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23 de fevereiro de 2021
Por que os povos da Europa Ocidental e seus descendentes mundo afora se tornaram os
mais prósperos e poderosos da Terra? Para um pesquisador da Universidade Harvard, a
resposta é: porque a cabeça deles funciona de um jeito esquisito (quando comparada com
a de outros povos do planeta, pelo menos). E essa estranheza psicológica foi forjada, em
grande medida, pela Igreja Católica medieval.
Colocar a tese nesses termos, sem mais explicações, talvez faça o leitor achar que esquisita
mesmo é a cachola do antropólogo Joseph Henrich, professor de biologia evolutiva
humana de Harvard e responsável pela hipótese. Mas Henrich passou os últimos anos
reunindo uma massa gigantesca de dados empíricos para tentar corroborá-la, e o
resultado é o seu mais recente livro, “The WEIRDest People in the World” (“As Pessoas
Mais Esquisitas do Mundo”, ainda sem versão brasileira).
O termo “weird” (“esquisito”) não está escrito em maiúsculas por acaso, já que se trata de
uma sigla. Refere-se aos povos que são, pela ordem das letras em inglês, ocidentais, com
educação formal, industrializados, ricos e democráticos (western, educated,
industrialized, rich e democratic). Com efeito, a classificação de certos grupos como
pertencentes ao “padrão WEIRD” tem se tornado cada vez mais popular entre psicólogos
sociais, economistas e outros estudiosos do comportamento humano.
Eles tendem a ser mais individualistas, menos conformistas, mais propensos a confiar em
estranhos e a ter noções mais impessoais sobre o certo e o errado (quando perguntam a
pessoas WEIRD se elas mentiriam no tribunal para ajudar um amigo ou parente que
violou leis de trânsito, por exemplo, o normal é elas dizerem que não —exatamente o
contrário do que respondem os que vivem em países “não WEIRD”).
O estilo de raciocínio WEIRD também é mais analítico, ou seja, para entender um objeto
ou fenômeno complexo, tais pessoas tendem a “quebrá-lo” em partes menores e entender
como cada uma contribui separadamente. Quando olham para uma paisagem, pessoas
não WEIRD prestam mais atenção no pano de fundo, enquanto os WEIRD enxergam os
elementos principais e dão menos peso ao conjunto.
Ao que parece, essas diferenças psicológicas médias são reais e podem ser mensuradas. A
questão é saber de onde elas vêm. Henrich aposta na evolução cultural: as atitudes
peculiares das pessoas WEIRD seriam resultado de séculos de mudanças na cultura
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ocidental, que teriam estimulado a formação de sociedades nas quais individualismo,
pensamento analítico e não conformismo seriam favorecidos desde o berço. A plasticidade
do cérebro humano ajudaria os que nascem nessas sociedades a “pensar como um
WEIRD”.
Para que esse tipo de construção cultural acontecesse, argumenta o antropólogo, era
preciso modificar primeiro a base dos comportamentos sociais humanos: a família.
Realmente, outra diferença crucial entre povos WEIRD e não WEIRD é o fato de que, fora
do Ocidente, os elos sociais e políticos frequentemente dependiam de alianças entre
grupos familiares muito amplos, que podemos chamar de linhagens e clãs.
Nesses contextos, não é incomum que um sujeito se sinta obrigado a vingar uma ofensa
contra um primo de terceiro grau; casamentos entre pessoas aparentadas são comuns ou
mesmo a norma; homens ricos e poderosos têm várias mulheres (poliginia); quando o
marido ou a mulher morrem, não é incomum que o cônjuge se casa com o irmão ou a
irmã mais nova de quem faleceu (veja infográfico).
Todas essas mudanças foram impostas por causa da moral religiosa da Igreja, diz
Henrich, mas o importante foram as consequências imprevistas de tais medidas no longo
prazo. Todas elas atuaram no sentido de enfraquecer os laços entre clãs e famílias
estendidas que tinham predominado em solo europeu, assim como no resto do mundo.
Além disso, teriam estimulado relações sociais e econômicas que não dependiam dos
laços de sangue amplos. Entre os anos 500 d.C. e 1500 d.C., conforme o MFP se
consolidava, os europeus da Idade Média e do Renascimento intensificaram trocas
comerciais de longa distância e formaram associações entre indivíduos sem parentesco,
como as ordens religiosas (as quais, em seus monastérios, estimularam o trabalho
intelectual), as guildas que reuniam artesãos especializados e as próprias universidades.
Com o passar do tempo, o processo teria virado uma bola de neve: os grupos que melhor
aderiam ao novo modelo de economia dinâmica, competitiva e individualista acabavam se
saindo melhor na competição internacional, estimulando outros países a copiar o mesmo
modelo.
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No começo do século 16, outro movimento religioso teria funcionado como uma “injeção
de reforço” nesse processo: a Reforma Protestante. Ao estimular todos os fiéis a lerem a
Bíblia por si sós e ao considerar a prosperidade econômica como sinal das bençãos
divinas, os protestantes fizeram com que a alfabetização, a inovação científica e o
capitalismo se tornassem a marca registrada dos países mais poderosos da Europa.
Henrich documenta esse processo em detalhes, com dados que vão dos níveis de
casamento entre primos em dezenas de países à alfabetização de mulheres em regiões
católicas e protestantes da Alemanha nos séculos 18 e 19. O enfoque nos processos de
evolução cultural é um bocado bem-vindo quando se considera o quanto os fatores
históricos analisados no livro ainda costumam ser atribuídos a uma suposta superioridade
biológica dos europeus.
Por outro lado, o antropólogo parece atribuir uma aura quase imutável às estruturas
sociais e culturais dos países não WEIRD, as quais impediriam que eles atingissem os
mesmos níveis de desenvolvimento do Ocidente. Antes de reformas políticas tradicionais,
seria preciso mudar a “programação interna” das nações em desenvolvimento, diz ele —
sem explicar como isso seria possível. Nesse ponto, é preciso tomar cuidado para que uma
hipótese instigante sobre a história humana não se torne desculpa para que o presente e o
futuro continuem reproduzindo injustiças.
The WEIRDest People in the World: How the West Became Psychologically
Peculiar and Particularly Prosperous
Autor Joseph Henrich
Editora Farrar, Straus and Giroux
Quanto R$ 54,90 (ebook); 706 págs.
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