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O método cientifico em Historia A Historia tradicional e seu método de critica documental erudita Natureza do conhecimento historico — Paraoshis- toriadores de fins do século XIX e principios deste, ao contrario das ciéncias baseadas na observacio direta (Fisica, Quimica, Astronomia, Sociologia, etc.), 0 co- nhecimento histérico se basearia na observacio indi- reta dos fatos histéricos através dos testemunhos con- servados. Ao tratar-se de fatos passados, chegar a co- nhecé-los dependeria estritamente daquilo que, sobre eles, nos dissessem as fontes, e muito especialmente os documentos escritos. Este argumento era usado para justificar a obsessdo dos historiadores de entdo com as fontes, chegando as vezes a uma espécie de ““fetichis- mo*’’. Acontece, no entanto, que a oposicao entre disci- plinas de observacdo direta ¢ a Histéria, cuja obser- vacdo seria unicamente indireta, é das mais duvidosas. A Fisica, por exemplo, inclui em suas teorias muitos elementos cuja observacao direta nado é possivel, e o mesmo ocorre com muitas outras ciéncias. E nem UMA INTRODUCAO A HISTORIA. 51 sempre a observacdo direta é vedada ao historiador — por mais que, de fato, tenha limites As vezes estritos, Ao trabalhar com vestigios materiais de diversos tipos — monumentos, moedas, restos descobertos em esca- vacoes, etc, — temos, justamente, casos de observacao direta. O que ocorre igualmente em outras ocasides: “Tanto como o silex trabalhado outrora pelos ar- tifices das idades da pedra, um aspecto de linguagem, uma regra de direito incorporada num texto, um rito fixado num livro de ceriménias ou representado numa estela, sdo realidades que nés proprios apreendemos e que exploramos por um esforco estritamente pessoal de inteligéncia. Nao houve necessidade de nenhum outro cérebro humano como intérprete. Mas nao é menos verdade ... que o historiador se encontra neces- Sarlamente reduzido a s6 saber pelos relatérios de um estranho o que se passa no seu laboratério. S6é chega depois da experiéncia terminada. Mas, se as circuns- tancias forem a seu favor, a experiéncia terd deixado residuos que nao lhe sera impossivel percepcionar com os seus proprios olhos” (Marc Bloch, Introducdo @ Historia, trad. de Maria M. Miguel ¢ Rui Gracio, Lis- boa, Publicacées Europa-América, 1965, p, 52). Que pensar do mencionado “fetichismo” do docu- mento, em particular das fontes escritas? Langlois ¢ Seignobos, no manual j4 mencionado, eram taxativos: “A histéria se faz com documentos. ... Porque nada substitui os documentos: onde nao ha documentos nao ha Historia’. Numa afirmacdo como esta ha algo de verdadeiro e, ao mesmo tempo, algo de falso. Verda- deiro porque, efetivamente, a auséncia de fontes im- pede que um historiador possa realizar plenamente a sua funcdio: como comprovar, sem elas, as suas hipd- teses de trabalho? E verdade, inclusive, que as fontes escritas sao particularmente importantes. O especia- 52 ‘CIRO FLAMARION S. CARDOSO lista de Histéria Antiga, por exemplo, sabe que quan- do aos vestigios arqueolégicos no se associam textos, o tipo de conhecimento a que se pode chegar é singu- larmente limitado. O que ha de falso naquela afir- macio decorre de que, no fundo, as fontes (escritas) eram consideradas pelos historiadores tradicionais nao apenas como condicdo necessdria do labor histé- Tico — o gue é legitimo; mas também — com a tinica condicao de as saber analisar em forma critica — como uma condicdo suficiente, o que é totalmente ina- ceitayel. Marc Bloch disse, com muita razio, que as fontes séo como as testemunhas: sé ‘‘falam” utilmente se soubermos fazer-Ihes as perguntas adequadas. Ora, tais perguntas nfo decorrem das préprias fontes, nao nascem delas, e sim da cultura histérica do pesqui- sador, da sua base tedrica, de mil conhecimentos ex- ternos dquele documento com que estiver trabalhando no momento. Por isto, o historiador e metodolégico polonés J. Topolski tratou de distinguir cuidadosa- mente, no trabalho histérico, os conhecimentos ba- seados em fontes daqueles que ndo o s’o — embora chamando a atenc4o, sensatamente, para o fato de que nao se deve usar tais consideragdes no sentido de tentar desvalorizar o papel dos documentos na pes- quisa historica. Eles nao sio condicio suficiente para que a Histéria exista como disciplina; mas, como sao indubitavelmente condicdo necess4ria, ocupam um lu- gar insubstituivel. Os conhecimentos prévios ao processo de pes- quisa: heuristica e disciplinas auxiliares — Os histo- riadores tradicionais distinguiam a obtencao de certas UMA INTRODUCAO A. HISTORIA 53 informagdes e conhecimentos como algo necessaria- mente anterior ao processo de pesquisa. Em primeiro lugar teriamos, nesta ordem de idéias, a heuristica, ou seja, a atividade que consiste em localizar, reunir, classificar fontes histéricas, delas fazendo em seguida listas, repertérios, inventdrios, in- dices remissivos, e¢ mesmo tratando de Publica-las, guando forem documentos manuscritos considerados de grande importancia. Estas fungdes sdo normal- mente exercidas por bibliotec4rios, arquivistas e ou- tros tipos de documentalistas, mas 4s yezes também historiadores a elas se dedicam, ou as orientam, Hoje em dia, em comparacdo com o século XIX, a heuris- tica dispde de varios meios adicionais de armazenar e fazer circular a informacio de que precisam os histo- tiadores, além dos manuscritos e fontes impressas de tipo tradicional: computadores, tmicrofilmes, micro- fichas, cépias xerox, filmes, etc. Por outro lado, entre os conhecimentos prévios era também incluido o dominio de pelo menos al- gumas das disciplinas auxiliares da Histéria, matérias técnicas resultantes da sistematizacdo de longa pratica € qué constituem um dos fundamentos da erudicdo cri- tica do historiador. Eis aqui algumas das principais disciplinas auxi- liares: Diplomatica: estuda documentos provenientes de chancelarias medievais; Numismatica: estudo das moedas que ja nao cir- culam e, por extensdo, das medalhas: Filologia: conhecimento e interpretaco dos tes- temunhos escritos; em outro sentido, estudo das for- mas lingilisticas e do seu uso; Sigilografia: dedica-se aos selos, lacres e outras 54 CIRO FLAMARION S. CARDOSO: formas de autenticar documentos ou manifestar a pro- priedade (sinetes, etc.); Paleografia: estudo das maneiras de escrever e de sua evolucdo, incluindo os materiais nos quais e com os quais se escreve; Criptografia; analise e decifracio dos textos redi- gidos em cédigo (alfabetos substitutivos, etc.); por ex- tensio, decifracZo de escritas antes impossiveis de se- rem lidas (os hieréglifos egipcios, o cuneiforme, o li- near B da civilizac4o creto-micénica, etc.); Epigrafia: estudo e leitura das inscri¢ées; Papirologia: analise dos textos escritos em pa- piros (em especial textos egipcios faraOnicos e textos greco-romanos ¢ bizantinos do Egito); Genealogia: estudo da filiagio humana, da su- cessao das geragGes, em especial no concernente a fa- milias reais e nobres (mas ultimamente muito aplicado a familias comuns pela Demografia Historica); Heraldica; estuda os simbolos hereditarios, em particular as armas e brasdes das familias reais e no- bres; Cronologia: ocupa-se do tempo e de sua medida, sendo sobretudo ‘‘a arte de verificar as datas” e 0 es- tudo dos miltiplos calendarios humanos. Como se apresenta, na atualidade, a questio das “disciplinas auxiliares”? Algumas das que acabamos de mencionar passaram por importante avan¢o tecno- légico. Por exemplo, a Cronologia conta hoje com so- fisticados processos fisico-quimicos de datagZo. Mas o mais importante a assinalar talvez seja que a lista se alongou, de tal modo que dificilmente podemos es- perar, hoje em dia, que um sé historiador possa do- minar a totalidade das disciplinas auxiliares da His- toria. A Estatistica e a Informatica devem ser con- UMA INTRODUCAO A HISTORIA 55 tadas, agora, entre os apoios de numerosas pesquisas histéricas. A Arqueologia — outrora vista como uma espécie de técnica auxiliar, seja da Histéria, seja da Antropologia — trata de constituir-se numa ciéncia especifica, sem por isto deixar de ser um dos esteios de varios ramos de estudos histéricos. OQ mesmo se pode dizer da Geografia Humana, da Sociologia, da Eco- nomia, da Antropologia ¢ de outras ci€ncias sociais: sao ciéncias especificas, mas também funcionam como matérias auxiliares da Histéria em muitos casos. A impossibilidade de aprender a totalidade do que hoje so as disciplinas imprescindiveis ao trabalho histérico no seu conjunto, alzumas altamente técnicas, é um dos mais importantes fatores que tém levado ao avanco da especializacdo entre os historiadores profis- sionais. Assim, o historiador da Antigiidade deverd possuir solida formacdo filolégica especializada e bom treinamento arqueolégico, paleografico, epigrafico; o historiador econémico tera de aprender Economia, Estatistica e em certos casos principios de Informa- tica*; e assim por diante. E evidente que, em con- dicées ideais (que nao sao as de nosso Pais), 0 histo- tiador pode associar-se a outros especialistas: por exemplo, estatisticos ou técnicos em computacaio (programadores); necessitaria, porém, mesmo nesse caso, conhecer com alguma precisdo as areas em que atuam tais especialistas, para que o didlogo com eles e ouso dos seus setvicos possam ser frutiferos. Operacées analiticas do método histérico tradi- clonal: a critica externa dos testemunhos — Esta etapa do método tradicional 6 também conhecida como “eri- tica de erudico”, pois é no seu Ambito que mais age o aparelho de erudicao apoiado nas “disciplinas auxi- 56 CIRO FLAMARION 5. CARDOSO liares’”’. O seu cerne consiste em determinar se um do- cumento é auténtico ou falso, no todo ou em parte, em primeiro Ingar: isto se faz comparando-o com outros documentos da mesma época ja conhecidos como au- ténticos, ou, na falta destes, com o contexto sécio-cul- tural da época em quest&o, Em seguida, trata-se de restabelecé-lo qual era na sua forma primeira, no caso de ter sofrido alteracGes, de localiza-lo no tempo ¢ no espaco, e de determinar a sua autoria. A critica de restifuigdo é um controle detalhado do texto documental, no sentido de restaura-lo em seu estado original, pelo preenchimento de lacunas, pela correcdo de erros de cépia, pela eliminac&o de inter- polagdes devidas a sucessivos copistas. Grande ni- mero de fontes escritas (principalmente antigas e me- dievais) s6 nos sdo acessiveis em forma de cépias, o original tendo-se perdido. Cépias diversas de um mes- mo documento podem apresentar divergéncias ou contradigdes entre si, e o erudito que as examina deve optar por algum. das variantes em cada caso. Os erros sao descobertos por causarem incorrecdes gramaticais (levando-se em conta os usos do autor e da lingua como se apresentava na época da redacio original do texto), contradigSes, absurdos, anacronismos — por exemplo ao atribuir a um autor ou época conheci- mentos de que nao podiam dispor. As interpolacdes sdo detectadas em forma semelhante. O modo de rea- lizar a critica de restituic4o passa pelo estabelecimento da genealogia das cépias disponiveis de um mesmo documento, ¢ pelo confronto sistemAtico de tais cépias entre si. Outra operacdo é a critica de procedéncia, que determina, quando necessario, a data, o lugar de ori- gem ¢ a autoria de dada fonte. H4 numerosos docu- mentos que nunca foram datados; as datas podem UMA INTRODUCAO A HISTORIA ST perder-se; e ha também problemas ligados a con- versées de um a outro calendiario, a datas incompletas, etc. A Paleografia, que estuda as formas de escrever € os suportes materiais da escrita na sua transformacio temporal, é aqui de grande valia. No caso de docu- mentos descobertos ao escavar, recorre-se a estrati- gtafia ou a métodos de datac%o absoluta (quémicos, baseados no carbono 14, etc.), Outro modo de esta- belecer a data é pela mencdo, na fonte, de fatos ja datados alhures: o confronto entre documentos é aqui — como em todos os aspectos da critica historica — algo essencial. A determinacao do lugar de origem de um docu- mento pode as vezes ser feita levando em conta as par- ticularidades lingtisticas e dialetais. Por outro lado, no caso de fontes materiais — moedas, ceramica, etc. — ofato de encontrar objetos caracteristicos de dada cultura no territorio de outra é historicamente rele- vante, ao indicar comércio e contactos culturais. Con- vém, por outro lado, também interpretar a “‘origem’’ num sentido social além de geografico: os centros de interesse revelados pelo texto “denunciam” o grupo social responsavel por sua elaboracao. Finalmente, mesmo nos livros impressos mais an- tigos existe o perigo de que se percam as indicagdes Telativas ao autor, pois, quando constam, se acham ou nas primeiras ou na tiltimas paginas, que sZo as partes mais yulnerayeis de um volume ao se deteriorar, Exis- tem também problemas de textos anénimos, assinados com pseudénimos, apocrifos, falsamente atribuidos a um autor, etc. O exame do modo de escrever, da gra- matica e do estilo, ¢ elementos de identificagdo con- tidos no texto, 4s vezes permitem o estabelecimento da autoria correta. 58 ‘CIRO FLAMARION S, CARDOSO A finalidade da classificagdo critica dos textos é distinguir os testemunhos diretos dos indiretos, sendo os primeiros considerados fontes mais importantes, como é natural. Testemunhas oculares de um fend- meno ou processo ndo o véem, habitualmente, do mesmo Angulo e portanto no o descrevem com pala- vras idénticas: quando isto ocorre, ou através de erros comuns, detectamos casos de cépia de uma fonte por outra. A comparagiio e genealogia dos documentos sio0 aqui, de novo, modos centrais de proceder. Que posicio ocupa na atualidade a critica ex- terna? Como o historiador nao pode trabalhar com dados que n&o sabe se sao auténticos, nem com fon- tes cujo assentamento no tempo, no espaco ¢ quanto a sua autoria (ou pelo menos seus vinculos com certos gtupos sociais) seja desconhecido ou inseguro, a critica externa continua sendo tarefa primordial sempre que necessario. Nao ha diivida, porém, de que se desen- volveu muito mais voltada para problemas que surgem com mais freqiiéncia em Histéria Antiga e Medieval. Qs historiadores de periodos mais recentes teraio me- nos ocasido de recorrer a ela, por tornar-se mais rara a divida quanto a autenticidade e procedéncia. JA a classificagdo critica dos testemunhos sempre tera de ser feita. Por outro lado, certas mudane¢as essenciais na maneire de trabalhar dos historiadores nZo deixam de afetar a critica externa. Ela assume caracteristicas pe- culiares quando se trabalha com fontes numéricas ou usadas em forma estatistica ou quantificada. E, no caso de fontes de tipo repetitivo, como assentamentos cartoriais (inventarios, testamentos) ou paroquiais (batismos, matriménios e ébitos), sera realmente im- portante determinar o “autor”? UMA INTRODUCAO A HISTORIA 59 Operacées analiticas do método histérico tradi- cional: a critica interna dos testemunhos — Também se conhece como “critica de veracidade’’. Trata-se, agora, néo de determinar'se um documento é autén- tico ou uma falsificacdo, mas de verificar a veracidade do conteudo do seu texto. Um primeiro passo na critica interna é a inter- pretacdo ou hermenéutica. Consiste em apreender o contetido exato e o sentido de um texto, partindo de um conhecimento aprofundado da lingua da época é das convengdes culturais vigentes no periodo da sua composigio (modas intelectuais, etiqueta, formulas de cortesia, estilos, etc.). As linguas mudam ao longo do tempo, ¢ também os preconceitos, as maneiras de sentir ede expressar-se, os modelos que so copiados, etc. Que sentido poderia ter tomarmos as palavras do portugués do século XVI segundo o que significam hoje, e nao naquela época? Em linguagem moderna, a hermenéu- tica constitui uma série de operacies de “transcodi- ficagdo” (passagem de um cédigo a outro: no caso, tradugao do contetido e significado real do texto a lin- gua do pesquisador, sem deformar o préprio texto e evitando qualquer anacronismo). Em seguida, procede-se a critica de sinceridade, com a finalidade de determinar até que ponto sio cri- veis as afirmacées contidas em dado documento. Teria 0 autor interesse em mentir? Estava numa situacio que o obrigava a mentir? Estaria mentindo para pro- teger interesses pessoais, familiares, de um grupo ou faccHo? Quais as suas simpatias e antipatias? A critica de sinceridade completa-se com a critica de exatiddo, que estabelece o grau de conhecimento direto e efetivo que poderia ou nao ter 0 autor do texto, segundo sua posicdo em relagdo aos fatos que relata. OQ principio fundamental da critica de sinceridade e da de exatidao 60 CIRO FLAMARION S. CARDOSO & a_“desconfianga sistematica’’: nada que for ainda duvidoso, tudo aquilo ainda n&o provado positiva- mente, devera ver-se com cautela: nao se deve crer num texto ou autor sem aduzir boas razdes para tal. A forma de proceder é a comparacio sistemAtica de to- dos os testemunhos disponiveis para cada fato, dado ou processo: o grau de concordancia define em que medida esta cientificamente demonstrado. Assim, cri- tica de sinceridade e critica de exatiddo esto a servico daquilo que os historiadores positivistas chamavam de 0 estabelecimento dos fatos histéricos, Um elemento considerado importante a respeito é determinar se os testemunhos sdo voluntarios (crénicas, livros de His- toria, memérias, etc.) ou inveluntarios (textos litir- gicos, correspondéncia particular ou comercial, livros de contabilidade: em suma, tudo aquilo que nao foi tedigido com o fim expresso de testemunhar sobre algo, mas que o historiador descobre e transforma em testemunho), sendo os tltimos mais confidveis: na pratica, porém, as fontes contém ambos os tipos de testemunhos, embora em graus variaveis. Evyidentemente, todo historiador continua tendo de submeter os documentos que usa a critica interna. Porém, a visdo que desta tinham os historiadores tra- dicionais envelheceu irremediavelmente. Isto porque estava baseada, implicitamente, nos postulados fun- damentais do humanismo tacionalista, especialmente a nocéo de um “sujeito transparente” — individual, consciente e dotado de livre arbitrio —, incompativel com as descobertas de Marx (critica das ideologias, carater coletivo ¢ no individual do sujeito do conheci- mento) e de Freud (existéncia do inconsciente). Assim, hoje tal critica tem dimenses jamais sonhadas pelos historiadores de fins do séeulo XIX: os textos nao sio tratados apenas em seus contetidos ou enunciados, mas UMA INTRODUCAO A HISTORIA 61 também mediante métodos lingilisticos de andlise do discurso, da enunciagao, com apoio em alguma teoria das classes e das ideologias sociais. Em outras palavras, procura-se determinar em que condicSes sécio-histé- Ticas a producao do texto pdde ocorrer. _ Ajém disto, também aqui é preciso notar o im- pacto do uso crescente, pelos historiadores, de fontes quantitativas ou de carater repetitivo, as quais exigem maneiras especiais de proceder a critica interna. Operagées sintéticas do método histérico tradi- cional — Se, apesar de tudo, o método de andlise cri- tica das fontes a servico do “‘estabelecimento dos fatos histéricos” era apresentado pelos historiadores tradi- cionais como algo seguro, afirmativo, tal otimismo de- saparecia quando passavam a tratar da sintese histé- rica, da interpretacdo dos fatos localizados e compro- vados. As indicagdes que faziam a respeito s4o impre- cisas, carregadas de subjetivismo e, no conjunto, alta- mente insatisfatérias, além de muito pessimistas. Para comegar, salientavam que tremendas difi- culdades estariam ligadas 4 propria natureza do que. para eles, era a matéria-prima por exceléncia da His- téria, os “fatos histéricos" obtides depois de criticar externa e internamente as fontes disponiveis. Os fatos histéricos aparecem misturados nos documentos, e sua natureza é das mais variadas: fatos lingiisticos, de costumes, institucionais, relativos a acontecimentos, ete. A unica coisa em comum que possuem é serem fatos passados, estabelecidos por observacao indireta, Tais fatos apresentam graus extremamente diversos de generalidade no tempo e no espaco: alguns sao “‘ins. tantaneos”, outros se estendem ao longo de muito tempo; uns caracterizam uma pequena localidade so- 62 CIRO FLAMARION S. CARDOSO mente, outros um continente inteiro, etc. A locali- zacdo dos fatos no tempo € no espaco constitui con- dic&o sine qua non do seu status como fatos histéricos: ao falhar tal localizacdo, muitos fatos se perdem para a Histéria. Finalmente, o “‘estabelecimento dos fatos histéricos’” nem sempre é conseguido plenamente: com freqiiéncia o historiador tera de usar fatos apenas possiveis, ou com graus maiores ou menores de proba- bilidade. Tudo isto, no fundo, trocado em mitidos ¢ dito de maneira mais brutal, significa que, para os historia- dores tradicionais, a sintese histérica deve operar so- bre uma massa incoerente e heterogénea de fatos sin- gulares. Como, além disto, o historiador nao tem acesso a0 proprio fato, e sim 4 manipulacdo de ima- gens ¢ reflexos dos fatos contidos nas fontes, mareados pela subjetividade dos que as redigiram, a impressio de conjunto, sintética, sera necessariamente confusa, duvidosa, insatisfatéria. Seja como for, davam algumas indicacées sobre como proceder, partindo de dois postulados: 1) os fe- némenos de percepedo intelectual indireta ndo so ir- reais por isto: os fatos histéricos existem externa e in- dependentemente do observador; 2) a inica maneira de proceder 4 reconstituicao histérica é tomando como ponto de partida a semelhanea dos fatos do passado com os atuais — estes sim, observaveis diretamente. Apoiando-se nesses postulados, as operacdes sin- téticas procederiam em quatro etapas. A primeira consistiria em imaginar os fatos histéricos estabele- cidos pela critica segundo o modelo dos fatos atuais andlogos: isto para construir uma imagem global do fato passado, j& que o que os documentos propor- cionam em forma direta so s6 fragmentos de fatos gue é preciso organizar. A segunda consistiria em UMA INTRODUCAO A HISTORIA 63 agrupar os fatos em quadros, classificando-os segundo a sua natureza (fatos materiais, institucionais, intelec- tuais, religiosos, ¢tc.). Em terceiro lugar viria a cons- tatacao das lacunas devidas a insuficiéncias documen- tais, tratando-se de preenché-las através de um racio- cinio que parta dos fatos conhecidos (os fatos recons- tituidos por tais infer@ncias ndo teriam, como é na- tural, o mesmo carater seguro dos que a documen- tacdo estabelece). Em quarto e ultimo lugar, proceder- se-ia 4 condensacio dos fates em formula¢Ges de con- junto baseadas nas suas relagdes: assim aparcceria a cadeia de causas e conseqiiéncias. Porém, a verdade é que o ceticismo era mantido: uma verdadeira sintese aceitavel dependeria de ‘mi- lhdes” de fatos. Tudo influi sobre tudo: como nado dis- punham de uma teoria do social, isto era de fato um problema muito sério. A partir desse pessimismo ra- dical sobre as possibilidades da sintese, esta era ou admitida com relutancia ¢ principalmente com fins didaticos, ou relegada a nebuloso futuro, quando os “milhdes” de fatos se tivessem acumulado segundo as seguras regras de erudiciio critica. Assim, o género preferido era a monografia muito detalhada e factual, bem baseada em copiosa documentacio. Os vicios centrais destas idéias sobre a sintese eram: 1) crer que a matéria-prima da Histéria sao fa- tos soltos, singulares, tnicos e irrepetiveis; 2) recusar a elaboragiio de hipoteses explicitas (embora, de fato, as obras que escreviam fervilhavam de hipéteses impli- citas de base filoséfica ou politica); 3) ver o social como justaposi¢io nao teorizavel de setores e fatos, do que eram derivadas injun¢ées impossiveis de cumprir — como a de que o historiador ndo pode escolher ou recortar fontes ou dados —, devido a que se acreditava que tudo é igualmente importante e tudo influi indis- 64 ‘CIRO FLAMARION §. CARDOSO criminadamente sobre tudo (na pratica, é claro que eram operadas selecdes e construcdes que privile- giavam certos cixos de relacdes ¢ certas categorias de fatos, de preferéncia os politico-institucionais, mili- tares e religiosos). Os passos do método cientifico “Método” designa as acdes ordenadas que devem ser realizadas para que algum objetivo previamente estabelecido seja atingido. Isto significa que a com- Preensdo de uma expressiio como método cientifico depende da definigSo de ciéncia que estivermos acei- tando (ver capitulo I, final da parte 2). De fato, no capitulo anterior, j4 hayiamos defi- nido o método cientifico como os meios de que dispde a ciéncia para propor problemas verificaveis € para sub- meter 4 prova ou verificacdo as solucées-que forem Propostas a tais problémas. Assim, a primeira per- gunta que deve ser feita para saber se um dado conhe- cimento € cientifico é: como foi obtido? Ou, em outras palavras: como se chegou a considerar que tal conhe- cimento é verdadeiro (no sentido das verdades parciais e faliveis da ciéncia, claro esta)? A resposta a estas perguntas implicaria enunciar as operacdes teéricas ¢ empiricas objetivas mediante as quais o conhecimento de que se trata é passivel de verificacdo. Raciocinando nesses termos, é possivel e legitimo falar de um método cientifico unico, entendendo-o como estratégia global de acdo partilhada por todas as ciéncias factuais particulares. Aqui s6 nos interessa- Temos ne momento por tal estratégia global ou geral, mas € importante salientar que ela nio esgota o tema do método das ciéncias: a sua realizaco concreta em UMA INTRODUCAO A HISTORIA 65 cada ciéncia especial exige modos de agir e técnicas especificas, em funcio da natureza do objeto dessa ciéncia e também do grau de desenvolvimento meto- dolégico ja atingido por ela (pois as ciéncias nao sur- gem prontas através de quaisquer “‘cortes epistemolé- gicos*"", como Palas Atena da cabeca de Zeus: elas tém uma histéria), Como as “taticas” empregadas pe- las ciéncias especiais também sdo chamadas de “mé- todos’ — termo que se aplica correntemente até a simples técnicas —, o resultado é que a expressao “método cientifico” tem significados diversos, é polis- sémica. Em certo contexto de seu uso, o mais geral, designa operacgdes comuns a todas as ciéncias; no pélo oposto, aplica-se a simples técnicas especificas, ha- vendo entre ambos os extremos todas as gradacdes possiveis de generalidade ¢ particularidade. Apoiando-nos em Mario Bunge, consideraremos | que o método cientifico, visto como método geral de Pesquisa comum ds diversas ciéncias factuais, compre- | ende cinco grandes etapas: colocacdo do problema; construcéo do modelo teérico e invencio das hipé- teses; deducdo das conseqiiéncias particulares compro- yayeis das hipdteses; a prova das hipoteses; e, finalmen- | te, a introducHo das conclusdes obtidas no corpo ted- | rico. i A colocacéo do problema se da em varios mo- mentos. Para comegar, ¢ preciso tratar de reconhecer quais sao os elementos pertinentes ou relevantes para o estudo a ser empreendido, através de um exame e clas- sificagado preliminares dos fatos ¢ dados ja disponiveis. Depois se passa ao descobrimento do problema, na forma da identificagZo de uma incoeréncia no corpo do saber admitido (uma falha numa teoria aceita, por exemplo) ou — com freqiéncia muito maior — da lo- calizagéo de uma lacuna que sera preenchida par- 6 CIRO FLAMARION 8, CARDOSO tindo-se das teorias disponiveis. Por fim, sera preciso delimitar a questao, formulando-a de modo a traduzir © problema em termos que o facam fecundo e verifi- cvel, O segundo passo é a construcdo de um modelo tedrico. Parte normalmente do corpo teérico dispo- nivel. A partir da opedo teérica feita, passa-se a iden- tificagdo dos fatores pertinentes ao problema estudado (chamados “yariaveis” quando se trata de pesquisa quantitativa). Depois, d4-se a invencao das hipdteses de trabalho, isto é, a formulacdo de suposigoes (res- postas tentativas a serem comprovadas, dadas ao pro- blema da pesquisa) que procurem explicitar e explicar 0S MeXOs que se suponha existirem entre as varidveis ou fatores pertinentes. Ao tratar mais em detalhe, adiante, da nogiio de hipdétese, veremos que além de comprovaveis as hipé- teses cientificas nao podem ser singulares: devem ter um carater de suficiente generalidade. Ora, os fatos e dados sio sempre singulares ou particulares, nunca gerais. Como, entio, confrontar hipdéteses gerais com dados particulares? Para isto, impoe-se deduzir as conseqiiéncias particulares comprovéveis das hipd- teses. De fato, as hipéteses nao so apenas objeto de uma contrastacao empirica, mas também tedrica, ava- liando-se sua compatibilidade com o corpo de teorias disponiveis, sua coeréncia, etc. O passo seguinte é a prove das hipdteses. Antes de qualquer outra coisa, 0 pesquisador tera de plane- jar como fara para submeter as predicées deduzidas das hipéteses a vyerificacdes, mediante o uso de ele- mentos ja disponiveis no corpo do saber cientifico ea realizagdo de observagdes sistemAticas e/ou experién- cias, Depois, realizaré as operacées de prova assim Pprogramadas. Nesta fase, o pesquisador coletara da- UMA INTRODUCAO A HISTORIA 67 dos empiricos que sero criticados, avaliados, classifi- cados, analisados, processados e por fim interpretados 4 luz do modelo tedrico antes adotado. Finalmente, sera preciso proceder A introducdo das conclusées obtidas na teoria. O pesquisador tra- tara de comparar os resultados da prova com as con- seqiiéncias que havia deduzido das suas hipdteses, vendo entio se estas foram confirmadas, ou pelo con- trario parcial ou totalmente refutadas. Se for preciso, serdo feitas corregdes no modelo tedrico, incluindo a correcio parcial ou a total substituicéo de uma ou mais hipéteses, ¢ voltara a comecar 0 processo de pre- dicio de conseqiiéncias e verificacio, depois de avaliar cuidadosamente se nao houve erro na forma de pla- nejar ou realizar a prova das hipdteses. Se as hipdteses foram comprovadas, sera necessdrio ver que conse- guéncias isto traz para o corpo do saber admitido: mudangas teéricas, extensdo eventual das conclusdes da pesquisa a temas ou campos contiguos, etc. Tarefas e problemas do método cientifico em Histéria Se compararmos o método usado pelos historia- dores tradicionais com o resumo que acabamos de fa- zer das etapas de uma pesquisa cientifica, verifica- remos imediatamente diferencas sociais. O método tradicional da Histéria é um método de pesquisa do- cumental, erudito, que busea certo rigor critico, sem diivida; mas, decididamente, nado é um método cien- tifico. Sera possivel, no entanto, ir além? Havera meios de superar os obstaculos mencionados no capi- tulo anterior — sendo o mais especifico, como vimos, a preocupagao exclusiva ou preferencial dos historia- 6S CIRO FLAMARION S. CARDOSO dores com estruturas e processos sécio-histéricos Gni- cos, singulares — e proceder a aplicacéo, nas pes- guisas histéricas, de um método plenamente cienti- fico? J4 dissemos que, em nossa opiniao, tais meios existem. Passaremos a examinar alguns deles, ja dis- poniveis hoje em dia para o trabalho dos historiadores. Quantificacéo, método comparativo e construcado de modelos como meios de construir uma Histéria mais cientifica — O desenvolvimento da quantificacao sistematica em pesquisas histéricas se deu sobretudo a partir da década de 1930. Referimo-nos em outra oca- sido a quantificacZo histérica em detalhe, verificando inchusive os limites (tedricos e praticos) de sua apli- cagao possivel, ¢ o fato de que nao constitui uma pa- nactia capaz de resolver todos os problemas e conflitos de opinido (ver C. F, S. Cardoso e H. Pérez B., Os Métodos da Histéria, Rio de Janeiro, Graal, 1979, ‘cap. Tell). © que mais nos interessa a respeito, neste mo- mento, ¢ o fato de que, ao desenvolver-se, a quanti- ficacdo leva forcosamente 4 consolidagao, entre os his- toriadores que a usam, do habito de formular hipé- teses explicitas de trabalho, em lugar de ceder A iusto Positivista de que fatos e dados “falam por si’, im- pondo-se ao pesquisador, Na verdade, sé é possivel | quantificar para responder a perguntas bem precisas: i nao se pode contar sem saber o que estA sendo con- I tado, e para qué. Por isto, ao utilizar métodos quanti- ‘| tativos, os historiadores percebem com clareza que, como quaisquer cientistas, também eles selecionam, recortam, manipulam o seu objeto, em funcao de suas hipdéteses e do quadro teérico- -metodolégico que ado- taram. UMA INTRODUCAO A HISTORIA 69 Por outro lado, nao ha diivida de que, quando] usada adequada e escrupulosamente, a quantificacio pode aumentar os niveis de objetividade e intersubje- tividade do trabalho histérico. Outros instrumentos metodologicos desenvolvidos nestas Ultimas décadas em numerosas pesquisas sdo 0 método comparativo ¢ a construgao de modelos. Pa- rece-nos que eles tém constituido, até agora, as formas mais eficazes de cumprir — pela superacao da ten- déncia dos historiadores a prender-se excessivamente a “casos”, estruturas ou processos singulares ¢ por ou- tras vantagens que mencionaremos — com duas con- digSes essenciais para uma Histéria cientifica 1)o enunciado e verificagao de hipoteses que nao sejam Proposicdes singulares (isto €, que sejam suficiente- mente gerais para poderem ser consideradas como hi- péteses cientificas); 2) a obten¢’o, mediante a com- provacao de hipéteses gerais e um raciocinio tedrico adequado, de teorias mais rigorosamente constriidas. Mencionamos no o capitulo a anterior que, desde fins do século passado e primeiras décadas do atual, di- versos historiadores propuseram 0 método_compara- tivo como caminho necessario para a transi¢ao da Hii ‘toria narrativa 4 Hist6ria explicativa ¢ cientifica. Tra- ta-se de um instrumento a servigo da formulacdo é con- trole de hipdteses e generalizacies explicativas, com a finalidade de conceptualizar a problematica histérica mediante a ruptura dos quadros nacionais @ cronolé- _gicos habituais, em favor do estudo de temas bem de- limitados. Mare Bloch definiu tal método como a bus- ca, “para a explica- -las”, das “semelhancas € diferencas gue oferecem duas séries de natureza andloga, to- madas de meios sociais distintos’”’. Pela sua propria na- tureza, conduz 4 ruptura da singularidade dos casos e _ processos. Por exemplo, a maneira tradicional de en- 70 CIRO FLAMARION 8. CARDOSO carar a Histéria colonial da América era o estudo es- tanque das diversas “colonizagdes” ou “impérios co- loniais’”: portugués, espanhol, inglés, holandés, fran- cés, no Novo Mundo; um estudo comparativo, pelo contrario, propor tematicas como o “‘sistema colonial mercantilista”, as ‘formas de trabalho indigena” ou a “escravidao negra’’, as quais serao estudadas em con- juntos que poder&o (e dever3o) integrar casos ou ele- mentos pertencentes a diferentes colonizacées ou im- périos. Por outro lado, a comparac3o histérica tam- bém permite uma volta ao caso singular ou especifico, muito enriquecida pelo fato de que sé a comparacio permite situa-lo numa totalidade mais vasta é assim Mostrar o que ele partilha com outros casos, e 0 que tem de préprio ou tinico. O modelo légico do método comparativo é seme- Ihante 4 “inducio por eliniimacio” tal como definida por $. Mill: serve para achar quais so as condicdes necessarias ¢/ou suficientes de uma dada propriedade, partindo dos principios de que uma condicao neces- saria para algo nao pode estar ausente quando este algo esta presente, ¢ uma condicdo suficiente para algo no pode estar presente quando este algo esté ausente. Assim, se por exemplo afirmarmos que a RevolucZo Agricola precede e prepara necessariamente a Revo- lucdo Industrial, e depois pela analise comparativa de casos verificarmos que ocorreram processos de Revo- lucdo Industrial nao precedidos por uma Revoluciio Agricola, diremos que o vinculo postulado como hipé- tese de trabalho nao era valido. De cerio modo, a com- paracdo funciona em Histéria como substitutivo para o modelo légico da experiéncia controlada de labora- torio, impossivel para os historiadores. O método comparativo tem, em Histéria, duas modalidades principais: 1) a maioria dos historiadores UMA INTRODUCAO A HISTORIA 7 _ hoje em dia prefere aplicdé-lo, prudentemente, a socie- dades que apresentem suficiente semelhanea estru- tural ¢ relativa proximidade temporal (exemplo: as so- ciedades feudais da Idade Média ocidental; as socie- dades escravistas da América colonial); 2) mas tam- bém é possivel comparar entre si seqiiéncias € estru- turas do mesmo tipo (ou postuladas come tais) em so- ciedades muito heterogeneas na sua estruturacdo s6- historica global — por exemplo, um estudo com- parativo da “burocracia” no Império Romano da An- tigiiidade e no Império Espanhol dos Tempos Mo- dernos: corre-se entdo o sério risco de interpretar como analogias profundas (isomorfismos) o que nio passa de semelhancas formais superficiais (epimorfias) gue ocultam radicais diferencas de fundo, e de cair em grandes construcées * “meta-historicas” como as de A. Toynbee ¢ ©. Spengler, nas quais reina o anacronismo. ea falta de respeito pelas especificidades est _das sociedades. A construcdo de modelos favorece de diversos modos 4 Histéria cientifica. Podemos definir um mo- delo como uma representacdo simplificada (J. Galtung ‘diria “idealizada”) de uma classe de objetos reais (es- truturas, processos). Além de incentivar o desenyolvi- mento do raciocinio abstrato e dedutivo nos estudos histéricos, o uso de modelos exige uma definicdo pré- via muito clara dos fatores ou varidveis, determi- nando-se quais deles so internos ou externos ao mo- delo, além de especificar quais sio os parametros, os fatores que permanecem constantes. Isto natural- mente favorece a verificabilidade e a intersubjetivi- dade. E freqiiente, além disto, que o modelo trans- cenda © caso singular, ao retirar-se a categorias mais gerais, aplicdveis a diversos casos. As pesquisas histéricas tém usado trés tipos de 72 CIRO FLAMARION §. CARDOSO. modelos: 1) os isomérficos sio os que pretendem cons- tituir uma representaciio realista (embora simplifi- cada) do sistema ou processo real estudado; 2) os arbi- trarios so construcées instrumentais intencionalmente arbitrarias, segundo algum critério escolhido pelo pes- quisador, como é o caso dos “‘tipos ideais"* de Max Weber (construidos mediante o exagero voluntario de alguma caracteristica real do processo ou sistema em estudo); 3) finalmente, os contra-fatuais ou modelos alternatives, muito usados pela Nova Histéria Econé- mica norte-americana, consistem na construcdo de um curso hipotético de acontecimentos, alternativo ao curso real, partindo da hipdtese de que determinado fator — ao qual se associa peso causal — nao se tivesse dado historicamente: trata-se de um instrumento me- todolégico para o teste de hipdteses causais ou genera- lizacdes explicativas. Os historiadores profissionais normalmente se li- mitam aos modelos isomérficos e desconfiam muito dos dois outros tipos (tém boas razdes para isto, de fato). Terminemos notando que o método comparativo € a construgdo de modelos podem combinar-se. A comparac4o supde um modelo pelo menos implicito — sem o qual nao haveria critérios para selecionar os ele- mentos ou varidveis que serio comparados nos di- YeTSOS CasOs Emi estudo —, e em muitas construcdes de modelos esta implicita ou explicita a comparacao his- tOrica._ O uso das hipéteses em Histéria — Comecemos abordando com mais detalhe a nocio de hipotese, até agora s6 mencionada de passagem. Os enunciados significativos passiveis de verifi- UMA INTRODUCAO A HISTORIA 73 cacao podem ser de trés tipos basicos: 1) proposicées singulares (referem-se a um tinico fato, caso ou pro- cesso); 2) proposigdes particulares ou existenciais (re- ferem-se a um grupo parcial de fatos, casos ou pro- sessos pertencentes a determinada classe); 3) propo- sigdes universais (esgotam a totalidade dos fatos, casos ou processos de determinada classe). As proposicées singulares, e muitas vezes as particulares, nao sao de interesse como hipdteses cientificas, pelo simples fato de gue sua comprovacao pode ser imediata ou direta, com ajuda da observacdo, da medida, da erudicdo do- cumental. Uma proposic&o significativa é uma hipd- tese cientifica de trabalho (ou heuristica) quando, além de ser verificavel, possui um grau suficiente de generalidade. Quanto a esta ultima caracteristica, é importante notar que muitas proposigdes particulares podem ser transformadas em universais, aplicaveis a um conjunto menor; por exemplo, em certos casos uma hipdtese hist6rica que comece pelas palavras “em al- gumas sociedades humanas....”. — o que faria dela uma hipdtese particular e portanto inadequada, por- que no pode ser refutada segundo os métodos habi- tuais —, em muitos casos poderd ser transformada numa hipdétese universal comecando, por exemplo, pelas palavras ‘tem todas as sociedades feudais,.,"". Uma hipétese cientifica é uma proposigdo geral que sé pode ser veri! ada indiretamente, através do exame de algumas de suas conseqiiéncias. Trata-se da técnica mental mais importante no processo de pes- quisa, por armar o pesquisador com critérios de per- tinéncia e indicar os caminhos possiveis de tal pes- quisa. As hipdteses sao invengdes; sao criadas para _explicar conjuntos de fatos ou processos, mas nao de- correm em forma simples da pura manipulacio destes. _A experiéncia mostra que muitos caminhos podem 74 CIRO FLAMARION §, CARDOSO. conduzir a hipdtese: generalizacd4o indutiva, raciocinio analégico, consideracées filoséficas, ete. A origem de fato nao importa, desde que cumpra com certos requi- sitos: generalidade, simplicidade, verificabilidade, e nado incorra em vicios como a indefinicio, os defeitos semanticos de enunciac&o, a incoeréncia_ou inconsis- téncia logica.. : O uso das hipoteses de trabalho em Histéria se faz de modo um tanto diferente do que é habitual nas eiéncias naturais. Mais exatamente, o historiador tem de empregar hipéteses em niveis mais numerosos. Isto tem a ver com o que os positivistas chamavam de “observacio indireta’, que traz consigo a necessidade de controle sobre os documentos e os dados que pro- porcionam, mediante certos tipos de hipéteses, antes de poder usar tais dados como elementos Para com- provacao de hipdteses explicativas. Assim, as criticas externa e interna das fontes exigem um procedimento hipotético, mediante o que J. Topolski chama de “hi- poteses factograficas” — 1) hipdteses formuladas ao decodificar a informacao contida nas fontes; 2) hipd- teses formuladas durante a critica externa e interna dos documentos; 3) hipéteses formuladas ao estabe- lecer fatos e seqiiéncias, O manejo das hipoteses explicativas se faz em trés etapas: formulacdo, substanciacio e verificagio. A substanciagao depende, justamente, dos Processos da critica documental. A verificacdo segue o modelo geral do método cientifico: dedugio das conseqiiéncias 14- gicas da hipdétese proposta, tratando depois de veri- ficar se se dao tais conseqiiéncias previstas (ou se ao menos S40 provaveis, caso a documentacSo seja insu- ficiente para uma comprovacdo cabal), e se sao com- pativeis com o corpo dos conhecimentos ja consti- UMA INTRODUCAO A HISTORIA S tuidos da disciplina — embora, como é natural, este possa mudar quando novos descobrimentos assim o exigem. Problemas mais especificos do uso concreto de hipdteses em Historia serao abordados no préximo ca- pitulo. A explicacdo histérica e suas modalidades — Se- gundo J. Topolski, podemos distinguir cinco tipos de explicagao usados pelos historiadores: 1) explicagio mediante uma desericZo: mesmo a crénica contém ele- mentos de explicagio, porque deve responder a per- guntas do tipo “o qué’, “quem”, ““quando’’, “onde’’, “eomo’’? — ja que sem tais elementos nJo se poderia organizar uma narracdo coerente; 2) explicaciio gené- tica: procura revelar a origem de um fenémeno ou pro- cesso através da apresentacdo das suas etapas suces- sivas, privilegiando a seqiiéncia genética, 4 qual impli- cita ou explicitamente se trata de vincular um laco causal; 3) explicacdo estrutural ou funcional: indica o lugar de um elemento numa estrutura ou sistema para assim torna-lo compreensivel; 4) explicagdo mediante uma definigio: responde a perguntas como “o que foi a Balaiada?’’, ou “por que Tavares Bastos é conside- rado um liberal?"; 5) explicacao causal: responde a maior parte das perguntas comecadas com “por qué?” (“Por que ocorreu a Revolucio Francesa?”, “Por que se deu a abolicao da escravidao no século XIX na Amé- rica?”’, etc.). Robert Berkhofer Jr. também chama a atencao para a diversidade das formas de explicacio em His- toria: explicagao causal, estatistica (ou probabilistica), 76 CIRO FLAMARION 5. CARDOSO teleolégica, funcional, genética, e mediante leis ou teorias. As explicacées causais, talvez as mais impor- tantes por serem as que permitem estabelecer regula- ridades e portanto leis e teorias, podem ser, por sua vez, de varios tipos. Um primeiro critério de classifi- cagao distinguiria as monocausais ¢ as multicausais: em Hist6ria estas Ultimas sio claramente predomi- nantes. De acordo com outro critério, poderiamos fa- zer a diferenca entre a causalidade atribuida A racio- nalidade da agdo humana (na dependéncia de uma teoria da liberdade e consciéncia eficazes dos sujeitos histéricos individuais ou coletivos) ¢ a causalidade vin- culada a conseqiéncias no intencionais de acées de- vidas a numerosas pessoas (processos histéricos): os melhores trabalhos de Histéria procuram definir, para cada periodo, as proporcdes e combinagiées dos dois ti- pos de causalidade. Por outro lado, certas formulas causais atribuem o nexo de causalidade a fatores in- trinsecos ao sistema estudado enquanto que a causa- lidade classica faz intervir um ou mais fatores externos ao sistema. Finalmente, uma ultima classificacdo dis- tingue trés tipos légicos de explica¢ao causal: 1) expli- cacao por referéncia a leis que indicam as condic¢des necessarias ou suficientes, ou ambas; 2) explicacao que indica uma das condicdes suficientes alternativas que, em determinada circunstancia, tenha-se tornado necessaria; 3) explicacado referente simplesmente a cir- cunstancias favoraveis justapostas (infelizmente muito freqiente). Notemos que o historiador ja nao trabalha tendo como matéria-prima um amontoado de fatos e dados. soltos, jd que parte do postulado da sistematicidade da estrutura social; isto explica que hoje se fale tanto em “causalidade estrutural”: as determinacdes ou vincu- UMA INTRODUGAO A HISTORIA 7 los causais serao postulados entre estruturas parciais que integram a estrutura social global, e nao entre ele- mentos, fatores ou fatos isolados. Ja vimos que existem historiadores que continuam céticos quanto 4 possibilidade de que a Histéria possa vir a ser totalmente explicativa, e portanto totalmente cientifica. R. Berkhofer Jr., por exemplo, menciona a descontinuidade que existe, na sua opiniao, entre des- cri¢ao e explicacdo histéricas: os historiadores descre- vem muito mais do que podem explicar. Em outras palavras, ele acha que “a Histéria” (entendida como explicativa, respondendo aos “por qué?") nao pode expulsar totalmente 4 “crénica” (que responde a per- guntas do tipo “o qué’, “quem”, “quando”, “onde”, “como’’?). Isto ocorreria porque, ao existir seqiiéncias repetitivas ou regulares que sido compativeis com a causalidade, e outras que s6 aceitam formas menos es- tritas de explicacdo, o historiador nao disporia de um modelo unico de explicacio que possa compreender a historia humana vista na sua totalidade temporal (o que implica que, para este autor, como para Veyne ou de Certeau, o historiador esta obrigado a uma hipdiese totalizadora ou “‘holistica’’ do tempo, e proibido de escolher, recortar e manipular fatos e processos). Este tipo de opiniao continua muito marcado pela concepedo tradicional da Histéria. Os dilemas que vé, embora nado totalmente falsos, decorrem em boa me- dida de uma visio nao teorizada da totalidade social: ao nao disporem de uma teoria que explique como funcionam ¢ mudam as sociedades humanas, os auto- Tes que assim pensam consideram que uma Historia “total” tem como tarefa dizer tudo sobre tudo o que aconteceu, o que é totalmente impossivel (mas a unica alternativa é partir de alguma teoria que hierarguize os fatores causais ou explicativos, permitindo assim. 78 CIRO FLAMARION S, CARDOSO distinguir determinacies de maior peso do que outras; evidentemente, o carater frutifero ou uma teo- _tia_ deste tipo tem de passar pela prova da pesquisa Conclusio: problemas, mas no insoluveis Na parte anterior deste capitulo acentuamos os fatores positivos. Convém, agora contrabalanear o oti- mismo resultante com a mencdo de uma das dificul- dades persistentes no caminho da construcao da Histé- ria como ciéncia — talyez a maior dificuldade. Trata- se de um problema comum a Histéria € as outras cién- cias sociais, ¢ tem a ver com 9 processo de construgdo de teorias. Eis aqui como habitualmente se define uma teoria cientifica no ambito das ciéncias naturais: “Uma teoria cientifica se compe de duas par- tes. A primeira parte é um calculo logico abstrato. Além do yocabuldrio da Logica, esse cdleulo inelui os simbolos primitives da teoria, cuja estrutura légica é estabelecida pelo enunciado de axiomas ou postula- dos... “A segunda parte da teoria é um conjunto de re- gras gue atribuem contetido empirico ao calculo 16- gico, proporcionando as chamadas ‘definicdes coorde- nadoras’ ou ‘interpretacdes empiricas’ de pelo menos alguns dos termos primitivos e definidos do caleulo. Sempre se acentua que a primeira parte nado basta para definir uma teoria cientifica, pois sem especificacdo sistematica da interpretagdo empirica objetivada nao é possivel... apreciar a teoria como Parte da ciéncia...” (Patrick Suppes, “Que é uma teoria cientifica?”, in Sidney Morgenbesser, ed., Filosofia da Ciéncta, trad. ‘UMA INTRODUGAO A HISTORIA 8 de L. Hegenberg e O. S. da Mota, Sio Paulo, Editora Cultrix, 1979, p. 112). Mesmo deixando de lado a questéo — relativa- mente secundaria — da formalizacdo légico-matema- tica das teorias, é preciso reconhecer que, no Ambito das ciéncias sociais — inclusive a Historia — a cons- trucdo teérica padece de tremendas deficiéncias. Uma das principais dificuldades consiste em que as socie- dades humanas sao o qué Raymond Boudon chama de sistemas indefinidos: os seus componentes nem sempre podem ser identificados e delimitados precisa e com- pletamente. As teorias sociais no sdo sistemas coeren- temente deduzidos de um pequeno numero de axio- mas, ¢ sim construcdes bem mais vagas, contendo leis que sio somente enunciados gerais que se aplicam a um grande niimero de casos, mas apenas come proba- bilidade (e 4s vezes de grau bastante baixo), sem qual- quer carater necessario. Ora, a funcdo instrumental das teorias @ muito importante: elas servem, nio sé para organizar enun- ciados considerados verdadeiros depois de compro- vados, mas constituem também o quadro em que a yerificago é possivel (nao se pode verificar wma hipd- tese legal ou qualquer outra proposicdo, isolada de um conjunto teérico) e fornecem principios de inferéncia — isto é, que permitem passar de um conjunto de proposicdes a outro, fazendo assim avancar o processo de conhecimento. A deficiéncia das teorias sociais difi- culta, portanto, o manejo adequado de hipoteses e todo o processo metodolégico. Isto ndo nos leva, porém, a um pessimismo radical. Primeiro, porque, como ja foi dito, as ciéncias tém uma histéria, que nao carece de légica interna: nada ha de inelutavel ou definitivo na situac&o atwal das ciéncias sociais. E depois, porque em Histéria temos 80 CIRO FLAMARION S. CARDOSO muitos triunfos setoriais de peso do raciocinio e da metodologia cientificos, e da construcdo teérica. Um bom exemplo é o de E. Labrousse e outros historia- dores que construiram a teoria das crises agricolas pré- capitalistas — ou de uma das suas modalidades —, derivando perfeitamente a conjuntura da estrutura, nuin esquema explicatiyo no qual o que parecia ser o acaso por exceléncia — a incidéncia de chuvas exces- sivas ou escassas demais, do granizo, etc., torna-se algo necessdrio, em funcdo de uma economia que vivia em eguilibrio precario, Sempre na iminéncia da fome, devido 4 pobreza das suas forcas produtivas. LEITURAS RECOMENDADAS ~ BERKHOFER, Jr., Robert F.. A Betavioral Approach to Historical Ana dusis, Nova Torque, The Free Press, 1969, - BLOCH, Marc, introducdo d Histéria, trad. de M. M. Miguel © R. Gracio, Lisboa, Publicagées Europa-Ameérica, 1965, - CARDOSO, Cito F. S., Jurroduccién al Trabajo de la Investigacién Histérica. Barcelona, Critica, 1981, cap, Ie 1V_ 4. CORVISIER, André, Sources et Méthades en Histoire Sociale, Paris, Société Edition d'Enseignement Supéricur, 1980. S. ELTON, G. R., The Practice of History. Londres, Collins Fontana, 1972 (4 ed). $. GLENISSON, Jean, fniciagdo aos Estudos Histéricas, $io Paulo, Difusio Européia do Livra, 1977(23 ed.) 7. LANGLOIS, C. V. © C. Scignobos, Introduce aos Estudos Histéricos, trad. de L. de Almeida Morais, $30 Paulo, Editora Renascenes, 1946. 8. SAMARAN, Charles (ed,), Histoire et ses Méthode, “Encyclopédie de ta Pléiade", Paris, Gallimard, 1961, 9. TOPOLSKI, Jerzy, Methadology of History. Varsévia, Polish Scientific Pu blishers, 1976. wo Copyright © by Ciro Flamarion §. Cardoso Nenhuma parte desta publicacio pode ser gravada, armazenada em sistemas cletrénicas, fotocopiada, reprodutida por meios mecimicos ou outros gquaisquer sem autorizacao prévia do editor, ISBN: 85-11-04002-1 Primeira edicao, 1981 10° edigzo, 1994 Revisaa: Tidori Rachi Shahara Capa: Cléo Campos brasiliense Av, Marquis de Sao Vicente, 1771 01139-903 - Sio Paulo - SP Fone (011) 861-3366 - Fax 861-3024 IMPRESSO NO BRASIL

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