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NINGUEM MATOU SUHURA Itha de Mogambique, Novembro de 1970 1. O Dia do Senhor Administrador senhor administrador acaba de abotoar o tiltimo botio do safari cor de améndoa. A imagem que o espelho Ihe devolve nao Ihe desagrada. A parte uma gordura incipiente na zona da cintura, 0 corpo conserva uma elegancia maciga perfeitamente adequada aos seus quarenta e oito anos. O rosto também Ihe parece aceitavel: nem sequer repara nas bolsas flicidas em redor dos olhos € no duplo queixo que ha anos se vem desenvolvendo e 0 fazem arecer-se vagamente com uma ra. O senhor administrador repara apenas no cabelo, que ainda mantém a cor castanha, no bronzeado saudavel da pele e nas sobrancelhas, de um arqueado perfeito, emol- durando os olhos escuros e vivos. Sente-se em perfeita forma quanto 0 seu aspecto fisico. Além disso, tem plena consciéncia da auréola que o envolve, devido a elevada posig@o que ocupa na Ilha, onde é simultaneamente Administrador de Distrito e Presidente da Camara. Esta manhi o senhor administrador est particularmente bem disposto. Contrariamente ao que Ihe acontece nos tiltimos tempos, dormiu bem, um sono profundo e reparador. E a ponta de tédio que também ultimamente 0 acompanha, hoje parece um pouco mais branda. Enquanto se penteia observa a mulher pelo espelho. Consegue abrangé-la toda. E a simpatia com que ha pouco se auto-analisara dé lugar a um sentimento ambivalente de ternura e repugndncia. Mas nio ha divida que aquela mulher entrou na sua vida para ficar. Juntos vieram de Portugal e subiram sem desénimo as escadas da fortuna. Quando ele era ainda um simples aspirante do quadro administrativo, a mulher. ater Pes esse mato. is Juntos exploravam os camponeses pobres e bajulavam os donos das plantagdes, juntos tinham breves rebates de consciéncia que acalmavam prontamente cor Assim tém vivido ‘em perfeita comunhao. 0 senhor administrador é 0 que se chama um “tarimbeiro.” Subiu lentamente até a posigdo que hoje ocupa e, durante a sua longa trajectéria profissional, o auxilio da mulher foi inestimavel. Por isso, a observa com ternura. Esté ligado a ela por uma espécie de cordao umbilical, tecido de tramas urdidas na intimidade do quarto, ambigdes comuns, sacrificios, crueldades e amor fisico tam- bém. Porém, nao ha diivida que o amor fisico se foi para sempre. E €com sacrificio que agora o senhor administrador “cumpre os seus deveres conjugais” como ele costuma dizer a si préprio. Continua a observar a esposa através do espelho. D. Maria Indcia éna verdade uma mulher que o tempo maltratou impiedosamente. Esta deitada na cama, recostada a um montio de almofadas ¢ fala ao telefone com uma profusio de frases exclamativas. Alias, a ‘cama e 0 telefone constituem desde ha muito o pano de fundo da sua vida. Desde que dera a luz o tiltimo filho, leaned ina FRGUEZA parte verdadeira, recusa-se a sair da cama. A nio ser para tomar as refeig6es com a familia na sala de jantar, ou quando é abso- Jutamente necessario cumprir as suas obrigagdes de “primeira dama da Ilha.” De resto, recebe as amigas, a modista, ¢ a cabeleireira no: ‘quarto, e sobretudo telefona no quarto. O médico ja no Ihe receita mais medicamentos. Disse-lhe que os melhores remédios para os seus males so 0 sol ¢ © maravilhoso mar da Ilha e que ela deveria aproveité-los diariamente, D. Maria Indcia ofendeu-se com tal me- dicagio, chorou, garantiu que qualquer ponta de sol Ihe faz estalar a cabeca e que 0 ar maritimo Ihe provoca vémitos. Nem mesmo 0 senhor administrador conseguiu demové-la a sair do quarto onde cla passa os dias a telefonar As amigas, como acontece agora. Acaba de acordar. O colo e os bragos muito brancos flécidos sobressaem desagradavelmente da camisa de dormir de seda verde, Igualmente flécidas e brancas espreitam as pernas de tornozelos inchados e sulcadas de varizes. E.a cor livida do rosto absorve-lhe © contorno das feiges que os olhos desbotados e cansados nao conseguem animar. senhor administrador constata tudo isto através do espelho com a ternura ¢ 0 desgosto de sempre. Jé pronto, ajeita mais uma vez o safari que teima em subir-Ihe na cintura e dirige-se & mu- Iher com o sorriso benevolente que ha muito adoptou para ela. Ao vé-lo aproximar-se, D. Maria Indcia interrompe a conversa a0 telefone. = Ja-vou, minha querida! Mais um dia de trabalho e preocupagdest = diz-Ihe 0 marido. i Ela mira-o com os olhos brilhantes de admiragao e oferece-Ihe uma face para o beijo de despedida, continuando imediatamente a conversa interrompida. “ Na sala de jantar onde o senhor administrador toma o peque- rno-almogo, aguarda-o o velho Assane. Impecavelmente fardado de branco, afasta-Ihe a cadeira para se sentar e serye-o em siléncio, ‘com gestos s6brios € precisos. ‘© pequeno-almogo é simples: orradas com um toque de excelente ‘manteiga holandesa e um copo détinib de toranja. A terminat, uma ‘chavena de café simples. Devido a sua tendencia para engordar, ha muito que o senhor administrador renunciou ao “pequeno-almoco de garfo” que tanto aprecia: “Terminada a refeicao, cadeira para 0 patrio se levantar. ‘ — Até logo, Assane — despede-se o senhor administrador. ~ Até logo, senhor administrador ~ responde o velho num tom de medroso respeito. “Os tempos mudam!” pensa irritado o senhor administrador. «Antes de esses malditos terroristas comegarent{@jfaet das SUS) ‘era mesmo eu que me despedia de um negro. Mas agora temos que andar mansinhos com esta gente. Depois de tudo que fizemos por eles. Corja de ingratos!” . : Desce a escadaria do palacete com passos sacudidos ¢ ripidos, tentando assim aliviar um pouco a irritagao que os seus pensamentos thes provocam. atin ns ‘Na rua esperam-no 0 automovel ¢ riquixé. O ritual é sem pre o mesmo. Todas as manhas 0 automével da administragao ¢ © respectivo motorista devem esperar 8 porta do palacete onde mora ‘© senhor administrador. Da mesma maneira deve esperar o riquix6 € 0 respectivo puxador. A’escolha de um ou outro meio de condugio depende do humor e do programa do senhor administrador. Nesta manha luminosa e azul de um Novembro sem chuva, ele escothe o riquixé, Agrada-lhe instalar-se sobre o tecido ima. culadamente branco que forra.os estofos e Ihe da uma envolvente sensagio de frescura. O puxador, depois de verificar que 0 senhor administrador se encontra devidamente acomodado, ergue com pericia 05 varais do riquix6. E, dando um impulso ao corpo magro, Se o veiculo a rodar, carregando com a forca dos seus membros deformados um peso superior a oitenta quilos. ~ Vai mais devagar! - ordena-lhe 0 senhor administrador. © puxador abranda a marcha, seguindo lentamente pelas ruas ¢ becos da cidade até & Cimara Municipal. E 0 senhor administrador aspira com delicia o ar impregnado de maresia. Passa pelas casas ia, construfdas com o sangue eo suor de ake iméveis no leito de plancton, Nas pogas mais fundas, com agua pel cintura ou pelo peito, Suhura e as companheiras procuram, com ‘08 olhos experientes, algum peixe maior que se tenha descuidado 93 de acompanhar a maré. E, quando o descobrem, apanham-no nas. capulanas estendidas que dobram rapidamente, com movimentos silenciosos ¢ coordenados. ‘Seguem depois para os bancos de coral onde, com a ponta dos facdes, ou mesmo a mAo, arrancam da rocha arenosa e htimida o _Provetando a mesma oe ups de raparigas, criangas, ¢ avé velhas de espinha quebrada espalham-se pela praia. £ tudo gente Paupérrima da Ponta da Ilha. Mas procuram o ‘vez em quando estalam gargalhadas, algumas pro- vocadas pelo simples prazer de desfrutar estes preciosos momentos de liberdade e gratuita beleza. Mais além, ainda mais para além dos bancos de coral, 0 oceano ue recuou, espraia-se em caprichosos tons de azul e verde, E 0 seu longinquo marulho é a miisica de fundo desta paisagem perfeita, Por isso, é tio dificil a Suhura ¢ as companheiras deixar a praia quando, jd com as alcofas cheias de marisco, tém que regressar as suas palhotas decrépitas e abafadas. Em casa, Suhura apressa-se a preparar o almogo. E quando a av6 chega do bazar encontra jé a esteira estendida na varanda. Pouco depois, a rapariga vem colocar a gamela de aluminio com a chima de caracata e a tigela com 0 tocogado de marisco. Avé e neta sentam-se entdo na esteira e comecam a comer em siléncio. Retiram da gamela pequenos bocados de chima, molham-nos no caril ¢, 4 ‘maneira macua, engolem-nos quase sem mastigar. Hoje, mal tocam os alimentos, a refeicdo termina sem trocarem uma tinica palavra. E86 quando Suhura regressa do quintal, depois de ter lavado as panelas, a velha se decide a falar, = Senta-te aqui, minha neta, temos que conversar ~ diz ela, aparentando uma calma que nao sente. Suhura obedece prontamente, pois calcula que a av6 iré enfim dizer-the 0 que a faz sofrer. ~Suhura, minha neta, ~ continua a av6 - 0 que te vou pedir hoje, nunca pensei pedir na minha vida. O meu coragio déi como uma feria, e nao sei mesmo se algum dia esta ferida ha-de sarar. ‘A rapariga escuta sem compreender muito bem o sentido exacto destas palavras. Parece-the tdo estranho que a av6 precise de lhe pedir algo que the causa sofrimento. Esta, entretanto, procura ser bem explicita, relatando 0 que se passou desde o dia em que foi chamada a casa da velha Agira ‘Momade. Espera assim que a neta compreenda o estranho pedido que serd obrigada a fazer-Ihe. Omite alguns pormenores que nao considera necessério repetir, mas ela, guarda bem na lembranca tudo ‘0 que aconteceu. Foi ha cerca de uma semana que recebeu o recado da velha Agira, pedindo-the que fosse a sua casa no dia seguinte, por volta das cinco horas da tarde. A av6, que nunca se dera intimamente com tal mu- Iher, achou estranho que ela a mandasse chamar. Mesmo assim, por se tratar de uma pessoa conhecida de hd muito, compareceu 4 hora ‘marcada. A velha Agira recebeu-a no quarto, deitada numa grande cama, tinica peca de mobiliério que Ihe ficou dos seus tempos de prostituta afamada. Alids, ficou-lhe também desse tempo o habito de passar os dias deitada e de assim receber toda a gente. Ao entrar no quarto, a avé assustou-se vivamente e esteve pres- tes a retirar-se. E que, sentado numa cadeira junto 4 cama, estava © sipaio Abdulrazaque, conhecido e temido em toda a Ponta da Ilha. Mas a velha Agira pediu-lhe que entrasse sem receio. O sipaio Abdulrazaque, afirmava ela, s6 estava ali para a ajudar, e trazia boas noticias. Esta informagao assustou ainda mais a av6, por trazer implicita alguma relagao entre aquele homem e ela, e preparou-se para ouvir o pior! A velha Agira no esteve com delongas. Entrou logo no assunto, comecando por referir a grande, a enorme sorte que a avé tinha. Pois ndo era que o senhor administrador, um homem tio importante em todo o mundo, tinha visto a sua neta Suhura ¢ tinha gostado dela? Gostara tanto que queria dormir com ela, uma simples negra sem valor. E.0 sipaio Abdulrazaque estava ali para arranjar tudo da melhor maneira. A.av6 aflita, encarou o sipaio, como a pedir-lhe confirmagio de ‘Go perturbadora noticia. Este limitou-se a brindé-la com 0 seu sor- riso de chacal. Entretanto, a velha Agira continuava a felicitar a avé pela grande sorte que tivera, visto a neta, uma negra sem qualquer valor, ser pretendida pelo senhor administrador. Lembrava ainda que © sipaio Abdulrazaque iria buscé-la para a levar ao encontro que deveria ficar marcado ja ali. E ela, Agira, que conhecia bem a vida, aconselhava a avé a entregar a neta quanto antes, para 0 senhor administrador ficar satisfeito e dar um bom saguate. A avé j4 no ouvia nada, perdida entre aquela arenga rouca e monocérdica da velha Agira e o terrivel sorriso do sipaio. Como explicar-hes - desesperava-se ela - como explicar-lhes que nfo de- sejava tal sorte para a neta. Que nao podia forci-la a ter relagdes sexuais com ninguém. Que a rapariga era a nica coisa sagrada que tinha no mundo ¢ nao podia entregé-la a um desconhecido, por medo ou por dinheiro. Nem mesmo ao senhor administrador! E como se mantivesse silenciosa, procurando argumentos que eles pudessem entender, depois de a velha Agira ter terminado 0 seu arrazoado, 0 sipaio interpelou-a impaciente: ~Entio, velha, no responde nada? A avé reuniu todas as forcas e, trémula de medo, foi dizendo que muito agradecia ao senhor administrador ter gostado da neta. Era realmente uma grande sorte para uma negra qualquer, mas a rapariga era virgem e mal acabava de ser mulher. Que se via mesmo pelo seu corpo franzino que nunca poderia satisfazer um homem tio importante como 0 senhor administrador. Por isso, ndo podia entregé-la assim... ‘A‘o sipaio Abdulrazaque zangour-se a valer e interrompeu. = Velha, nao sabe 0 que esté a dizer! ~ berrou irritado ~ eu pedi 3 nuno Agira, que jé foi mulher de muito administrador e de outra gente grande, para aconselhar, por respeitar a sua velhice. Eu podia ‘chegar a sua casa ¢ levar a sua neta para o senhor administrador € pronto. Mas eu no gosto de faltar ao respeito e, por isso, pedi a inuno Agia para falar primeiro. E voc, velha, em vez de ficar con- tente, quer discutir as ordens do senhor administrador?! Onde é que aprendeu essas maneiras? Ou € essa gente, amiga dos terroristas, ‘que anda a virar a sua cabeca? sipaio falava em macua, mas introduzia de vez em quando ‘uma frase em portugues, para marcar bem as distancias entre cle a velha que mal percebe esta lingua. E, a medida que ia falando, ‘exaltava-se com as suas préprias palavras. Acabou por se levantar, indo depois postar-se diante da avé, dominando-a com seu corpo imenso. Por fim, perguntou num tom que nao admitia discussio: = Quando é que posso ir buscar a sua neta? ~ Quinta-feira — respondeu maquinalmente a avé, sem saber 0 que dizia. Pretendia apenas ganhar tempo e pensar em casa na melhor maneira de defender a neta. E na quinta-feira, quando 0 sipaio foi buscar a rapariga a hora marcada, ela enganara-o dizendo que Suhura estava doente. Tivera que suporta-lhe os insultos e ameagas que ele, desconfiado, the atirava aos berros, antes de assentarem que o dia do encontro seria hoje. E ela, sua av6, desgragadamente, € obrigada a pedir-lhe que va. ~ Avé, no! Av6, nao! ~ suplica a rapariga, quando a velha acaba de falar. ~Suhura, minha neta! O sipaio leva-te& forga ¢ podem até pren- derte e arrancar-te de mim, Eu sei que é horrivel isto que te pego, mas diz-me se podemos fazer outra coisa?! ~ geme a av6, perdida de angistia. Suhura compreende entao que nao ha outra saida. Que ela ea avo nada podem contra o senhor administrador e o seu sipaio. E que, na verdade, ndo vale a pena resistir. Assim, quando mais tarde 0 sipaioa vem buscar, encontra-a jé pronta, Segue-o depois docilmente, através dos becos da Ponta da Ilha e pelas ruas desconhecidas da cidade de cimento. Noutra ocasiio, teria observado avidamente este mundo diferente do amontoado de palhotas onde vive. Mas hoje caminha sem ver, indiferente a tudo que nao seja o medo incontrolavel do que a espera. De vez em quando o sipaio tenta meter conversa. Subura, porém, nao Ihe responde. Aligs, nem 0 ouve. Procura apenas seguir- Ihe os pasos, movida por uma espécie de estranha fatalidade, que a leva desejar que tudo seja consumado rapidamente. ‘Chegam por fim a casa de D. lia $4, Esta recebe-os com uma frieza calma, adequada a situagio. — Vamos ~ diz ela & rapariga, seguindo & sua frente, logo que 0 sipaio se retira. E depois de uma breve passagem pela sala de entrada e por um corredor mal iluminado, diz-Ihe em macua € no mesmo tom seco, abrindo a porta de um quarto de dormir: — Entra e prepara-te. O senhor administrador deve estar a chegar! Suhura fica 86, no quarto cheio de méveis. Sente as pernas a fraquejar e 0 coragio parece pulsar-Ihe violentamente na garganta. E nio sabe 0 que hé-de fazer ao préprio corpo que Ihe da a im- pressdo de estar a mais entre tantos méveis hostis. Decide-se por fim ficar de pé, junto a parede oposta a cama, espiando a porta por onde um homem desconhecido vai entrar. IIL. O Fim do Dia © senhor administrador nao pode reprimir um gesto de contra- riedade quando, ao abrir a porta do quarto onde se encontra Subura, depara com ela de pé e completamente vestida. Também Ihe desa- grada o medo tio patente nos olhos da rapariga. Esti habituado a fencontrar negrinhas bem industriadas que o esperam na cama. E certo que algumas escondem o rosto, envergonhadas e medrosas. ‘Outras até conseguem aborrecé-lo, tal é'a resignada tristeza com que se entregam. Mas esta gaja est mesmo morta de susto! ~ pensa ele enquanto se despe. 'A atengio obstinada com que Suhura o observa torna ridiculo cada um dos seus gestos a despir-se, e € com verdadeiro alivio que, j nu, se senta na cama. Procura entdo disfarcar a irritagao que 0 domina e ensaia mesmo um sorriso, a0 mesmo tempo que, com um. breve aceno, chama a rapariga para junto dele, Como se aguardasse apenas tal convite para agir, Suhura precipita-se para a porta ¢ 0 senhor administrador quase no chega a tempo de impedir-lhe a fuga. Com uma calma que esta longe de sentir, fecha porta e vai por a chave no bolso das suas calgas. Entao, ndo podendo disfarcar a indignagao que sente, ja sem sorrir, dirige-se a rapariga. Apesar de todos os seus planos para suportar com resignagio © inevitdvel, Suhura sente agora que nio pode tolerar qualquer contacto fisico com este desconhecido que avanca para ela, com 0 ventre a tremer, e procura fugir-lhe a todo 0 custo. Trava-se entao uma luta surda e feroz que o desejo cego do senhor administrador © 0 desespero da rapariga prolongam até a exaustao. Vence o mais forte. Com 0 quimao rasgado e as capulanas es- palhadas pelo chao, Suhura é arrastada para a cama. Ela, porém, nao deixa de resistin, utilizando por fim a forca dos seus dentes jovens. Por um breve instante, o homem e a rapariga encaram-se de frente € a ironia que brilha no fundo dos olhos de Suhura lembram ao senhor administrador um outro olhar, o inquictante olhar da sua filha Manuela. Entdo a raiva que o sufoca atinge 0 auge. Ja ndo sabe se quer possuir ou matar esta negrinha que ousa resistir 4 sua vontade e que, embora subjugada pelo seu corpo Possante, estrebucha e morde como um animal encurralado, Por fim, usa de toda a sua forga, indiferente as consequéncias. Um Brito rouco ¢ breve é a resposta de Suhura. Depois o siléncio ¢ a imobilidade total. © senhor administrador s6 se apercebe do significado de tal siléncio ¢ imobilidade quando, ja de pé e meio vestido, repara que a rapariga nao se levanta da cama. Observa-a melhor e nao 6 pre- ciso tocar-Ihe para ter a certeza de que estd morta. O corpo inerte ‘conserva uma obstinada atitude de recusa e uma flor de sangue contorna-Ihe as magras coxas. Para além de um irritado espanto, o senhor admii listrador sente apenas uma estranha curiosidade em conhecer a causa desta mor- te: teria violentado a rapariga de tal modo que provocasse uma hemorragia fatal? Ou, no meio da sua estapida agitacao, teria ela prépria batido com a nuca na cabeceira da cama? Ou morrera de puro susto? Interrogando-se assim intimamente, acaba de se vestir sai do quarto, sem se voltar uma s6 vez. Surpreende D. Jalia $4 no corredor. Esta estivera 2 escuta, como € seu habito, e ndo pudera desaparecer a tempo. —O estupor da negra morreu! ~ informa o senhor administrador, & queima roupa. i D. Jiilia Sa hesita entre o desmaio e os altos gritos. Pelo que escutara, sabia que algo de insélito tinha acontecido, pois a luta surda que adivinhava através da porta, nao era certamente um jogo de amor. Mas que renha acabado em morte parece-Ihe inacreditavel. Contudo, o senhor administrador apressa-se a tranquilizé-la. ~ Esteja descansada, nada Ihe vai acontecer. Vou jé mandar 0 Abdulrazaque e ele trataré de tudo, vai ver! Voce escusa mesmo de entrar no quarto, — diz ee, dirigindo-se precipitadamente para a saida. Com efeito, 0 sipaio Abdulrazaque chega pouco depois. Como se jf estivesse habituado a lidar com mortes imprevistas, encontra-se perfeitamente & altura da situacio. Em escassos minutos, prepara a rapariga e desaparece discretamente com ela num riquixé que os cerns eee cree Geni corer jardim do Hospital, e apanham depois a rua que dé acesso ao Litine, bairro de Suhura. Este no passa de uma cova atravancada de pa- Ihotas e, por isso, nao permite a circulagao de qualquer veiculo. Tal facto, porém, nao constitui obstéculo para o sipaio Abdulrazaque que, com a ajuda do puxador, leva a rapariga nos bragos como se estivesse doente. Percorre assim as ruelas escuras, indiferente aos, olhares das raras pessoas que encontra a esta hora que, alids, ndo se atrevem a fazer-the perguntas. Mas, quando chegam a casa de Suhura, a av6, mal os ve, percebe imediatamente que a rapariga est morta e nfo se contém, ~ Mataram a minha neta! Mataram a minha Suhura! Porque fizeram isso, se ela foi, coitada! Ela no queria is, mas foi! Coitada dda minha Suhura! ~ grita ela chorando convulsivamente. Imperturbavel, osipaio entra na palhota com Suhura nos bragos segue atras da velha que, continuando a solugar e a gritar & sua frente, o guia maquinalmente para 0 quarto. Coloca entio a rapariga ‘numa das quitandas, Depois, voltando-se para a av6, e apertando-the uum brago com firmeza, diz-lhe muito pausadamente: ~ Nao grita, velha. Ninguém matou Suhura, Ninguém matou Suhura. Compreende?! ‘A.av6 compreende muito bem.

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