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TENDÊNCIAS GASTRONÔMICAS

Cesar Augusto Kenzo Horikawa Sakaki


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4 A SUSTENTABILIDADE NA GASTRONOMIA

Apresentação
Neste bloco, vamos compreender como a Sustentabilidade se tornou parte integrante
e indissociável da Gastronomia, quais os elementos que a determinam e quais os
principais reflexos na alimentação.

4.1 Sustentabilidade
Quando se trata do tema Sustentabilidade, a primeira noção que surge é a da
preservação ambiental, no entanto, a Sustentabilidade vai além dessa questão, ainda
mais quando tratamos da Sustentabilidade relacionada à Gastronomia.
Há três esferas envolvidas na Sustentabilidade, sendo interdependentes, relacionadas
de maneira indissociável. Isso significa que para um processo ser realmente
sustentável, não basta que apenas a questão ambiental seja levada em consideração.
Nesse caso, você teria uma ação pró-ambiental certamente, mas não seria
verdadeiramente sustentável.
Vamos olhar tudo isso com calma e por partes.
A Sustentabilidade é formada por um tripé composto pelas seguintes áreas: Meio
Ambiente, Economia e Sociedade.
Para que um trabalho seja efetivamente sustentável, é imprescindível que ele seja
benéfico ao Meio Ambiente, tenha impactos econômicos positivos e promova o
desenvolvimento social. Tudo ao mesmo tempo, sendo uma coisa dependente da
outra.

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Figura 4.1 ̶ Engrenagens mostrando a ideia dos três fatores interdependentes da


Sustentabilidade.
Economy: Economia
Society: Sociedade
Environment: Ambiente
Sustainability: Sustentabilidade

Para que fique bem clara a ideia, vamos tomar como exemplo uma situação concreta
existente no norte do Brasil, mais especificamente na região de Manaus.
Um dos alimentos mais importantes da região é o açaí, nativo daquela localidade e
fundamental na alimentação cotidiana da população. Pode-se considerar o açaí como
um dos alimentos civilizatórios e componente da base alimentar da região norte do
país.
Houve um aumento enorme no consumo de açaí no Brasil nos últimos 20 anos,
especialmente na região sudeste. Embora a maneira de se consumir o açaí no norte
seja diferente (lá se consome salgado), o fruto é o mesmo e, portanto, a exploração
agrícola do insumo se acentuou.
Com isso, o preço do açaí foi aumentando cada vez mais em Manaus, deixando de ser
um produto barato e acessível como sempre fora, pois boa parte da produção local era

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destinada à indústria que processava o insumo para enviá-lo congelado ao restante do


país.
A situação piorou ainda mais quando o açaí começou a ser descoberto no mercado
externo. Houve, então, uma explosão na demanda pelo fruto com fins de exportação.
Comunidades produtoras estavam sendo mal remuneradas, grandes áreas sendo
abertas para facilitar o transporte e o acesso às várzeas onde estão plantados os
açaizeiros e a população local sofrendo com o aumento do preço de um alimento que
até então era base de sua alimentação cotidiana.
Como resolver esse problema gigantesco?

Figura 4.2 ̶ Fruto do açaí colhido nas várzeas alagadas onde crescem os açaizeiros.

Uma das soluções implementadas foi exatamente um projeto sustentável que


envolvesse os interesses de todas as esferas envolvidas na situação. Produtores,
comunidades locais, população consumidora e indústria de beneficiamento e
exploração.
Uma empresa se instalou na região com o propósito de desenvolver um modelo de
negócio sustentável, com todas as certificações relativas. Basicamente, a ideia é
simples: mobilizar de modo mais bem organizado as comunidades locais que já eram
produtoras de açaí dando a elas as condições tecnológicas, agrícolas e financeiras para

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poderem continuar cuidando do ciclo de produção do fruto, sem que haja uma
exploração destrutiva desenfreada.
Em outra frente, em sua planta industrial, a empresa contratou trabalhadores que
faziam parte das cidades próximas e comunidades locais, e começou a ajudar na
melhoria das condições urbanas do entorno, financiando redes de coleta de esgoto,
tratamento de água e a própria melhoria da infraestrutura rodoviária necessária ao
transporte de seus produtos e insumos.
Fica evidente que se promoveu um real envolvimento das três engrenagens
interdependentes da sustentabilidade. No plano social, as comunidades locais tiveram
garantidas suas estruturas familiares e a melhoria de suas condições urbanas. No
aspecto econômico, a empresa garantiu a renda das comunidades locais, seja por meio
do plantio do fruto, seja por meio de oportunidades de emprego em sua fábrica.
Finalmente, no que diz respeito ao meio ambiente, a empresa deu as condições para
que as comunidades locais continuassem a explorar o cultivo do açaí, respeitando seu
ciclo natural, sem que fosse necessário desmatar para ampliar a plantação de mais
árvores.
Claro que todo esse sistema é, na prática, bastante complexo de ser mantido, todas as
engrenagens precisam estar devidamente encaixadas. A produção acaba sendo
positiva para as comunidades locais (social e econômica), é feita em uma escala cujo
limite é a oferta de açaí já naturalmente disponível na região (meio ambiente) e
promove um desenvolvimento econômico na região, bem como permite que uma
empresa desenvolva sua atividade econômica.
Assim, fica evidente que apesar da dificuldade é possível implementar esse modelo
sustentável em diversas situações. Na Gastronomia, isso também já é uma realidade.
Há chefs que só utilizam insumos fornecidos por pequenos produtores. Isso garante
benefício para os dois lados: o chef utiliza insumos de boa qualidade e que respeitam
sua sazonalidade, o produtor tem sua fonte de renda garantida, mesmo produzindo
seus insumos em uma escala menor.
É uma maneira direta de o chef “financiar” a preservação daquele terroir por meio do
produtor. Consegue compreender a lógica dessa cadeia de relações?

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Não fosse o chef criar a demanda pelos insumos fornecidos pelo pequeno produtor,
este acabaria sendo engolido pela agroindústria, vendendo sua terra ou fornecendo
seus produtos a preço baixo e qualidade idem.

4.2 Terroir e preservação cultural


O conceito de terroir é bastante antigo na produção de vinhos e queijos, pois as
características desses produtos estão diretamente relacionadas às características dos
locais em que foram produzidos.
Terroir é o termo que designa o conjunto das características ambientais de
determinada região. Clima, composição mineral do solo, ciclo de chuvas, estações do
ano e todo o bioma presente. Todas essas características naturais acabam
determinando as características dos produtos ali desenvolvidos, pois a uva, por
exemplo, cultivada nesse local apresentará uma identidade exclusiva, própria daquela
região.
Além disso, é importante apontar que os insumos produzidos em determinado terroir
precisam estar plenamente adaptados àquele local, de preferência sendo insumos
nativos ou já adaptados há bastante tempo, pois assim eles apresentam um ciclo
natural de sazonalidade, importante tanto para a sua própria qualidade quanto para
garantir o equilíbrio ecológico (em especial, no que diz respeito à rotatividade de
culturas que mantém a saúde do solo).
Um exemplo interessante pode ser encontrado na produção de azeite.
Em algumas regiões da Itália, há oliveiras centenárias, cuja exploração é feita por
comunidades locais por meio de processos praticamente imutáveis ao longo de todo
esse tempo, incluindo a utilização de prensas de pedra acionadas por tração manual.
A qualidade desses azeites se dá pela combinação das características do terroir e da
adaptação das oliveiras a ele e também pelo conhecimento das comunidades no
manejo das oliveiras e produção artesanal do azeite.
Esse conhecimento tradicional transmitido através das gerações ajuda a manter viva a
história daquela cultura regional bem como garante as características desejadas
naqueles azeites.

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Tal qual acontece com a produção vinícola, a produção de azeites também tem uma
ligação profunda com o terroir e a preservação da tradição, história e, portanto,
cultura local.

Figura 4.3 ̶ Oliveiras na Itália.

A preservação de um terroir é também a preservação de uma comunidade local, sua


história, sua tradição, sua existência social e econômica e também, evidentemente, a
preservação ambiental que garantirá um insumo ou produto com características
singulares.
O Brasil perdeu algumas oportunidades de explorar terroirs dessa maneira. Claro que
temos regiões de produção de café, cacau e outros insumos locais que envolvem os
pequenos produtores. Um exemplo bastante notável é o cacau da Ilha de Combu, uma
história fabulosa.
Por outro lado, infelizmente, um dos produtos que mais ganhou destaque no mercado
externo nos últimos 10 anos foi explorado de maneira não sustentável: a castanha-do-
pará.
Conhecida lá fora como brazilian nuts, castanha brasileira, a castanha-do-pará acabou
recebendo esse nome oficialmente para a exportação, de forma que se retirou
completamente aquilo que mais importante essa oleaginosa carrega consigo: sua
origem.
Ao se exportar a castanha com o nome genérico de “brasileira”, se retira o terroir da
equação e se abre a possibilidade de se exportar castanha-do-pará que tenha sido

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cultivada em qualquer outra região que não o Pará e, consequentemente, não


apresentar as características desejadas e conhecidas derivadas do terroir paraense.
Mais do que isso. As comunidades que estão ligadas historicamente ao cultivo dessa
castanha não conheceram o benefício da popularidade desse produto no exterior, ou
seja, poderiam ter tido uma melhoria financeira, econômica e social, além de serem
estimuladas a preservar o terroir em seu manejo.
Fica nítida, portanto, íntima relação entre Sustentabilidade, Terroir e Gastronomia.

4.3 Certificações e mercado


Como uma das estratégias para mostrar ao mercado que determinados produtos
foram elaborados levando em consideração os métodos de produção discutidos nos
itens anteriores, há a adoção de certificados que podem ser locais, nacionais ou
internacionais.
Há certificações dadas a produtos sustentáveis, por exemplo. Existem outros
certificados emitidos a produtos orgânicos. Há também certificados que conferem
garantia de manejo ecológico da produção, e assim por diante.
Para um produto ser certificado e poder exibir em sua embalagem o selo de
certificação, é necessário que, evidentemente, sua produção siga a legislação
específica que determinará todas as condições e parâmetros de produção, havendo
fiscalização desse processo e revalidações cíclicas, ou seja, a certificação precisa ser
revalidada, pois pode haver mudanças na regulamentação, ou então, pode ser que a
produção tenha deixado de cumprir alguma norma ao longo do tempo.
Uma das certificações mais interessantes e que tem por objetivo estimular a
preservação do terroir e suas tradições culturais é o selo de Denominação de Origem.
Existente em diferentes países com diferentes nomenclaturas, todos apresentam a
mesma ideia: certificar que determinado produto foi desenvolvido em terroir
específico e que todos os insumos vieram exclusivamente daquela região.
Pode haver vinho, azeite e até arroz com Denominação de Origem, que garante que
naquela embalagem de arroz, por exemplo, todos os grãos são provenientes de um
mesmo terroir, não havendo mistura, composição com grãos de outras localidades.

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Já a certificação de Denominação de Origem Controlada vai mais além, pois certifica


que, além do terroir, o método de produção foi aquele tradicional nas comunidades há
gerações.
Dessa maneira, há um produto com diferenciação no mercado e o consumidor pode
escolher consumi-lo, seja pelas características que ele apresenta ou por querer fazer
um consumo consciente e contribuir à manutenção de um sistema social, econômico,
cultural e ambiental estabelecido naquela região.

Figura 4.4 ̶ Vinho com selo de DOCG ̶ O mais alto grau de certificação na Itália.

Conclusão
Neste bloco, pudemos explorar com mais detalhes a questão da Sustentabilidade e sua
real aplicação, que vai além da simples questão ambiental.
Também vimos a importância e a relação que a sustentabilidade possui com o terroir e
a preservação das tradições culturais e produtivas em determinada região, envolvendo

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os pequenos produtores locais e seu conhecimento sobre o manejo dos insumos e seu
beneficiamento.
A Gastronomia está envolvida em todos esses processos, o chef de cozinha é
engrenagem central para que esse mecanismo possa se movimentar, pois é esse
profissional que carrega a possibilidade de criar demanda, divulgar e estimular o
consumo desses insumos, enfim, é um formador de opinião e ator de transformação
positiva.

Referências

BARCELOS, G. Banquete da psiquê, imaginação, cultura e psicologia da alimentação.


Petrópolis: Vozes, 2017.

JAMES. K. Escoffier, o rei dos chefs. São Paulo: Senac-SP, 2008.

KELLY, I. Carême, cozinheiro dos reis. São Paulo: Zahar, 2005.

MONTANARI, M.; FLANDRIN, J. L. História da alimentação. São Paulo: Estação


Liberdade, 2003.

MONTANARI, M. Cucina politica. Il linguaggio del cibo fra pratiche sociali e


rappresentazioni ideologiche. Bari: Laterza, 2021.

MONTANARI, M. The culture of food. Hoboken, New Jersey: Wiley-Blackwell, 1994.

PERULLO, N. O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento.


São Paulo: SESI-SP, 2013.

SAVARIN, J. A. B. A fisiologia do gosto. Serra-ES: Companhia de Mesa, 2017.

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