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BANAL E O DOUTRINÁRIO
(texto extraído do livro Espaço e Tempo, entre as páginas 13 e 30)
INTRODUÇÃO
2
Lecourt, Dominique. Pour une critique de l’épistemologie. Bachelard,Canguilhem,Foucault. Maspero, Paris, 5ª ed.
1980.
3
Parece ter sido pela primeira vez utilizada pelo químico e filósofo francês, de origem polonesa, Émile Meyerson,
em 1988. Há, aliás, uma importante querela sobre o ponto de vista dele e o de Bachelard, sobre as possíveis
continuidades e rupturas do discurso científico. Infelizmente, essa discussão ultrapassa os estritos objetivos desta
comunicação.
Quando sabemos que essa idéia de Filosofia da Ciência se transformou, nos últimos
anos do Século XIX e começo do XX, em uma verdadeira doutrina, um protocolo que
visava julgar a conformidade do conhecimento produzido em relação às regras da
ciência positiva, compreendendo-se melhor o contexto dentro do qual a idéia de
epistemologia surgiu4.
Ela nasceu sob o signo do conflito e do desacordo com essa visão autoritária e
unívoca da ciência positivista. A principal vocação da epistemologia é pois, desde o
início, constituir um campo de discussão, de questões sobre métodos e limites de
validade, sua inclinação não é normalizar nem restringir as iniciativas. Podemos, de
forma muito geral, dizer assim que a epistemologia é um campo crítico de discussões
sobre as formas de pensamento científico5. Isto quer dizer que essas discussões
epistemológicas dizem respeito antes de mais nada, aos métodos, aos objetos e as
finalidades de um conhecimento científico. Discutir criticamente as formas de construir
um pensamento científico não quer absolutamente dizer se transformar em um tribunal
para julgar da sua conformidade ou não em relação a um modelo único e ideal, ao
contrário.
A epistemologia pretende ser justamente um domínio aberto ao reconhecimento
da pluralidade de recursos e orientações nas diferentes disciplinas científicas. Ser um
domínio de discussões significa exatamente não estar orientado de forma exclusiva e
não agir como se detivéssemos algum tipo de certeza que legitimasse a priori esse ou
aquele caminho, em detrimento de outros possíveis6. O objetivo de uma discussão
epistemológica não é, portanto, estabelecer, ao final, uma orientação que deve ser
seguida por todos ou quase todos. Trata-se, sobretudo, de demonstrar que a maneira de
fazer ciência é também um produto histórico e contextual, mais importante ainda, trata-
se de demonstrar que a cada momento as respostas são múltiplas e que essa pluralidade
crítica é a razão mesmo da existência da ciência7.
Por isso, podemos, já nesse ponto, justificar a necessidade de melhor exprimir o
sentido da expressão epistemologia, sem que isso, no entanto, nos seja imputado como
demanda pelo estabelecimento de um sentido singular específico. Em outras palavras,
queremos que fiquem claros os limites da discussão que o uso dessa expressão nos
conduz e não justamente decretar, seja pelo consenso, seja pela soberba da autoridade, o
fim dessas necessárias discussões.
O segundo ponto importante desse campo de discussões é a geografia. Ao
associarmos geografia e epistemologia queremos indicar que a discussão pretendida
aqui não almeja estabelecer a forma ideal e absoluta pela qual a geografia deve ser
pensada ou tampouco apontar a boa direção para trabalharmos geograficamente.
Queremos sim, demonstrar que há discussões no corpo da geografia que não devem ser
evitadas, sobre sua natureza, seus métodos e suas finalidades, que elas podem ser
organizadas em torno de algumas grandes questões, que esses debates fazem parte do
percurso de uma ciência moderna. Finalmente, gostaríamos que ao final ficasse a
4
Meyerson, Émile. Identité et réalité. Alcan, Paris, 1908, reeditada (“conclusions”) em Laudier et
Wagner (org.) Philosophie des sciences: Théories, expériences et methodes, Vrin, Paris,2004.
5
Norris, Christopher. Epistemologia: conceitos-chave em filosofia. Artmed editora, Porto Alegre, 2007.
6
Japiassu, Hilton. “Origem e alcance da opinião”. In Hühne, Leda Maria (org.) Filosofia e Ciência, Uape,
SEAF, Rio de Janeiro, 2008.
7
Essa posição é diametralmente oposta àquela tida “a ciência da ciência de base positivista como nos
adverte D. Lecourt op. Cit.Porém, essa posição crítica ao positivismo não necessariamente deve conduzir
à abertura do discurso científico à irracionalidade como pretendem alguns, como por exemplo, Pierre
Thuillier, La revanche des sorcières. L’irrationnel et la penséé scientifique, Berlin, Paris, 1997 ou Paul
Feyerabend. Contra o método, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1996.
2
constatação de que essas dúvidas não nos enfraquecem, ao contrário, elas são o
testemunho e os elementos pelos quais a geografia pode ser reconhecida como uma
ciência, viva e dinâmica, aberta e plural.
Corroborando justamente a importância do contexto, podemos perceber que desde os
anos 70 aparecem as primeiras manifestações em prol de uma discussão
verdadeiramente epistemológica na geografia. Isso coincide justamente com o fim de
um longo período durante o qual imaginávamos que um caminho, e somente um, nos
levaria à construção de uma boa geografia. Correntes e contra-correntes competiam pela
supremacia, competiam também pela possibilidade de anular as outras tendências em
concorrência. Só mesmo depois dos anos 80 começaríamos a ver despontar uma nova
compreensão da geografia, muito mais aberta à pluralidade, ao diálogo e, muitas vezes,
no conflito, pois nem sempre as posições são de fato conciliáveis.
Assim, o grande elemento diferenciador nessas discussões é que abandonamos
cada vez mais a pretensão de que uma corrente terá a primazia e o privilégio de ser a
verdadeira intérprete ou a porta-voz da boa geografia. Aceitamos, exatamente por isso,
a persistência dessas discussões sobre sua natureza, seus métodos e suas finalidades
como parte do incessante processo de construção do conhecimento. Em outras palavras,
ao assim agirmos estamos verdadeiramente desenvolvendo um campo epistemológico
na geografia.
Esse campo envolve uma infinidade de questões, discussões, tratamentos,
escalas, etc. Nessa oportunidade, queremos apenas nos deter brevemente sobre três
aspectos da discussão epistemológica na Geografia: o que funda um discurso
geográfico, suas condições de validade e sua possível relevância.
8
Identidade está sendo tomada aqui independentemente das diferenciações feitas por Hall no processo de
“descontração” que, segundo ele essa idéia sofreu no curso da modernidade. Hall, Stuart. A identidade cultural na
pós-modernidade DP&A. Rio de janeiro, 2006.
9
Esse raciocínio corresponde ao que Locke denominou como “sameness”, ou seja, a capacidade de
mudar existencialmente (materialmente), mas permanecendo o mesmo como idéia, ou como identidade.
Locke, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Nova Cultura, São Paulo, 1978. (Coleção Os
Pensadores).
10
Williams Raymond. Keywords, Fontana, Londres, 1976.
3
Por isso mesmo, constatamos que a cada momento em que correntes ou
orientações novas procuraram se impor na geografia, trazendo uma reavaliação do que
comporia o conteúdo desta disciplina, elas também se viram forçadas a retraçar a
trajetória desse conteúdo na história disciplinar, redescobrindo antigos autores pouco
valorizados ou ressaltando aspectos que teriam sido antes negligenciados11.
De forma global, podemos dizer que a partir dos anos 50 uma grande parte dos
geógrafos passa a reconhecer a insuficiência e fraqueza das bases teóricas que
pretendiam sustentar o projeto científico da geografia naquele momento. Essa
insuficiência provinha em grande parte da resistente idéia de que a ciência geográfica e
identificava inteiramente com o conhecimento empírico dos lugares e não precisava
necessariamente ultrapassar esse estágio, ou seja, não precisava criar teorias ou
explicações abstratas gerais. Ela seria, portanto, uma ciência diferente das demais pois,
não só privilegiava o conhecimento concreto como se limitava a ele.As poucas
concepções teóricas que circulavam eram vistas com desconfiança ou como algo
acessório, quando não empobrecedor, o fundamental era a descrição da
realidade.Quando o problema do estatuto científico era levantado, devido a esse
desinteresse em trabalhar com modelos teóricos, costumava-se apelar para quatro
principais idéias como resposta:
11
Esse recurso foi examinado com detalhes em Gomes, Paulo C. da Costa. Geografia e
Modernidade, Bertrand Brasil, Rio de janeiro, 1996.
4
de qualquer modelo de analise teórico ficam submetidas ao conhecimento
empírico, quase exaustivo, do conjunto dos lugares, ou seja, só pode haver
teoria depois que a massa do conhecimento empírico for estabelecida de
sistematizada. Como se pode perceber trata-se de uma missão quase
impossível superar essa primeira fase na maneira como ela era apresentada
por alguns geógrafos.
5
Esse traço, todavia, não deve ser interpretado simplesmente como indolência ou
puro conservadorismo dos geógrafos. A geografia tal como a historia é filha dos
modelos de erudição que caracterizavam o saber antes da revolução científica do final
do Século XVIII. O enciclopedismo e o princípio das coleções são sempre fortes
tentações que, embora hoje mais fracas, exercem seu poder sobre os interessados nesses
campos.
O fato de que a geografia tenha se construído como disciplina a partir da herança
deixada pelos viajantes e suas descrições e pelos naturalistas e suas coleções variadas,
certamente foi decisivo. Por um lado, a partir do material deixado por esses pioneiros
que os geógrafos começaram a trabalhar. Por outro lado, essa proximidade com
viajantes e naturalistas e suas aventurosas e curiosas estórias devem, sem duvida, ter
contribuído no tipo de público atraído para o campo da geografia. Isso quer dizer que
muitos geógrafos inicialmente tinham como horizonte e interesse essa agenda descritiva
de lugares, por vezes bastante anedótica, e talvez tivessem pouca sensibilidade para os
esquemas explicativos abstratos12. Podemos mesmo nos perguntar se ainda hoje,
tentação de definir, ou pelo menos manter uma forte conotação naturalista dentro de
certos domínios da disciplina não provenha ainda dessa mesma origem.
O fato mais significativo que queremos assinalar aqui, no entanto, é que a partir
dos meados do século passado essas quatro linhas de raciocínio apresentadas pelos
geógrafos e citadas anteriormente começam a mostrar claros sinais de insuficiência.
Para termos uma idéia da importância dessa discussão basta que consideremos que a
partir delas, de sua aceitação, que a geografia pode ou não justificar a legitimidade de
seu estatuto como ciência frente as demais disciplinas. Examinemos, ainda que
brevemente, alguns dos pontos críticos que atingiram essas linhas de raciocínio.
12
No começo do Século XX, sobretudo na França, muitos geógrafos tinham seguido estudos de História,
mas, também nesse caso e durante muito tempo, essa disciplina sofreu da mesma doença enciclopedista e
empirista descrita aqui para a geografia.
6
uma observação empírica, segundo a teoria clássica da ciência, constitui o método
recomendável para a produção do conhecimento. Por fim, essa classificação de
ciências indutivas e dedutivas foi muito fortemente criticada desde o começo do
Séc. XX por inúmeras correntes que denunciam a falácia da separação entre
categorias mentais e percepção (Convencionalismo, neo-Kantismo, etc.). Sem
precisarmos ir até essa discussão, parece que dentro dessa linha de raciocínio de
uma ciência exclusivamente indutiva tampouco poderia se encontrar justificativa
para manter a geografia como uma mera coleção de observações empíricas, sem
discussões teóricas explicativas.
13
Allemand, Sylvain, Dagorn, René-Éric e Vilaça, Oliver. La Géographie contemporaine, col.
Idéas recues, Le cavaller Bleu Editions, Paris, 2006.
7
formular teorias explicativas como todas as demais ciências, inclusive as sociais. Muito
se falou também da dificuldade em aplicar um conhecimento que não era fundado em
modelos abstratos e por isso a dificuldade em operacionalizar esse conhecimento como
o faziam as outras áreas que participavam da esfera da ação, inclusive em domínios
onde a geografia parecia poder trazer alguma contribuição como no planejamento
territorial, na discussão de políticas públicas, no desenvolvimento regional etc.
Nessa discussão muito se tem confundido ciência e engenharia e muitas vezes, a
decantada integração dos campos físico e humano da geografia responde não mais do
que pela simples aplicação de um conhecimento na tentativa de solução de um problema
prático. Esse colossal equívoco entre produção do conhecimento, relativo à esfera da
ciência e, portanto, necessariamente atravessado por questões epistemológicas e a
aplicação do conhecimento, relativo à esfera das engenharias, da solução de problemas
práticos, tecnicidade e operacionalização dos conhecimentos, tem sido fruto de imensos
problemas na definição do papel do geógrafo e de suas competências. Esse equívoco
não afeta somente à identidade d saber geográfico, ele se transforma em grave problema
na formação dos geógrafos e na inserção deles no mercado de trabalho.
O diagnóstico dos problemas parecia, portanto, convergir no sentido de que as
principais falhas eram atribuídas à ausência ou ao pequeno desenvolvimento de uma
discussão teórica dentro do campo da geografia. Podemos pois chegar a conclusão de
que o que caracteriza a geografia no pós-guerra é essa consciência aguda de que seu
futuro como ciência dependeria da capacidade de gerar instrumento de análise abstratos,
ou seja, superar a descrição dos casos e encontrar regularidades capazes de fundar um
campo de discussões teóricas. Talvez pudéssemos ousar dizer, de forma bem exemplar
passar da geografia dos elementos à construção de uma verdadeira ciência geográfica.
Ainda que o diagnóstico fosse quase unânime, o mesmo não ocorria com as
recomendações a seguir e isso foi imensamente positivo para a geografia. De fato, a
crise iniciada pelas insuficiências desses argumentos que alicerçavam a chamada
“geografia clássica” conduziu os geógrafos a se lançarem em um verdadeiro debate
epistemológico. Esses debates tomaram diversas direções. Uma das mais centrais seria
aquela que discute sobre o objeto de estudo da geografia.
Para alguns, a busca desse objeto tomou a forma de uma verdadeira epopéia mítica.
Encontrar um objeto para a Geografia corresponderia a salvar a disciplina de sua deriva, haveria
a definição de novos rumos, a geografia se libertaria do classicismo e serviria à libertação
social. O objeto da geografia, tal qual o Santo Graal, era procurado por grupos de pessoas
unidas pelas promessas redentoras em torno de sua posse. Esse objeto “sacralizado” seria
encontrado pelos bravos e somente os puros de espíritos teriam sua guarda e, finalmente, sua
descoberta anunciava muita paz e prosperidade e reconhecimento à ciência geográfica.
O nome desse mágico objeto era “espaço” e como nos abundantes mitos, muitos
foram aqueles que reclamaram sua descoberta e posse. Parte do problema parecia,
portanto, estar, resolvido. Sabíamos o objeto de estudo da geografia, possuir esse objeto
daria distinção e prestigio.
Dois problemas surgiram imediatamente depois desse consensual concerto em
torno da idéia de que era o estudo do espaço que daria identidade e relevância ao à
geografia. O primeiro era de sua posse exclusiva, seu monopólio. Outros domínios
disciplinares ao trabalharem com o espaço estariam indevidamente explorando os
recursos nos terrenos da geografia?
8
Uma das soluções apresentadas para esse problema era afirmar a diferença entre
o espaço geográfico e outros tipos de espaço trabalhados por outras disciplinas. Esse
recurso, todavia, é apenas parcial, pois transfere as impressões contidas na definição da
geografia ao espaço e tudo aquilo que foi dito em relação às marcas distintivas e
exclusivas que devem ser apresentadas quando da definição de um campo identitário.
Daí, alias, deriva justamente o segundo grande problema – definir o tipo de espaço que
deve ser estudado pela geografia.
Rapidamente, os geógrafos compreenderam que a detenção, ainda que apenas
nominativa, de um suposto objeto único não garantia nem definia as direções que os
estudos geográficos deveriam tomar. Ainda que estivéssemos de acordo sobre a
denominação de um objeto, as questões relativas à natureza desse objeto, a como
abordá-lo, a como justificar sua pertinência e sua relevância restavam sem resposta.
Espaço matemático, geométrico, sistêmico, polarizado, socialmente definido,
polarizado, homogêneo, vívido, físico, concreto, foi algumas das classes criadas para
definir o substrato essencial para uma nova ciência geográfica do espaço. Até mesmo a
denominação “geografia” foi colocada sob suspeita e propostas de ciência do espaço ou
espaciologia foram sugeridas como alternativas no processo de apropriação desse
objeto.
Uma questão fundamental permanecia, todavia, em silencio. É aquela que indagava
sobre a necessária associação de uma disciplina ao domínio de um objeto especifico.
Todas as disciplinas possuem um objeto que lhes pertence? Os recortes disciplinares
correspondem à transformação e fragmentação do real em uma coleção de objetos,
depois selecionados de acordo com os limites impostos por cada uma das disciplinas? A
quem pertence determinados objetos complexos, como, por exemplo, o estudo das
cidades?
De certa forma, a definição do espaço como objeto de estudos da geografia, ou
daquilo que iria conferir identidade e marca geográfica a um fenômeno, não significou
uma verdadeira ruptura com o projeto clássico da disciplina. Em outras palavras, a
escolha de um objeto, largo e sem muitas delimitações, significou a possibilidade de
continuar a manter as idéias da geografia como ciência de síntese, da relação entre o
natural e o cultural, ou ainda, do espaço como um reflexo da sociedade, mantendo
assim, em todas essas formas, a economia de uma reflexão teórica própria ou o
desenvolvimento do debate epistemológico dentro da geografia.
A engenharia retórica, por mais bem elaborada que fosse, não conseguiu ser
suficiente para soldar as lacunas de um raciocínio verdadeiramente epistemológico
necessário ao desenvolvimento de uma ciência moderna. Esse entendimento não se
impõe pela simples posse de um objeto. É necessário ser claro quanto a contribuição
relevante trazida pela disciplina na investigação de um fenômeno e não apenas dizer que
aqueles tipos de fenômeno fazem parte do seu domínio.
14
Gomes, Paulo. C da Costa. “Geografia fin-de-ciclè: o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o
fim das ilusões”. In Castro, Iná E. de; Gomes, Paulo C. C ; Corrêa, Roberto. L. (orgs.). Explorações
Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1997.
9
Há coerência, lógicas, razões, que presidem essa distribuição. Há uma trama locacional
é a especificidade da ciência geográfica. Ela é relevante, pois o ordenamento espacial de
alguns fenômenos lhes é essencial.
Na distribuição das espécies vegetais que caracteriza tipos de bioma, no processo de
sedimentação que forma uma praia ou na densidade de população dentro de uma
aglomeração urbana, em qualquer um desses fenômenos, há um arranjo espacial
coerente e explicativo que é parte da própria natureza do fenômeno. De fato, o que
explica cada um desses arranjos não é derivado de uma mesma conexão: o jogo das
interações dentre de um bioma gera um plano de distribuição que não tem
rigorosamente a mesma causalidade lógica dos modelos físicos que explicam a diferente
granulometria ao longo do perfil de uma praia, ainda menos, esses fatores poderiam
servir embora o problema na base seja o mesmo para a compreensão dos planos de
dispersão de determinados elementos ou fenômenos, os instrumentos mobilizados para
explicá-los são necessariamente muito diversos e variados.
Imaginar que esses elementos serão federados e uma ordem total aparecerá,
corresponde a trabalha com a hipótese de um demiurgo plano, uma teleologia global que
fere frontalmente a idéia que se impõe cada vez mais fortemente em nossos dias, por
vezes associada ao pós-moderno, de que há sempre uma multiplicidade de sistemas
explicativos e de completo rechaço de uma mono-casualidade ou das assim chamadas
“grandes narrativas”. A simplicidade desse holístico desenho é contestada sempre pela
complexidade de que se impõe e que aparece a partir das infinitas interações que
caracteriza os fenômenos, de seus limites críticos, de suas diversas escalas, de suas
transitórias e mutáveis estruturas.
A conclusão mais importante desse raciocínio aqui não é, no entanto, aquela que
simplesmente sublinha a complexidade dos sistemas espaciais. A constatação da
complexidade não pode ser um bloqueio ou um álibi. A constatação da complexidade
não pode ser um consentimento para a confusão. A constatação da complexidade não
pode ser uma senha de autorização para sistemas de entendimento totais ou totalitários.
A constatação de complixidade é tão somente o reconhecimento de que percurso para a
construção de um conhecimento demanda esforço, dedicação e muito trabalho de
reflexão. A constatação da complexidade é tão somente o reconhecimento de que nosso
entendimento, apesar de todo esse esforço, é sempre parcial e representacional. Nunca
chegaremos a envolver todos os aspectos da miríade de elementos inter-relacionados na
composição dos sistemas espaciais. Seus desenhos, embora possam ser traduzidos em
esquemas simplificados para fins de apresentação são o produto de sofisticados
processos15.
Assim, o mais importante, embora possa parecer bem simples, é que o terreno da
ciência geografia não se define pela posse de um objeto, o espaço. Esse terreno se
delineia pelo tipo de questão que é dirigida a um fenômeno. O tipo de questão
construído pela ciência da geografia é aquele que se interroga sobre a ordem espacial
deles. Outros domínios disciplinares trabalharão os mesmos fenômenos, mas
construirão outras perguntas, terão outras curiosidades, desenvolverão outras análises e
chegarão a outros resultados. Cada disciplina cria suas representações e trabalha a partir
delas, o que demonstra bem a impossibilidade de um saber totalizante e absoluto.
Dentro dessa perspectiva, não há uma geografia física e uma geografia humana,
unificadas em seus respectivos campos. Menos ainda, haveria a possibilidade de federá-
las em um campo totalizador, que seria a “verdadeira geografia”. Há, contudo, sempre
uma análise geográfica quando o centro de nossa questão é a ordem espacial, pouco
15
Essa mesma constatação é feita para a física por Prigogine. Prigogine, Ilya. O fim das certezas: tempo,
caos e as leis da natureza. Ed. Da UNESP, São Paulo, 1996.
10
importando o tipo de fenômeno, inorgânico, orgânico ou social, até porque essas
fronteiras são de difícil delimitação em muitos casos, quando falamos de natureza e de
sociedade, por exemplo.
Haverá, contudo, sempre uma geografia quando o fenômeno da dispersão
espacial construir a questão central do problema, a geografia existe em qualquer
fenômeno em que haja uma ordem de dispersão espacial16. A unidade não provém do
tipo de fenômeno, mas do tipo de pergunta.
16
Foi exatamente por isso que ignorei a sugestão de contemplar a categoria de tempo nessa oportunidade.
A ordem cronológica é uma daquelas que sempre é argüida como fundamental na compreensão dos
fenômenos. Mesmos nós geógrafos estamos acostumados a fazer apelo a essa ordem para encontrar
explicações. Isso não é em si condenável, mas a obliteração da ordem espacial sim. Assim, se reafirma o
velho hábito de que as explicações diacrônicas se imponham sempre como aquelas que aparentemente são
mais válidas do que porventura aquelas trazidas por uma análise sincrônica.
Foi por esta mesma razão que ignorei todos aqueles autores, numerosos, que confundem história da
geografia com epistemologia, como se essas duas áreas se recobrissem perfeitamente. Ao fazerem negam
a independência desse campo de questões epistemológicas e o traduzem como simples etapas da evolução
da disciplina, o que no ponto de vista defendido aqui não é aceitável.
11
outros justificadamente o farão e é isso que já vem, de certo modo, acontecendo no
movimento que ficou conhecido como a “virada espacial” (the spatial turn).
Essa dimensão espacial e suas repercussões não são simples de serem percebidas, pois
justamente escapam dos elementos que normalmente são analisados e sobre os quais se
atribui o peso da causalidade na constituição dos fenômenos. O desafio que se coloca à
Geografia é, por esse ângulo, portanto, formidável – iluminar um novo campo de
questões e demonstrar sua pertinência e importância.
A sedução do discurso fácil e do consenso imediato tem sido muitas vezes um entrave
do peso na produção do conhecimento relevante na Geografia. O lugar comum que
agrada de imediato, mas que de fato nada acrescenta aquilo que já é comumente
pensado, o reforço do pensamento e da explicação banais, a confusão entre o papel de
produtor do conhecimento com o de mero reprodutor, o encanto da denúncia e a posição
da suposta superioridade daquele que denuncia, a atração pelo discurso moralista, todos
esses ingredientes, embora facilmente compreensíveis pela sociologia da ciência, têm
sido muito nocivos a geografia, sobretudo pela grande generalização do seu uso entre
nós17.
Parece que precisamos renunciar, pelo menos em parte, ao discurso simples que gera
com facilidade uma sensação de glória pessoal e pensarmos nos benefícios possíveis do
prestígio trazido pela colaboração na produção do saber, na efetiva contribuição ao
desenvolvimento do conhecimento, mesmo que isso não cause uma adesão imediata e
desestabilize as confortáveis certezas do lugar comum. Renunciemos à banalidade para
ganharmos em importância.
***
A epistemologia não é uma forma de estabelecer o modelo, ideal, único e infalível para
produzir conhecimento. É um campo de tensões e discussões. Por isso, debates e
discordâncias são inexoráveis. A aceitação de que isso é a regra do jogo nos flexibiliza,
nos faz abdicar mais rapidamente das palavras doutrinárias, das certezas, nos coloca
face a face com a multiplicidade de pontos de vista, com a complexidade.
Ao final da 2ª Grande Guerra, desiludidos com os esquemas explicativos e com as
orientações do Partido Comunista Francês, dois grandes intelectuais escreveram livros
com títulos evocadores: Para entrar no Século XX, de Jean Duvignaud e Para sair do
Século XX, de Edgar Morin18. O primeiro acreditava que as velhas doutrinas do Século
XIX teriam se prolongado e se popularizado no XX e o quadro analítico, simplificado e
esquemático que fundava a ciência não tinha mais como sobreviver no contexto
complicado do mundo pós 2ª Guerra. O segundo se perguntava - como explicar o
mundo depois dessa barbárie desse evento e após a desilusão dos esquemas explicativos
unificados e doutrinários que serviram de matrizes às ciências até então, o positivismo e
o marxismo? A conclusão essencial era a mesma: é preciso reaprender a pensar.
A estrita consideração da economia, da técnica e dos processos de produção jamais
seriam sozinhos capazes de fornecer a chave para interpretar esse complexo mundo
moderno. Da mesma forma, a atribuição de uma causalidade simples não pode mais ser
aceita como absoluta e formadora da totalidade dos fenômenos. Sabemos que esses
17
Não somente entre nós. Todas as ciências sociais padecem desse mesmo mal. Muitas vezes a
reprodução da banalidade se faz sob um manto elaborado e todo o talento dos autores é utilizado para
revestir, aparentemente com uma linguagem sofisticada, uma afirmativa bastante simples que tem livre
curso bem estabelecido no senso comum.
18
Duvignaud, Jean. Pour entrer dans le XXème Siècle. Grasset, Paris, 1960 e Morin, Edgar. Puor sortir
du vingtième siécle. Nathan, Paris, 1981.
12
ingredientes somados às grandes tensões geradas por outras disciplinas, como a física e
toda a discussão sobre a possibilidade de unificação das forças de interações físicas
(gravitacional, eletromagnética, fraca e forte), a conectividade entre os fenômenos, as
flutuações, a não-linearidade, entre outras noções, deram origem ao que Edgar Monin
chama do novo paradigma da complexidade.
Seja como for, parece que cabe à geografia tomar a si a tarefa de discutir o complexo
sistema de posições e de localização, tentar desvendar o papel e a importância desse
sistema na estrutura dos fenômenos e demonstrar o valor dessa análise para a
compreensão deles. Tudo isso não pode ser feito sem um profundo mergulho no
horizonte epistemológico. Mesmo os entre nós mais pessimistas devem admitir que os
principais elementos para isso já estão reunidos e as condições para tal empreitada já
estão dadas. Então, mãos a obra.
13