando fixamente para Chico) Marcelo, sacode a cabeça
Quando não tá enleado naquelas perna negativamente. Para ela, aquelas
de mulher de porta de rua, sou eu, mãos são magicas, sagradas)
doutor. Sou eu que tenho que fazer. Eu JOVINA: Como matraca, mas só com
e o meu filho Devair. Quando é que a Devair. Pra ele, ela faz tudo. É capaz até
gente ia pensar que o demo tinha de matar. (ameaçadora) Responde pro
entrado, com aquele estrepe no pé do doutor! Não ouviu? Além de boba,
meu filho? E a gente precisa trabalhar, ficou surda.
com ou sem estrepe. (Corta o movimento de Jovina)
(já desnorteado) MARCELO: Deixe-a em paz! Não deve
MARCELO: Vocês não tem outros tratá-la assim!
filhos? JOVINA: Por que não?
JOVINA: Um bando. É outra coisa que MARCELO: Porque não deve.
ele sabe fazer: encher minha barriga, JOVINA: Diz que os ataque que ela tem,
mas só de filho. Tive onze e cada um é entrevero de gente do além, doutor!
nasceu numa fazenda. A gente vive de (irritado)
déu em déu. Perdi dois que era uma MARCELO: São convulsões provocadas
lindeza! Ficaram cagando água pura... por doença nervosa. Fáceis de serem
Até virar uns gravetinho de tão magros. controladas. E seus filhos? (Marcelo
CHICO: Foi você quem deu remédio olha à sua volta e sente, nas
demais pra eles. expressões de mentes obliteradas, que
JOVINA: Dei o que o homem da foi inútil a explicação. Desvia a
farmácia mandou. Boquejar você sabe, atenção de Carlinda)
mas não presta nem pra entender das JOVINA: Aquela lá... (Aponta Jupira,
letra. Essa aí, que o senhor tá vendo, é que se esconde) Bom! Aquela virou
a Carlinda. Já nasceu boba. Não serve mulher bonita. Um dia, essa infeliz
pra nada. Comer ela sabe, e como perfumou as ponta das orelha, ganhou
come!!! Olha só doutor! Desde que a estrada e foi ver o administrador.
Devair entrou, que não tira os olhos Quando a lua nasceu, já era madame.
dele. E aí vai ficar, nem uma junta de (humilhada)
boi de carro arranca ela daí. Quando dá JUPIRA: Mãe...

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JOVINA: E não é que você é? Puta do JOVINA: Devair precisava era de ficar
Bico de Pavão. Ainda se ajudasse. na Santa Casa, doutor. É disso que ele
precisava. As agua tá chegando e com
ela vem o mato.
JUPIRA: Quero ajudar. Vim aqui pra
MARCELO: Já expliquei que não há
isso.
vagas. Obedecemos a uma lista de
(fingindo)
gravidade de casos.
JOVINA: Não quero dinheiro
JOVINA: O senhor mesmo disse que
excomungado por Deus.
meu filho tá muito doente.
JUPIRA: Carece pagar esse mundo de
MARCELO: Há casos mais graves na
remédio, mãe.
frente dele. Não posso fazer nada.
JOVINA: Já disse que dinheiro de bordel
(subitamente)
não entra na minha casa.
JOVINA: Doutor! Leva meu filho agora.
JUPIRA: Devair está muito doente,
Não deixa ele aqui. A gente mora longe
mãe. Deixa eu ajudar. Esses remédio
do comércio.
custa muito caro.
JUPIRA: Mãe! Deixa o Devair comigo.
(Já convencida, mas fingindo diante
Eu moro perto da Santa Casa.
dos colonos)
JOVINA: Deixar meu filho naquela boca
JOVINA: Enfia o seu dinheiro!
de inferno?
JUPIRA: Serviu pro doutor, porque não
JUPIRA: Eu queria sair dessa casa, mãe!
serve pra senhora?
JOVINA: E enquanto não saiu, minha
(Marcelo contrai-se, revelando um
casa virou porta de cadela viciada.
grande mal estrar.)
JUPIRA: Eu queria sair daqui de
JOVINA: Aquele é Iranide. Falta o Delci.
qualquer jeito.
(Olhando à sua volta) Onde será que
JOVINA: Você queria sair daqui e
anda aquele excomungado? Com
aquele pingueiro aceitou. (Aponta o
certeza, roubando manga no pomar da
marido.) Ajudou abrir as suas pernas!
fazenda. (Sorri maliciosamente.) Lá
JUPIRA: Você sempre teve ciúme de
tem demais. Idade pra trabalhar já tem:
mim, mãe!
passou dos onze. Vontade também
(controla-se, mas revela a terrível
tem. Mas o que impede não sei,
ligação)
doutor. Sabe correr atrás de bola. Isso,
JOVINA: Foi um braço que nós
sabe! O resto é miudeza! Como esse...
perdeu... Pra ir trabalhar no campo de
(Para subitamente) Chupa o leite, não
pião molambento.
precisa morder. Se não sai é por que
(agressiva)
não tem mais. Se deixar, ele mastiga
JUPIRA: Não vivo pior que aqui.
meus peito.
JOVINA: Ainda se fosse pra ganhar
(olha Jovina, já contagiado por sua
dinheiro. Puta de pião!
miséria)
DEVAIR: Mãe! Não fala assim. A Jupira
MARCELO: Gostaria de ajudar. Se
foi boa comigo. Ela pagou a Santa Casa.
pudessem ter alguns alimentos, não
Eu tive que ficar na parte que paga. A
precisariam comprar tantos remédios.

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outra tava cheia. Eu vou trabalhar, vou MARCELO: Não pode plantar o que?
ficar bom mãe... Antes que as água JOVINA: Plantar pra gente não ver
chegue. crescer?
JOVINA: Claro que vai trabalhar. Era só MARCELO: Não ver crescer o quê?
o que faltava. Carlinda não presta nem (incrédula)
pra lavar um pires. Seu pai só sabe JOVINA: O senhor parece que vive na
agarrar na orelha da sóta... E no rabo lua, doutor! Não sabe das coisa! Porque
daquela capeta. O resto só trabalha a gente nunca vê.
com o mastigador! MARCELO: Saí da faculdade há um ano.
DEVAIR: Não fala essas coisa, mãe! É a primeira vez que vou a uma casa
(grita) como esta. Mas sempre ouvi dizer que
JOVINA: Falo! Falo! E vou continuar não querem ter trabalho. Por isso não
falando. Se você me faltar, como é que plantam.
vai ser? JOVINA: Plantar o quê? Quando a terra
(apavorada) tá pronta, é outro braço que semeia.
CARLINDA: Não... Não! Quando a flor vira fruto, é outra mão
(olha Carlinda) que colhe... E outra boca que come.
JOVINA: Se Deus levasse quem devia. Essa carência de tudo é uma lepra,
(áspero) doutor. A gente vai largando pedaço da
MARCELO: Eu não falei em gente por esse mundo a fora.
possibilidade de morte. E isso não (Subitamente, olhando à sua volta)
depende de Deus. Doutor! O senhor precisava salvar meu
(Carlinda sorri aflita e ofegante, filho. Tenho nove boca pra fazer comer.
sacudindo a cabeça afirmativamente, (incomodado)
como se quisesse confirmar o que MARCELO: Ele vai ficar bom. Dois
Marcelo diz) meses de tratamento...
JOVINA: Se não é Deus, então é de (corta Marcelo)
quem doutor? JOVINA: Dois mês?! Dois mês parado
(Não sabe como explicar) doutor? O mato vai comer minha roça.
MARCELO: Bem... É que... (acuado)
JOVINA: Ainda se fosse doença dos MARCELO: Já disse que vou ver o que
peito, dos figo... Dava pra ajudar. posso fazer. Não depende de mim.
Braço, perna é o que a gente precisa. É (angustiada)
pra isso que a gente tem filho. JOVINA: Depende de quem, doutor?
(Subitamente volta-se para os Fala! Quem sabe a gente pode ir pedir.
colonos.) Correu nessa maldita colônia, Eu vou de joelho. Fala, doutor!
de ponta a ponta, que usei Jupira pra (anda agitado pela sala)
ganhar mais terra do administrador. MARCELO: A Santa Casa está cheia. A
Ganhar mais terra pra quê? Terra pra de Ribeirão é a mesma coisa. As filas
gente não poder plantar nem um pé de são grandes em toda parte.
limão? (Descontrolado.) Se dependesse de

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mim, não seria apenas o Devair que eu Posso ajudar também.
levaria...! JOVINA: Obrigado, doutor!

(Para subitamente, conscientizando Deus abençoe o senhor.


pela primeira vez, sua alienação) (áspero)
MARCELO: Parece mesmo que eu vivia MARCELO: Não me agradeça. É o que
em outro mundo. (Olhando à sua eu posso fazer.
volta) A gente aprende a ser médico, JOVINA: O senhor é um santo.
mas algumas doenças... E não das (Volta-se retesado)
piores. (Consigo mesmo.) O que se MARCELO: Santo? Por causa disso?
quer... É ser doutor. JOVINA: Quando eu ia pensar que um
(De repente, Carlinda agarra a mão de doutor vinha na minha casa, só pra
Marcelo e fica olhando, fascinada trazer meu filho!
como se nelas estivesse a única (Assentimento cheio de admiração por
salvação. Incomodado, Marcelo retira parte dos colonos. Marcelo olha à sua
as mãos, olhando pra eles, confuso) volta, parecendo envelhecido e
(Recolhendo o seio) doente. Instintivamente, olha Carlinda.
JOVINA: Chega, esfomeado! Já tá Perdida em sua loucura, Carlinda sorri
taludo, mas o desgraçado não para as mãos de Marcelo.
desmama. Nisso, Deus foi bom comigo, Subitamente ela tem expressão de
doutor! Me deu leite bom e farto. angustia, passando das mãos de
(Mostra o filho.) Não está bem criado? Marcelo para o pé de Devair.)
Esse é o derradeiro... Chama Joaquim. JOVINA: O que foi doutor?
A disgrama começa é depois que eles (firmando-se)
larga das teta. MARCELO: Nada.
(consigo mesmo) JOVINA: Parecia estar com doença
MARCELO: Começa muito antes. braba.
(Marcelo olha as receitas em sua mão; (pausa)
de repente, começa distribuindo à MARCELO: Será que não estou? Estive
todos. As colonas pegam a receita com durante seis anos numa porcaria de
receio) uma faculdade e não aprendi nada.
Podem pegar. Não cobro nada. Pega!!! Nada. Fiquei na doença, sem procurar a
(irritado, Marcelo agarra a mão de causa. Não levantei os olhos de livros,
uma colona como se fosse uma coisa não saí de salas de aulas, laboratórios,
indecifrável. Perdendo a paciência) bibliotecas. Examinava corpos, e não
Vocês também estão precisando. via as pessoas...!
Todos! Será possível que não percebem (Carlinda agita-se preocupada)
o estado de vocês? (Subitamente faz (Procurando ainda se controlar)
menção de sair) MARCELO: É tudo uma merda! Já não
Quem vai comigo trazer os remédios? sei mais o que pensar, nem por onde
JUPIRA: Eu. começar. (De repente) Quando der, eu
MARCELO: Tenho muita amostra grátis. opero Devair.

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JOVINA: Vai ter que rasgar o pé? porcos... Vermes! Não percebe que
MARCELO: Temos que cortar. esta tudo gangrenando? Podre! Até eu!
JOVINA: Cortar? Ser medico pra quê? Pra quê. Tenho
(Áspero) vontade de mandar tudo é puta que
MARCELO: Isso mesmo: cortar o pé. pariu também. (Fremente) Condição
Tirar isso fora. excomungada, lazarenta. Não vê que
(Agarra-se em Marcelo) estou com as mãos amarradas? É assim
JOVINA: Mas doutor... que consigo sobreviver. (Grita) Não
(Tenta se desvencilhar, como se o tenho outra saída. Nesse país, a miséria
contato de Jovina fosse repulsivo) é uma indústria!
MARCELO: Me larga!... (Subitamente, olha as mãos atônito,
(Agarrada em Marcelo e arrastada por sentindo a inutilidade delas. Depois
ele) relanceia os olhos á sua volta,
JOVINA: Espera, doutor... observando a expressão ansiosa dos
(Desesperado, empurra Jovina sem colonos. Leva as mãos ao rosto,
piedade) quando da com a expressão
MARCELO: Tira as mãos de mim! desesperançada de Carlinda)
JOVINA: Doutor! O Devair é quem (Levanta-se, lentamente, tentando
ajuda... compreender, o que há de terrível no
(grita) ar, não conseguindo perceber)
MERCELO: Não tenho nada com isso. CARLINDA: Então... Quem? Quem?
JOVINA: Tenho nove bocas pra fazer (Pausa, ansiosa)
comer... JOVINA: Responde, doutor! Fala
MARCELO: E eu um pé que preciso alguma coisa! A gente sabe trabalhar
cortar. na roça. Entende dos bicho daninho
(escandalosa) que pode matar as planta.
JOVINA: Estão querendo matar meu Mantimento nosso só morre por falta
filho! de chuva. De trato, não! O senhor senta
MARCELO: Há coisas que precisam ser na mesa e come. Come o que a gente
amputadas também... planta... E sem doença! Meu filho é o
JOVINA: Não aleija meu filho! chefe da casa. Fala o que pode fazer
MARCELO: ...E eu nem tinha por ele!
consciência. (Angustiado)
(Tentando arranhar o rosto de MARCELO: A pior doença é outra... E
Marcelo) pra ela... Não me ensinaram
JOVINA: Maldito filho da puta! Foi pra tratamento.
isso que aprendeu a entender das (Hirta)
letra? JOVINA: Que doença pior é essa
(empurra Jovina com violência) doutor? O senhor disse que ficou seis
MARCELO: Não vê, sua burra, a vida anos numa escola... Abrindo livro!
que seus filhos estão levando? Como Abriu livro pra quê? Fala! Quem é que

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tá atando suas mão? (Desorientada, Jovina sai atrás de
Marcelo, seguida por todos.
(Marcelo olha à sua volta, humilhado e O motor do carro e posto em
não sabe responder) funcionamento.)
(Atônita e com compreensão apenas JOVINA: Doutor! Espera doutor!
aflorada) (Olhando na direção da porta, Carlinda
JOVINA: Então... A doença da gente... É se aproxima do pé de Devair,
que é sua roça? E por isso nóis não sai fascinada. Vai para ele)
das farmácia? É assim que vocês CARLINDA: Deva! Deva!
consegue viver? Da nossa agonia?... (Toca no pé de Devair. E este solta um
(Consigo mesma) grito angustiado)
Depois do Devair... Vai ser outro... E DEVAIR: Maldita boba! Sai daqui
outro...! excomungada!
(Jovina aperta o filho contra o peito, (Carlinda olha à sua volta, como se
examina os colonos, passa um braço procurasse alguma coisa muito
em volta de Carlinda, aconchega os importante. Depois levanta o colchão
filhos á sua volta, num gesto de e tira uma garrafa de pinga)
defesa, formando uma penca de CARLINDA: Deva! Quer um pouco? É do
miséria. Jovina fecha os olhos e sua pai.
voz sai numa súplica desesperada) DEVAIR: Na garrafa mesmo.
Nossa Senhora das mãe, do coração (Carlinda levanta a cabeça de Devair
crivado da flexa! Faz alguma coisa! Não deixando que ele beba bastante)
fica só olhando dai de cima. Você DEVAIR: Carlinda! Vê se tem outra
também teve filho... Que agoniou nesse garrafa.
mundo...! (Num crescendo) Devair vai (passa a mão debaixo do colchão)
morrer! Como os outros! Eu sei! Minha CARLINDA: Tem duas.
família...! (Grita) Não! Isso não! Ai, meu (Ansioso)
Deus! Tenha piedade de nós! São DEVAIR: Me dá mais, Carlinda.
Benedito. Valei-me! Santa Luzia! Volta (Vira a garrafa na boca de Devair)
seus olhos pra nós! Dolor! Corre aqui, CARLINDA: Dói muito, Deva?
Dolor! DEVAIR: Eu não aguento nem esse
(Ao mesmo tempo que Jovina) pano. Tira de cima de mim, Carlinda.
COLONOS: Não deixa, Jovina! Não Dói tanto que tenho vontade... De
deixa! Santa Rita! Santa mãe das mãe! pegar o machado e cortar.
São Pedro! São Paulo! Vai ficar aleijado! CARLINDA: Bebe que a dor passa. Mais,
Santa Rita! Santa Luzia! São Gerônimo! Deva. Bebe mais... Não quero que você
Santa Barbara! Chama todo mundo! sente dor. Bebe.
Vamos rezar um terço! (tenta se erguer e cai num gemido)
(Subitamente, não suportando a visão DEVAIR: Ai! O doutor disse... Que se
dos colonos indefesos, Marcelo volta- não cortar.... Esse pretume ai sobe
se e sai como se fugisse) perna acima.

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(Retesada) (Examina o rosto de Devair)
CARLINDA: Que adiantava falar! CARLINDA: Deva! Deva!
Carecia é de cortar, Deva! (Carlinda sacode Devair e constata que
DEVAIR: Diz que não tem lugar na ele está dormindo. Depois toca no pé,
Santa Casa... E a gente não pode pagar. e Devair apenas se contrai. Carlinda
(Carlinda dá uma volta pela sala, meio sorri, satisfeita, e sai correndo.
desorientada, procurando se lembrar Ouvem-se, distantes, as vozes dos
de alguma coisa. Olha em todas as colonos em oração. Carlinda volta
direções, angustiada, tentando se segurando um machado; ajeita o pé de
lembrar.) Devair e levanta o machado com
(Já com a voz pastosa) decisão, revelando músculos e força
DEVAIR: Vou ficar... Como Bastião violenta em todo o corpo. Seu rosto
Cotó... (Ri) Melhor... Peço esmola! contrai-se numa decisão terrível,
(Sorri, lembrando-se. Corre para enquanto as luzes se apagam)
Devair.)
CARLINDA: Bebe! Bebe que passa tudo.
FIM
Tudo!
(Derrama a garrafa na boca de Devair,
que já esta sem defesa. Carlinda senta-
se lentamente, e acaricia o rosto de
Devair, numa mistura de loucura e
sentimento maternal)
CARLINDA: Deva Suou de sol a sol.
Arou, plantou, carpiu, colheu... Pra essa
gente da cidade. E que foi que eles deu
pra nós? Sabe? Eu ia na roça só pra ver
você no eito.
Ninguém varava primeiro. Agachada
debaixo da figueira, eu pensava: se ele
não brotar primeiro no corredor... É
porque Deus não está olhando pra
gente.
E você despontava... Com três, quatro,
cinco braço!... Carpindo, enleirando,
cantando, ensopado como que o corpo
fosse mina d’água. Assim também era
nos baile. Era pra isso que eu ia. Só pra
ver você passar... Rodando...
Rodando... Sem desprezo, com
qualquer uma italiana ou escura. A
gente não tem soberba... Deva!

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