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BIBLIOTHECA SEROES ROMÂNTICOS

PROPRIEDADE DE MALHEIROS, ANDRADE & C

O C B I M E
DO

BEATS ANTONIO
Romance original portuguez
DE

EDUARDO DE BORJA REIS

Escriptorio da Empreza
SI 3RTJ-A.-. 3D.A. O A B T O O A ; - S1
life
(Typ. a vapor Augusto dos Santos)

1887
D'esta obra foram tirados vinte exemplares em panei
9
esvecial
numerados e rubricados com o nome do possuidor. especial.

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provar pelos document T c L ^ q ^ s u í eXCl " SÍVa ' « í ^
A_ M E U S PAIS
como penhor de respeito e amor filial

O . 1 3 . O .
PALESTRA C l O LEITOR

Um dia contaram-me u m facto horroroso. Era um


verdadeiro romance de sensação ; um drama com todos
os horrores das scenas violentas!
O facto déra-se. A policia pesquizára, mas em vão.
Os mais subtis agentes de policia empenhavam-se em
descobrir o fio dessa trama perfeitamente urdida, sem
que nada tivessem conseguido até então e sem que até
hoje tenham adiantado cousa alguma.
Ao deitar-me, nessa noite, veiu-me á mente o facto
que me fôra relatado e como o somno não era muito,
comecei a architectar um romance.
Sentado na cama, com uma almofada nos joelhos,
fumando uma apoz outra a minha honrada e modesta ci-
garrilha de Santa Justa, deixei correr o lapis sobre as
tiras de papel e sahiu O Crime do Beato Antonio.
Prestará elle ?
E' o que não posso affirm ar e o que rog-o ao lei tor
que me diga ; pois os amigos não me valem para o caso—
ou são suspeitos por muito bons, ou idiotas por muito
criticos,
— 6 —

Consulto! um destes últimos que todos por ahi co-


nhecem, tão batido é elle nas lides da imprensa, mas cujo
nome quero occultar, e fallou-me logo da critica severa
da imprensa, da responsabilidade para com a lilteratura
e a arte, do arrojo da tentativa, e mil cousas diversas que
só tiveram u m a conclusão: provar-me mais uma vez que
não ha nada tão idiota como u m idiota.
Pois importa-me para alguma cousa a critica? De
que me serve ella? E' ella que vai comprar o meu livro?
que o vai popuiarisar ? Ora, adeus !
Os jornaes recebem u m exemplar deste trabalho
que tanto me custou e dizem no dia seguinte no no-
ticiário : « Recebemos e agradecemos o romance O Crime do
Beato Antonio, original do Sr. F. . .» e prompto ; está
tudo dito.
E ' a isto que a imprensa chama critica. Na minha
opinião u m a cousa destas é, quando muito, um a n -
nuncio. Ora para isso, gasto os meus dez réis por linha e
annuncio o meu livro á minha vontade, e até sou capaz
de me tecer dois elogios á guiza de reclamo.
Ha inda uma outra cousa a que elles chamam
critica. E' a opinião estafada de uns sujeitos que todo o
mundo ( m e n o s e u ) acredita serem litteratos, q u e se
vestem á litterata, que almoçam á litterata, que faliam á
litterata, que nunca produziram cousa alguma, que s a -
bem tanto como eu, que têm exame de instrucção primaria,
que têm o cerebro vazio, e 110 entanto censuram quem
não fôr francez, porque o francez é o chic, ou mesmo
quem fôr genuinamente portuguez e não lhes fôr supplicar
protecção.
Ora, para critica de tal ordem — adeusinho.
O meu critico ès tu, leitor amigo, que me compras
o livro, dando ao meu editor u n s tostões dos quaes me
— 7 —

cabem u n s v i n t é n s ; és tu que me recommendas ou me


rasgas depois de me lêres; és t a , que és simples, que
tens uma alma impressionista, pura e sã.
Ahi vae, pois, o meu livro ; lê-o e, se o achares
bom, esgota depressa a edição para que o editor me
pague outra melhor e eu tenha mais gosto em escrever.
O que eu te garanto è que se duvidas dos matadores
do meu livro, volta rápido a folha e vê se o começo d'esse
primeiro capitulo não é já Ponson du Terráil puro.
Lisboa—1883.
O CRIME
DO

BEATO ANTONIO

I
UM PERSONAGEM MYSTERIOSO

Estamos em Novembro de 1868.


O Rocio de Lisboa, que em vão a camara municipal
chamou Praça de D. Pedro IV, estava solitaria e deserta
ás 11 horas da noite. De ordinário, é essa a hora do
grande movimento para os habitues dos theatros, os fre-
quentadores das casas de pasto circumvisinhas, para as
lorettes, e para os amigos do alheio, apezar de toda a
guerra que a g u a r d a municipal faz a estes últimos.
No entanto, na noite em que principia a nossa n a r r a -
tiva a chuva cahia miúda e insistente desde as quatro horas
da tarde e o vento, que soprava rijo, obrigava os raros t r a n -
seuntes a occultarem o rosto nos cache-nez ou nas amplas
dobras das capas á hespanhola.
Os serenos lá estavam embuçados nos seus gabões»
com os capuzes pela cabeça e desciam de vez em quando
da almofada dos trens para lactar pelo movimento contra
o agreste da noite,
IO O CRIME DO

Não ha pessoa alguma que não saiba que se


chamam serenos os trens de praça, que durante a noite
inteira estacionam em volta d a q u e l l a praça, ninhos de
amor muitas vezes onde se trocam protestos e juras, con-
ductores de deshonra que se aproveita para a seducção,
refúgios do retardatario e pelourinho de dois pobres cavallos
que eu admiro pela sua heroicidade na lucta contra a
intemperié das compridas noites de inverno.
Os membros da Sociedade Protectora dos Animaes não
pensaram nunca n'aquelles pobres brutos, não contem-
plaram uma só vez aquelles pescoços estendidos, aquellas
orelhas cahidas, aquelle pello fumegante sob a chuva,
do contrario de ha muito teriam reclamado a suppressão
dos serenos, tão eloquente é a tristeza d'aquelles pobres
animaes. Mas o que é um facto, é que se é triste ver
aquelles pobres estacionários apanhando uma chuva de
Dezembro e supportando valorosamente uma temperatura
de quatro gráos, também ò verdade que os seus conducto-
r s soffrem a mesma vida má e tudo isso para que nós
não a supportemos.
Ora entre as nossas coinmodidades e as delles,eu acho
que as nossas são mais para cuidar-se e é talvez esta a
opinião da Sociedade Protectora, que, afinal de contas,
tem bom senso.
Depois de toda esta longa dissertação sobre as pillecas
da praça, é justo que o leitor queira saber cousa que
mais o interesse e é c&so para me accoimar de massador
se não sigo a narrativa.
Estava pois, como dizíamos, deserto o Rocio.
Um individuo, romanescamente envolto em uma capa
hespanhola, de chapeo desabado,atravessou a praça, v.indo
da rua de Bitesga, e dirigiu-se a um cocheiro que batia 110
lagedo os pés tolhidos pelo frio.
BEATO ANTONIO as 11

O cocheiro era um rapagão dos seus vinte e cinco


a vinte e sete annos, de cara rapada, chapéo á Serrana,
vestia o trajo hespanhol do cocheiro batedor e estava
envolto n'um gabão de pesada saragoça que desafiava a
baixa athmospherica.
Do segundo personagem era impossível ver a phisio-
nomia, tão embuçado estava e com tanto cuidado se e n -
volvia na capa. A sua figura era no entanto esbelta e forte,
o porte altivo e a voz imperiosa.
— Está occupado ? perguntou ao cocheiro.
— Não senhor.
— Leve-me á travessa do Guarda-Mór n. 15.
— E' para já, respondeu o cocheiro subindo para a
almofada,' enquanto o nosso desconhecido entrava para o
trem.
Os animaes partiram a trote e subiram a rua Nova
do Carmo.
Pouco depois parava o trem na direcção indicada.
O mysterioso desconhecido apeou-se e dirigiu-se ao
cocheiro :
— Pode ajudar-me a conduzir para o seu trem uma
senhora doente ?
— Uma senhora doente ?
— Sim, está no primeiro andar e não tenho quem
me ajude a descel-a.
O cocheiro, sagaz como todos os seus collegas da
praça, teve desconfianças.
— Homem, eu lhe digo : a noite não me parece das
melhores para conduzir senhoras doentes...
— Recusa ?
— Eu não s e n h o r ; mas parece-me assim u m a cousa
de costa acima essa tal cantdga da senhora doente
— Então não acredita ?
12 060CRIME DO

— Eu sei lá ! O senhor tem assim uns ares mysterio-


sos que não tranquilizam muito e e u gosto pouco d e n e g o -
cios com a policia.
O interlocutor do cocheiro bateu, impaciente, com o pe
no chão.
— Estamos aqui, em plena rua, em uma discussão
que tem tanto de ridícula, como de humilhante para mim.
Vamos, ajude-me.
— Não posso deixar a parelha sósinha, disse o co-
cheiro como ultima evasiva.
— A h ! tem receio da sua fogosa parelha ! retorquiu
o desconhecido com escarneo.
— Lá se ella è fogosa não sei eu, o que sei é que é
minha e que me custou muito a ganhal-a. E ' p o r isso que
não a desamparo.
O nosso embuçado mordia-se de impaciência. Depois
de um breve instante de silencio lembrou-lhe um recurso:
Não é a você que chamam o Bate-Forte ?
— Sou eu mesmo. José Maria, por alcunha o B a t e -
Forte.
— Julgava-o um valente...
— Não sou lá muito pecco para que digamos, i n t e r -
rompeu Bate-Forte.
—E afinal de contas sahe-meuin maricas, continuou o
embuçado. Palavra que, ouvindo contar as suas proezas,
nunca me persuadi encontral-o tão medroso !
Tinha acertado no ponto vulnerável do cocheiro, Ào
ouvir-se alcunhar de medroso, Bate-Forte esteve a ponto de
partir o cabo de pingalim na cabeça d'aquelle freguez que
o chamara para o encommodar; conteve-se no entanto.
— Medroso, eu? disse com zombaria, nem sete como
você me assustam com duas razões, e se quer ver, experi-
mente.
BEATO ANTONIOas13

— Ora, amigo, se não fosse o medo ha muito que me


teria acompanhado e me ajudaria no que lhe peço.
— Olhe lá, volveu o cocheiro ; eu bem sei que a tal
cantiga da senhora doente é uma historia,mas para lhe pro-
var que não tenho m e d o vou acompanhal-o...
— Até que emfim ! m u r m u r o u o desconhecido com
satisfação.
— Mas dou-lhe u m aviso, para seu governo : se ten-
tarem contra mim seja o que fôr, ou se me quizerem obri-
gar a tomar parte n'alguma maroteira juro-lhe, por Deus
Nosso Senhor, que o coso a facadas.
— Não ha de ter esse trabalho, disse o desconhecido.
— Yeja bem no que se mette !....
— Yamos!
— Prompto!
B a t e - F o n e seguiu o desconhecido, depois de ter tirado
do bolso interior da jaqueta a navalha catalã que empu-
nhou" aberta.
José Maria era o que se pode chamar um valente. Co-
rajoso e sempre prompto á defeza se o atacavam, era com-
tudo o mais bondoso coração d'este m u n d o . Arreceiasse-se
d'elle quem o insultasse, por que tinha de haver-se com
uma féra, mas havia muita gente a quem elle servia de
protector e amparo. Assim como não tinha duvida em a t a -
car cinco ou seis que o desafiassem, assim também podia
contar com metade do seu ganho o necessitado que o abor-
dasse.
E' precisa esta explicação para que o leitor, ao vel-o
empunhar a navalha, não o julgue um assassino, u m m a l -
feitor,um fadista. Uzava navalha porque... porque sempre
uzara navalha. Eis a questão.
Uma outra explicação: a sua alcunha de Bate F o r t e
provinha-lhe de uma canção muito sua predilecta, canção
14060CRIME DO

que por muito tempo correu voga em Lisbôa e que dizia


assim:
Bate forte, seu Marquez de Loulé.
Bata na cabeça, não lhe bata no bonet,

Dada esta explicação que diz ao leitor a razão da al-


cunha do nosso sympathico personagem, prosigarnos a
narração.
O individuo da capa entrou n ' u m corredor escuro e
frio, subiu uma escada Íngreme e estreita, tendo para se
auxiliar na difficil subida um corrimão de corda. A as-
cenção, que as-im se lhe pode chamar, fazia-se dificultosa-
mente,attendendo às trevas profundas que reinavam no lo-
cal e á desegualdade dos degràos.
Bate-Forte seguia o seu estranho freguez apertando
fortemente o cabo da navalha. A cada dificuldade da es-
cada, imaginava uma cilada.
No primeiro andar abriu-se uma cancella ao toque
da campainha e os dois nocturnos visitantes atravessaram
u m corredor e penetraram n'um aposento quadrangular
de pequenas dimensões, mal alumiado por um candieiro
depetroleo com abat-jour. Guarneciam as portas dasjanellas
chapas de ferro e trancas <io mesmo metal, como ainda
hoje se vê nas casas de velha construcção em Lisbôa.
Na salla estavam dois indivíduos, perfeitos persona-
gens de romance. Tinham a emoldurar-lhe o rosto barba
cerrada perfeitamente igual e disfarçavam-se com meias
mascaras pretas.
— O l á ! Então temos entrudo por aqui ? pensou
Bate-Forte. Pois vou mostrar a estes cavalheiros para
quanto presto.
Dizendo isto o cocheiro tirou a jaqueta, que pôz na
manga para fazer do braço u m escudo, e preparou-se para
a lucta.
Í3EÁT0 AMTÓNÍO is

— E' desnecessário esse trabalho, amigo Bate-Forte,


disse o embuçado do Rocio; espero que não imagine que
veio aqui para jogarmos a navalha. Temos coisa mais se-
ria a tratar. Vista a sua jaqueta, guarde a navalha e va-
mos entrar em negocio.
— Não faço negocios a semelhante hora da noite e
muito menos com gente a quem não vejo a cara, tornou o
cocheiro sempre em posição aggressiva.
—Ora, que diabo! Trata-se dc um bom meio de voçô
ganhar trez libras.
— Se é para mecommover, não vou lá com essas
cantigas.
— Oiça o que lhe vou dizer.
— Estou ouvindo.
— Preciso do seu trem.
— Está na rua, ás suas ordens, pagando-me.
—• E' isso mesmo. Eu vou tomar o trem em que vim
e você fica nesta salla até á minha volta.
— Quem é que lhe contou essa? Se o meu trem sahir
là de baixo hei de por força ir na almofada.
— Por força?
— Sim por força.
— Ora você bem sabe que está em nosso poder e que
é muito melhor chegarmos a um accordo do que entrar-
mos com inúteis discussões.
— Não entro em accordos com gente da sua laia !
— Pode dizer o que quizer, pôde dirigir-me os in-
sultos que lhe parecer ; a minha resolução está tomada.
Preciso do seu trem para um negocio meu; hei de tomal-o.
Ora, você comprehende que eu não sou tão idiota que o
deixe ir embora, para que você vá direitinho á policia p e -
dir-lhe que venha saber o motivo porque eu queria
forçar a sua vontade.
16 060CRIME DO

— Seja como fôr, retorquio o cocheiro com um certo


azedume ; já disse que não quero negoíios de raça alguma
com vocês.
— Ora, amigo, não conheço nada mais convincente
do que o dinheiro e nunca fez mal a alguém o ganhar trez
libras.
— Conforme.
— Sempre ; em todos os casos. Ora, voce vae receber
as trez libras e esperar aqui que lhe venham entregar o
trem de que me aposso por uma ou duas horas.
— Sempre tinha vontade de saber quem manda
mais do que eu n'aquillo que me pertence !
— Está decidido, não é assim ?
— Não, senhor !
— Bom. Temos de empregar a violência, e comtudo
affianço-lhe que não queria empregal-a. Gosto de realisar
os meus negocios por meios brandos, pela persuasão....
— Não está mal achada a sua persuasão !
— Mas uma vez que não quer...até logo 1
O mysterioso personagem desaparecera por uma porta
lateral.
Aos poucos, tinha avançado até ao logar por onde
desapparecera e a porta fechou-se rapidamente sobre elle,
ouvindo-se no interior o ruido de pesados ferrolhos cor-
ridos com precaução.
Bate-Forte estava fóra de si. Assistia a um espectá-
culo magico, julgava-se no Salitre, assistindo ás metamor-
phoses preparadas pelo hábil D. José Serrate.
No seu longo tirocinio de cocheiro nunca vira uma
cousa assim.
Por um momento ficou sem saber o que fizesse ;
depois, como um doido, precipitou-se para a porta por onde
entrará.
BEATO ANTONIOas17

Tinham tomado todas as precauções.


A porta fôra fechada sorrateiramente eera de tempera
a resistir aos encontrões que o desvairado cocheiro lhe deu.
Descrever a phisionomia do cocheiro quando se voltou
para os dois mascarados, é tarefa difíicil.
Nos Glhos fuzilava-lhe um sinistro clarão, o rosto
completamente decomposto era horrível de ver-se.
Aquelle bondoso rapaz, de phisionomia sympathica,
de maneiras attenciosas, tomado de um tremor nervoso
causado pela raiva, com os olhos a saltarem-lhe. das or-
bitas, a bocca espumante, a navalha em punho, represen-
tava a imagem do dèsespero na sua mais cruel manifestação.
Na rua ouvia o rodar do seu vehiculo e estava alli,
impotente,porque os dois mascarados empunhavam revol-
vers e matal-o-hiam ao mais pequeno movimento.
Louco de desespero o pobre cocheiro só poude pro-
nunciar uma phrase :
— Ah ! cães !
E cahiu redondamentp.
Era muito para a sua constituição nervosa, para a sua
convicção de corajoso, para a sua fama de valente.
Os dois mascarados olharam-se receiosos.
Esperavam um outro desfecho áquella scena.
Aquelle valente rapaz não era do estofo dos que des-
maiam como qualquer menina.
— E a g o r a 9 perguntou um delles ao companheiro.
— Agora, meu caro, é tratar de nos -safarmos. Já
representámos o nosso papel e eu não quero graças com a
policia.
— E o pobre rapaz fica para alli, no soalho ?
— E então?
— E' uma barbaridade! 2
3» O CRIME DO

— Mais barbaridade era o deixarmo-nos matar por


elle.
— Gomo assim ?
— Tens a certeza de que elle desmaiasse a valer?
Olha, eu desconfio dos desmaios em rapazes como aquelle;
se aquillo for fingido, quando lhe fôrmos pegar mata-nos
como a dois pardaes, que é homem para isso.
— H o m e m , não tinha pensado em semelhante coisa.
Temos razão. Toca a raspar1
E os dois mascarados, recuando sempre, foram bater
de uma forma convencionada á porta por onde sahira o
primeiro personagem.
Esta abrio-se suavemente e um apoz outro desa-
pareceram no interior da casa.
Bate-Forte continuava como morto 110 meio do apo-
sento.
Nem o mais leve rumor se ouvia n'aquella casa onde
sem duvida, acabava de preparar-se u m crime.
Qual seria esse crime que se rodeava de circums-
tancias tão mysteriosas ?
E' o que vamos saber no seguimento d'esta narrativa.
BEATO ANTONIO as 19

II

O CRIME DE PALMA

No dia immediate» ás occur rencias narradas no primeiro


capitulo d'este romance, ia uma balbúrdia indiscriptivel
em Palma de Cima.
Não ha ninguém que desconheça o logar onde se pas-
sam as scenas que vamos narrar.
O povo de Lisboa, com a sua eterna propensão para o
passeio ao campo, não se deixe ficar na cidade aos d o m i n -
gos e todos, á busca de novos sitios para digressar, teem
costeado o actual palacio do finado José Maria Eugênio,
que n'essa epocha apenas estava em começo, e teem tomado
adestrada de Palma de Cima para gozar o bello panorama
que se disfrueta do alto do morro.
Em b a k o as searas de trigo, a e s t r a d a d a circumva-
lação, o movimento do povo, trens e cavallos nas portas de
S. Sebastião da Pedreira formam um quadro animadís-
simo e digno de ver-se.
Hoje, são enormes as modificações feitas n'aquella par-
te da cidade, como em toda ella. Mas, no tempo em que se
passa o nosso romance os caminhos eram bastante ruins, e
so 0 CRIME DO
i

ainda não se tinham feito as boas estradas de macadam


que depois foram mandadas construir pelo governo rege-
nerador.
Havia razão para a balbúrdia que se notava na estrada
de Palma de Cima.
Eis o caso :
A tia Brites tinha contratado com D. Carlota, senhora
que viera de Lisbôa para tomar ares n'aquelle sitio, o ser-
viço da casa.
Esta tia Brites, apezar dos seus cincoenta e trez annos,
ainda tinha o seu achego, o seu homem, como lhe chamava
e o que é mais ainda, é que tinha um ciúme dos diabos do
seu Manoel Cartaxo que, dizia ella, mesmo velho não dei-
xava d'ilharga as raparigas da terra. Ora em vista desta
paixão e deste ciúme serodio <1a senhora Brites, a bôa da
velha só se incumbia de servir qualquer com a condição
de ir dormir á sua casa, e quando por ventura tinha de sa-
hir a compras, podiam t,er como certo que ahi ia, ás perna-
das, ver se o seu Manoel estava a m a n h a n d o as courellas que
trazia de renda.
Só tinha licença de sahir do trabalho para vir até á
tasca do Gregorio, nédio e gordo taberneiro do logar, que
accumulavaas funcções de regedor.
A tia Brites, pois, ao vir para o serviço, na m a n h ã de
que tratamos, achára grandes novidades.
O portão de ferro aberto, pegadas em varias direcções
e de diversos tamanhos, a casa fechada contra o costume,
eram mais que motivos para que a falladora Brites scismasse
n'aquellas mudanças.
Depois de ter, rapetidas vezes, batido á porta sem
que obtivesse resposta, resolveu-se a ir espreitar pela j a -
nella do quarto de D. Carlota, tendo primeiro inspecionado
o interior da casa pelo buraco da fechadura.
BEATO ANTONIOas21

Brites conhecia a casa como os seus dedos e sabia p e r -


feitamente que a janella de madeira do quarto de D. Carlota
tinha u m buraco que o caruncho se incumbira de abrir;
ora, foi espiando por esse buraco que a tia Brites lançou
investigador olhar para o interior do quarto, esclarecido
por uma clarabóia que havia no telhado.
Depois de ter espreitado por mais de uma vez, porque
não podia acreditar no que seus olhos viam, recuou pal-
lida e tremula dando um grito de medo.
A sua physionomia, transtornada pelo terror, fazia
medo.
Esteve um momento irresoluta ; depois, agarrando
as saias, partiu a correr estrada acima.
Passados momentos o regedor ouvia, boquiaberto, as
revelações da velha.
Eu não sei como é que fora de terra correm com tal
rapidez as noticias, mas o que sei é que o telegrapho por
lá faria péssima figura. Não quero dizer com isto que nas
cidades elle ande mais veloz, mas não ha electricidade que
vença os falladores da aldeia.
Pouco tempo depois Palma de Cima em peso estava
na taberna do Gregorio e ouvia a estranha narrativa.
A intergeições succediam-se. Era um nunca acabar
de Ahs ! e de Ohs! acompanhado de olhares mutuos de
interrogação e pasmo.
D'ahi os commentarios :
— Morreu ao abandono, dizia uma rapariga reforçada,
de lenço amarrado á padeira.
— Qual abandono! retorquia uma outra, e o s a n g u e ?
— Quem sabe senão seria volta de espinhela cahida ?
dizia u m indireita afamado.
— Qual! Você já viu espinhela cahida com aquelle
sangue ? !
3 060CRIME DO

— Olhe, tia Rosa, você que n ã o percebe nada das


doenças não esteja a fallar. Eu já tenho indireitado espi-
nhelas...
E continuou a discussão scientiflca.
O regedor interrogava :
— Mas você viu feridas, tia Brites ?
— Eu, não senhor. Mas para mim é ponto de fé que
a pobre senhora foi morta.
— Mas não disse que ella estava para cada hora ?
— Se estava. E . . . valha-me Deus !... talvez eu fosse
a culpada da sua morte !
— Gomo assim ?
— A pobre senhora pediu-me hontem que lhe f i -
casse a fazer companhia esta noite, m a s o meu Manoel
anda a fazer-se lucas como a Annita e . . . .
— Calla-te d'ahi com isso, mulher de DJUS, retorquiu
esta, que se achava na r o d a ; pois eu penso lá n'um can-
galho velho como o teu homem ! Ora vae pentear macacos!
— Yamos 3j Cclbtlj disse uma voz curiosa.
— Vamos ! disseram todos.
O regedor estava irresoluto.
Durante o longo periodo da s u a administração tão
benevola quão sagaz, não vira um caso igual. A grave
responsabilidade do momento pesava-lhe nos hombros e
receiava as consequências.
Poderiam atribuir a negligencia da sua parte o facto
occorrido ? Não, de certo, dizia-lhe a consciência. Mais
zeloso do que elle n u n c a houvera autoridade no logar.
Mas como é que só então se praticava u m crime rodeiado
de tanto mysterio ? Coisas do diabo ! O que diria a a u -
toridade superior ? Importaria aquelle acontecimento n a
sua demissão ? Morria de raiva se perdesse o prestigio e
não podesse continuar a impingir como de costume aos
as 23
BEATO ANTONIO

seus freguezes—administrados gato por lebre, desculpando


o regedor o taberneiro.
Tudo isto passava pelo espirito do pobre Gregorio, em-
quanto o povo curioso queria ir constatar o delicto.
— E n t ã o , senhor regedor ?... disse um mais ousado,
vamos ou não ?
—Vamos, respondeu Gregorio tomando u m a resolução.
E á frente dos seus administrados seguia para o sitio
indicado.
Ao chegarem ao portão de ferro que dava ingresso p a -
ra o jardim da casa, o regedor mandou fazer alto : era pre-
ciso que aquella turba multa não fosse arredar qualquer
indicio. Gregorio ouvira um caso parecido e sabia as pre-
cauções tomadas pela autoridade de então, que se o excedia
em intelligencia ficava a perder de vista em memoria,
Effectivãmente tivera razão o bom .do regedor. Se aquella
gente invadisse o jardim teria feito desaparecer as pegadas
notadas pela tia Brites e profundamente acentuadas na
terra encharcada pela chuva da vespera.
E n t r a r a m todos encostados ao muro e foi recommen-
dado que nem u m só ousasse atravessar o jardin? sob pena
de prisão.
Ora o senhor Gregorio, que não trepidava em enca-
fuar no estarim qualquer dos seus amigos, ainda que não
fosse senão para mostrar o seu poder e fazer-se notar pela
sua protecção e valor, sabia ser obdecido.
Ao chegar á janella o regedor que, semelhando u m b a -
lisa, fora de arrecuo, fiscalisando a boa execução das suas
ordens, fez signal de parar.
Era preciso que antes de qualquer outra pessoa a a u -
toridade constatasse o facto.
Por alguns momentos Gregorio espreitou pelo indis-
3»OCRIME DO

creto buraco e quando retirou a cabeça estava pallido b a s -


tante e tinha a fronte inundada de suor.
O facto era gravissimo.
Pela primeira vez, o regedor via-se a braços com um
assassinato !
Ora u m assassinato não é uma bebedeira que se re-
medeia em toda a parte do mundo com uma pequena pri-
são e um discurso da autoridade : aquillo tinha que se
lhe dissesse e era preciso cautella,
A rogo dos circumstantes foi-lhes facultado o observar
o facto sem balbúrdia, sem atropello e flscalisado tudo pelos
cabos de segurança que foram collocados na porta da en-
trada, junto á janella e em todos os sitios que a prudência
exigia.
Gregorio affastou-se, rodeiou a casa e dirigiu-se para
o pomar.
Precisava estar s ó , ' t i n h a que consultar o seu foro
intimo.
Encheu o cachimbo, accendeu-o e começou a passeiar
a largos passos.
Devia arrombar a porta e fazer o corpo de delicto ?
E os responsabilidade ?
Não. O encargo era muito espinhoso.
Mas n ã o seria mal visto o não iniciar elle as pesquizas?
O que se diria em Lisboa do seu procedimento ?
Todas estas perguntas lhe salteavam a mente sem ver
prompta solução para o caso.
Afinal resolveu-se.
O jardim foi mandado evacuar, distribuiu sentinellas
e destacou um dos cabos de segurança para Lisboa le-
vando ao Governo Civil um officio que lhe custou muito
mais bagas de suor que a visia da assassinada. Para em
tudo a questão ser dificílima teve que fazer um officio !
BEATO ANTONIO a s 25

Em Palma de Cima não se trabalhou n'esse dia. To-


dos á uma queriam ver o desfecho do negocio e á porfia
discutiam o caso.
A tia Brites repetira o facto vinte vezes e ainda havia
quem a interrogasse a respeito.
Os uzos, os hábitos, a phisionomia de D. Carlota, a
sua maneira de tratar, as suas palavras, a sua vida, tudo
emfim, era motivo para perguntas sem fim.
A pobre velha estava exhausta ; contara quanto sabia
e inventara o que fora preciso para contentar a curiosidade
geral.
Toda a gente estava anciosa pela vinda da autoridade
superior.
As' dez horas já havia gente até S. Sebastião da Pe-
dreira. Parecia-lhes qua indo ao encontro d'ella mais cedo
chegaria.
Os velhos mandaram os rapazes e ordenaram-lhes que
fizessem signaes assim que vissem qualquer cousa.
Por todos os morros havia gente á espreita e n i n g u é m
pensou em comer.
A's onze horas um enorme murmurio de satisfação,
-

um movimento extraordinário, o atropello, a b a l b ú r d i a


mostravam que haviam sido satisfeitos os desejos daquella
gente : chegara a autoridade,
O commissario geral, seguido de grande q u a n t i d a d e
de policias e das pessoas que o facto requeria, vinha
observar o caso e proceder a averiguações.
O regedor nem sabia o que fizesse ; era a primeira vez
que fallava com u m tão altõ personagem : o Commissario
Geral de Policia !
E^que importancia não tinha o facto para que S. Ex,
viesse em pessoa.
06 060CRIME DO

O commissario chamou a tia Rrites e interrogcu-a


sobre o que sabia. Tomou em seguida as declarações do
regedor e deu ordem a este para que fizesse evacuar o
jardim e affastar o povo para se proceder ao arromba-
mento.
Ao ser transmittida esta ordem houve um eôro de
indignação. O povo pela primeira vez resistiu ás ordens
do tio Gregorio e fora, na entrada, ouvia-se um barulho
indiscriptivel de pragas e protestos.
O regedor estava fulo de r a i v a ; e não era para menos.
Havia pouco tinha fallado na moderação dos seas ad-
ministrados e na sua submissão á lei e agora estavam
elles provando o contrario do que tinha affirmado.
Fóra o tumulto augmentava.
— O que é isto? interrogou o commissario.
— N a d a ; eu vou ver...
Gregorio affastou-se, chamou o mais velho dos csbos
de segurança, que tinha como distinctivo da sua supe-
rioridade dois galões encarnados na manga da jaqueta, e
conversou com este.
— E n t ã o . . . alioa-sel
— P o i s ! . . . concluio o regedor que dera as suas or-
dens,
O cabo sahio.
Pouco depois os administrados do Sr. Gregorio Car-
valho eram, delicadamente, solicitados de subir a ladeira
pelos marmeleiros dos cabos de segurança.
Tendo esgotado a log-icá, os valentes mantenedores
da ordem publica empregavam os meios convincentes.
N'esse momento a autoridade superior mandava pro-
ceder ao arrombamento e iniciava o processo. Todas as
minudencias eram investigadas pelo commissario que to-
mava apontamentos dos mais insignificantes detalhes.
BEATO ANTONIOas27

Ao entrar no aposento deparou-se-lhe u m quadro


tristíssimo.
D. Carlota quasi nua, n'uma contorsão terrível,
tendo no rosto impressa a.dôr immensa da agonia, estava
sobre o leito largamente manchado de sangue.
Em poucos momentos o medico da policia fez o seu
depoimento.
A morte fôra occasionada pela sangria no artelho,
a p o z u m parto laborioso. A sangria fora feita no intuito
de assassinar sem deixar vestígios e se o golpe
dado se apresentava visível é porque fora feito por mão
tremula e por instrumento perfurante n ã o adequado. A
hemorrhagia produzira a morte.
As manchas de sangue em diversos logares do leito,
as mãos ensanguentadas da morta, as contrações,a posição
do corpo, a expressão da phisionomia, tudo demonstrava
a lucta suprema que a pobre senhora tivera com a morte.
No chão do aposento estavam marcadas a lama em
diversas direcções, e especialmente junto da cama, as
pegadas de dois indivíduos. Uma d'ellas, firme e segura,
attestava por um claro entre a solla e o salto que perten-
ciam a uma botina regular ; a outra estava perfeitamente
desenhada : pertencia a um sapato grosso, de salto de
prateleira e o soalho indicava que este sapato era pregado
por grossas taxas de cabeça de prego.
Não se encontravam sigoaes de pé femenino o q u e
attestava que não estivera presente parteira alguma.
Estes signaes foram verificados no jardim e nos apo.-
sentos ; no jardim onde se poude tirar o tamanho d'elles,
nos aposentos observou-se a qualidade pela marca da lama
e da pregaria.
O movei do crime não fôra o roubo.
06
3»OCRIME DO

Os poucos objectos de valor, como dinheiro, jóias e


pratas, estavam nos seus logares.
Nem um vestígio de arrombamento nas gavetas, nas
portas ou nas janellas.
Inqueridos os visinhos da esquerda declararam não
ter ouvido rumor ou gritos que indicassem o crime.
Revistada a casa da direita, que estava por alugar,
não se encontrou o menor vestígio da existencia de alguém.
O jardim d'essacasa, coberto por espessa camada de areia,
não apresentava o menor indicio revelador.
Tratava-se de um crime seriamente premeditado e cer-
cado de todas as precauções e cautellas. Nem um indicio,
nem u m a ponta que podesse servirde lio de Ariadne à au-
toridade investigadora.
A tia Brites foi chamada á presença do commissario.
Tratava-se de tomar o seu depoimento e de ver se, pelas
suas novas declarações, se encontravam contradictas.
— Como se chama ?
— Brites.
— Só ?
— Sim senhor.
— A sua idade ?
— Nem eu sei, senhor. Eu sou velha como todos os
diabos !
— Responda ao que lhe pergunto : a sua idade pro-
vável.
— Mas como hei de responder se não sei.
— Cincoenta annos presumíveis, disse a autoridade
ao escrivão.
— Deve ser isso, senhor.
— A sua profissão.
— Creada de servir.
— Estado ? •
BEATO ANTONIOas29

— Estado ?!!
— Sim ! E' solteira ?
— Não senhor.
— Casada ?
— Sim senhor.
— O nome de seu marido?
— Manoel Cartaxo.
— Ha quanto tempo servia n'esta casa ?
— Ha um mez.
— Como se chamava a fallecida ?
— D. Carlota.
— Sabe-lhe mais algum nome alem de D. Carlota ?
— Não, senhor.
— Em que se occupava essa senhora ?
— Tomava ares.
— Isso não é profissão, mulher de Deus.
— Pois n ã o sei mais n a d a .
— Veio algem visital-a emquanto aqui esteve ao seu
serviço ?
— Não, senhor.
— Era casada ou solteira ?
— Eu não sei se era c a s a d a ; só o que sei é que fal-
lava muitas vezes no seu Alvaro.
— E quem era esse Alvaro ?
— Não sei, senhor.
— Vinham muitas cartas de Lisboa para 5). Carlota ?
— Vinham sim, senhor.
— E onde estão essas cartas ?
— Na gaveta da commoda.
— São estas ? interrogou o commissario a quem t i -
nham entregue a correspondeneia em questão.
— Sim senhor.
O Coaimissario leu as cartas.
3» O CRIME DO

Algumas banaes, outras ameaçadoras m a s todas com


a assignatura Leopoldo e todos sem data ou indicação.
— Não dormia n'esta casa ?
— Não senhor. Quando vim tratar com a Sra. D. Car-
lota foi logo essa a condição que lhe impuz.
A que horas entrava para o serviço ?
— A's seis.
— E retirava-se ? . . . .
— A's oito da noite.
— Sabe se vinha alguém depois d'essa hora ?
— Como havia eu de sabel-o, senhor ? Eu não me
metto com a vida de n i n g u é m ; assim que s a h i a i a para a .
minha casa e pouco se me dava com quem ia ou quem
vinha.
— A assassinada nunca lhe fallou sobre perseguições
ou ameaças de que fosse victima !
— Não senhor.
— Mas andava triste, sem d u v i d a ?
— Isso andava, m e u senhor. Parecia ás vezes u m a
Magdalena. Sem mais razão de ser p u n h a - s e ás vezes a
chorar, a chorar....
Mas como é possível que nunca revelasse um
nome qualquer ? Tenha cuidado ! olhe que á justiça diz-
se a verdade inteira.
— Eu tenho dito tudo q u a n t o sei.
O commissario, o escrivão e o medico olhavam-se
admirados.
Estavam diante ide u m crime envolto no mais i m p e -
netrável mysterio e não encontravam uma sabida, u m fio
que os guiasse nas trevas de que elle se rodeia»a.
A correspondência foi lida com todo o cuidado e não
se descobria por ella u m indicio q u e fosse.
O regedor foi chamado a fazer o seu depoimento.
i BEATO ANTONIO

— Conhece esta mulher? começou o commissario.


— Sim senhor. E' a Brites, natural cTestfe logar e
n u n c a sahiu d'aqui.
-— E' da sua inteira confiança.
— Sim senhor.
— Não a julga implicada 11'este assassinato ?
— Não senhor.
— O que?! exclamou lavada em lagrimas a accusada,
e u ? . . . implicada no crime !!!...
— Não era capaz de semelhante cousa, disse o
regedor.
— 0 facto è este : Ha n'esta casa u m assassinato,
Não ha o menor vestígio de arrombamento ; aqui não
vinha pessoa alguma exepto esta mulher, como ella pro-
pria confessa ; apezar das suas respostas precisas e firmes
eu vejo-me p o i s e m embaraços para não a julgar criminosa.
— E u ...criminosa?!
— E' lá possível ?! disse o regedor.
— Mas como explica o senhor o facto ! Quem melhor
do que ella podia conhecer o meio de penetrar n'esta casa
não deixando vestígios de arrombamento ?
— Mas.... a chave está pelo lado de dentro, tornou o
regedor que desejava a todo o custo d e f e n d e r a accusada,
como é que elle havia de entrar ?
— E ahi está o mysterio. Ora não è para acreditar que
uma pessoa extranha, a quem fossem perfeitamente d e s -
conhecidos todos os cantos da casa podesse aqui e n t r a r .
D e p o i s houve u m parto. O que é feito da creança ? Des-
appareceu o que prova q u e kavia interesse em roubar
essa innocente. Mas quem a levou? E' crivei que não
assistisse a esse parto uma mulher ? Se assistiu, onde
estão os signaes das suas pegadas .uma vez que no e x t e -
rior só h a vestígios de pegadas de homem ? Ora nao p a -
3» O CRIME DO

rece muito mais natural que esta mulher tenha sahido,


de ante-mão combinada com indivíduos estranhos, os
tenha esperado junto á c a s a e depois tenha com elles pe-
netrado no interior por um meio qualquer que nos es-
capa ? Não é provável que a sua denuncia seja uma co-
media de ha muito preparada ? Não é verdade que a
gente do povo é a que mais conhece a sangria no artelho?
Parece-me que todas estas minhas interrogações formam
um libello accusatorio ao qual difficilmente se poderá res-
ponder.
A autoridade callou-se e por um momento não se
ouvia na salla o nienòr rumor.
A accusação era "tremenda e a propria tia Bri tes dei-
xara de chorar e espantava-se das provas que se accu-
mulavam contra ella.
O regedor coçava a cabeça e não achava uma sahida.
Afinai disse:
— Qual! Era preciso que eu não conhecesse a tia
Brites como conheço os meus dedos ! O senhor commis-
sario fallou muito bem, disse muitas cousas bonitas mas
não me convenceu. Esla mulher é uma tagarella, uma
falladora, um diabo, mas é incapaz de fazer mal a uma
mosca. O juizo não será muito, mas pelo bom coração
fico eu.
— Outro engano, continuou o commissario. Se é tão
bom o coração d'essa mulher como é que abandona a sua
ama no momento mais critico da vida ? Se não ha m u -
lher alguma que recuse auxilio a outra n'esse caso em
que a vida da mulher periclita, como é que uma merce-
nária que recebe vencimentos pelo seu trabalho não fica
para prestar soccorros a quem lhe dá dinheiro a g a n h a r ?
— Mas o senhor commissario, sabe là o que é o
ciúme ?

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