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Resumo
Palavras-chave
*
Trabalho de pesquisa financiado
pela CAPES.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.2, p. 369-380, maio/ago. 2009 369
School culture and social practices: daily events of
school life and the transition to adolescence*
Abstract
Keywords
Contact:
Luciana de Oliveira Campolina Schooling — Subjectivity — Development transitions.
SHIN QL 12 conj. 05 casa 06
71525-255 – Brasília – DF
E-mail: lucianacampolina@terra.com.br
*
This research was financed by
CAPES.
370 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.2, p. 369-380, maio/ago. 2009
Episódios cotidianos da vida tas para lidar com o mundo, a cultura é “um
escolar e a transição para a modo de lidar com os problemas humanos:
adolescência com as transações humanas de todo o tipo,
representadas em símbolos” (p. 99).
Estudos anteriores das autoras indicaram Os processos psicológicos da pessoa são
o significativo papel exercido pelas práticas referidos a contextos sociais e culturais parti-
educativas da escola ao impulsionar a transição culares, embora não se relacionem com eles de
de desenvolvimento que marca a passagem da modo linear. As trajetórias de desenvolvimento
infância à adolescência. O presente trabalho ao mesmo tempo traduzem os valores da cul-
aprofunda o tema e busca trazer à luz elemen- tura e diferenciam-se deles, não sendo possível
tos que levem ao exame mais minucioso do encontrar um único sentido para os diferentes
papel que práticas sociais específicas da cultu- processos de desenvolvimento em curso. Des-
ra — no caso, a escolarização — representam na se modo, as ações dos sujeitos no mundo não
promoção de processos e trajetórias peculiares de significam em si mesmas. Seu valor é extraído
desenvolvimento humano. Para tanto, ele segue de processos de negociação entre sujeitos, que
uma orientação coerente com a perspectiva só- respeitam a situação social e histórica e o sis-
cio-histórico-cultural em Psicologia e Educação. tema de práticas em que se inserem as ativida-
Segundo essa perspectiva, o desenvolvi- des concretas (Gaskins; Miller; Corsaro, 1992).
mento humano se caracteriza como o proces- Vygotsky (1929/1994) afirma que o
so de contínua aproximação e diferenciação do mesmo ambiente e/ou situações semelhantes
outro e do contexto social e cultural na linha podem influir no desenvolvimento humano de
do tempo (Bruner, 1997; Castro, 1998; diferentes formas. Nesse caso, os mesmos fato-
Vygotsky, 2000). Bruner (1997) salienta que o res e aspectos se refletem diferentemente na
foco dos estudos sobre desenvolvimento huma- experiência de dois sujeitos, atuando de modo
no não deve incidir apenas sobre o aspecto singular sobre o desenvolvimento de cada um.
cultural ou o biológico, mas abordar a relação Uma vez que o contexto intervém de maneira
mutuamente constitutiva de ambas as dimen- complexa sobre as experiências singulares de
sões. Desse modo, os estudos que pretendem a crianças, adolescentes e adultos, os significados
compreensão dos sistemas de significação mediados pelas interações e práticas sociais
construídos nos diferentes espaços sociais per- assumem papel central em todo o processo.
mitem a articulação entre o social e o individu- Como prática sociocultural instituída e
al, o cultural e o histórico, que se caracterizam historicamente consolidada em diferentes con-
como dimensões interdependentes do desenvol- textos geográficos, a educação escolar consti-
vimento (Gaskins; Miller; Corsaro, 1992). No tui um sistema cultural com características pró-
contexto das atividades sociais, as experiênci- prias. Vygotsky (1998) e Bruner (2001) parecem
as dos sujeitos se entrelaçam à produção da concordar em que a escola funciona primeira-
ordem social e cultural, tanto originando as mente como espaço cultural voltado para a
experiências singulares da pessoa, como tam- transação de conhecimentos e experiências. Ao
bém contribuindo para a produção e transfor- mesmo tempo, ela constitui um contexto de
mação cultural. socialização das gerações mais jovens, um sis-
Conforme Bruner (2001), a cultura é um tema de atividade no qual as trocas são medi-
conjunto de sistemas simbólicos que perpassam adas por valores, crenças e signos sociais pró-
as práticas sociais e as experiências individuais, prios, que mantém com os valores sociais mais
provendo os meios pelos quais os significados amplos ora um vínculo de continuidade, ora de
são colocados em uso. O mesmo autor desta- tensão (Bruner, 2001). Desse modo, a escola
ca que, além de ser um conjunto de ferramen- cumpre também a função de engendrar na
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consciência de seus atores significações da vida os quanto à idade — até a atualidade, quando
social e cultural da sociedade. Finalmente, a se converteu em um espaço social bem mais
escola tem função identitária, ou seja, de con- complexo, a escola desempenhou um papel
tribuir para promover o desenvolvimento psico- importante na construção social do sentido de
lógico de cada um de seus atores, à medida que infância e da adolescência. Por meio das prá-
ele passa a se reconhecer como parte de um ticas institucionais da escola, a ideia de infân-
grupo, uma geração, um contexto institucional cia como etapa diferenciada de desenvolvimen-
cujos significados compartilhados contaminam a to se consolidou, originando um tipo de vida
identidade pessoal. social a que Ariès (1981) caracteriza como a
Nunca a estreita interdependência entre vida escolar. Nesse sentido, em sua gênese, a
escola e sociedade esteve tão em voga como escola serviu não só à demarcação dos limites
nos dias atuais. Cotidianamente, temos testemu- entre espaços públicos e privados, mas foi
nhado situações em que a fronteira simbólica destinada a estabelecer a separação das idades,
da escola é atravessada por casos de violência primeiramente entre a criança e o adulto e,
intramuros, problemas derivados da perda do posteriormente, entre o adolescente e a crian-
sentido de autoridade acadêmica dos professo- ça (Ariès, 1981; Costa, 1989).
res e de diluição de sua potência como fator de Nas primeiras escolas, via de regra, crian-
promoção de mudança pessoal daqueles que ali ças e adolescentes integravam um mesmo gru-
convivem. Assim, se as práticas educacionais na po, o qual estava submetido a um regime soci-
escola têm relevância para se apreender como o al próprio, diferente daquele que governava os
desenvolvimento é produzido, investigar a escola adultos. Segundo Ariès (1981), um lento proces-
é um meio de compreendermos mudanças ao so ocorreu até que se passou a isolar em salas
longo do desenvolvimento, seja o desenvolvi- diferentes grupos mais ou menos homogêneos
mento histórico da sociedade, seja o desenvol- quanto à idade. Isso se deu à medida que as
vimento pessoal de crianças e adolescentes. práticas pedagógicas passaram a se orientar pela
lógica da aquisição progressiva de capacidades
A escola e seu papel histórico intelectuais. Esse processo de diferenciação da
na formação da infância e da massa escolar em grupos de idade foi o germe
adolescência das classes escolares, que serviu para enquadrar
os grupos segundo as necessidades pedagógicas
As escolas são instituições sociais recen- atribuídas a cada um, o que envolveu também
tes, que adquiriram particular importância his- processos correlatos de disciplinarização e
tórica a partir da era moderna, quando se con- moralização. O autor analisa como a separação
verteram em um dos principais dispositivos das classes por idades passou a se caracterizar
institucionais para o projeto de modernização como um dispositivo de organização intrínseco
da sociedade (Boto, 2003). Conforme Forquin e típico à escola, resultando em uma correspon-
(1993) e Romanelli (2005), o processo históri- dência cada vez mais estreita entre as idades e
co de institucionalização da educação escolar as classes escolares.
esteve fortemente ligado às forças econômicas, Segundo Boto (2003), no século XVI,
às mudanças políticas e à própria matriz cultural com o advento da imprensa e o incremento da
da sociedade ocidental. Examinar as práticas cultura escrita, a escola passou a ter na alfabe-
sociais da escola possibilita perceber que esta tização sua função central. Desempenhando um
é um contexto vivo, orgânico e dinâmico. De papel complementar à família de importância
acordo com Ariès (1981), desde sua origem na crescente, a escola passa a atuar na formação
Idade Média — quando se resumia a uma sala de adultos integrados à cultura por meio da
de aula, com alunos mais velhos e heterogêne- leitura e da escrita. Na modernidade, a educa-
372 Luciana CAMPOLINA e Maria Cláudia OLIVEIRA. Cultura escolar e práticas sociais:...
ção escolar passa a se caracterizar como a ação mentos culturais em textos escolares, originando
exercida pelas gerações adultas na preparação uma cultura própria da escola. Segundo o autor,
das mais jovens para a vida social. Do sujeito ainda que apoiada em valores e acervos de con-
moderno era esperado dominar a natureza e a teúdos obtidos da cultura maior, a escola é
si próprio por meio do conhecimento. Era por
meio da escola que ele obtinha os recursos [...] um mundo social que tem característi-
necessários à concretização desse ideal. Progres- cas de vida próprias, seus ritmos, seus ritos,
sivamente, as ciências passam a figurar como sua linguagem, seu imaginário, seus modos
paradigma para a seleção e o arranjo do currí- próprios de regulação e transgressão, seu
culo escolar, assim como para o desenho de regime próprio de produção e gestão de
métodos pedagógicos. A formação de hábitos, símbolos. (p. 167)
conhecimentos e valores legitimados socialmente
(Boto, 2003; Forquin, 1993), assim como a No processo de transposição didática,
aprendizagem de competências intelectuais, fí- produzem-se modelos e envolvem-se os sujeitos
sicas e morais necessárias à participação ativa na em uma trama complexa de práticas, discursos e
sociedade converteram-se em suas principais dispositivos pedagógicos relativamente autôno-
funções, o que se mantêm até a atualidade. mos face à organização sociocultural maior, os
O processo histórico de institucionalização quais afetam seu desenvolvimento e as relações
da escola manteve correspondência com situação entre eles. Entendemos a escola como contexto
cultural a cada momento. A consolidação da que celebra modos de relação e exprime concep-
importância assumida pela escola no mundo ções de sujeito, continuamente negociados no
ocidental a partir da modernidade deve-se à intrincado jogo das práticas sociais, revelando-
possibilidade de se atender, por meio desse mes- se não apenas nos conteúdos e objetivos edu-
mo dispositivo social, a objetivos tão caros à cacionais formais, mas nos processos relaciona-
sociedade como a regulação do comportamento dos às construções identitárias (Bruner, 2001).
individual, a sua própria organização e a trans- As interações e relacionamentos cotidia-
missão de conhecimentos e saberes historicamente nos na escola participam ativamente da consti-
acumulados. Ao mesmo tempo, não se pode es- tuição psíquica dos atores. Por essa razão, o
quecer que cada instituição escolar representa um cenário escolar fornece boas oportunidades para
contexto cultural movido por contradições: ao se investigar in loco as significações em torno
oferecer possibilidades de mudança pessoal e de do desenvolvimento e da aprendizagem em di-
transformação de si por meio das relações soci- ferentes momentos do curso de vida. Adotando-
ais, a escola favorece questionar as formas con- se uma perspectiva crítica e interpretativa, a
vencionais de relacionamento dos homens entre investigação das escolas pode gerar conheci-
si e com a realidade circundante (Freire, 1982). mentos relevantes acerca dos processos de de-
Para Forquin (1993), entender a escola senvolvimento humano. O interesse desse traba-
implica contemplar a cultura em que ela se inse- lho é, pois, aprofundar a compreensão de como
re, a qual constitui “o conteúdo substancial da as práticas escolares atuam diante desse especí-
educação (no sentido do passado, do patrimônio), fico processo de desenvolvimento humano – a
sua fonte e sua justificação” (p. 14). Na escola, transição da infância à adolescência. Com esse
acontece a seleção e a reelaboração dos conteú- intuito, analisamos situações de interação espon-
dos simbólicos da cultura, perpetuando-se ele- tânea ocorridas durante o recreio de uma esco-
mentos culturais que provêm de diferentes épo- la de Ensino Fundamental, que revelam de
cas e de várias fontes. À seleção e reelaboração modo vívido como o desenvolvimento da infân-
desses elementos, Forquin (1993) dá o nome de cia e da adolescência é experimentado e que
transposição didática, que é a conversão dos ele- significados ganha no contexto da escola.
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Pesquisas realizadas segundo a perspec- que se seguem, ele se mostra particularmente
tiva sócio-histórico-cultural buscam uma com- elucidativo do modo como os sujeitos incorpo-
preensão profunda dos fenômenos, tendo em ram às atividades cotidianas (no caso, as brin-
consideração sua natureza dinâmica e comple- cadeiras) concepções, significados e valores em
xa. Por essa razão, a pesquisa qualitativa se torno da transição da infância à adolescência,
apresenta como alternativa epistemológica co- que permeiam a cultura escolar, posicionando-
erente ao abordar a realidade psicológica em se frente aos outros e ao enredo da brincadei-
seu caráter multifacetado, plural (Denzin; ra de modo coerente com tais significados.
Lincoln, 1998; González Rey, 1999). O conhe-
cimento qualitativo valoriza formas inovadoras de Episódio: o jogo do corre-bate-
construção da informação e preza o caráter ati- volta e o desafio de sair da escola
vo do pesquisador, que participa de todas as (duração: 15 min.)
etapas do processo, estabelecendo um diálogo
permanente entre teoria e método por meio da (a) Contextualização do episódio
interpretação. Segundo González Rey (1997;
1999), a investigação qualitativa em psicologia O grupo de alunos se encontrava con-
constitui processo interativo e reflexivo, que o versando e brincando na área externa, próximo
pesquisador conduz em parceria com os partici- ao portão da escola que dá acesso à rua. Esse
pantes e, preferencialmente, inserido nos contex- portão, que recentemente havia mudado de
tos específicos dos quais os últimos participam. lugar e sido alargado, passara a permanecer
O estudo foi realizado em uma escola aberto até a reinstalação do sistema eletrônico.
pública do Distrito Federal, situada em sua No momento observado, o portão estava aber-
região central, a qual funciona nos turnos to e não havia nenhum adulto presente. A
matutino, atendendo às turmas de 7ª e 8ª séri- poucos metros do portão, já na via pública,
es, e vespertino, às turmas de 5ª e 6ª séries. O havia uma área de circulação, na qual se en-
espaço físico dessa escola é dividido entre o contravam um tanque de areia e um parque
edifício e a área externa. Na parte construída, infantil, delimitado por uma mureta.
ficam as salas de aula, a área administrativa,
banheiros, cozinha e biblioteca. A área externa (b) Descrição do episódio
da escola é um pátio cimentado, separado da
via pública por meio de uma cerca e um portão. A brincadeira consistia em que os meninos,
Os procedimentos adotados foram a rea- um de cada vez, trespassassem o portão correndo
lização de sessões de observação do cotidiano muito rápido e, no menor tempo, voltassem para
escolar e entrevistas individuais. Ambos tiveram dentro do pátio externo da escola, após tocarem
a finalidade de compreender os significados a mureta que delimitava o parque infantil. Enquan-
institucionais em torno da infância e ado- to isso, os outros meninos permaneciam no pátio
lescência, assim como apreender práticas que vi- da escola, controlando o tempo gasto no percur-
sam promover a passagem de um a outro ciclo so por cada um dos participantes. As meninas
de desenvolvimento. presentes permaneceram mais atrás, torcendo por
No presente trabalho, limitamo-nos a um ou outro colega, rindo e acompanhando o
apresentar a análise de episódio de jogo espon- movimento deles sem participar diretamente da
tâneo extraído de uma das sessões de observa- competição. Meninos e meninas monitoravam
ção. Tal episódio ocorreu durante o período de constantemente com o olhar a área interna da
recreio do turno vespertino, com a participação escola, de onde poderiam vir o diretor, vice-dire-
de doze meninos e meninas, estudantes de 5ª tor ou algum funcionário. Um dos meninos co-
e 6ª séries. Conforme verificaremos nas análises mentou com a pesquisadora que estavam “fazen-
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do um desafio” e o vencedor seria “quem se afas- pela coordenação de um conjunto de marcadores
tasse o mais longe da escola”. Outro completou simbólicos como, por exemplo, as atividades ro-
dizendo que estavam “contando o tempo”. As tineiras, a separação funcional dos espaços, as
meninas ouviram as explicações acerca do jogo e regras e os valores que medeiam as relações
comentaram que eles estavam fazendo isso “para pedagógicas. No horário exato, um dispositivo
desafiarem”, pois quem fosse pego iria levar adver- sonoro sinaliza que, a partir daquele momento, o
tência. É importante enfatizar que o portão esta- espaço de convivência das crianças e dos adoles-
va completamente aberto, mas o grupo não ultra- centes fica restrito ao espaço institucional. Assim,
passava a cerca da escola, à exceção daquele que qualquer ação que viole essa regra merece ser
fosse começar a corrida. A certa altura, os meninos examinada e eventualmente punida segundo as
instigaram as meninas a entrar na brincadeira, normas de grande parte das escolas.
comentando com sarcasmo que elas não tinham A análise histórica das práticas sociais rela-
coragem de competir. Uma delas exclamou em cionadas à infância e adolescência evidencia como
resposta: “Isso é coisa de adolescente, ficar desa- os dispositivos morais ajudaram a delinear o con-
fiando a autoridade do diretor da escola”. O jogo ceito moderno de infância e as representações no
continuou durante mais alguns minutos, até que o campo social de criança e adolescente. Da mesma
sinal sonoro tocou para anunciar o fim do recreio forma, a organização da rotina da escola e a im-
e os alunos retornaram para as salas de aula. plantação de seu modus operandi na sociedade
contemporânea mostram como essas forças ainda
Resultados: análise do episódio exercem um papel importante sobre as experiên-
cias subjetivas da infância e adolescência.
Uma das características que se pode atri- Costa (1989) argumenta que o estabele-
buir ao desenvolvimento da adolescência contem- cimento do papel moralizador dos colégios e
porânea é a busca da expansão do horizonte de internatos esteve historicamente relacionado
possibilidades de atividade por meio da apropri- com “a implantação de uma disciplina e de um
ação do espaço público, embora continuando a regulamento fundamentado na ordem” (p. 181).
contar com a segurança do espaço privado da A lógica disciplinar presente, desde os regimen-
casa. Isso pode ser compreendido como expres- tos às práticas, determinava considerar detalhes
são da busca de autonomia e ampliação da rede que iam dos aspectos físicos da construção dos
social e afetiva. Sendo assim, identificamos no prédios à organização disciplinar do tempo e o
presente episódio de jogo o ensaio de uma mai- controle do próprio corpo. Os espaços físicos
or abertura para o espaço social, no qual se dos colégios eram organizados para agrupar e
entrecruzam duas dimensões constitutivas dos separar os alunos em idades e séries, calculan-
significados sobre a subjetividade adolescente no do-se cuidadosamente o tempo reservado às
contexto escolar, que nos servem como eixos de atividades específicas, divididas entre atividade
análise do episódio: (1) o papel moralizador exer- intelectual, alimentação e sono. O objetivo era
cido pela escola no curso do desenvolvimento; (2) manter a todo custo a disciplina e evitar o ócio,
o papel transformador que o jogo e a própria extremamente indesejado por parte dos mestres.
experiência adolescente podem desempenhar, A rotina da escola é organizada também
ressignificando as normas escolares. a partir de valores, conceitos e pressupostos
culturalmente construídos em torno da infância
Normas escolares e regulação e da adolescência (Ariès, 1981; Costa, 1989). As
moral da conduta regras e normas instituídas na escola são orien-
tadas por crenças culturais sobre como ocorre
Mais do que um contexto circunscrito o desenvolvimento da autonomia, a capacida-
pelo espaço físico, uma escola é caracterizada de de julgamento moral e a avaliação de riscos.
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Conforme explicita Bruner (2001), as crianças Por meio do ritual do jogo, os partici-
podem ser vistas como teimosas e necessitando pantes revelaram outra forma de se relacionar
de correção; como inocentes e precisando ser com os limites simbólicos da escola. O portão,
protegidas de uma sociedade vulgar; ou até que possui como significado culturalmente fi-
mesmo como egocêntricas que precisam ser so- xado ser local de passagem, de barreira e de
cializadas. Do mesmo modo, os adolescentes são fronteira entre ‘dentro’ e ‘fora’ institucional, é
caracterizados ora como imaturos e carentes, ora ressignificado no jogo como simultaneamente
como rebeldes e em crise. Essas versões sobre a ‘dentro e fora’, um marco a ser ultrapassado
criança e o adolescente têm impacto sobre as como parte de ‘um desafio’.
atividades cotidianas da escola e sobre as formas Como relata McLaren (1992), os rituais na
de definir e negociar as regras (Bruner, 2001). escola têm um papel fundamental na vida do
No episódio, o jogo criado pelos alunos estudante, na medida em que se relacionam sim-
para extrapolar os limites espaciais da escola, bolicamente às ideologias sociais e culturais e à
num tempo destinado à alimentação e à distra- capacidade de resistência dos sujeitos. Especifi-
ção como é o recreio, convida-nos a refletir camente, os “rituais de resistência” (McLaren,
sobre os dispositivos morais que a escola uti- 1992) emergem como formas culturais sutis, que
liza para manter a ordem e cumprir seu papel se mostram contrárias às normas de conduta
socialmente conferido. A função pedagógica da estabelecidas pelos agentes morais da escola. A
escola se exerce por meio das práticas sociais brincadeira de grupo criada pelos alunos pode
e morais e pela via das ações propriamente ser entendida como um ritual que expressa a
pedagógicas. Assim, a escola especifica para os oposição entre a norma formal e as disposições
sujeitos formas de convivência e determina os e motivações daquelas crianças e/ou adolescen-
símbolos que marcam o tempo e o espaço, tes para o jogo.
fornecendo referências e significações sobre Ao longo de todo o episódio, os alunos
como crianças e adolescentes podem dar sen- permanecem olhando para a porta de onde
tido às suas experiências singulares no contex- poderiam sair um desses agentes de disciplina.
to coletivo (Bruner, 1997; 2001; Castro, 1998). Esse comportamento parece revelar que a vigi-
Crianças e adolescentes, a partir das situações lância é incorporada às práticas informais das
que vivenciam em contextos socioculturais próprias crianças e adolescentes no tempo de
concretos, aprendem comportamentos, afetos, permanência na escola. Como nos aponta Ariès
aspirações e sentidos subjetivos, que refletem (1981), a disciplina da escola começou a ser
seu contexto cultural e institucional. introduzida pela organização moderna dos
O desenrolar do episódio só pode ser bem colégios, quando pela norma “o diretor e os
compreendido considerando os circunscritores mestres deixavam de ser primi inter pares para
simbólicos instituídos pelo contexto sociocultural se tornarem depositários de uma autoridade
da escola investigada. A permanência do portão superior” (p. 180). Dessa maneira, o controle
aberto, uma novidade introduzida no cotidiano autoritário e hierarquizado dos colégios permi-
escolar, gerou novos comportamentos e a tiu, desde o século XV, o estabelecimento e
flexibilização dos limites antes estabelecidos pela fortalecimento de um sistema disciplinar cada
norma reguladora da instituição. As ações dos vez mais rigoroso. Esse sistema consolidou-se
alunos se manifestam em contraposição à regra por volta dos séculos XVI e XVII, pautando-se
impeditiva de se deixar a escola durante o tem- na vigilância constante, na delação e nos cas-
po de aula. Para eles, ultrapassar o limite espaci- tigos corporais (Ariès, 1981). Desses dispositi-
al da escola em horário acadêmico pareceu sig- vos disciplinares, apenas os castigos corporais
nificar uma experiência de negação das regras foram posteriormente abolidos com o surgimento
originalmente definidas. das pedagogias humanistas. Estas reorientaram as
376 Luciana CAMPOLINA e Maria Cláudia OLIVEIRA. Cultura escolar e práticas sociais:...
práticas escolares desde uma moral rígida para uma instituição escola, neste tópico, analisamos o
perspectiva caracterizada pela dignidade da pessoa significado desse episódio como parte do sis-
e o respeito para com a criança e o adolescente. tema semiótico construído a respeito da tran-
Nessa direção, destacamos no episódio a sição infância-adolescência. Para tanto, partimos
intervenção virtual do dispositivo da vigilância. de um provocativo enunciado, proferido por
Ainda que ali não houvesse a presença física de uma das participantes a certa altura da brinca-
qualquer representante da ordem moral e discipli- deira, resumindo assim o significado da brinca-
nar da escola, os alunos consideraram o risco da deira: “coisa de adolescente, ficar desafiando a
delação ou a retaliação ao se referirem à advertên- autoridade do diretor da escola”. Esse enuncia-
cia. Ao mesmo tempo, estavam motivados a desa- do torna-se especialmente relevante para fins de
fiar a autoridade por meio de suas ações lúdicas. análise quando consideramos ter sido ele profe-
Vygotsky (1998) argumenta que o cará- rido por uma adolescente. Isso nos convida a
ter lúdico da atividade humana oferece a pos- refletir sobre o impacto dos discursos culturais de
sibilidade de unir a ação real ao significado natureza moral, quando reproduzidos pelas vozes
simbólico. A brincadeira e, mais especificamen- das próprias crianças e adolescentes.
te, o jogo criam uma relação entre a dimensão Ao afirmar, de forma repreensiva, que tal
do significado social e a experiência individu- brincadeira é “coisa de adolescente”, a partici-
al em seu sentido subjetivo. Do ponto de vista pante nos oferece à análise, pelo menos, dois
do desenvolvimento, o jogo “conduz a ações posicionamentos subjetivos: (a) o que reconhe-
que estão subordinadas aos significados e a ce na adolescência uma categoria particular,
criança age de acordo com elas” (p. 136). dotada de comportamentos peculiares; (b) o
Do ponto de vista da experiência inter- que estabelece um julgamento valorativo à con-
subjetiva dos alunos, o jogo criado por eles dição adolescente, do qual se depreendem as-
constitui uma forma lúdica e criativa de con- pectos morais tais como menor maturidade,
frontar os poderes simbólicos instituídos histo- competitividade, desafio à autoridade e risco,
ricamente e as normas rotineiras. A contradição além de diferentes posições de gênero. Importa
aparece também pela necessidade de extrapolar salientar que, em seu comentário, a participan-
os limites espaciais em seu aspecto simbólico e te parece expressar um conjunto de significados
simultaneamente voltar aos limites da escola que, oriundos do senso comum, penetram na
em um movimento transitório e oscilante. escola, mediando não apenas as práticas peda-
O jogo criado pelas crianças e pelos ado- gógicas formais, como ainda as interações es-
lescentes mescla regras inerentes à situação con- pontâneas (Ozella, 2002).
creta — como, por exemplo, correr até o limite do Dessa maneira, os textos da escola se
tanque de areia e voltar para dentro da escola — tornam correlacionados ao contexto mais am-
e as regras simbólicas de não sair da escola em plo da sociedade, contribuindo fortemente para
horário acadêmico. Em última instância, o jogo se a construção da subjetividade dos estudantes.
torna um desafio à medida que gera uma com- A dimensão constitutiva da linguagem como
petição entre aqueles que correm e vão mais potencialidade de gerar entendimentos e repre-
longe dos limites simbólico-espaciais da escola. sentações sobre a escola e os sujeitos que a
integram pode estar a serviço de legitimar e
Adolescência e transformação reproduzir os discursos naturalizados, no caso,
das significações institucionais sobre a adolescência (McLaren; Giroux, 2000).
Como nos aponta Castro (2001), os su-
Enquanto a primeira parte dos resultados jeitos em desenvolvimento – crianças e adoles-
tem por foco a relação entre os participantes e centes – mostram-se engajados na comunida-
a configuração histórico-social e normativa da de, participando ativamente dos processos
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construtivos da cultura e de suas próprias iden- de, definindo pautas de comportamentos e cri-
tidades. Para a edificação de suas identidades, ando interditos (Louro, 1997).
crianças e adolescentes se apropriam de papéis Boto (2003) expressa que a escola, além
sociais e de representações embasados em atri- de sua função pedagógica, tem um papel
butos supostamente fixos e reificados sobre as identitário. A forma como a vida escolar é
características da adolescência. No seu desenvol- estruturada — especialmente a maneira como
vimento psicológico, relacionam de maneira os sujeitos são postos em convivência — influi
complexa referências comunicadas pelos agen- intimamente na formação das subjetividades. As
tes sociais sobre os próprios comportamentos e práticas sociais da escola relacionam-se aos
os significados atribuídos às ações de outros processos de identidade e, pela multiplicidade
sujeitos em uma dada situação (Castro, 2001). de referências e significados socioculturais ali
Portanto, o significado atribuído a esse negociados, convertem a escola em um campo
jogo dos alunos só pode ser compreendido si- relacional profundamente rico.
tuando-o nas práticas sociais que tornaram essa Embora constituindo um pequeno recor-
ação possível. O comportamento e a descrição te da realidade complexa de uma escola, o
sobre o ‘desafio’ do grupo em relação à escola episódio analisado fomenta nosso olhar inter-
não pode ser compreendido isoladamente ou de pretativo sobre o desenvolvimento da infância
maneira neutra, mas no jogo das influências e adolescência no contexto escolar. Ele nos
sociais e culturais dentro e fora da escola. A oferece elementos férteis também para uma
experiência concreta do grupo, atrelada aos dis- reflexão crítica sobre a construção da cultura
cursos e símbolos da cultura escolar, permite escolar moderna e sua relação com o proces-
enfocar a participação da instituição na consti- so de constituição do campo social. Nesse sen-
tuição e legitimação das práticas de socialização tido, o jogo do grupo de alunos é significati-
da infância e da adolescência na atualidade. A vo e inovador pelo seu caráter reconstrutivo do
escola, portanto, assume papel social importante sistema de regras da escola. O grupo de crian-
ao engendrar, na consciência subjetiva, signifi- ças e adolescentes vivenciou no recreio um
cações da vida social e cultural dominantes e momento lúdico em que regras simbólicas do
quando estabelece limites que definem as ações sistema escolar foram rompidas e renegociadas
concretas dos sujeitos (Bruner, 2001). (Ariès, 1981; Costa, 1989; Forquin, 1993).
É possível sustentar que os significados
Considerações finais: sociais em torno da infância continuam a situá-
desenvolvimento subjetivo e social la como estágio de menoridade social, condição
no cotidiano da escola provisória, estado de menos-valia a ser superado
por meio do desenvolvimento que a oriente ao
A escola não pode ser considerada como modo de vida adulto. Tal lógica adultocêntrica
um espaço neutro. As normas e práticas internas exige da escola empurrar a criança na direção da
da escola, os agentes sociais, os dispositivos de adolescência e juventude. O currículo e o cotidi-
poder, assim como a disciplina formal e os co- ano da escola devem procurar enfatizar as expe-
nhecimentos e saberes que aí circulam circuns- riências singulares dos alunos e de professores,
crevem os espaços e os tempos da escola, dis- intimamente relacionadas ao desenvolvimento
tinguindo-a de outros contextos institucionais e humano (Bruner, 2001; McLaren; Giroux, 2000).
determinando regimes próprios de regulação da Por outro lado, uma perspectiva que valorize a
conduta. Por estabelecerem modos de relação, criança e o adolescente como interlocutores de
os símbolos e as imagens distribuídos no inte- suas experiências pode constituir um caminho
rior da escola funcionam para os sujeitos em para a compreensão das especificidades da ado-
desenvolvimento como modelos de subjetivida- lescência contemporânea.
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Salientamos como especial contribuição processo, merece atenção especial uma vez que
do estudo a reflexão sobre o papel da escola também se encontra em desenvolvimento, ne-
na contemporaneidade. Acreditamos que a es- gociando com seus alunos e com o contexto,
cola tem o potencial de promover a autotrans- suas próprias transformações. Destacamos, por-
formação do sujeito em relação à trajetória tanto, a necessidade de construção de espaços
escolar e em relação aos relacionamentos hu- relacionais que valorizem as trocas intersubje-
manos (Freire, 1982). Ao mesmo tempo, ela se tivas dentro da escola. Dessa maneira, profes-
vê diante do desafio de atualizar-se, de incor- sores e alunos podem aprofundar-se na com-
porar às suas práticas pedagógicas os múltiplos preensão mútua das práticas e dos discursos,
sentidos das experiências vividas na infância e valorizando-se também como sujeitos de alte-
adolescência. O professor, figura central desse ridade e dotados de histórias.
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Recebido em 23.10.07
Aprovado em 04.10.08
Luciana de Oliveira Campolina, psicóloga, mestre em Psicologia (UnB) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UnB.
Maria Cláudia Santos Lopes de Oliveira, mestre em Psicologia e doutora em Educação pela PUC-RJ, possui pós-
doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Humano (Clark University, Massachusetts), é professora
adjunta do Instituto de Psicologia da UnB.
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