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DUBY, Georges. Eva e os Padres. In: As Damas do Século XII. Trad. Paulo Neves e
Maria Lúcia Machado. Ed. SCHWARCZ S.A, São Paulo, 1996.
No texto do bispo, denota-se a ideia que os dirigentes da Igreja faziam das mulheres,
impetuosamente sensuais e num combate dissimulado contra a pureza dos celibatários. Nessa
“valsa de misoginias” descrita por Duby, os passos não são novidade do bispo, mas uma
constante no imaginário e nos cânones literários, que é então transposto para a linguagem
satírica das cortes o conteúdo das bibliotecas eclesiásticas.
Tributária de duas obras, o ardiloso Livre des dix chapitres de Marbode e o austero
Decretum de Buchard Worms, a perspectiva oferecida pela combinação não poderia se
diferenciar de outra se não o ataque, a representação quimérica do gênero feminino como
continuação de Eva, para então trazer o diagnóstico, a penitência para o pecado, a vergonha e
o reconhecimento das faltas do âmago da alma. É simbólico do Séc. X é este movimento da
Igreja em regular seus procedimentos de controle e dominação, por meio da inquisitio,
infiltrando-se no seio do povo, intermediado por seu braço de emissários juramentados,
perscrutando e tipificando as condutas pecaminosas, numa espécie de “economia do pecado”,
se colocado em termos foucaultianos.
Ponto importante traz Duby no que diz respeito aos inquiridores, que dificilmente
penetravam no recinto doméstico onde se enclausuravam as mulheres, de modo que a maior
parte das informações provinham dos homens, mais especificamente vizinhos. Portanto, todo
o universo feminino do pecado formulado nas questões possui uma tendenciosa dimensão
masculina, da qual o historiador deve ter em vista ao cotejar e interpretar fontes eclesiásticas.
Percebe-se que a mulher inquieta o homem, destarte, por ser portadora da morte.
Portadoras de uma natureza que a fazia pecar de determinada maneira distinta do pecado
masculino, num campo sexual e mágico. Mesmo profissionalmente, na fiação, havia a vazão
para o pecado, recitando fórmulas mágicas tributárias de deidades como Diana, as Parcas e a
feiticeira Holda. A mulher então é pecadora quando sai de seu papel, consegue seu próprio
prazer e forja suas armas, desafiando o poder masculino e a condição de inermis e de ternura
a elas imposto pela vontade divina.
De modo que a atenção passa a ser numa tipificação e punição dos pecados que
ocorrem fora do campo de vista do marido, no recanto escuro da moradia, entre as aias e
damas. Quando sonham, cuidam das crianças, onde trocam segredos entre si, onde a
responsabilidade pelos atos e pensamentos da mulher se tornam mais frágeis e tateantes.
Segundo Duby, é responsabilidade do marido responder sobre os sortilégios, adivinhações e
confabulações com o Inimigo, pois as mulheres são naturalmente tomadas como
irresponsáveis nessa hierarquia. Se as outras mulheres da casa repetem em coro as
reprovações da Igreja, cabe à figura masculina dominante calar-lhes.
Portanto, para o autor, dois fatos se destacam: a vontade primordial de impedir que as
mulheres atentem contra a vida (bem como a apropriação da semente, da força viril do
masculino) e o abuso do próprio corpo, por magias. Nesse código penitencial, construído por
homens, denota-se o rigor em punir a mulher e a indulgência e moderação para com o
homem, ferramentas defensivas de uma ordem natural (e divina) da hegemonia masculina,
que repreende duramente aquilo que desvie da heteronormatividade medieval. Portanto, se
buscava inutilizar os instrumentos temíveis e debilitantes femininos, que podiam muitas
vezes estar inofensivamente repousando ao lado do cônjuge, prestes a lançar suas garras
quando estes adormecem.
De modo que os destinatários dessas obras, tais como o Livre de Manières, eram os
maridos, os chefes de família, e os pecados trazidos eram o das damas, mulheres casadas. Os
maridos temiam ser enganados, “desvirilizados”, além de temerem a indocilidade e os
humores femininos. A mulher então passa a ser considerada, no final do séc. XII, ativa e
desejosa de gozo, figura que precisava ser disciplinada pelas morais do casamento,
congregação progressivamente posta sobre controle e principiologia da Igreja. Garantia de
uma ordem social, espécie de vassalagem que subordinaria a mulher ao seu senhor, seu
marido.
Não obstante, o próprio gozo (allegria) passa a ser justificado, porém apenas como
remédio para a fornicação, justificando o prazer masculino e dissociando o gozo da loucura.
A dita perfeição feminina, por sua vez, apenas seria possível pela moderação da velhice,
despojada de sua feminilidade e fogo. Nesse tenso e fragilizado espaço entre a mulher
tentadora e naturalmente fogosa e sua forma idealizada de dama envelhecida e matronal,
restava aos homens o temor, a ansiedade ao observar suas companheiras e perceber a
invocação da imemorial Eva e o pecado da carne em seus corpos.
Por conseguinte, Duby traz uma breve descrição do começo do livro do Gênesis sobre
a criação do mundo à figura de Deus, bem como as origens divinas de uma moral,
responsável por responder três perguntas fundamentais: o” porque da sexualidade”, “por que
da culpa” e “porque da infelicidade”. Partindo das reflexões realizadas em mosteiros no séc.
XII, o autor enfoca em cinco comentários: Robert de Liège, Abelardo, Pierre le Mangeur,
Hughes e André de Saint-Victor, bem como o arcabouço conceitual que tiveram de Beda, O
Venerável, Alcuíno, Ruban Maur e Santo Agostinho. A ideia geral é a posição de uma mulher
tida como ajudante, dentro de uma lógica hierárquica na qual seria submissa como o operário
seria ao chefe de oficina. Portanto, um dirige e o outro obtempera. Desse axioma, a moral
seria um princípio masculino e o apettitus (desejo) um princípio feminino. Ainda que a
mulher possua razão, predominaria nela o desejo animalesco do apetite sexual.
Por outro lado, para Beda o Venerável, é a serpente quem engana Eva, aconselhando-a
ao prazer e também à culpa. Esta, por sua vez, contemplou com os olhos o proibido, prelúdio
para a avareza de gozar, de elevar-se. Simbólico dessas conclusões é o ideal monástico do
séc. IX, que coloca o pecado na figura da mulher, e o fruto proibido no sexo. Portanto, o
homem rectus, cujo espírito superior rege sob a carne, é subvertido de sua ordem natural (e
divina, pois assim fora concebido por Deus) pelo erro, pela imperendo feminino, sua vontade
de comandar. Dessa vontade de comando, Eva padece, e pela dor física e sujeição ao
masculino, passa a ter que esconder o sexo íntimo e sua cabeça, apregoando a vergonha dos
ardores do ventre e de sua “temeridade imperiosa”, sua mistificação e divagações frívolas.
Para Abelardo, por sua vez, a mulher não é mais que o simulacro da imagem de Deus.
O homem, feito à imagem divina, seria assim menos culpado do pecado primordial, tendo
cometido “falta leve”, motivado por afeição, e não malícia. De modo que no séc. XII, num
contexto de cristianismo que passava do rito para a conduta moral, especialmente pela
introspecção e penitência íntima e auricular, a questão do pecado é urgente. Sua explicação
reside na mulher orgulhosa, em sua vontade de prevalecer sobre o homem, por sua cobiça e
apetite de prazer. Como um reflexo, não age por si mesma e é passiva por uma ordem
primordial, que se torna ainda mais forte quando Eva curva Adão à sua vontade.
Por conseguinte, Duby faz comentários acerca da analogia entre a maçã e a carne, o
corpo deleitável da mulher que era oferecido à Adão, movimento moral que desperta a
indulgência e identificação dos clérigos monásticos, os mais encarniçados no ideal de
castidade celibatária e resistência, buscando a maior proximidade possível com os anjos. Para
Duby, em três lugares estão as mulheres corruptivas: Nas cidades, no campo e no interior da
casa. Logo, a melhor defesa para os leigos seria então o casamento, o sétimo entre os
sacramentos que garantiria a procriação como “desculpa” aos prazeres carnais.
Numa análise foucaultiana, ainda que distante do recorte histórico trabalhado, é
possível perceber uma certa “economia da vigilância e castigo” feminino: No final do séc. XI,
o autor ressalta um processo de se instalar certas mulheres em mosteiros, bem como fazer
com que esposas de nobres comparecessem diante de tribunais de penitência. Interessante
analisar essa ação como uma forma de atenuar, vigiar e até mesmo educar para uma vida de
piedade edificante, que por sua vez limitaria os pecados inerentes de sua condição feminina
(pelo menos até atingir a idade matronal, a velhice).
Caminhando para o final, Duby chamará atenção para o movimento iniciado nos séc.
XI e XII (e cristalizado nos séc. XIV e XV), caracterizado por uma prática religiosa cada vez
mais pública, desejosa de atingir os núcleos leigos e o campesinato por meio de pregações em
língua vernacular. Tributário desse movimento é a tendência cada vez maior para um
abrandamento, menos exaltado, e que buscava dar lugar mais sensato ao sexo. Portanto, forjar
uma moral que pudesse convir à uma sociedade em ebulição demográfica, necessitada de
uma religiosidade que fosse mais próxima e praticável ao citadino, nobre e campesino leigo.
Faz-se necessário então mostrar uma Eva em tonalidades menos sombrias. Na mesma toada,
o autor tratará das noções de amor que concebidos a partir do momento em que os aparatos
de defesa da instituição matrimonial passam a ser tutelados mais fortemente pela Igreja, bem
como comentários acerca dos amores impudicos, a amizade feminina pura e a figura da
Virgem Maria de amor.
Em suma, são simbólicas as palavras finais de Georges Duby, ao ressaltar que tudo
que pôde encontrar das mulheres do séc. XII foram sombras vacilantes, discursos entrevistos
por uma autoridade masculina, desejosa de controlar e limitar o feminino, pelo medo e por
uma noção de superioridade natural desde o Gênese. Ainda que iguais no orgulho que os teria
levado a danação, como ressalta Agostinho, sempre seriam desiguais no sexo, a mulher
duplamente punida nas dores do parto e na sujeição ao masculino. Do amor para a condição
de sujeição, pois se afastou da liberdade pela sua falta, pelo desejo, pecado três vezes
superior: Se deixou seduzir, buscou o prazer e fez Adão partilhá-lo.
Como conclusão, é inescapável aos autores desta resenha não trazer à baila Marc
Bloch e Lucien Febvre, no que concerne à urgência de uma história-problema, que analisa o
passado em favor das demandas do presente. Da metade do séc. XX até a
contemporaneidade, novas narrativas se fazem presentes na produção historiográfica, vozes
que foram caladas e legadas à uma posição marginal por tempo demais. O feminismo
conquista cada dia mais um espaço outrora monopólio masculino, de modo que analisar a
figura da mulher no medievo requer uma ambivalência no olhar historiográfico, espécie de
óculos com lentes em graus distintos: Uma lente perscrutando o passado e suas morais,
julgando-o conforme suas próprias regras e mentalidades, essencialmente anti-teleológico. A
outra lente, tributária do benefício da retrospectiva, atualizada às demandas atuais e às
contribuições e linhas historiográficas já produzidas, sempre atenta às novas pautas e seus
porquês, quais seus núcleos sociais e gêneros.
Ainda que seja difícil caminhar com tamanha engenhoca multifocal na face, bem
como as dores de cabeça e tropeços ideológicos e epistemológicos, há de se encontrar um
salutar equilíbrio nos passos daquele que caminha nas veredas do passado guiado pelo
presente, e tendo como horizonte o futuro.