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Adriana Varejão – por uma retórica canibal

LUISA DUARTE

Antes dos estudos decoloniais estarem no centro do debate da arte contemporânea, Adriana Varejão já
realizava, desde o início da década de 1990, uma obra permeada por uma visão crítica do processo de
colonização, munida, para tal, de um ethos claramente antropofágico. Assim, sua produção é marcada pela
capacidade de “deglutir" inúmeras referências e “digeri-las” de forma a nos ofertar um universo poético que é
fruto de uma operação canibalesca.
Adriana Varejão – por uma retórica canibal reúne 25 trabalhos de diferentes fases de sua trajetória,
tendo como fio condutor a subversão instaurada pela artista no seu vínculo com a longínqua tradição barroca.
Sabemos que a retórica é uma estratégia recorrente do estilo oriundo do século XVII, sendo um procedimento
que busca a persuasão. Se o método forjou obras e discursos suntuosos, a favor da narrativa cristã e do projeto
de colonização europeu, a retórica canibal de Varejão, ao contrário, se apresenta como um contraprograma,
uma contracatequese, uma contraconquista. Trata-se de uma ruptura com as formas ocidentais modernas de
pensamento e ação, em busca dos saberes locais, como o legado da antropofagia. Assim, diante dos seus
trabalhos, testemunhamos a transmutação do elevado, do excelso, do ouro, de tradicionais obras barrocas para
um barroco agora selvagem, em carne viva, capaz de teatralizar um corpo da pintura atravessado tanto pelo
erotismo quanto por uma miscigenação conhecida pela sua violência.
As obras hoje reunidas deixam claro que estamos diante de uma espécie de artista/historiadora.
Varejão visita constantemente o passado e o escova a contrapelo a fim de trazer à luz narrativas ocultas, pouco
privilegiadas pela chamada história oficial. Para tanto, acolhe um leque amplo de referências: da azulejaria
portuguesa aos mapas, da tatuagem à visualidade indígena, dos artistas viajantes às ama divers, da cerâmica
chinesa à carne de charque, vasto é o mundo que lhe interessa. Mas é importante notar que tal relação com um
território expandido de influências jamais se desdobra em um gesto ilustrativo. A artista faz uso do filtro da
paródia, da verve crítica, a fim de nos devolver uma cartografia tecida por diferentes povos, tempos e latitudes
marcada, assim, pela alta voltagem política presente na sua retórica canibal.
Não por acaso, iniciamos a itinerância desta exposição pelo nordeste.¹ A região e sua forte herança
barroca abriga muito daquilo que mobiliza a obra de Adriana Varejão. Se existe um lugar favorável para a
tessitura de um olhar crítico sobre o processo de colonização no Brasil, capaz de instaurar a possibilidade de
pensarmos um contraprograma de nossa história, esse lugar nos parece ser o nordeste. Assim, temos uma
chance rara: a de promover o encontro entre uma produção na qual os eixos centrais são os da contraconquista
e da desocidentalização e a região brasileira mais fértil para que tal programa político/poético floresça.
Sobre a importância da realização de mostras de artistas mulheres

MABEL MEDEIROS, DIRETORA DO MAMAM

Estabelecer diálogos críticos com as diversas culturas e com a sociedade é uma das metas do Museu de Arte
Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM, instituição que tem como missão contribuir para a formação cultural da
cidade através da divulgação, promoção do debate, ações educativas e mostras que fomentem discussões no
campo da arte moderna e contemporânea.
Partindo desse princípio, acreditamos também que, como instituição cultural, somos referência para
outros segmentos da sociedade, o que nos obriga, através da arte, a propor políticas que possibilitem a
condição de equidade de gênero, crença e etnia, garantindo o espaço a todas e todos.
A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal vem reafirmar o perfil da nova gestão do
MAMAM, que apresenta a terceira exposição individual de mulheres artistas neste ano de 2019. Nesse
momento, damos foco à produção de mulheres através de uma programação diversa, com pesquisa, seminários
e ações para reflexão e discussão da questão de gênero na arte – um olhar urgente e necessário para a
democratização da produção artística.
A exposição de Adriana adquire então um papel de dupla relevância: fomentar a discussão sobre a
política institucional de reparação de equidade de gênero nas mostras do MAMAM e fazer circular no Recife
produções de grande relevância nacional e internacional.
Pela primeira vez no Recife com uma exposição individual, Adriana Varejão – uma das mais relevantes
artistas da contemporaneidade – retorna ao MAMAM dezesseis anos após a sua participação na coletiva
Panorama da Arte Brasileira, com um significativo recorte dos seus trinta anos de produção, que compõe um
forte elemento de formação de referências e também incita, em momentos de intempéries desafiadoras, a
constituição de novos públicos para as artes visuais.

MAPA DE LOPO HOMEM II (1992-2004)

Mapa de Lopo Homem II é uma obra seminal dentro da produção de Adriana Varejão. Tanto a sua relação
crítica com a história, capaz de índices da chamada história oficial e realizar deslocamentos que proporcionam
outro olhar para a mesma, quanto os gestos de cortar e cindir que fazem da pintura um corpo, evocando a um
só tempo violência e erotismo, estão presentes neste trabalho pertencente ao início de sua trajetória. Aqui a
artista se refere a um mapa assinado por Lopo Homem (1497-1572), importante cartógrafo português do século
XVI e um dos responsáveis por demarcar os limites de navegação de Portugal e Espanha, segundo o famoso
Tratado de Tordesilhas (1494). No planisfério original de 1519, a África aparece como região central, a Europa
está deslocada e a América encontra-se identificada como “Mundus Novus Brazil”. Note-se que a América
aparece vinculada à Ásia, constituindo, portanto, uma geografia imaginada com ares de pretensão científica. Na
versão contemporânea de Varejão, o mapa é atravessado por feridas, com atenção especial para o corte
central, remetendo à linha equinocial. Alguns apresentam suturas, pontos cirúrgicos que parecem tentar conter
aquilo que havia sido exposto, maculado, violentado. O mapa revisitado em formato oval tem como inspiração
trabalhos do pintor e arquiteto carioca Leandro Joaquim (c. 1738-c. 1798), autor de paisagens do Rio de Janeiro
como a Baía de Guanabara, os Arcos da Lapa e a Igreja da Glória.

LINHA EQUINOCIAL (1993)

Em Linha equinocial, vemos quatro paisagens marinhas de diferentes tamanhos representadas à moda chinesa.
Abaixo de três delas, legendas descritivas buscam identificar sua geografia: "Mare Australis”, “(P)acificum Mare",
"Oceanus (Meri)dionalis". Algumas letras são omitidas (indicadas neste texto entre parênteses), nos deixando
entrever a consulta a algum antigo livro de catalogação. Nota-se que o princípio de ordenamento da pintura é
rompido pela presença tanto de uma série de cacos de porcelana, quanto de pequenas feridas produzidas sobre
a superfície da tela. Essa dinâmica entre ordem e desordem, construção e fragmentação é, aliás, uma marca
presente em diferentes trabalhos de Adriana Varejão. Os fragmentos de pratos se aproximam de cerâmicas
apresentadas no livro As companhias das Índias e a porcelana chinesa de encomenda (1986), escrito por José
Roberto Teixeira Leite, que serviu de fonte de pesquisa para a artista. Além disso, as linhas desenhadas na tela
em nanquim se transformam em linhas físicas, sustentando os cacos que por vezes quase tocam o chão. Cacos
que surgem como as feridas, ambos cumprindo tanto o papel de nos recordar que toda construção de um
território inclui algum grau de fratura, quanto o de promover a chance de desenharmos outras cartografias
possíveis.
AZULEJÕES

AZULEJÕES (COM UMA MÃOZINHA) (2000)

MAR EGEU (2008)

ALEGORIA IMPRECISA (2011)

AZULEJÃO (NEOCONCRETO) (2016)

Um dos maiores símbolos de nossa herança colonial, o azulejo português surge na obra de Adriana Varejão
teatralizado, conformando-se como um dos elementos mais emblemáticos de sua poética. Na série de trabalhos
realizados a partir do ano 2000, em que vemos os chamados Azulejões, a artista produz incisões e cortes sobre
as pinturas, aproximando-as assim da cerâmica produzida pela Dinastia Song chinesa do século XI, cujo
esmalte monocromático apresenta rachaduras controladas. Já os motivos pintados aparecem fragmentados em
curvas e ondas de caráter barroco, sugerindo um repertório marinho. Os grandes craquelados revelam as
entranhas da tela, o seu “interior". Embora tal procedimento apareça na obra da artista desde os anos 1990, é
aqui que veremos esse recurso ganhar maior ênfase. O craquelado surge como caco, ferida, mas também como
efeito do tempo sobre a matéria e sua história. Os Azulejões parecem evidenciar que “pintura é espessura,
acúmulo, carnalidade”, nas palavras do crítico Paulo Herkenhoff.

O trabalho Azulejão (Neoconcreto) (2016) revela-se um capítulo singular dentro dessa grande série, no
qual a artista dialoga com um momento específico da história da arte brasileira. Se, nos anos 1950, os artistas
concretos buscavam desenvolver um programa voltado para uma geometria pura e autônoma, garantida apenas
na visualidade da forma, os neoconcretos, a partir de 1959, por outro lado, passam a defender uma arte mais
próxima do corpo e da experimentação. Neste Azulejão (Neoconcreto), a racionalidade da geometria é
confrontada com as rachaduras da matéria, trazendo à tona uma organicidade altiva em meio às formas retas.

PANORAMA DA GUANABARA (2012)

Vinte anos depois de ter iniciado a série Terra incógnita, Adriana Varejão apresenta Panorama da Guanabara,
uma extensa paisagem carioca pintada em estilo chinês. Acolhendo a tradição das pinturas panorâmicas, que
no século XIX fizeram do Rio de Janeiro o cartão-postal da corte portuguesa, a artista insere ícones
arquitetônicos da cidade como o Parque Lage, a Vista Chinesa e a Igreja de Nossa Senhora da Glória do
Outeiro junto ao relevo oriental. Mais uma vez, o encontro entre dois países fora do eixo europeu redesenha a
perspectiva de nosso colonialismo. Na margem esquerda da tela, a legenda “Viagem ao seio da Guanabara por
Sunqua em tinta da china sobre papel” sugere que a pintura tenha sido feita por Sunqua, pintor chinês que
produziu panoramas do Rio oitocentista com técnica ocidental para conquistar a clientela europeia. Se Sunqua
se esforçava para ver a paisagem como um europeu, Varejão tenta pintar como uma chinesa. Além disso, o
número “12", inscrito na margem direita, apresenta a obra como se fosse uma ilustração reproduzida em página
de livro. Se os relatos dos viajantes buscavam descrever, em linguagem superlativa, o ambiente paradisíaco da
costa brasileira, Panorama da Guanabara acentua o caráter ficcional dessas construções.

PAREDE COM INCISÕES À LA FONTANA (2000)

Assistimos, ao longo do século XX, à superação das conquistas modernas da superfície e testemunhamos a
pintura ganhar um corpo com três dimensões. A obra de Lucio Fontana (1899-1968) é emblemática desta
passagem. A pintura de Adriana Varejão é herdeira desta superação e evoca de forma eloquente este “corpo da
pintura". Em Parede com incisões à la Fontana, a artista dialoga diretamente com a obra do artista ítalo-
argentino. Interessado em introduzir noções de espaço e profundidade no plano bidimensional, Fontana pintava
telas monocromáticas e produzia incisões em sua superfície. Ao rasgar a tela, chamava atenção para a
fisicalidade do ato pictórico. No entanto, se o artista revelava a tela crua, através de gestos mínimos, Varejão,
pelo contrário, ao modo barroco, privilegia a aparência e a ilusão, ficcionando assim o interior de uma parede de
azulejos da qual surge um universo sanguíneo.

CARNE À LA TAUNAY (1997)

Em Carne à la Taunay, Adriana Varejão reproduz a pintura Vista tirada do Morro da Glória (1820), de Nicolas-
Antoine Taunay (1755 - 1830), que pertence hoje ao acervo dos Museus Castro Maya. O artista chegou ao Rio
de Janeiro em 1816, onde se instalou como pintor pensionista do reino e professor da Escola Real de Ciências,
Artes e Ofícios, futura Academia Imperial de Belas Artes. Taunay é, portanto, um dos responsáveis pela
construção de uma imagem oficial local, compondo paisagens ordenadas, contemplativas e pastoris, onde ainda
impera o repertório europeu, sem apresentar os conflitos reais que a colônia enfrentava. Sobre essa harmonia
ficcional, Varejão realiza uma espécie de cirurgia, cortando a paisagem em pedaços reapresentados em pratos
de porcelana inspirados na Companhia das Índias. Com os cortes feitos, é difícil reconhecer a pintura original. A
perspectiva idílica é transformada em banquete, como uma resposta antropofágica. A narrativa pictórica é
convocada enquanto carne, revelando novas feridas que suspendem a visão dócil, contemplativa,
interrompendo a própria constituição da imagem.

PROPOSTA PARA UMA CATEQUESE -

PARTE I DÍPTICO: MORTE E ESQUARTEJAMENTO (1993)

PROPOSTA PARA UMA CATEQUESE -

PARTE II DÍPTICO: APARIÇÃO E RELÍQUIAS (1993)

Proposta para uma catequese é uma obra composta por dois dípticos: Morte e esquartejamento, inspirado na
obra de Theodore de Bry (1528-1598), e Aparição e relíquias, cuja referência para a composição é a Igreja do
Bom Jesus de Setúbal, em Portugal. No entanto, se tais pontos de partida são claros, na obra de Adriana
Varejão as referências históricas são sempre reconfiguradas e recombinadas, com o intuito de rever a narrativa
da história colonial brasileira. Como observou a antropóloga Lilia Schwarcz, a antropofagia é aqui texto e
pretexto; tema e metáfora, pois a artista “devora referências e as deglute em outras cenas”. Assim, a
composição é fragmentada, como uma colagem de múltiplas imagens.
Em Morte e esquartejamento, Cristo é alvo de um ataque canibal: sua mão está levantada com dois
dedos erguidos fazendo alusão ao gesto de concórdia e conciliação. Varejão se apropriou de duas gravuras de
Theodore de Bry para essa composição. É possível notar, na parte direita da pintura, a mesma moldura
encontrada em um painel de azulejos da Igreja do Convento de São Francisco da Bahia, em Salvador; ainda à
direita, vemos um padrão decorativo de camélia apropriado da cúpula da Igreja do Convento de Santo Antônio,
no Recife. Já a frase “Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem in me manet, et ego in illo” quer
dizer “O que come a minha carne e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele” (João 6,57), referindo-se
à Eucaristia, embora nesse caso a passagem ganhe outras interpretações, já que se vê em meio ao contexto de
um banquete canibal.
No díptico Aparição e relíquias, a artista realiza uma substituição: onde deveríamos ver uma imagem
de São Francisco, surge um indígena que carrega uma ramagem na boca. Do lado direito, identificamos três
relíquias: um pedaço de perna, ex-voto da Igreja de Santo Amaro; um braço de São Bento, relicário da Igreja e
Mosteiro de São Bento; e um prato da Companhia das Índias. Neste lado, é possível ler a palavra “Relíquias",
referindo-se a objetos sagrados relacionados à vida de Cristo.
É assim que a artista aproxima a antropofagia de uma visualidade cristã. Aqui, no entanto, prevalece
não a educação europeia ou os preceitos religiosos de um programa barroco, mas a perspectiva indígena, em
uma espécie de contracatequese original.
RUÍNA DE CHARQUE HUMAITÁ (2001)

RUÍNA DE CHARQUE PORTO (2001)

A série de Ruínas de charque realizada por Adriana Varejão a partir do início dos anos 2000 pode ser vista
como o momento no qual a sua obra mais se aproxima do fazer escultórico. Se nas Línguas já havia um
movimento para além do plano bidimensional, aqui a tridimensionalidade ocorre de forma mais radical. Podendo
ocupar a parede ou o espaço, as Ruínas simulam fragmentos de arquiteturas envoltas em pinturas de azulejos,
enquanto no seu interior, em claro contraste com a superfície plana e geometrizada do exterior, encontramos a
representação da carne de charque. No lugar do cimento cinza, Varejão promove uma substituição pela carne
vermelha. Foi Severo Sarduy (1937-1993) quem apontou a substituição como um dos procedimentos
característicos do barroco. Esta substituição, por sua vez, não opera tão somente uma permutação neutra.
Realiza, isto sim, um desvio na significação original e estabelece uma nova. Se as ruínas evocam um tempo
inacabado, tão familiar a um país no qual “tudo parece ainda construção e já é ruina", Varejão nos apresenta
essa temporalidade inconclusa atravessada por doses iguais de violência e erotismo. As ruínas aqui expostas
trazem em seu título o vínculo com a carne salgada e seca ao sol, resistente ao tempo, que serviu de alimento
para escravos cujo trabalho se dava nas fazendas de cana-de-açúcar, no nordeste do Brasil, no século XVI. Se
o craquelado e o caco perpassam a obra da artista desde o início, com as Ruínas ocorre o momento de maior
afirmação do fragmento, da quebra, como solo fértil para novas e improváveis construções.

LÍNGUA COM PADRÃO SINUOSO (1998)

A série de Línguas de Adriana Varejão, iniciada no final da década de 1990, antecede as de Ruínas e Incisões,
que viriam a ser realizadas nos anos 2000. Em comum entre as três: o diálogo com a tridimensionalidade
escultórica e a oposição entre um exterior de azulejos e um interior encarnado. Vemos aqui Língua com padrão
sinuoso, na qual o azulejo, símbolo da herança colonial, surge pintado na forma de um painel típico daquilo que
foi batizado como "azulejaria de tapetes" – estilo português do século XVII, com policromia em azul, amarelo e
branco. Tais azulejos evocam ordenação, serialialidade, em um desenho que remete à assepsia própria da
grade. É justamente em meio a essa harmonia que a artista produz uma intensa e inesperada convulsão. Um
corte abre a tela – formando uma língua que pende ao chão - de modo a descortinar um interior capaz de nos
endereçar, simultaneamente, violência e erotismo, repulsa e sedução. A linguagem pictórica surge aqui
enquanto corpo, reiterando o aspecto teatralizado tão próprio ao barroco.

TRANSBARROCO (2014)

Em Transbarroco, quatro das principais igrejas do Barroco brasileiro são apresentadas em projeções
simultâneas. Podemos identificar a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no Rio de Janeiro; a Igreja de
São Francisco, em Salvador; a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; e ainda a Catedral de Mariana,
na cidade homônima, em Minas Gerais.
Fragmentos da arquitetura e de pinturas religiosas, como a Glorificação de Nossa Senhora (1804)
pintada por Mestre Ataíde (1762-1830), revelam um barroco mestiço, multicultural, com influências portuguesas,
africanas e chinesas. Podemos notar, por exemplo, a presença de chinoiseries, imagens feitas “à moda da
China”. Estas são resultado das relações estabelecidas com Macau, colônia portuguesa oriental, e das
atividades comerciais que levaram seda, laca e porcelana para as Américas. Os artistas barrocos,
especialmente os mineiros, se inspiravam em figuras impressas em livros, pratos e outros utensílios de
porcelana. Um barroco que bebeu em inúmeras fontes, eis o que nos recorda essa imersão vertiginosa
apresentada pela primeira experiência em vídeo de Adriana Varejão.
Em meio às projeções, é possível ouvir uma série de sons contrastantes, como a bateria do Olodum, a
música de órgão da Igreja sinos, sambas e, ainda, a voz de José Eduardo Agualusa, escritor angolano, lendo
um trecho de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre.
QUADRO FERIDO (1992)

Quadro ferido é uma das primeiras obras de Adriana Varejão nas quais se observa o seu interesse fecundo pelo
encontro entre Brasil e China. Tendo como inspiração um pergaminho chinês do século XI, a obra aproxima
indios e negros do Brasil colonial de personagens chineses habitantes da longinqua Dinastia Song (900-1200).
Podemos notar como os dois personagens ao centro da pintura são um negro alto (um escravo transformado em
guerreiro), inspirado na obra do holandês Albert Eckhout (1610-1666), e um índio Mura, cuja origem se encontra
no trabalho de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815). Já a vegetação tropical – como a palmeira e a cana-
de-açúcar - está situada em meio à paisagem e à arquitetura orientais. Esses são somente dois exemplos da
construção de uma narrativa ficcional capaz de gerar uma história a partir da história, entrelaçando épocas,
geografias e etnias distintas em um só espaço. Embora a pintura seja a óleo, os contornos em preto lembram os
resultados obtidos pelo nanquim chinês, ressaltando o aspecto de um documento envelhecido. Quadro ferido
propõe assim uma outra mestiçagem, ficcionada pela artista, na qual se abre mão da presença do homem
branco colonizador. Em realidade, essa ausência se faz presente naquela fração do trabalho que lhe empresta o
título: a ferida. Esse gesto de fissurar a tela e fazer brotar dali uma espécie de carne da pintura, agregando
corporeidade ao ato pictórico, surge aqui como lembrança da violência contida no processo colonizador.

PELE TATUADA À MODA DE AZULEJARIA (1995)

Pele tatuada à moda de azulejaria dá continuidade às investigações de Adriana Varejão sobre as relações entre
a pintura, o corpo e a carne cujo início pode ser visto no corte de Mapa de Lopo Homem (1992). Aqui, o teatro
barroco nos dá a ver fragmentos de pele com imagens religiosas sobre um fundo de azulejos brancos. O tema
da pele tatuada aparece em várias obras do mesmo período, como Laparatomia exploratória (1996) e Irezumis
gêmeos (1999). Trata-se de uma fase na qual a artista pesquisou com especial interesse o Irezumi, tradicional
técnica japonesa de tatuagem, que significa, em japonês, a inserção da tinta sob a pele com o intuito de deixar
uma marca decorativa ou simbólica de caráter permanente. Pele tatuada à moda de azulejaria condensa, em um
único trabalho, correlações importantes na construção poética da artista, tais como aquela entre corpo, pintura e
azulejo, e ainda o contraste entre uma imagem que remete ao sagrado e os vestígios corpóreos de marcas de
sangue.

PRATOS

MÃE D'ÁGUA (2009)

NASCIMENTO DE ONDINA (2009)

PÉROLA IMPERFEITA (2009)

PRATO COM MARISCOS (2011) PROPOSTA PARA UMA CATEQUESE (2014)

Ampliados em sua escala, os pratos exibidos hoje apresentam um imaginário constituído de personagens
míticos, que conjuga vida marinha e humana, evocando fertilidade e erotismo. Em Pérola imperfeita,
personagens femininas que aludem às ama divers - mulheres pesqueiras que, segundo a lenda, em certas ilhas
do Japão e da Coreia saíam de casa, há mais de dois mil anos, para conseguir no mar o sustento da aldeia –
estão ligadas a um ouriço-do-mar por cordões umbilicais, com a representação de uma gema de ovo ao centro.
O título se refere ao significado da palavra barroco - estratégia visual que percorre toda a obra da artista. Já em
Mãe d'Água, como também é conhecida Iemanjá, testemunhamos uma inversão da representação comum
desse orixá. Sai de cena a Iemanjá branca, vestida de azul, e entra em cena outra, negra, nua, em meio a um
fértil repertório marinho. Nascimento de Ondina nos oferta uma espécie de sereia que carrega um bebê no colo,
enquanto um segundo feto ocupa o lugar de um molusco dentro de uma concha. Tal relação com a fecundidade
prossegue em Prato com mariscos. Já Proposta para uma catequese – prato dá continuidade à intrincada rede
de referências vistas nos dois dípticos homônimos. A frase em latim se repete – “Qui manducat meam carnem et
hibit meum sanguinem in me manet, et ego in illo" ou “O que come a minha carne e bebe o meu sangue, esse
fica em mim, e eu nele” (João 6,57) -, referindo-se à Eucaristia, mas, como é comum na retórica canibal de
Varejão, os sinais são invertidos em favor de se escovar a história a contrapelo. Quem festeja uma
contracatequese no centro da obra são indígenas, e não o homem branco europeu. Note-se que os três
primeiros pratos trazem no verso padrões decorativos de diferentes culturas. Todos os cinco possuem a faiança
portuguesa como ponto de partida, em especial a tradição de Caldas da Rainha, atualizada pelo artista
português Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905) no início do século XX.

PASSAGEM DE MACAU A VILA RICA (1992)

Nessa pintura pertencente à série Terra incógnita, estamos diante do encontro entre as paisagens de Macau,
que foi colônia portuguesa na China, e Vila Rica, nome da antiga capital de Minas Gerais, hoje conhecida como
Ouro Preto. Pagodes e igrejas coloniais convivem em meio à atmosfera enevoada, atravessada por montanhas,
tipicamente oriental. Aqui cabe evocar Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), artista que já incorporava a
tradição da pintura chinesa com paisagens oníricas e flutuantes. No entanto, no caso de Varejão, alguns
elementos se confundem. Se não identificamos qualquer figura humana na parte superior da obra, a parte
inferior retrata trabalhadores que nos remetem ao Brasil holandês, com engenhos e palmeiras à la Frans Post
(1612-1680). No canto direito, há ainda um índio armado assistindo à cena, pronto para atacar o que seria uma
"civilização" ainda em construção. Outros detalhes merecem ser notados: o craquelado da porcelana, recorrente
na obra da artista; um carimbo chinês sutil, considerado pela tradição uma marca de autoria; a inscrição de um
número de página no canto superior direito e o título da pintura inserido dentro da própria composição,
sugerindo que estamos diante de um livro antigo, recurso que também se repetirá em Panorama da Guanabara.
Chama atenção, também, o Sagrado Coração, do qual escorre uma mancha vermelha sobre a tela, fazendo
lembrar a história comum de colonização e violência presente nas duas cidades. No entanto, afirmando a
ambivalência comum à sua produção, o coração é também "erotismo, fertilização, parto, crescimento, drama
barroco", nas palavras da própria artista.

O METICULOSO (2018)
O meticuloso (2018) constitui uma espécie de ponto fora da curva no conjunto da presente exposição. Se, ao
longo da mostra, testemunhamos um recorte de trabalhos de Adriana Varejão cujo elo com diferentes narrativas
históricas se dá de forma clara, aqui adentramos um capítulo diverso. Parte integrante da série de pinturas
intitulada Saunas e banhos, iniciada em 2003, O meticuloso nos apresenta uma vez mais o universo dos
azulejos, tão caro para a artista, mas aqui os mesmos surgem produzindo arquiteturas silenciosas que evocam
espaços atemporais e labirínticos, sem vínculos com o exterior. Um laborioso exercício pictórico pode ser notado
em todos os trabalhos da série – uma mesma cor ganha diferentes matizes, o jogo de ponto de fuga e
perspectiva, de sombras e luzes, revela-se minucioso. Mas, se estamos distantes das narrativas históricas, o
grid presente no trabalho tampouco nos leva à atmosfera da grade moderna e sua propalada autonomia.
Desde o início a série de Saunas e banhos apresentou uma clara proximidade com o cinema, nos
dando a chance de ver cada tela como espécie de frame que convoca a nossa imaginação a elaborar o que um
antes e um depois em espaços atravessados por mistério. Já seus tunc - O sedutor. O obsceno. O voyeur etc. -
nos lembram a sua forte dimensão erótica. Ambos, mistério e erotismo, são elementos estranhos ao grid
moderno. Voltando ao nosso trabalho, em O meticuloso ocorre ainda a intrusão de uma mancha vermelha no
ambiente asséptico, sinalizando uma insuspeitada presença sanguínea, logo humana, em algum momento
anterior, não flagrado por nós. Assim, em meio à geometria ordenada, Varejão nos recorda que ainda pisamos o
mesmo solo que lhe é caro, qual seja, aquele que faz questão de edificar um universo que irriga, com doses
iguais de imaginação e erotismo, tudo aquilo que é puro pragmatismo e esterilidade.

AZULEJÃO BRANCO (2010)

O azulejo surge como elemento fundamental da poética de Adriana Varejão já no início de sua trajetória.
Sabemos que ele tem sido a forma de arte decorativa mais utilizada em Portugal desde a Idade Média, daí a sua
forte presença, via colonização, em terras brasileiras. Absorvendo influências de artesãos mouros e italianos,
assim como lições da pintura renascentista e da cerâmica chinesa, o azulejo condensa em sua história uma
pluralidade de culturas. Os azulejos ampliados por Varejão trazem consigo essa multiplicidade, sendo a mais
visível influência aquela proveniente da cerâmica chinesa realizada durante o período da Dinastia Song (960-
1279) e os seus craquelados. Mas, se em boa parte dos Azulejões vemos a presença da cor azul e, por vezes,
de motivos barrocos, aqui sai de cena a cor que dá nome à pedra, restando o monocromo e, como
protagonistas, as rachaduras que aludem à cerâmica oriental. O que está em jogo nesses trabalhos não é
reproduzir o azulejo, mas recriá-lo fisicamente. A conquista do craquelado acontece pela combinação de gesso
e cola sobre a tela em um processo demorado que inclui uma alta dose de acaso, pois é impossível controlar o
resultado final das rachaduras. Estamos diante de trabalhos que “executam", alheios à vontade da artista, suas
composições enquanto secam.
Se, em outros momentos da obra de Varejão, o entrelaçamento de diferentes épocas e culturas surge
de maneira mais direta, nos monocromos a camada narrativa é enxugada em favor de uma síntese formal. Mas
notemos como, ainda aqui, o contágio entre diferentes latitudes – no caso, entre a herança Song e o azulejo
português (filho de diversas culturas) – permanece como motor do trabalho. O craquelado – que em uma obra
como a do italiano Alberto Burri (1915-1995) aparece ligado à pesquisa sobre a matéria, e na produção do
armênio-iraniano Marcos Grigorian (1925-2007) surge relacionado à terra, à sua investigação no território da
Land Art - se apresenta no trabalho de Varejão aludindo à ideia de ruína, passagem do tempo, e ainda ao corpo
e ao corte, índices recorrentes na sua trajetória.

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1 A presente exposição foi inaugurada em abril de 2019 no MAM da Bahia, Salvador, vindo, em seguida, para Recife com
cinco obras a mais em relação à montagem anterior.

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