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(VOLUME 2)
A CLÍNICA
AMBULANTE
COMO
AGENCIAMENTO
DE FORÇA
GABRIELA F. ALMEIDA
TATIANA ROCHA
GABRIELA FRANCO DE ALMEIDA
TATIANA LOPES ROCHA
UBERLÂNDIA, MG
2020
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................................PÁG. 3
NOTA SOBRE AS AUTORAS.............................................................................PÁG.4
CAPÍTULO 1 – COMECE POR AQUI (OU: OS PRIMEIROS PASSOS) ... PÁG.5
CAPÍTULO 2 - ACOMPANHAR E OCUPAR ESPAÇOS: UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA EM UM CASO DE TRANSTORNO OBSESSIVO
COMPULSIVO.....................................................................................................PÁG.8
APRESENTAÇÃO
1
Pedro é o nome fictício que demos ao paciente que ilustra o estudo de caso do livro.
NOTA SOBRE AS AUTORAS:
A Psicologia é uma instituição, a Marlene Guirado nos deixa claro. Por sua vez,
Gregório Baremblitt explica que instituições são lógicas de funcionar, repetições
compostas por burocracias e jeitos pré-definidos de agir. Tudo isso nos fisga em nossa
prática e o Volume 1 de Tornar-se Terapeuta foi uma convocação para nos colocarmos
em exercício de sensibilidade. Agora, no Volume 2, queremos avançar em nossa conversa
sobre prática clínica para falar mais especificamente sobre o cuidado para além do setting
de costume, para além de nossas salas do consultório. O que aconteceria se circulássemos
com o paciente e pudéssemos estar inseridos mais de perto, dentro de seu cotidiano,
experimentando novos cenários?...
O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma possibilidade de cuidado a céu
aberto, mas não necessariamente precisamos estar a céu aberto para dizer que realizamos
esse tipo de cuidado. Combinando definições, diríamos aqui que o AT também é
conhecido como clínica ambulante e nessa realidade de atuação o terapeuta tem a função
de acompanhar o cliente diretamente de dentro das cenas, inserido em seu cotidiano,
auxiliando-o em ações concretas. O objetivo do AT é a ampliação da novidade e da
circulação do paciente, promovendo novas possibilidades existenciais.
Entendemos que a existência se realiza a partir dos espaços e, portanto, se
ampliarmos a circulação, ampliaremos também as possibilidades de existência.
Na prática dessa clínica, a palavra toma corpo, toma gesto. O medo de atravessar
a rua, por exemplo, é enfrentado em conjunto e terapeuta e cliente se aventuram e realizam
juntos essa travessia, atuando com os corpos pelo espaço da cidade. Em momentos mais
delicados, a ampliação da circulação é no ambiente da própria casa, do quarto para a sala,
da sala para o quintal... A propósito, aproveito para perguntar sobre os nossos quintais...
Quanta vida não é possível cultivar ali?... Quantos escapes?...
Na experiência de consultório, percebo que os clientes muitas vezes acreditam que
as mudanças precisam ser radicais demais e que precisariam acontecer em grande-escala,
como um milagre, mas mudanças são processos e precisam ser construídas um passo de
cada vez. Nem sempre conseguiremos dar uma volta inteira e de forma prazerosa no
parque... Esse seria o ideal, mas podemos dar uma volta no quarteirão, e depois duas, e
depois três... Em algum momento a possibilidade de andar pelo parque todo se realizará.
Como uma primeira sugestão aqui, deixo em destaque: é preciso apostar nos primeiros e
pequenos passos.
Falando em pequenos passos, nesse tipo de trabalho a céu aberto o terapeuta vai
até a realidade do paciente e realiza-com, mas muitas vezes (geralmente no início) precisa
realizar-por. Explico... Pense que a vida do cliente estaria posta como um grande corredor
lotado de móveis inutilizados; uma clausura estreita e escura. O acompanhante chega e
não encontra muitas possibilidades, talvez até o desejo de uma mudança esteja
enfraquecido, sem destaque algum. Nesse momento inicial, então, é importante que o
acompanhante realize suas apostas em passagens, tire um ou dois móveis de lugar. Uma
máxima do AT é a aposta em fazer circular vida de alguma maneira. Nesse exemplo do
corredor em questão, talvez o paciente não consiga por si só tirar os impedimentos que o
estão imobilizando. O corredor está cheio, apertado, mas o acompanhante começa a tirar
um móvel de lugar, depois outro... e aí começa a ter um pequeno, mas potente espaço de
circulação de vida. Um fluxo começa a acontecer...
Na psicoterapia fazemos o que está descrito no parágrafo anterior a partir da
conversa com o cliente, em forma de palavra, como afetações simbólicas. No AT fazemos
isso a partir de ações concretas, materialmente, o que também vai alterando o simbólico.
Você saberia dizer por que as pequenas mudanças ou os primeiros passos em sua
problemática às vezes são tão desprezados? Você saberia dizer por que, na vida do cliente,
abrir as janelas, fazer uma hortinha no quintal ou apreciar um dia quente na praça do
bairro são atividades às vezes convencionalmente tratadas como “singelas demais”?...
Parte dessa resposta passa pela ideia produtivista que sustenta o mundo atual. Transitamos
pela cidade, por exemplo, não mais na apreciação de seus espaços, mas a partir da lógica
do consumo. Nós nos enclausuramos, também, porque as sensações de incapacidade, de
não-poder, de não-saber, se tornam paralisantes. O padrão que está sendo exigido é alto
demais e, meus caros, jamais o atingiremos.
Em nosso cotidiano e em nossas práticas com nossos clientes (sejam eles da
psicoterapia ou da clínica ambulante), é necessário criarmos dispositivos de força,
espaços possíveis de fazer a vida circular. Precisamos nos afetar com as potências de
viver, resgatando as belezas que nos são tiradas por essa lógica produtivista e de consumo.
Estamos sendo roubados em nossa saúde, capturados por essas forças caóticas de
produtividade-máquina e crentes em nossa inadequação.
Nosso primeiro convite para você já foi feito: aproxime-se do AT para agenciar
forças em sua prática profissional. Isso não significa que você precisará trabalhar como
terapeuta sempre em setting ambulante. Antônio Lancetti, em seu livro chamado Clínica
Peripatética, propõe a saída do setting como um recurso para combater repetições de
conversa. Ou seja, é possível nos utilizarmos da clínica peripatética no modelo da
psicoterapia, ajudando nossos clientes a performar, como mencionado acima, na criação
de espaços para a vida e no resgate de algumas belezas.
Por fim, nosso segundo convite: para conhecer aspectos mais práticos e mais
nuances do AT, aproveite a segunda parte deste livro. Trata-se de um relato de experiência
sobre algumas cenas do processo de Pedro (como já dito, este é o nome fictício escolhido
para o paciente). Essa segunda parte é o Trabalho de Conclusão de Curso da Tatiana,
elaborado e defendido em 2019. Tatiana hoje é psicóloga e trabalha como acompanhante
terapêutica.
CAPÍTULO 2
ACOMPANHAR E OCUPAR ESPAÇOS: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA EM UM
CASO DE TRANSTORNO OBSESSIVO COMPULSIVO2
Introdução
2
Não trabalhamos diretamente com diagnóstico e combatemos enquadres que capturam o cliente e suas
relações, mas achamos importante manter no título do TCC a descrição recebida a partir de critérios mais
objetivos e médicos. A descrição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-V)
é apenas uma descrição possível e não toda a verdade sobre o cliente. Essa descrição de sinais e sintomas
é necessária em alguns contextos como, por exemplo, para a administração da medicação.
a formalização da Reforma Psiquiátrica. O AT trabalha com o paciente fora do
consultório fechado, abrindo-se aos diversos territórios que se intercruzam na cidade
(Palombini, 2006).
Às vezes o espaço é a rua, outras vezes uma praça ou até a sala da própria casa
do paciente. A ideia é que o acompanhante terapêutico (at) possa se inserir no contexto
do sujeito acompanhado para trabalhar com a ampliação do vínculo e da inserção na
comunidade, com o desenvolvimento de habilidades sociais e na minimização de
sintomas.
De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, o
DSM – V (Associação Americana de Psiquiatria [APA], 2013, p. 240), pacientes
diagnosticados com Transtorno Obsessivo Compulsivo podem apresentar como
sintomas uma diminuição significativa de circulação e prejuízos sociais e profissionais.
A partir dessas restrições, podem precisar de ajuda terapêutica para transitar de sua casa
ao próprio serviço de atendimento psicológico ou para fazer atividades consideradas
simples, porém importantes do cotidiano, como ir à feira, ao supermercado, à praça ou
ao cinema. Destaca-se que a “ajuda” prestada nesse percurso, portanto, é uma ajuda
terapêutica; uma oportunidade de intervenção direta na cena de sofrimento, ou seja, uma
intervenção enquanto as dificuldades se manifestam, representando também a conquista
de espaços sociais (Porto, 2013).
O diagnóstico de adoecimento mental acarreta, em geral, exclusão, e o fato do at
vivenciar a manifestação do sofrimento do sujeito em sua realidade social é uma
importante ferramenta para intervenção. O at se insere no sentido de auxiliar o paciente
numa maior conquista de seu ambiente ou de novos espaços: poder circular é fomentar
a novidade, é combater a repetição e o aprisionamento dentro de um único modo de ser.
Na abertura de novos caminhos de circulação, há também a possibilidade de abertura de
novos modos de existência (Deleuze & Guatarri, 2011). Ao transitar pelo mundo, o
sujeito é afetado e o afeta, pois os dois (sujeito e mundo) só existem em relação. Então,
quando abrimos novos caminhos, experimentando o mundo e a alteridade, estamos
também experimentando a nós mesmos, e existindo a partir do contato (ser-com).
(Forghieri, 2009)
Um ponto importante deste texto e de todo o processo de acompanhamento que
aqui será contado, está em abordar o AT a partir da postura existencialista e humanista
que tem, por exemplo, a autonomia, o sentido da vida, a relação com o outro, a
autopercepção, a liberdade e a responsabilidade como norteadores do cuidado e da
existência (Forghieri, 1996). Trabalhar com o paciente a partir de tais compreensões é
importante para que ele se sinta ativo, e se reposicione em seu caminhar. Segundo Frankl
(2016), a Logoterapia confronta o paciente com o sentido de sua vida e o reorienta. O
processo de conscientização desse sentido pode contribuir em muito para a sua
capacidade de superar a neurose.
Essas perspectivas de trabalho compreendem o homem como construção e
oferecem maior protagonismo para a sua própria atuação em seu projeto de existência
em detrimento do foco no sintoma. O sintoma, a propósito, não existe por si só, mas
sempre em relação e pode representar um sinal de saúde, uma tentativa de equilíbrio.
Outra característica da perspectiva existencial-humanista está em explorar as
potencialidades do sujeito, entendendo que estas podem ser mais significativas que os
sintomas ou deficiências. As potencialidades e as deficiências não estão isoladas de
sustentação social, é importante destacar. Deseja-se que a pessoa acompanhada se
perceba no mundo, clareando a consciência sobre como suas relações estão sendo
estabelecidas e os efeitos disso. Ao se manifestar como ser-no-mundo, o homem anuncia
sua condição de estar sempre em relação a algo ou alguém, assim como explica Forghieri
(1996).
E a compreensão e o conhecimento de si requerem, necessariamente, a relação com seus
semelhantes, pois é esta que lhe possibilita descobrir e atualizar as suas características
peculiarmente humanas, tais como o amor, a liberdade, a responsabilidade, o contentamento e a
angústia. Só posso saber quem sou como ser humano convivendo com meus semelhantes.
(Forghieri, 1996, p. 99).
Método
Este trabalho trata-se de um relato de experiência de um processo de AT realizado
com Pedro, 46 anos e diagnóstico de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC).
O encontro com a acompanhante terapêutica (at) ocorria de maneira individual,
em dia e hora acordados entre as partes, sendo que o primeiro encontro foi mediado pelo
estagiário de psicologia, uma vez que o paciente já era atendido na clínica-escola da
Universidade. A oferta do trabalho de AT foi proposta em parceria com a psicoterapia,
entendendo que o cliente se beneficiaria de uma ajuda mais próxima.
Dados da história de Pedro foram suprimidos para a preservação de sua
identidade e houve concordância de sua parte em relação à elaboração de nossa
experiência clínica em formato de pesquisa e relato de experiência. No momento de
início do tratamento na clínica-escola da Universidade, documentos foram firmados com
esse cuidado ético.
Mais detalhes do processo com Pedro serão abordados abaixo, nos resultados.
Resultados
O primeiro contato entre at e paciente se deu com a tentativa de criação de
vínculo e posteriormente foram estabelecidos combinados sobre o funcionamento do
trabalho. A palavra combinado em AT é muito importante e faz referência aos acordos
estabelecidos para as atividades propostas, bem como à entrega do paciente em seu
processo (Freitas, Scagliarini, Decarlos, &Arantes, 2015, pp. 56-57).
No primeiro encontro, realizado ao ar livre em um espaço de convivência na
Universidade do Estado de Minas Gerais, a at levou um jogo de quebra-cabeças a fim
de facilitar a conversa e a criação de um possível vínculo. O acompanhado contou sobre
suas dificuldades devido ao TOC e disse não sair muito de casa, com exceção das
quintas-feiras – dia agendado de sua terapia. Acrescentou que, às vezes, após a terapia,
se dirigia a um forró, mas não entrava, ficava sentado em um bar ao lado e disse também
não saber dançar.
Nesse primeiro encontro, Pedro contou que não estava mais realizando
acompanhamento medicamentoso e explicou seus motivos: o primeiro motivo era a
alteração de um remédio para outro, o que lhe causou mal, e disse que também achava
difícil agendar uma consulta com um psiquiatra da rede pública de saúde. Ele contou
que está há cerca de quinze anos nessa vida; disse não ouvir músicas e não ter televisão
em seu quarto, onde passa a maior parte de seu tempo por conta da mania (palavra
utilizada por ele para descrever seus sintomas).
Acompanhante e acompanhado conversaram sobre o AT e como ele funciona e,
ao final da conversa, Pedro perguntou se no próximo encontro poderiam caminhar: “A
gente pode, né?” - e demonstrou interesse também em ir a uma feira-livre que ocorre na
cidade às sextas-feiras à tarde, porém sempre ressaltando que para ele era difícil fazer
essas coisas consideradas simples para os demais. Conforme o movimento no campus
aumentava durante esse encontro, a at notou que o acompanhado mexia mais suas mãos
e estalava os dedos, o que parecia revelar sua dificuldade em estar ali.
Nesse primeiro encontro, o paciente contou que fica em seu quarto quase que
todo o tempo, principalmente por conta da mania, mas não contou o que era essa tal
mania em si. Em supervisão, percebermos que nessa parte havia um ponto importante e
favorável ao acompanhamento: o paciente estava falando de si (e podia fazer isso), sem
precisar se apresentar pela via do transtorno com o qual era diagnosticado, isto é, outras
coisas sobre ele puderam (poderiam e podem) vir à tona, também ponto importante
dentro da perspectiva existencial-humanista. É necessário procurar para além dos
sintomas, potencializando aquilo que o paciente tem e não aquilo que lhe falta.
A at e o estagiário (que acompanhava o caso na modalidade de clínica
convencional) iniciaram um trabalho em rede, de modo que passaram a conversar para
pensar na melhor maneira de progredir com os atendimentos.
Como no primeiro encontro Pedro tinha demonstrado interesse em caminhar, a
at e ele decidiram que poderiam começar a circular nas dependências da Universidade,
de modo que o acompanhado conhecesse melhor esse espaço – que já era, de alguma
maneira, um espaço importante para ele. Aqui, uma observação: uma característica de
Pedro é que ele parecia se maravilhar com a possibilidade de estar num espaço aberto,
apesar de se sentir ansioso - fato também relatado pelo estagiário que o atendia.
Nesse dia, durante o passeio, a acompanhante perguntou sobre a semana e sobre
sua família e Pedro contou sobre seus irmãos e sobre suas sobrinhas. Ele acabou
contando nessa ocasião que também tinha um filho, um homem de 18 anos. O
acompanhado relatou não haver proximidade entre os dois, e disse que a última vez que
viu o filho foi em 2015, há dois anos. Pedro relatou que o filho lhe cobrou uma visita, o
que lhe angustiava, pois não se sentia capaz de realizá-la. O paciente parecia entristecido
ao contar que telefonou para o filho no seu último aniversário, mas ninguém o atendeu.
Pedro nunca havia contado em terapia sobre o filho e compreendemos que isso
revelava que o vínculo havia se estabelecido de forma positiva e que a proposta de AT
estava sendo bem recebida pelo paciente.
No terceiro encontro, o acompanhado contou sobre seus comportamentos
repetitivos, que consistiam em picotar os cabelos que caem do corpo e contou passar o
dia inteiro nessa tarefa. Essa partilha foi importante, pois significou um elo de confiança
entre as partes, o que é indispensável na relação acompanhante-acompanhado. O
paciente ainda contou sobre sua trajetória nos empregos e que, aos 30 anos, no mesmo
ano em que seu pai falecera, o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC, agora assim
nomeado por ele) se intensificou de modo que o acompanhado não conseguia mais
trabalhar, pois perdia a hora por se enrolar (sic) com os cabelos. Há cerca de 16 anos,
então, Pedro teve sua vida sufocada por essa repetição de sintomas. O paciente disse que
gostaria de um dia acordar sem cabelos e chegou até comentar que seria melhor morrer.
A at conversou sobre esses sentimentos fazendo o contraponto com o exercício que
Pedro estava fazendo para obter uma qualidade de vida melhor e que, mesmo com os
atrasos, ele estava cumprindo com o combinado, o que era um ponto importante.
Como Pedro tinha muita dificuldade em chegar na hora agendada, pois sempre
que se preparava para sair de casa se sentia ansioso e tinha dificuldades para sair, o
acompanhado e a acompanhante conversaram e decidiram que a estagiária o esperaria
por até 40 minutos. Facilitaria se Pedro aceitasse que a at fosse até sua casa, mas essa
não era uma alternativa negociável para ele naquele momento. Os atrasos do paciente
variavam e com o decorrer dos encontros ele conseguiu algumas vezes chegar mais perto
do horário combinado, porém houve um momento em que o paciente estava passando
por uma mudança em sua vida e faltou em muitos encontros. Com tentativas de
aproximação, diálogo, ajuda dos familiares e interesse de Pedro, foi possível retomar o
trabalho.
Um recurso trabalhado com Pedro foi o de sempre conversar sobre como ele
estava se sentindo em relação aos encontros. Além disso, a at utilizou o exemplo da
política de redução de danos para incentivá-lo, para conversar com ele sobre o quanto já
haviam caminhado e progredido. O paciente demonstrava preocupação em relação às
nossas expectativas e medo de falhar, por isso utilizamos o exemplo da redução de
danos, explicando que nos interessava que ele se sentisse melhor e que, talvez, a mania
não fosse extinta e que não precisaríamos nos preocupar diretamente com ela, pois
deveríamos nos preocupar com o bem estar dele, que antes não conseguia sair de casa,
mas que agora conseguia ir à terapia e ao encontro com a at.
O que queríamos comunicar é que mesmo que a mania não fosse extinta, os
danos poderiam ser reduzidos e que, assim, ele poderia se sentir melhor e estar mais
inserido na comunidade e até mesmo realizar algumas outras escolhas para si. Se antes
ele se ocupava o tempo todo com os cabelos, agora poderia se ocupar com isso por
menos tempo... Horas sobrariam para Pedro que poderia, então, fazer outras coisas que
achasse interessante.
A redução de danos é uma estratégia utilizada no cuidado de pacientes que fazem
uso abusivo ou que são dependentes de álcool e drogas, e é uma possibilidade de auxiliar
os clientes que não conseguem ou que não querem ficar sem a utilização de alguma
substância psicoativa.
A at e Pedro conversaram bastante sobre alternativas para saírem do espaço da
Universidade e descobrirem outros lugares; nesta conversa o paciente disse que os
encontros o faziam bem, pois era uma segunda-feira e ele havia saído de casa: “Vim
caminhando... Aí eu já vejo as coisas, as ruas...” - tal afirmação demonstra a importância
do estar fora e do movimento para o acompanhado.
No sétimo encontro, decidiram caminhar pelo bairro em que o paciente reside,
pois ele disse que não fazia uma caminhada longa há anos. Depois de se exercitarem,
foram até ao Equipe de Saúde de Família (ESF) para que o paciente aferisse sua pressão
e aproveitaram para agendar uma consulta com a médica especialista em clínica geral.
No começo o paciente hesitou, mas logo depois concordou e conseguiu realizar o
agendamento. Após a ida a ESF, Pedro pediu para que a at conhecesse sua mãe e foram
até o portão de sua casa e elas puderam conversar um pouco.
O acompanhado não quis entrar com a at em sua casa, mesmo sua mãe tendo
insistido. Quando voltaram a caminhar, ele explicou que se entrasse em casa, teria
dificuldade para sair novamente e que ele queria dar mais algumas voltas. Ao fim do
encontro, a at entregou para Pedro um livro de poesias e explicou que ele poderia ler em
seu tempo. Conversaram sobre como a leitura poderia auxiliar na redução do tempo
gasto com a mania e na potencialização do novo. Na perspectiva existencial-humanista,
o encontro com a novidade e com a beleza é algo valorizado. Se o paciente se mantém
em repetição, funcionando apenas de uma forma, ele está comprimido, fechado diante
das múltiplas possibilidades de existência (Frankl, 1984). No período de um mês o
paciente terminou a leitura e pouco depois iniciou outra.
Seguindo nas cenas do AT, houve um episódio importante em que as ligações
telefônicas tiveram papel fundamental na manutenção do vínculo. A faculdade entrou
em recesso e a at e Pedro passaram vinte dias sem se encontrar. Após o retorno das
atividades o paciente teve dificuldade em sair de casa e uma estratégia foi nos valer de
ligações telefônicas. A acompanhante ligava, marcava o horário (com a concordância
do paciente), mas ele não conseguia comparecer. Essa situação durou cerca de três
semanas. Quando conseguiram se encontrar, o paciente chegou bastante ansioso,
dizendo que estava se sentindo mais preso ao comportamento repetitivo de picotar os
cabelos e também contou ter faltado na consulta que havia agendado na ESF, mas que
sua mãe havia pegado uma receita de Sertralina para ele. Notamos que todas as vezes
em que conversamos sobre a possibilidade de a acompanhante esperá-lo na porta de sua
casa ou qualquer aproximação nesse sentido, o paciente recuava e então decidimos
respeitar esse espaço e encontrar outros meios de aproximação. O paciente pareceu estar
mais calmo ao final do encontro – e reconheceu isso. Entretanto, novamente se ausentou,
faltando em alguns e desmarcando outros encontros, o que ocorreu por cerca de um mês,
com contato apenas pelo telefone.
Um mês depois a at e ele conseguiram encontrar-se e o paciente estava com
aparência abatida, dizendo que o estagiário que era seu terapeuta e a acompanhante
poderiam pensar em desistir dele pelas tantas faltas, pois ele mesmo já havia desistido.
Nesse momento foi importante fazer uso do acolhimento, tentando demonstrar empatia
e que, de fato, estávamos com ele nessa jornada de cuidado. A at e Pedro combinaram
de caminhar no próximo encontro e conseguiram ir a uma pista de caminhada
movimentada da cidade. Neste dia conversaram basicamente de coisas que viram
durante o caminhar: pessoas, árvores, quantidade de carros... Enfim, conversaram sobre
o movimento da cidade.
No último semestre de trabalho, especialmente coincidindo com a dificuldade do
paciente retornar ao processo de AT, ele recebeu a notícia de que se mudaria de casa e
que na nova residência não teria um banheiro só para si, o que lhe causou muita
ansiedade e angústia, pois sabia de sua demora ao usar o banheiro por conta do TOC
(sic) e tinha preocupações com sua mãe. Além disso, o paciente não conseguia tomar
diariamente a medicação, e manteve-se esquivo em todas as vezes que a at e ele
conversaram sobre a ida a um psiquiatra. Em vista das dificuldades de Pedro, sua irmã
entrou em contato com a clínica-escola para conversar com o estagiário de psicologia
que o atendia. Após a orientação, a família decidiu construir um banheiro para ele. O
paciente se sentiu aliviado com essa notícia e feliz por terem se importado com suas
questões, mas demonstrava-se muito ansioso em relação à mudança: para ele era difícil
organizar as coisas do quarto e enfrentar uma mudança de espaço. Apesar dessas
dificuldades, o enfrentamento foi feito e o paciente começou a organizar seus pertences.
No começo do ano letivo seguinte, a clínica-escola o contatou via telefone para
avisar sobre o início dos atendimentos. A secretária informou que o paciente poderia
continuar com a psicoterapia, além do acompanhamento terapêutico, e Pedro respondeu
que não conseguiria continuar com os atendimentos, pois passou todo o período das
férias (de dezembro a março) dentro de casa e que não estava bem para sair. Esse
possível desligamento de Pedro gerou discussão de caso durante a supervisão e o
repensar de estratégias de aproximação, pois não queríamos renunciar ao trabalho com
ele. Entendíamos que aquela desistência era mais um ponto difícil da história de Pedro
com seus sintomas.
A at sabia do novo endereço, pois o paciente, em uma das caminhadas, havia
indicado que aquela era a construção de sua nova casa. Sendo assim, com a liberação da
supervisora, a acompanhante se dirigiu até a casa de Pedro, tentando contato, o que não
foi possível. Em seguida e não desistindo, a at se dirigiu até a ESF do bairro e conseguiu
conversar com a agente que cobria o endereço do paciente. A agente responsável disse
que o portão ficava aberto, que a casa era bem no fundo e que se a estagiária quisesse,
poderia acompanhá-la até à casa de Pedro e assim o fizeram. Quando chegaram
novamente na residência do paciente, sua mãe as recebeu e a agente explicou que a at
gostaria de conversar com Pedro. Sua mãe autorizou e pediu para que entrassem na sala,
sendo esse o primeiro momento de entrada da at no universo da casa de Pedro.
Assim que entraram, o paciente saiu de seu quarto, mas conversou com a at
mantendo-se no corredor, sem se dirigir à sala. Estava mais magro, com a barba e cabelos
crescidos e disse não sair de casa desde a mudança. Explicou que estava sofrendo pelo
cheiro de tinta, disse que isso lhe causava alergia. A at também pôde dizer que havia se
preocupado com sua ausência e que por isso se dirigiu até sua casa. Pedro esboçou uma
expressão de contentamento com essa visita, embora ela tenha acontecido sem aviso
prévio.
Esse movimento da at de romper com a desistência do paciente e de visitá-lo
apesar de seu anúncio de parada do processo, se deu por acreditar que a decisão dele, na
verdade, não era exatamente uma escolha e sim uma forma de se confinar pelo
agravamento da situação psicológica. Nesse contexto, o confinamento parecia ser para
o paciente sua única opção. O movimento da at de tomar frente e fazer algo apesar da
vontade contrária do paciente, recebe o nome na literatura de violência necessária e,
segundo Baremblitt (1991), tal prática pode ser utilizada em
[…] situações em que o paciente desfez seus contatos com o mundo objetivo das
coisas e das pessoas [...] o AT intervém tendo em vista a falta de escolha que
levou o paciente à cisão […]. Ao afirmar uma força em direção à vida, um desejo
de vida (tanto do paciente quanto do AT), encontramo-nos frente à necessidade
de invadir a vontade e a pseudo-autonomia de escolha destes pacientes.
(Baremblitt, 1991, p. 235)
Considerações finais
Referências
Deleuze, G., & Guattari, F. (2011). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:
Editora 34.
Freitas, A., Scagliarini, A., Decarlos, D., &Arantes, M. (2015). Nas trilhas do
acompanhamento terapêutico. Uberlândia: Composer.
Hirdes, A. (2009). A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re) visão. Ciência & Saúde
Coletiva, 14(1), pp. 297-305.
Palombini, A. L. (2006). Acompanhamento terapêutico: dispositivo clínico-político.
Psyche (São Paulo), 10(18), pp. 115-127.
Rogers, C. (1961). Tornar-se Pessoa. (5ª ed.). São Paulo: Martin Fontes.