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UM LUGAR PARA A GEOGRAFIA: CONTRA O SIMPLES, O

BANAL E O DOUTRINÁRIO
(texto extraído do livro Espaço e Tempo, entre as páginas 13 e 30)

GOMES, Paulo César da Costa

INTRODUÇÃO

Já há alguns anos a palavra “epistemologia” freqüenta o nosso vocabulário mais


corriqueiro e cotidiano. Uma rápida pesquisa na Internet a partir dos principais motores
de busca nos mostraria a infinidade de referências geradas e a quase impossibilidade de
percorrê-las todas. No ambiente acadêmico, muitos são aqueles que apelam para
expressões do tipo: “do ponto de vista epistemológico”, ou ainda, sublinham algo como
“epistemologicamente importante” para pontuar suas afirmativas e demonstrar, talvez,
rigor em seus discursos. Na bibliografia é também cada vez mais usual a utilização
dessa palavra com o mesmo intuito e os títulos de artigos, livros, comunicações e
palestras não deixam dúvidas sobre a intenção de se associarem imediatamente aos
valores aparentemente positivos trazidos pela expressão. Na geografia, como em várias
outras áreas do conhecimento, essa dinâmica é perfeitamente paralela e claramente
identificada, sobretudo nos anos mais recentes.
Assim, essa noção – epistemologia – corre o risco de ironicamente se
transformar naquilo que um dos pioneiros e grandes pensadores dessa área, já no
começo do século passado, denominou como “obstáculo epistemológico”. Bechelard
chamava então a atenção para o uso de palavras, metáforas ou analogias que se
generalizavam a partir de um suposto consenso em seu emprego, mas que, de fato, não
teriam um conteúdo verdadeiramente claro e estável 1. Para Lecourt, essas expressões se
situam entre o senso comum e o conhecimento científico 2. Visivelmente, se no início
essas expressões podem funcionar como uma ponte, seu uso indiscriminado ou fora do
apropriado contexto cria uma ruptura no sentido original e elas perdem a capacidade de
operar de forma eficiente e com o devido rigor da ciência. Conseqüência direta disso é
que, ao não conferirmos a devida importância à definição a ao teor das expressões e
quanto mais consensual e mais disseminado for o seu uso, menor será a precisão do seu
conteúdo. Inúmeras vezes inclusive, sua utilização se refere a uma mera posição de
princípio, bastante geral e imprecisa. Assim, muito ampla para criar qual oposição, a
expressão é também muito restrita para ter qualquer uso operacional. Em outros termos,
serviria para dizer muita coisa, mas não sabemos exatamente o que ela quer dizer.
Toda a ironia dessa situação é a constatação de que em sua origem essa palavra
queria justamente prevenir e alertar para os perigos de adotarmos tal atitude dentro do
discurso científico. Ela foi criada no começo do Século XX para concorrer com a idéia
de Filosofia da Ciência, fortemente identificada à então dominante corrente positivista3.
1
Bachelard, Gaston. La formation de l’espirit scientifique. Contribuition à une psychanalyse de la connaissance
objetive, Vrin, Paris, 1983.

2
Lecourt, Dominique. Pour une critique de l’épistemologie. Bachelard,Canguilhem,Foucault. Maspero, Paris, 5ª ed.
1980.

3
Parece ter sido pela primeira vez utilizada pelo químico e filósofo francês, de origem polonesa, Émile Meyerson,
em 1988. Há, aliás, uma importante querela sobre o ponto de vista dele e o de Bachelard, sobre as possíveis
continuidades e rupturas do discurso científico. Infelizmente, essa discussão ultrapassa os estritos objetivos desta
comunicação.
Quando sabemos que essa idéia de Filosofia da Ciência se transformou, nos últimos
anos do Século XIX e começo do XX, em uma verdadeira doutrina, um protocolo que
visava julgar a conformidade do conhecimento produzido em relação às regras da
ciência positiva, compreendendo-se melhor o contexto dentro do qual a idéia de
epistemologia surgiu4.
Ela nasceu sob o signo do conflito e do desacordo com essa visão autoritária e
unívoca da ciência positivista. A principal vocação da epistemologia é pois, desde o
início, constituir um campo de discussão, de questões sobre métodos e limites de
validade, sua inclinação não é normalizar nem restringir as iniciativas. Podemos, de
forma muito geral, dizer assim que a epistemologia é um campo crítico de discussões
sobre as formas de pensamento científico5. Isto quer dizer que essas discussões
epistemológicas dizem respeito antes de mais nada, aos métodos, aos objetos e as
finalidades de um conhecimento científico. Discutir criticamente as formas de construir
um pensamento científico não quer absolutamente dizer se transformar em um tribunal
para julgar da sua conformidade ou não em relação a um modelo único e ideal, ao
contrário.
A epistemologia pretende ser justamente um domínio aberto ao reconhecimento
da pluralidade de recursos e orientações nas diferentes disciplinas científicas. Ser um
domínio de discussões significa exatamente não estar orientado de forma exclusiva e
não agir como se detivéssemos algum tipo de certeza que legitimasse a priori esse ou
aquele caminho, em detrimento de outros possíveis6. O objetivo de uma discussão
epistemológica não é, portanto, estabelecer, ao final, uma orientação que deve ser
seguida por todos ou quase todos. Trata-se, sobretudo, de demonstrar que a maneira de
fazer ciência é também um produto histórico e contextual, mais importante ainda, trata-
se de demonstrar que a cada momento as respostas são múltiplas e que essa pluralidade
crítica é a razão mesmo da existência da ciência7.
Por isso, podemos, já nesse ponto, justificar a necessidade de melhor exprimir o
sentido da expressão epistemologia, sem que isso, no entanto, nos seja imputado como
demanda pelo estabelecimento de um sentido singular específico. Em outras palavras,
queremos que fiquem claros os limites da discussão que o uso dessa expressão nos
conduz e não justamente decretar, seja pelo consenso, seja pela soberba da autoridade, o
fim dessas necessárias discussões.
O segundo ponto importante desse campo de discussões é a geografia. Ao
associarmos geografia e epistemologia queremos indicar que a discussão pretendida
aqui não almeja estabelecer a forma ideal e absoluta pela qual a geografia deve ser
pensada ou tampouco apontar a boa direção para trabalharmos geograficamente.
Queremos sim, demonstrar que há discussões no corpo da geografia que não devem ser
evitadas, sobre sua natureza, seus métodos e suas finalidades, que elas podem ser
organizadas em torno de algumas grandes questões, que esses debates fazem parte do
percurso de uma ciência moderna. Finalmente, gostaríamos que ao final ficasse a

4
Meyerson, Émile. Identité et réalité. Alcan, Paris, 1908, reeditada (“conclusions”) em Laudier et
Wagner (org.) Philosophie des sciences: Théories, expériences et methodes, Vrin, Paris,2004.
5
Norris, Christopher. Epistemologia: conceitos-chave em filosofia. Artmed editora, Porto Alegre, 2007.
6
Japiassu, Hilton. “Origem e alcance da opinião”. In Hühne, Leda Maria (org.) Filosofia e Ciência, Uape,
SEAF, Rio de Janeiro, 2008.
7
Essa posição é diametralmente oposta àquela tida “a ciência da ciência de base positivista como nos
adverte D. Lecourt op. Cit.Porém, essa posição crítica ao positivismo não necessariamente deve conduzir
à abertura do discurso científico à irracionalidade como pretendem alguns, como por exemplo, Pierre
Thuillier, La revanche des sorcières. L’irrationnel et la penséé scientifique, Berlin, Paris, 1997 ou Paul
Feyerabend. Contra o método, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1996.

2
constatação de que essas dúvidas não nos enfraquecem, ao contrário, elas são o
testemunho e os elementos pelos quais a geografia pode ser reconhecida como uma
ciência, viva e dinâmica, aberta e plural.
Corroborando justamente a importância do contexto, podemos perceber que desde os
anos 70 aparecem as primeiras manifestações em prol de uma discussão
verdadeiramente epistemológica na geografia. Isso coincide justamente com o fim de
um longo período durante o qual imaginávamos que um caminho, e somente um, nos
levaria à construção de uma boa geografia. Correntes e contra-correntes competiam pela
supremacia, competiam também pela possibilidade de anular as outras tendências em
concorrência. Só mesmo depois dos anos 80 começaríamos a ver despontar uma nova
compreensão da geografia, muito mais aberta à pluralidade, ao diálogo e, muitas vezes,
no conflito, pois nem sempre as posições são de fato conciliáveis.
Assim, o grande elemento diferenciador nessas discussões é que abandonamos
cada vez mais a pretensão de que uma corrente terá a primazia e o privilégio de ser a
verdadeira intérprete ou a porta-voz da boa geografia. Aceitamos, exatamente por isso,
a persistência dessas discussões sobre sua natureza, seus métodos e suas finalidades
como parte do incessante processo de construção do conhecimento. Em outras palavras,
ao assim agirmos estamos verdadeiramente desenvolvendo um campo epistemológico
na geografia.
Esse campo envolve uma infinidade de questões, discussões, tratamentos,
escalas, etc. Nessa oportunidade, queremos apenas nos deter brevemente sobre três
aspectos da discussão epistemológica na Geografia: o que funda um discurso
geográfico, suas condições de validade e sua possível relevância.

IDENTIDADE DISCIPLINAR: OS SINTOMAS DE UMA CRISE

O primeiro ponto é, sem dúvida, o mais importante. Diz respeito à ontologia de


saber geográfico e pode ser traduzido em termos mais simples pela questão. Sob que
condições e sob que aspectos seria lícito conferir o qualificativo de “geográfico” a um
fenômeno?
Responder a essa questão corresponde a ser capaz de indicar um campo de
atributos e características que são próprios e exclusivos ao que denominamos como
geografia. Significa, portanto, que essas características e atributos atuam como
constituintes essenciais da Geografia, aqueles que fazem parte da sua natureza, que são
os traços que a distinguem, ou em uma só palavra, respondem por sua identidade8.
Se assim for, esses traços têm que estar presentes sempre que utilizarmos esse
qualificativo de geográfico, e isso a despeito de toda variedade das aplicações e a
despeito inclusive dos usos que foram dados em outros momentos a essa mesma
palavra9. Isso quer dizer que a identidade disciplinar, como qualquer outra, aliás, deve
ser suficientemente restritiva para assinalar a singularidade daquilo que estamos
distinguindo das demais, porém deve ser larga o suficiente para abranger as mudanças
que ocorreram durante a trajetória evolutiva desse objeto10.

8
Identidade está sendo tomada aqui independentemente das diferenciações feitas por Hall no processo de
“descontração” que, segundo ele essa idéia sofreu no curso da modernidade. Hall, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade DP&A. Rio de janeiro, 2006.
9
Esse raciocínio corresponde ao que Locke denominou como “sameness”, ou seja, a capacidade de
mudar existencialmente (materialmente), mas permanecendo o mesmo como idéia, ou como identidade.
Locke, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Nova Cultura, São Paulo, 1978. (Coleção Os
Pensadores).
10
Williams Raymond. Keywords, Fontana, Londres, 1976.

3
Por isso mesmo, constatamos que a cada momento em que correntes ou
orientações novas procuraram se impor na geografia, trazendo uma reavaliação do que
comporia o conteúdo desta disciplina, elas também se viram forçadas a retraçar a
trajetória desse conteúdo na história disciplinar, redescobrindo antigos autores pouco
valorizados ou ressaltando aspectos que teriam sido antes negligenciados11.
De forma global, podemos dizer que a partir dos anos 50 uma grande parte dos
geógrafos passa a reconhecer a insuficiência e fraqueza das bases teóricas que
pretendiam sustentar o projeto científico da geografia naquele momento. Essa
insuficiência provinha em grande parte da resistente idéia de que a ciência geográfica e
identificava inteiramente com o conhecimento empírico dos lugares e não precisava
necessariamente ultrapassar esse estágio, ou seja, não precisava criar teorias ou
explicações abstratas gerais. Ela seria, portanto, uma ciência diferente das demais pois,
não só privilegiava o conhecimento concreto como se limitava a ele.As poucas
concepções teóricas que circulavam eram vistas com desconfiança ou como algo
acessório, quando não empobrecedor, o fundamental era a descrição da
realidade.Quando o problema do estatuto científico era levantado, devido a esse
desinteresse em trabalhar com modelos teóricos, costumava-se apelar para quatro
principais idéias como resposta:

 A geografia é uma ciência de síntese - a diferença da geografia das outras


ciências é que ela integra todos os conhecimentos na apreciação de um lugar
(espaço, região, etc.). Em outras palavras, para conhecermos a forma de ser
de um espaço é necessário conhecermos todos os elementos que estão
presentes e contribuem na fisionomia daquele espaço. A geografia é assim
definida como a ciência dos lugares. Era comum também apresentar a
geologia, a pedologia, a climatologia, mas também a demografia, a
sociologia, a economia, entre outras, como ciências subsidiárias à geografia.
Estas disciplinas seriam analíticas, tratariam de um campo fenomênico, ou
seja, partiriam do questionamento sobre um problema ou de um domínio, A
geografia não responde a um problema específico, nem por um tipo de
fenômeno, ela trata dos lugares e, portanto, integra todos os conhecimentos
que operam naquele espaço. De certa forma, nesse caso a ciência geográfica
não tem como papel explicar, mas simplesmente relacionar os campos
analíticos advindos de outras disciplinas. Por isso se difundiu a idéia de que a
geografia faria uma grande síntese.

 A geografia é uma ciência indutiva – a geografia, como outras ciências


físicas e naturais, partiria dos fatos para só depois construir explicações, ao
contrario das ciências dedutivas, como a matemática, que avançaria por
raciocínios lógicos dedutivos. Assim, o mais importante seria o
conhecimento empírico, ou pelo menos, qualquer teoria deveria partir do
conhecimento profundo dos lugares (ou regiões, paisagens, etc.). Se o que
concentra e define a substancia do conhecimento cientifico da geografia é a
maneira como se apresentam os lugares, então o primeiro e mais importante
passo na formação do conhecimento é a descrição minuciosa e total de todos
os aspectos que caracterizam um lugar. A permissão do uso e a legitimidade

11
Esse recurso foi examinado com detalhes em Gomes, Paulo C. da Costa. Geografia e
Modernidade, Bertrand Brasil, Rio de janeiro, 1996.

4
de qualquer modelo de analise teórico ficam submetidas ao conhecimento
empírico, quase exaustivo, do conjunto dos lugares, ou seja, só pode haver
teoria depois que a massa do conhecimento empírico for estabelecida de
sistematizada. Como se pode perceber trata-se de uma missão quase
impossível superar essa primeira fase na maneira como ela era apresentada
por alguns geógrafos.

 A geografia é uma ciência “charneira” – A diferença da geografia provém da


sua posição, entre as ciências sociais e naturais. O campo das questões
geográficas se situa nessa relação, ou melhor, a geografia nessa versão deve
responder sobre as múltiplas influencias ou condicionamentos gerados entre
o mundo natural e a organização social. Essa posição singularíssima em
relação as outras ciências é responsável pelas dificuldades em desenvolver
grandes painéis explicativos, uma vez que o determinismo foi condenado
desde o começo do Século XX, ou seja, exatamente no momento em que a
geografia começa a ser difundida através de um ensino sistemático.

 A geografia é uma ciência do empírico – Alguns poucos geógrafos procura


de forma mais aprofundada e movidos por um genuíno desejo de
esclarecimento uma forma de definir a geografia na maneira como ela era
praticada nessa primeira metade do Século XX. Um dos trabalhos mais
conhecidos apresentava a “excepcionalidade” do método geográfico como
uma derivação da natureza do próprio objeto de estudo da geografia: o
espaço. Essa excepcionalidade teria sido pela a primeira identificada por
Kant, já no século XVIII, em sua classificação das ciências quando ele
descreve o caráter a priori das categorias de espaço e tempo. De fato, Kant
assinalou o fato de que para percebermos qualquer fenômeno e criarmos
categorias de análise, é necessário que esse fenômeno esteja contido no
tempo e no espaço, senão ela não seria identificável, uma vez que se
misturada a outros. Então, disse ele, as categorias de tempo e espaço, são
categorias a priori, são como condições para nossa percepção. Certos
geógrafos interpretam isso com um estatuto cientifico diferente para a
geografia (e também para a Historia que estudo e tempo outra categoria a
priori segundo Kant) uma vez que essa ciência estuda o espaço e este é uma
categoria apriorística não há necessidade de encontar justificativas lógicas,
ele é um dado concreto e fundamental. Daí a geografia ter a dificuldade em
operar no campo da abstração já que sua base é uma categoria que não
necessita de definição.

Nessas quatro situações percebermos que o que se pretendia afirmar a singularidade da


geografia em relação às outras ciências. Ainda que se constatassem problemas de
integração da geografia aos metódos das outras disciplinas, de forma alguma se
renunciando ao prestigioso estatuto de ciência. Essas explicações apresentadas acima
procuravam assim uma justificativa para a dificuldade da geografia de produzir modelos
de explicação, ou para a sua incapacidade de criar um verdadeiro campo analítico de
investigação. Essas explicações operavam também como justificativas para que os
geógrafos não frequentassem as discussões mais gerais sobre as teorias do
conhecimento que atravessavam as demais disciplinas. A natureza singular da geografia
em face das outras disciplinas os pouparia desses debates.

5
Esse traço, todavia, não deve ser interpretado simplesmente como indolência ou
puro conservadorismo dos geógrafos. A geografia tal como a historia é filha dos
modelos de erudição que caracterizavam o saber antes da revolução científica do final
do Século XVIII. O enciclopedismo e o princípio das coleções são sempre fortes
tentações que, embora hoje mais fracas, exercem seu poder sobre os interessados nesses
campos.
O fato de que a geografia tenha se construído como disciplina a partir da herança
deixada pelos viajantes e suas descrições e pelos naturalistas e suas coleções variadas,
certamente foi decisivo. Por um lado, a partir do material deixado por esses pioneiros
que os geógrafos começaram a trabalhar. Por outro lado, essa proximidade com
viajantes e naturalistas e suas aventurosas e curiosas estórias devem, sem duvida, ter
contribuído no tipo de público atraído para o campo da geografia. Isso quer dizer que
muitos geógrafos inicialmente tinham como horizonte e interesse essa agenda descritiva
de lugares, por vezes bastante anedótica, e talvez tivessem pouca sensibilidade para os
esquemas explicativos abstratos12. Podemos mesmo nos perguntar se ainda hoje,
tentação de definir, ou pelo menos manter uma forte conotação naturalista dentro de
certos domínios da disciplina não provenha ainda dessa mesma origem.
O fato mais significativo que queremos assinalar aqui, no entanto, é que a partir
dos meados do século passado essas quatro linhas de raciocínio apresentadas pelos
geógrafos e citadas anteriormente começam a mostrar claros sinais de insuficiência.
Para termos uma idéia da importância dessa discussão basta que consideremos que a
partir delas, de sua aceitação, que a geografia pode ou não justificar a legitimidade de
seu estatuto como ciência frente as demais disciplinas. Examinemos, ainda que
brevemente, alguns dos pontos críticos que atingiram essas linhas de raciocínio.

 Em relação a ciência de síntese – todo domínio científico precisa produzir


conhecimento, não há como imaginar que uma ciência pode existir sem
definir um campo de investigação próprio e , além disso pretenda ser a
síntese de todos os demais. A idéia de que a geografia era uma ciência
caracterizada pela inter-relação de diversos campos não pode se sustentar,
pois todas as ciências se nutrem delas mesmas de inter relações entre
variados campos. Ademais, no estado atual do conhecimento científico,
profundo, especializado e sofisticado, como poderia o geógrafo ser capaz de
produzir uma síntese global desses conhecimentos?

 Em relação a ciência indutiva – todas as outras ciências, físicas e naturalistas, que


também podem ser classificadas como indutivas procedem e têm como finalidade
produzir explicações. Aliás, as descrições só têm sentido dentro de um quadro
científico quando referenciadas a um ponto de vista que é ele mesmo dado pelo
quadro de uma teoria ou de um esquema interpretativo. Deste de Kant e das
doutrinas modernas do conhecimento sabemos da impossibilidade de conhecer as
coisas em sua totalidade, as coisas-em-si (a diferença entre o noumêno e o
fenômeno). Assim, não se consegue jamais descrever todos os aspectos de uma
coisa ou fato, por maior que seja o esforço, a profundidade e os detalhes da
descrição. Além disso, ao entrar em contato com o empírico o observador já está
municiado de categorias abstratas imprescindíveis à própria observação e descrição.
Da mesma forma, o interesse que guia e legitima a descrição é também muito mais
produto de um quadro de referências abstratas do que simplesmente o resultado de

12
No começo do Século XX, sobretudo na França, muitos geógrafos tinham seguido estudos de História,
mas, também nesse caso e durante muito tempo, essa disciplina sofreu da mesma doença enciclopedista e
empirista descrita aqui para a geografia.

6
uma observação empírica, segundo a teoria clássica da ciência, constitui o método
recomendável para a produção do conhecimento. Por fim, essa classificação de
ciências indutivas e dedutivas foi muito fortemente criticada desde o começo do
Séc. XX por inúmeras correntes que denunciam a falácia da separação entre
categorias mentais e percepção (Convencionalismo, neo-Kantismo, etc.). Sem
precisarmos ir até essa discussão, parece que dentro dessa linha de raciocínio de
uma ciência exclusivamente indutiva tampouco poderia se encontrar justificativa
para manter a geografia como uma mera coleção de observações empíricas, sem
discussões teóricas explicativas.

 Em relação à ciência <<charneira>> - Como já foi dito anteriormente é difícil


imaginar que uma ciência defina seu campo de estudos como uma relação,
sobretudo de uma amplitude tão grande como essa entre o mundo natural e a
organização social. De qualquer forma, ainda que isso fosse aceito, seria necessário
produzir modelos abstratos generalizantes – O que é regular nessa relação? Quais os
graus de dependência entre os diversos aspectos ambientais e socioculturais
descritos? Que elementos gerais resultam da análise? Em outras palavras, dizer que
a geografia estuda a relação homem-meio e produzir uma série de descrições de
casos singulares que apenas demonstram os condicionamentos e as limitações
particulares de cada parcela analisada corresponde aos resultados que se espera de
um campo disciplinar verdadeiramente científico.

 Em relação à ciência do empírico fundada no raciocínio de Kant do espaço


como uma categoria a priori da percepção e do conhecimento – não quer
dizer para ele, e nem poderia, que a geografia, que estuda o espaço, fica
dispensada de produzir outras categorias de análise. Toda ciência para Kant
deve desenvolver e trabalhar a partir de categorias gerais que, aliás, são elas
que conformam nossa percepção e nosso entendimento. O modelo
fundamental de ciência para Kant é a física newtoniana, ou seja, a
instrumentalização de nossa percepção através de categorias, a observação
formal do comportamento empírico e construção de um sistema de
explicação abstrato, lógico e generalizante. Nada é mais distante do sistema
kantiano do que essa idéia de que pode haver uma ciência eminentemente
empírica que se nutre de uma observação direta, sem construção teórica.
A esses argumentos críticos somam-se muitos outros. Alguns de pequeno
alcance, como por exemplo, os que diziam que: “os geógrafos não gostam de
matemática” por isso não têm boa capacidade de análise e de abstração; ou ainda, “o
recrutamento dos geógrafos é feito sobre a base de uma geografia do ensino médio,
caracterizada pela memorização, nada há nesse ensino que deixe perceber que existe na
geografia um esforço de compreensão teórica do funcionamento dos fenômenos que ela
diz estudar, por isso são atraídos para a carreira aqueles elementos que não possuem
qualquer vocação para o pensamento abstrato”; finalmente, chegava-se mesmo a
diagnósticos bastante severos como aqueles que definiam o geógrafo como um
apreciador do anedótico ou um especialista em generalidades13.
Ao lado dessas críticas apareciam outras de ordem bem mais geral como aquelas
que demandavam que o estatuto de ciência fosse acordado à geografia somente na
medida em que ela se mostrasse capaz de construir modelos gerais de análise e de

13
Allemand, Sylvain, Dagorn, René-Éric e Vilaça, Oliver. La Géographie contemporaine, col.
Idéas recues, Le cavaller Bleu Editions, Paris, 2006.

7
formular teorias explicativas como todas as demais ciências, inclusive as sociais. Muito
se falou também da dificuldade em aplicar um conhecimento que não era fundado em
modelos abstratos e por isso a dificuldade em operacionalizar esse conhecimento como
o faziam as outras áreas que participavam da esfera da ação, inclusive em domínios
onde a geografia parecia poder trazer alguma contribuição como no planejamento
territorial, na discussão de políticas públicas, no desenvolvimento regional etc.
Nessa discussão muito se tem confundido ciência e engenharia e muitas vezes, a
decantada integração dos campos físico e humano da geografia responde não mais do
que pela simples aplicação de um conhecimento na tentativa de solução de um problema
prático. Esse colossal equívoco entre produção do conhecimento, relativo à esfera da
ciência e, portanto, necessariamente atravessado por questões epistemológicas e a
aplicação do conhecimento, relativo à esfera das engenharias, da solução de problemas
práticos, tecnicidade e operacionalização dos conhecimentos, tem sido fruto de imensos
problemas na definição do papel do geógrafo e de suas competências. Esse equívoco
não afeta somente à identidade d saber geográfico, ele se transforma em grave problema
na formação dos geógrafos e na inserção deles no mercado de trabalho.
O diagnóstico dos problemas parecia, portanto, convergir no sentido de que as
principais falhas eram atribuídas à ausência ou ao pequeno desenvolvimento de uma
discussão teórica dentro do campo da geografia. Podemos pois chegar a conclusão de
que o que caracteriza a geografia no pós-guerra é essa consciência aguda de que seu
futuro como ciência dependeria da capacidade de gerar instrumento de análise abstratos,
ou seja, superar a descrição dos casos e encontrar regularidades capazes de fundar um
campo de discussões teóricas. Talvez pudéssemos ousar dizer, de forma bem exemplar
passar da geografia dos elementos à construção de uma verdadeira ciência geográfica.

A BUSCA POR UM OBJETO: LIMITES E FRUSTAÇÃO

Ainda que o diagnóstico fosse quase unânime, o mesmo não ocorria com as
recomendações a seguir e isso foi imensamente positivo para a geografia. De fato, a
crise iniciada pelas insuficiências desses argumentos que alicerçavam a chamada
“geografia clássica” conduziu os geógrafos a se lançarem em um verdadeiro debate
epistemológico. Esses debates tomaram diversas direções. Uma das mais centrais seria
aquela que discute sobre o objeto de estudo da geografia.
Para alguns, a busca desse objeto tomou a forma de uma verdadeira epopéia mítica.
Encontrar um objeto para a Geografia corresponderia a salvar a disciplina de sua deriva, haveria
a definição de novos rumos, a geografia se libertaria do classicismo e serviria à libertação
social. O objeto da geografia, tal qual o Santo Graal, era procurado por grupos de pessoas
unidas pelas promessas redentoras em torno de sua posse. Esse objeto “sacralizado” seria
encontrado pelos bravos e somente os puros de espíritos teriam sua guarda e, finalmente, sua
descoberta anunciava muita paz e prosperidade e reconhecimento à ciência geográfica.
O nome desse mágico objeto era “espaço” e como nos abundantes mitos, muitos
foram aqueles que reclamaram sua descoberta e posse. Parte do problema parecia,
portanto, estar, resolvido. Sabíamos o objeto de estudo da geografia, possuir esse objeto
daria distinção e prestigio.
Dois problemas surgiram imediatamente depois desse consensual concerto em
torno da idéia de que era o estudo do espaço que daria identidade e relevância ao à
geografia. O primeiro era de sua posse exclusiva, seu monopólio. Outros domínios
disciplinares ao trabalharem com o espaço estariam indevidamente explorando os
recursos nos terrenos da geografia?

8
Uma das soluções apresentadas para esse problema era afirmar a diferença entre
o espaço geográfico e outros tipos de espaço trabalhados por outras disciplinas. Esse
recurso, todavia, é apenas parcial, pois transfere as impressões contidas na definição da
geografia ao espaço e tudo aquilo que foi dito em relação às marcas distintivas e
exclusivas que devem ser apresentadas quando da definição de um campo identitário.
Daí, alias, deriva justamente o segundo grande problema – definir o tipo de espaço que
deve ser estudado pela geografia.
Rapidamente, os geógrafos compreenderam que a detenção, ainda que apenas
nominativa, de um suposto objeto único não garantia nem definia as direções que os
estudos geográficos deveriam tomar. Ainda que estivéssemos de acordo sobre a
denominação de um objeto, as questões relativas à natureza desse objeto, a como
abordá-lo, a como justificar sua pertinência e sua relevância restavam sem resposta.
Espaço matemático, geométrico, sistêmico, polarizado, socialmente definido,
polarizado, homogêneo, vívido, físico, concreto, foi algumas das classes criadas para
definir o substrato essencial para uma nova ciência geográfica do espaço. Até mesmo a
denominação “geografia” foi colocada sob suspeita e propostas de ciência do espaço ou
espaciologia foram sugeridas como alternativas no processo de apropriação desse
objeto.
Uma questão fundamental permanecia, todavia, em silencio. É aquela que indagava
sobre a necessária associação de uma disciplina ao domínio de um objeto especifico.
Todas as disciplinas possuem um objeto que lhes pertence? Os recortes disciplinares
correspondem à transformação e fragmentação do real em uma coleção de objetos,
depois selecionados de acordo com os limites impostos por cada uma das disciplinas? A
quem pertence determinados objetos complexos, como, por exemplo, o estudo das
cidades?
De certa forma, a definição do espaço como objeto de estudos da geografia, ou
daquilo que iria conferir identidade e marca geográfica a um fenômeno, não significou
uma verdadeira ruptura com o projeto clássico da disciplina. Em outras palavras, a
escolha de um objeto, largo e sem muitas delimitações, significou a possibilidade de
continuar a manter as idéias da geografia como ciência de síntese, da relação entre o
natural e o cultural, ou ainda, do espaço como um reflexo da sociedade, mantendo
assim, em todas essas formas, a economia de uma reflexão teórica própria ou o
desenvolvimento do debate epistemológico dentro da geografia.
A engenharia retórica, por mais bem elaborada que fosse, não conseguiu ser
suficiente para soldar as lacunas de um raciocínio verdadeiramente epistemológico
necessário ao desenvolvimento de uma ciência moderna. Esse entendimento não se
impõe pela simples posse de um objeto. É necessário ser claro quanto a contribuição
relevante trazida pela disciplina na investigação de um fenômeno e não apenas dizer que
aqueles tipos de fenômeno fazem parte do seu domínio.

CAMINHOS QUE NOS LEVAM, NÃO AO PARAÍSO, MAS A ALGUM LUGAR

Nesse ponto chegamos talvez ao momento mais importante do raciocínio


desenvolvido aqui – que característica marca a reflexão e a contribuição da geografia no
estudo de certos fenômenos? Ao que responderemos. A ordem espacial.
Foi assim que denominamos a idéia de que há um arranjo físico das coisas,
pessoas e fenômenos que é orientado seguindo um plano de dispersão sobre o espaço14.

14
Gomes, Paulo. C da Costa. “Geografia fin-de-ciclè: o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o
fim das ilusões”. In Castro, Iná E. de; Gomes, Paulo C. C ; Corrêa, Roberto. L. (orgs.). Explorações
Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997.

9
Há coerência, lógicas, razões, que presidem essa distribuição. Há uma trama locacional
é a especificidade da ciência geográfica. Ela é relevante, pois o ordenamento espacial de
alguns fenômenos lhes é essencial.
Na distribuição das espécies vegetais que caracteriza tipos de bioma, no processo de
sedimentação que forma uma praia ou na densidade de população dentro de uma
aglomeração urbana, em qualquer um desses fenômenos, há um arranjo espacial
coerente e explicativo que é parte da própria natureza do fenômeno. De fato, o que
explica cada um desses arranjos não é derivado de uma mesma conexão: o jogo das
interações dentre de um bioma gera um plano de distribuição que não tem
rigorosamente a mesma causalidade lógica dos modelos físicos que explicam a diferente
granulometria ao longo do perfil de uma praia, ainda menos, esses fatores poderiam
servir embora o problema na base seja o mesmo para a compreensão dos planos de
dispersão de determinados elementos ou fenômenos, os instrumentos mobilizados para
explicá-los são necessariamente muito diversos e variados.
Imaginar que esses elementos serão federados e uma ordem total aparecerá,
corresponde a trabalha com a hipótese de um demiurgo plano, uma teleologia global que
fere frontalmente a idéia que se impõe cada vez mais fortemente em nossos dias, por
vezes associada ao pós-moderno, de que há sempre uma multiplicidade de sistemas
explicativos e de completo rechaço de uma mono-casualidade ou das assim chamadas
“grandes narrativas”. A simplicidade desse holístico desenho é contestada sempre pela
complexidade de que se impõe e que aparece a partir das infinitas interações que
caracteriza os fenômenos, de seus limites críticos, de suas diversas escalas, de suas
transitórias e mutáveis estruturas.
A conclusão mais importante desse raciocínio aqui não é, no entanto, aquela que
simplesmente sublinha a complexidade dos sistemas espaciais. A constatação da
complexidade não pode ser um bloqueio ou um álibi. A constatação da complexidade
não pode ser um consentimento para a confusão. A constatação da complexidade não
pode ser uma senha de autorização para sistemas de entendimento totais ou totalitários.
A constatação de complixidade é tão somente o reconhecimento de que percurso para a
construção de um conhecimento demanda esforço, dedicação e muito trabalho de
reflexão. A constatação da complexidade é tão somente o reconhecimento de que nosso
entendimento, apesar de todo esse esforço, é sempre parcial e representacional. Nunca
chegaremos a envolver todos os aspectos da miríade de elementos inter-relacionados na
composição dos sistemas espaciais. Seus desenhos, embora possam ser traduzidos em
esquemas simplificados para fins de apresentação são o produto de sofisticados
processos15.
Assim, o mais importante, embora possa parecer bem simples, é que o terreno da
ciência geografia não se define pela posse de um objeto, o espaço. Esse terreno se
delineia pelo tipo de questão que é dirigida a um fenômeno. O tipo de questão
construído pela ciência da geografia é aquele que se interroga sobre a ordem espacial
deles. Outros domínios disciplinares trabalharão os mesmos fenômenos, mas
construirão outras perguntas, terão outras curiosidades, desenvolverão outras análises e
chegarão a outros resultados. Cada disciplina cria suas representações e trabalha a partir
delas, o que demonstra bem a impossibilidade de um saber totalizante e absoluto.
Dentro dessa perspectiva, não há uma geografia física e uma geografia humana,
unificadas em seus respectivos campos. Menos ainda, haveria a possibilidade de federá-
las em um campo totalizador, que seria a “verdadeira geografia”. Há, contudo, sempre
uma análise geográfica quando o centro de nossa questão é a ordem espacial, pouco
15
Essa mesma constatação é feita para a física por Prigogine. Prigogine, Ilya. O fim das certezas: tempo,
caos e as leis da natureza. Ed. Da UNESP, São Paulo, 1996.

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importando o tipo de fenômeno, inorgânico, orgânico ou social, até porque essas
fronteiras são de difícil delimitação em muitos casos, quando falamos de natureza e de
sociedade, por exemplo.
Haverá, contudo, sempre uma geografia quando o fenômeno da dispersão
espacial construir a questão central do problema, a geografia existe em qualquer
fenômeno em que haja uma ordem de dispersão espacial16. A unidade não provém do
tipo de fenômeno, mas do tipo de pergunta.

REPENSANDO O DISCURSO GEOGRÁFICO E SUA IMPORTÂNCIA

Depois dessas considerações, somos agora talvez mais capazes de examinar,


ainda que rapidamente, com outros olhos o problema da relevância do campo de
trabalho da geografia.
Se a composição espacial colabora de forma essencial nos fenômenos, a análise
das posições, das implicações relacionais delas no sistema locacional constitui uma
dimensão fundamental para a compreensão dos fenômenos. Em outras palavras, isso
funda um plano de análise autônomo, um verdadeiro campo de questões, um domínio
epistemológico. Isso significa que ao ignorar ou negligenciar esse plano perdemos a
oportunidade de desvendar toda uma ordem de sentidos e significações fundamentais
que constituem os fenômenos. Essa negligência faz com que outras ordens explicativas
sejam sempre reforçadas e, paralelamente, significa um empobrecimento da
compreensão das múltiplas possibilidades analíticas, das representações possíveis de um
fenômeno, resumindo, gera uma equivocada simplificação na interpretação dos eventos
16.

A importância da ordem espacial não ficou confinada à geografia. Muitos autores de


diversas outras áreas foram, por diversas razoes, levados, muitas vezes, a tratar desse
plano do ordenamento espacial que se impôs com uma dimensão fundamental na
compreensão de certas dinâmicas. Há numerosos exemplos, alguns já celebres como os
de Anthony Giddens, de Henri Lefébvre, de Fernand Braudel, de Michel Foucault, entre
muitos outros, que, sem serem geógrafos, chamaram a atenção para a centralidade e
para a importância da espacialidade na compreensão de certos processos e dinâmicas.
Perceber que há uma ordem espacial da vida social, por exemplo, é perceber que nossas
práticas são modificadas pela modulação da localização, que essa modulação modifica
também nossa compreensão dos conteúdos, que essa modulação classifica, hierarquiza,
regula, qualifica nossas atitudes, tanto as mais claramente expressivas quanto aquelas
mais cotidianas.
A relevância dessa dimensão espacial dos fenômenos é, portanto, extraordinária. Ela
pode nos ajudar a entender melhor inúmeros fenômenos, que atuam em diferentes
escalas e trazer inéditos recortes e condicionantes que escapam das dominantes
causalidades comumente apontadas. Cabe ao geógrafo fazê-lo, mas se ele não o fizer,

16
Foi exatamente por isso que ignorei a sugestão de contemplar a categoria de tempo nessa oportunidade.
A ordem cronológica é uma daquelas que sempre é argüida como fundamental na compreensão dos
fenômenos. Mesmos nós geógrafos estamos acostumados a fazer apelo a essa ordem para encontrar
explicações. Isso não é em si condenável, mas a obliteração da ordem espacial sim. Assim, se reafirma o
velho hábito de que as explicações diacrônicas se imponham sempre como aquelas que aparentemente são
mais válidas do que porventura aquelas trazidas por uma análise sincrônica.
Foi por esta mesma razão que ignorei todos aqueles autores, numerosos, que confundem história da
geografia com epistemologia, como se essas duas áreas se recobrissem perfeitamente. Ao fazerem negam
a independência desse campo de questões epistemológicas e o traduzem como simples etapas da evolução
da disciplina, o que no ponto de vista defendido aqui não é aceitável.

11
outros justificadamente o farão e é isso que já vem, de certo modo, acontecendo no
movimento que ficou conhecido como a “virada espacial” (the spatial turn).
Essa dimensão espacial e suas repercussões não são simples de serem percebidas, pois
justamente escapam dos elementos que normalmente são analisados e sobre os quais se
atribui o peso da causalidade na constituição dos fenômenos. O desafio que se coloca à
Geografia é, por esse ângulo, portanto, formidável – iluminar um novo campo de
questões e demonstrar sua pertinência e importância.
A sedução do discurso fácil e do consenso imediato tem sido muitas vezes um entrave
do peso na produção do conhecimento relevante na Geografia. O lugar comum que
agrada de imediato, mas que de fato nada acrescenta aquilo que já é comumente
pensado, o reforço do pensamento e da explicação banais, a confusão entre o papel de
produtor do conhecimento com o de mero reprodutor, o encanto da denúncia e a posição
da suposta superioridade daquele que denuncia, a atração pelo discurso moralista, todos
esses ingredientes, embora facilmente compreensíveis pela sociologia da ciência, têm
sido muito nocivos a geografia, sobretudo pela grande generalização do seu uso entre
nós17.
Parece que precisamos renunciar, pelo menos em parte, ao discurso simples que gera
com facilidade uma sensação de glória pessoal e pensarmos nos benefícios possíveis do
prestígio trazido pela colaboração na produção do saber, na efetiva contribuição ao
desenvolvimento do conhecimento, mesmo que isso não cause uma adesão imediata e
desestabilize as confortáveis certezas do lugar comum. Renunciemos à banalidade para
ganharmos em importância.

***

A epistemologia não é uma forma de estabelecer o modelo, ideal, único e infalível para
produzir conhecimento. É um campo de tensões e discussões. Por isso, debates e
discordâncias são inexoráveis. A aceitação de que isso é a regra do jogo nos flexibiliza,
nos faz abdicar mais rapidamente das palavras doutrinárias, das certezas, nos coloca
face a face com a multiplicidade de pontos de vista, com a complexidade.
Ao final da 2ª Grande Guerra, desiludidos com os esquemas explicativos e com as
orientações do Partido Comunista Francês, dois grandes intelectuais escreveram livros
com títulos evocadores: Para entrar no Século XX, de Jean Duvignaud e Para sair do
Século XX, de Edgar Morin18. O primeiro acreditava que as velhas doutrinas do Século
XIX teriam se prolongado e se popularizado no XX e o quadro analítico, simplificado e
esquemático que fundava a ciência não tinha mais como sobreviver no contexto
complicado do mundo pós 2ª Guerra. O segundo se perguntava - como explicar o
mundo depois dessa barbárie desse evento e após a desilusão dos esquemas explicativos
unificados e doutrinários que serviram de matrizes às ciências até então, o positivismo e
o marxismo? A conclusão essencial era a mesma: é preciso reaprender a pensar.
A estrita consideração da economia, da técnica e dos processos de produção jamais
seriam sozinhos capazes de fornecer a chave para interpretar esse complexo mundo
moderno. Da mesma forma, a atribuição de uma causalidade simples não pode mais ser
aceita como absoluta e formadora da totalidade dos fenômenos. Sabemos que esses

17
Não somente entre nós. Todas as ciências sociais padecem desse mesmo mal. Muitas vezes a
reprodução da banalidade se faz sob um manto elaborado e todo o talento dos autores é utilizado para
revestir, aparentemente com uma linguagem sofisticada, uma afirmativa bastante simples que tem livre
curso bem estabelecido no senso comum.
18
Duvignaud, Jean. Pour entrer dans le XXème Siècle. Grasset, Paris, 1960 e Morin, Edgar. Puor sortir
du vingtième siécle. Nathan, Paris, 1981.

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ingredientes somados às grandes tensões geradas por outras disciplinas, como a física e
toda a discussão sobre a possibilidade de unificação das forças de interações físicas
(gravitacional, eletromagnética, fraca e forte), a conectividade entre os fenômenos, as
flutuações, a não-linearidade, entre outras noções, deram origem ao que Edgar Monin
chama do novo paradigma da complexidade.
Seja como for, parece que cabe à geografia tomar a si a tarefa de discutir o complexo
sistema de posições e de localização, tentar desvendar o papel e a importância desse
sistema na estrutura dos fenômenos e demonstrar o valor dessa análise para a
compreensão deles. Tudo isso não pode ser feito sem um profundo mergulho no
horizonte epistemológico. Mesmo os entre nós mais pessimistas devem admitir que os
principais elementos para isso já estão reunidos e as condições para tal empreitada já
estão dadas. Então, mãos a obra.

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