O “auditus fidei" e o "intellectus fidei"
Da natureze da teologia é que brota 0 método teol6gico. Os muitos livros
sobre esse tema sempre o dividem em duas partes: a primeira, positiva,
segunda, especulativa. A parte positiva consiste em ouvir € certificar-se de
que se trata mesmo da fé da lgrejat é 0 auditus fidet a parte especulativa se
déem seguida, quando se pode pensar a respeito da fé, a fim de
compreendé-le: é 0 intellectus fidei.
52, Recapitulagao. ~ Vimos na aula passada que a teologia nasce no interior da fé, na qual
encontra o seu alimento e sob cuja hz orienta os seus passos (cf. VIII, B, § 47). Tendo em
vista essa muttua dependéncia entre o labor teoldgico ¢ a ortodoxia, definimos a teologia
como um esforgo da inteligéncia humana por compreender os mistérios que a fé lhe
desvenda; nesse sentido, podemos dizer, por apropriagao, que é a fé mesma que busca a
inteligéncia, «Fides quaerens intellectum», Quisemos ressaltar ainda que, além deste
carater especulativo, a teologia, enquanto participacao do conhecimento de Deus pela graga
divina e pela fé, é também uma realidade mistica e, por isso, deve vir acompanhada nao
apenas de estudo, mas principalmente de oragao e quietude [I]. Ora, sendo a fé o principio e
a fonte da reflexo teolégica, dedicaremos esta nona aula ao estudo dos dois momentos
constitutivos do método teolégico: a escuta da fé (auditus fidei) e a inteligéncia da fé
(intellectus fided), as quais fizemos rpida mengo na pemtiltima aula (cf. § 41).
53. A escuta da fé. — 0 método teolégico decorre da prépria natureza da teologia, que,
conforme uma classificagao convencional e didética, se articula em dois momentos
principais: 0 positivo, em que, pela contemplagao do depésito da fé, toma-se consciéncia
daquilo que a Igreja cré; e 0 reflexivo, em que ha um esforgo de sistematizagao dos dados
colhidos na etapa anterior, uma busca pela hierarquia em que se dispéem, seus nexos e os
corolarios que deles se podem deduzir [2]
No primeiro momento, portanto, o tedlogo procura a fé crista nas diversas fontes que a
contém e expressam (as Sagras Escrituras, a Santa Tradigao, o Magistério Eclesiastico etc),
ou seja, nos chamados lugares teol6gicos (loci theologici), que estudaremos na préxima
aula. Pois bem, esse trabalho de consulta as fontes o que ordinariamente se entende por
auditus fidei, quer dizer, ouvir a fé tal como o Espirito da Igreja tem-no-la comunicado ao
longo dos séculos. 0 tedlogo ¢ nesta fase 0 herdeiro de um longa tradigdo, «de um
significado jé transmitido & humanidade.» [3] Ora, a exigéncia de uma escuta da fé €
imprescindivel nao somente porque a especulago teolégica tem por premissa fundamental
os dados da mesma fé, os quais nao pode renunciar, sendo também porque ao préprio Cristo
aprouve fosse a pregago o instrumento primario de transmissdo do Seu Evangelho: «Os
Apéstolos, com efeito, transmitiram primeiro de viva voz aos judeus e as gentes a doutrinado Senhor. Nao Ihes dissera Cristo: Ide, ponde por escrito os dogmas que vos comuniquei e,
assim exarados, ensinai-os aos homens; mas Ide, disse o Senhor, pregai o Evangelho a toda
criatura [cf. Mc 16, 15] [4] Nesse sentido, Juliano Pomério, sacerdote mauritano do quinto
século, ensina em seu pequeno tratado Sobre a Vida Contemplativa que a recep¢ao da
pregacao evangélica ¢ o inicio da fé e esta, do entendimento e das obras meritérias
Diz 0 Apéstolo: "Se nao crerdes, nao entendereis’ [cf. 1s7, 9, trad. LXX]. Donde se
deduz que nao ¢ da inteligéncia que nasce a fé, sendo da fé é que nasce a
inteligéncia; nem se compreende para crer, mas, pelo contrario, se cré a fim de
compreender e, havendo compreendido, agit bem. De fato, esta escrito algures: "Nao
quis entender para fazer o bem" [cf. $135, 4]. Nao se diz: "Nao péde", mas "Nao quis":
ora, recusar-se a entender nada mais é do que nao querer crer. Com efeito, se alouém_
deseja fazer o bem, que se empenhe em compreender, , a fim de compreender,
convém antes de tudo crer. Por isso, como diz 0 mesmo Apéstolo: ‘A fé provém da
pregaco e a pregago se exerce em razo da palavra de Cristo” [of. R10, 17], deve 0
doutor da Igreja pregar para que possa ouvir aquele que vai crer, porque nao ha
escuta se nao ha pregacao. E o mesmo Apéstolo atesta: "Como invocarao aquele em_
quem nao tém £6?" [cf. Am 10, 14]. Ora, se pela falta de pregador a alguém nao é dado
escutar a pregacao, esse também, por falta de Fé, no pode compreender e, nao
compreendendo, nao pode fazer o bem. A palavra da fé deve, portanto, ser pregada, a
fim de que 0 ouvinte, cuvindo, creia; crendo, compreenda; e compreendendo,
entregue-se as boas obras, porque nem as obras sem fé, nem a fé sem obras justifica
quem pode servir-se do arbitrio duma vontade livre. Se, pois, com o corago se cré
em vista da justiga, que a profissao oral se faca com vistas a salvacéio: quem
no crer, por nd ter fé, nao alcangara nem a justiga do coragio nema salvacao
[5].
De fato, a necessidade de se escutar a pregacao do Evangelho e, por conseguinte, a fé crist
se toma mais candente se se leva em conta, como dissemos acima, que «a teologia
pressupée a fé e a luz da fé, e surge de um movimento de assimilagao espiritual e de
reflexdo mediante o qual a fé avanga até o conhecimento da coisas em que cré (fides
quaerens intellectum) sem deixar, contudo, de ser fé.» [6] A teologia, nesse sentido, exige que
nés aniquilemos «todo raciocinio e todo orgulho que se levanta contra o conhecimento de
Deus» (2Cor 10, 5) e facamos obedientes a Cristo todos os nossos pensamentos. Ora, sendo a
fé um ato integral do homem, segundo sua inteligéncia e vontade, com o auxilio da graga, a
teologia requer também uma total subordinagao do homem a Palavra de Deus [7]. Esta
primeira fase de coleta positiva de informagées, portanto, deve (1) estar balizada pelas
fontes auténticas da fé de Tgreja e (2) extrair, quanto for possivel, o significado genuino
destes testemunhos, Evidentemente, nesse proceso «nao se podem assumir quaisquer
categorias filosoficas ou de outras ciéncias, Pois existem aquelas cujos pressupostos
basicos séo incompativeis com a revelagao crista » [8]
54, A inteligéncia da fé. — 0 segundo momento em torno do qual a pesquisa teolégica sedesenvolve é 0 que se costuma denominar intellectus fideia «inteligéncia da {é». Esse
momento consiste, basicamente, no trabalho de reflexao e especulacao sobre os dados
recebidos e coletados no momento positivo, é dizer, de escuta das fontes da nossa fé. A
busca pela compreensao daquilo que foi ouvido é para a Igreja um imperativo que se faz
presente desde pelo menos os séculos Il e IV, quando, como vimos ao longo da segunda aula
do curso, a cristandade, pelo trabalho dos Santos Padres, teve de defrontar-se com as
primeiras grandes heresias e, para combaté-las, «recorrer continuamente a explicagoes
logicas e a argumentos filoséficos nao constantes do depostium fidei» [9]
Costumam-se atribuir a essa etapa reflexiva trés grandes fungées:
1. Fungo explicativa Trata-se de um trabalho de explicitagdo das ideias
contidas e expressas quer nas Sagradas Escrituras, quer na Santa Tradi¢ao. O
tedlogo conta para essa tarefa de precisao técnica com os recursos que a
filosofia, por exemplo, lhe pode fornecer, «de modo particular, o método de
comparaco, cujo pressuposto é o nexo existente entre os mistérios revelados e 0
fim Ultimo da pessoa; o principio epistemolégico da analogia da fé cujo propésito
€0 de descobrir e dar realce a multiplicidade de ligagées existentes entre os
dados da fé» [10], além dos instrumentos teéricos de anilise e interpretagao das
demais ciéncias [11]
2. Fungao sintética. £ 0 trabalho de ordenagao e sistematizagao dos dados da fé
0u, noutras palavras, a tentativa de aprender a estrutura organica da Revelagao
eas relagdes de subordinagao dos mistérios entre si.
3. Fungo atualizadora. Um dos maiotes encargos do teélogo é o de expor de
modo fidedigno e inteligivel o tesouro perene da fé aos homens seus
contemporaneos, uma vez que «nao se pode explicitar e sistematizar 0
patriménio da Revelagao sem estar atento a linguagem e as sensibilidades
culturais do momento » [12] As problematicas atuais exigem, pois, uma resposta
compreensivel, mas sempre conforme ao espirito eterno do Evangelho e as.
coordenadas da doutrina da Igreja [13]
55. Conclusao. ~ A ciéncia teolégica oscila ritmicamente entre esses dois momentos; &
escuta da fé sucede «a elaboragao ativa e construtiva do que se escutou»; em seguida, o
te6logo recua uma vez mais para a consulta as fontes, «para se certificar da mensagem ali
contida» [14] e, por fim, da validade das conclusées a que péde chegar. «A teologia, portanto»,
escreve Jared Wicks, «consiste na escuta atenta dos testemunhos e na consideragao critica
da palavra revelada. Ela ¢ tudo isso porque a {é é, em primeiro lugar, a escuta de uma
mensagem que contém uma boa nova e profissao de fé na obra do Pai, do Filho e do Espirito
Santo; uma obra salvifica que envolve ¢ ilumina aquele que cré.» [15]
56, Ensinamento conciliar. — 0 decreto Optatam totitis, de 28 de outubro de 1965, ao trazer
uma sébria instrugo a respeito da formagao de futuros sacerdotes, expde de modo
tangencial os dois momentos internos que compéem o método teolégico, cujas linhasmestres convém trazer lume:
As disciplinas teolégicas sejam ensinadas a luz da fé e sob a direccao do magisté:
da Igreja, de tal forma que os alunos possam encontrar com exactidao a doutrina
catélica na Revelacao divina, a penetrem profundamente, fagam dela alimento da
vida espiritual e se trem capazes de a anunciar, expor e defender no ministério
sacerdotal.
(Os alunos sejam formados com particular empenho no estudo da Sagrada Escritura,
que deve ser como que a alma de toda a teologia. Depois da conveniente introdu¢o,
iniciem-se cuidadosamente no método da exegese, estudem os temas de maior
importancia da Revelagdo divina e encontrem na leitura e meditagio dos Livros
sagrados estimulo e alimento.
‘A teologia dogmatica ordene-se de tal forma que os temas bfblicos se proponham
em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos Padres da Igreja oriental
e ocidental para a Interpretagao e transmisséio fiel de cada uma das verdades da
Revelago, bem como a hist6ria posterior do Dogma tendo em conta a sua relago
com a historia geral da loreja, Depois, para aclarar, quanto for possivel, os mistérios
da salvago de forma perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela
especulagao, tendo por Quia Santo Tomas, ea ver o nexo existente entre eles.
‘Aprendam a vé-los presentes e operantes nas acces litirgicas e em toda a vida da
Igreja. Saibam buscar, a luz da Revelagao, a solucao dos problemas humanos, aplicat
as verdades eternas & condi¢ao mutavel das coisas humanas e anuncia-las de modo
conveniente aos homens seus contemporaneos.
De igual modo, renovem-se as restantes disciplinas tecl6gicas por meio dum
contacto mais vivo com o mistétio de Cristo e a historia da salvagao, Ponha-se
especial cuidado em aperfeigoat a teologia moral, cuja exposigo cientifica, mais
alimentada pela Sagrada Esctitura, deve revelar a grandeza da vocagac dos fieis em
Cristo e a sua obrigaco de dar frutos na caridade para vida do mundo. Na exposigao
do direito canénico e da hist6ria eclesiéstica, atenda-se ao mistério da lareja,
segundo a Constitui¢ao doamatica «De Ecclesia» promuloada por este saarado
Coneilio, A sagrada Liturgia, que deve ser tida como a primeira e necessaria fonte do
espitito verdadeiramente cristo, ensine-se segundo o espirito dos artigos 15 ¢ 16 da
Constituigdio «De sacra liturgiz»
‘Tendo em consideracao as condigées locais, sejam os alunos levados a conhecer
mais perfeitamente as igrejas e comunidades eclesiais separadas da Sé Apostélica
de Roma, pata que possam concorrer para a restauracao da unidade de todos os
cristéos, segundo as normas deste sagrado Conctlio [16
ff) Referéncias10.
"
12,
13,
14,
15,
16.
Cf. Diddoco de Foticéia, Sobre 0 Conhecimento Espiritual e a Discriminagao, c. 1
«Toda contemplagao espiritual deve ser governada por trés coisas: pela f6, pela
esperanga e pelo amor, ¢ acima de tudo por este tiltimo.» V, G. E. H. Palmer; P. Sherrad;
K. Ware (trad.), The Philokalia: The Complete Text. London: Faber and Faber, 1979, vol.
1,p.253.
CI. M, Semeraro, «Método Teolégico», verbete in: AAW, Lexicon: Dicionério Teolégico
Enciclopédico. Sao Paulo: Loyola, 2003, p. 490.
J.Wicks, Introdugéo a0 Método Teolégico, 2.* ed,, S40 Paulo: Loyola, 2004, p, 35; cf.
Bernard Lonergan, «Early Works on Theological Method 1», in: Collected Works of
Bernard Lonergan, vol. 22. Toronto: Toronto University Press, 2010, p. 258.
Ned. Laforet, Dissertatio Historico-Dogmatica de Methodo Theologiee, Lovanii, apud
Vanlinthout et Vandenzande, 1849, p. 17.
Juliano Pomério, De Vita Contemplativa, |. 1, c. 19 (PL 59, 4338-4344; trad. nossa).
J.Feiner; M, Laher (orgs), Mysterium Salutis: Manual de Teologia como Historia de la
Salvacion. Trad. esp. de Marciano Villanueva Salas. Madri: Cristandad, 1969, vol. 1, p.
28 (trad. nossa).
J.B. Libanio; A. Murad, Introdugao a Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 6.° ed., S40.
Paulo: Loyola, 2007, p. 96.
G. Occhipinti, «inteligéncia da Fé», verbete in: AAVV. Lexicon: Diciondrio Teolégico
Enciclopédico. $40 Paulo: Loyola, 2003, p. 400.
Id, ibid
Cf. J. B, Libanio; A, Murad, op. cit., loc. cit,
G. Occhipinti, op. cit, loc. cit
Cf. Id,, ibid, e J.B, Libanio; A. Murad, op. cit. loc. cit.
J.Wicks, op. cit. p. 35.
Id, p.37,
Concilio Vaticano Il, decrt. Optatam totius, de 28 de outubro de 1965, n. 16
BibliografiaAAWV, Lexicon: Dicionario Teolégico Enciclopédico, Sao Paulo: Loyola, 2003
CONCILIO VATICANO II, Decreto Optatam totius, de 28 de outubro de 1965,
FEINER, J.; LOHER, M. (orgs.). Mysterium Salutis: Manual de Teologia como Historia
de la Salvacion, Trad. esp. de Marciano Villanueva Salas. Madri: Cristandad, 1969, vol.
1
LAFORET, Nicolas-Joseph. Dissertatio Historico-Dogmatica
Theologiz, Lovanii, apud Vanlinthout et Vandenzande, 1849.
LIBANIO, J.B; MURAD, Afonso. Introdugdo a Teologia: Perfil, Enfoques, Tarefas. 6°
ed., Sa0 Paulo: Loyola, 2007.
LONERGAN, Bernard. «Early Works on Theological Method 1», in: Collected Works of
Bernard Lonergan, vol. 22. Toronto: Toronto University Press, 2010.
PALMER, G. E. Hs SHERRAD, P,, WARE, K. (trad). The Philokali
London: Faber and Faber, 1979, vol. 1
he Complete Text.
WICKS, Jared. Introdugao ao Método Teolégico. 2.* ed., Sao Paulo: Loyola, 2004.