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JORGE POZZOBON [ “vocés, brancos, nao tém alma” historias de fronteira] Coxpi¢xo, azougue & editorial 2013 | 2" epi¢ko VOCES, BRANCOS, NAO TEM ALMA* Beré eeu procurévamos ansiosos por um trecho seco defloresta nas margens inundadas do rio Marié, quando a silhueta negra de ‘uma colina apareceu de repente contra o por do sol. Desliguel logo ‘motor do meu bote. $6 Deus sabia se encontrarfamos outro lugar alto para passar a noite, Uma grande tormenta se aproximava. Le- vantamos as pressas um abrigo de folhas de palmeira, pouco antes ddo aguaceiro desabar. Atamos nossas redes, pulamos para dentio e ‘caimos no sono, tentando esquecer a fome e os grossos pingos de chuva que vazavam 0 teto do nosso abrigo desajeitado. ‘Este era o nono dia deuma incursio nas cabeceirasinexploradas do Marié, onde eu esperava encontrar o chamado Povo da Zaraba- tana, um grupo Maku que supostamente vivia nessa drea, em coral jsolamento de qualquer contato com os brancos ou mesmo com outros indios. ‘Nos tiltimos dias, vinhamos comendo apenas formigas,cupins © Jarvas, uma vez.que durante o pico mais alto do perfodo chuvoso ‘como era ocaso naquele tenebroso julho de 1982 - o peixetendea se dispersar muito dentro da loresta inundada e os animais selvagens « putiadoorginamente sb otlo You hte peopl have o sou the amvopolagit aan haan proces by a Tkavo shaman em Zinc pie Mesum Rr ‘otkerkunde vl XI 965-33. Leip 1887 raramente aparecem para 0 cacador faminto que ousa se aventurar em terras desconhecidas, como essa que estvamos explorando. Marié corre em uma planicie chata, inundando enormes trechos de ‘margem durante a estagio das chuvas. A caca é naturalmente rara nesse tipo de paisagem. E nao ha lugares secos para plantar man- dioca. Porisso, nao existem indios ou outros moradoresao longo de seu extenso curso em direcdo ao rio Negro, exceto pelas trés aldeias ‘Tukano perto da embocadura, onde as margens sao altas,e talvez 0 Povo da Zarabatana na regido das cabeceiras. De acordo com minhas estimativas, nés deviamos estar agora chegando perto do destino, Esse barranco alto onde levantamos 0 abrigo podia muito bem ser o infcio de um trecho de terra firme, ‘onde eu esperava achar 0 que estava procurando, Nabarra do dia seguinte, enquanto eu pensava em silencio sobre cessas coisas, debaixo daquele abrigo cheio de goteiras, Beré se levan- tou da rede como se ouvisse algo. E logo comecou a imitar gritos de ‘macaco barrigudo através de uma cometa improvisada com fathas de parasitas. De repente, os macacos despontaram no dossel da flo- resta, a uns 30 metros acima das nossas eabegas. Peguei meu rifle e atireiem um deles, Mas como eu estava demasiado ansioso por um pedago de carne quente nas entranhas, atirei de um angulo precério ‘eatingi apenas uma das pernas do animal, Ele fugiu junto com os outros, pulando de galho em galho, com a perna quebrada sangrando e balancando solta ~ uma visdo bem lamentavel aquela, do café da ‘manhaisumindo para morrer em vao, "Isso éruim’, disse o meu parceiro, “Boraré nao gosta quanto isso acontece’. Borard 60 nome Tukano para uma entidade sobrenatural que se acredita proteger e multiplicar os animais de caca, Ele é des- «rito como um humanoide alto e peludo, com garras afiadas presas ‘enommes. Estd sempre de mau-humor e costuma atacar as pessoas com dardos invisfveis, causadotes de doencas graves, Para evitar esses ‘taques, 0 cagador tem de oferecer algo em troca dos animais que voces BANCos, MAO TEM ALMA abate. Os indios Maku dizem que basta jogar os pelos utt us pernas de suas vitimas na floresta enquanto murmuram formulas mégicas evocativas, para que Boraré possa fazer um novo animal com 0s res- {os mortais do outro, Mas segundo os Tukano, ¢ preciso ofertar-lhe almas humanas. Logo apés um desjejum frugal —larvas com alguns punhados de farinha de mandioca - comegamosa inspecionar aquele trecho de terra firme na margem esquerda do Marié, procurando trilhas, velhos abrigos ou qualquer tago de presenga humana. Em poucos nutos de caminhada, achamos uma velha trilha que ia para 0 norte, afastando-se do rio, Nao havia sinal de golpes de facao a0 Jongo dela. Fora aberta inteiramente a mao. Isso era um sinal cla- ro da presenca de indios isolados, jé que os grupos indigenas em contato regular com os brancos usam facoes para abrir e manter suas trilhas. Quando se cortam drvores novas da floresta tropical a golpes de facao, elas secain v morrem, Mas se forem apenas quebradas com ‘4 mao em ver. de decepadas por completo, elas formam um né no lugar quebrado e continuam crescendo. Os indios sabem dizer a dade de um caminho aberto & mao pela altura das arvorezinhas do chao atéon6.A trilhaem que estvamos devia ter aproximadamente ‘um ano de idade. Caminhamos sem parar ao longo dessa trilha até o comeco da tarde. Entdo, ela descambou em um declive acentuado, desapare- cendo abruptamente em um enorme pantano, Era o fim da terra firme. Estavamos outra vez no nivel do rio, Convenci meu parceiro caminhar mais algumas horas no pantano, tomando a diregao sgeral indicada pela trilha, Mas nenhum de nés podia suportar tal esforgo, famintos e cansados como estivamos. Voltamos sobre os ‘nossos passos e construimos um novo abrigo na orla do pantano. Ao por do sol, enquanto uma tempestade se aproximava, fiquei deitado na rede, pensando sobre o meu trabalho. Eu ja havia feito seis meses de pesquisa de campo entre os indios Maku do rio Tiquie, sobre os quais eu escrevia a dissertagao de mestrado. Comparando ‘aos Tukano, esses Maku estavam razoavelmente isolados do mundo dos brancos, mas aos vintee seis anos de idade isso me parecia insu- ficiente, Queria ser o primeiro branco afazercontato comos Maku da Zarabatana, os tltimos indios em total isolamento na regio do Rio Negro. Sendo assim, comprei um bote motorizado e entreino Marié. ‘Mas logo peicebi que seria uina (olice viajar suzinho naquele vasto trecho de floresta. Entao, parei na tltima aldeia Takano e perguntei ‘a0 habitantes se algum deles se dispunha a me acompanhar até cabeceiras mediante um pagamento razodvel ‘Umhomem branco saiu de uma palhoca eafirmouquenenhum dos habitantes podia me acompanhar, uma vez que todos Ihe de- viam trabalho, Na verdade, trata-se de uma forma disfarcada de escraviddo. Comerciantes brancos como aquele costumam oferecer ccachaca, remedios e outras mercadorias aos indios em troca de lé- tex, cip6s, peles de on¢a, peixes raros e outros produtos da floresta. ‘Uma vez que 05 fndios nao entendem o valor monetatio das coisas, ‘68 comerciantes os enganam o tempo todo, dizendo que eles no produzem o suficiente para saldar as dividas. B se eles reagem, os ‘comerciantes cortam o suprimento de cachaca eremédios. Os indios ‘quase sempre se rendem. Diante da negativa, eu insist, dizendo nao poder viajar sozinho as nascentes do Marié. O comerciante retrucou impassivel: Voce me paga.a divida de um desses caboclos eele fica sendo seu. Mas qual?, eu perguntei perplexo. = Acescolha ¢ sua, companheiro, disse 0 comerciante com um sorriso malévolo, Tive a impressao de que ele debochava do meu ‘embarago moral por ter de comprar um ser humano. Fazia muito calor. Pulei n'gua, em frente ao porto da ald mas esqueci de tirar os 6culos. Eles foram ao fundo. Quando emergi, “ Voces, eRancos, Ao TEM ALMA praguejando t¢-los perdido, os indios que estavam por perto mer- gulharam. Escolhi o fndio que achou meus éculos. Cem délares, disse o comerciante. Eu paguei. E agora, ld estava ele comigo, nos confins de um trecho de floresta que nunca visitaria se eu nao lhe tivesse pago a divida. O curioso équese obstinavaem uma atitude servl, apesar de eu ter vrias vezes que nao me devia nada e que seria pago pelos servigos «que me prestava, Enquanto a chuva caia sobre o nosso abrigona orla do pantano, eu me perguntava por que ele ainda mantinha aquela atitude,Talvezeu devesse Ihe dara chance de me pagar com algo para «ele mais valioso do que o simples trabalho bracal. O que poderia ser? Euestavaadormecendo quando o primeiro estrondo reverberou. znas sombras da noite, vindo de dentro do pantano. Ao segundo estrondo, bem mais alto que o primeiro, Beré reavivava o fogo com ‘omedo estampado na cara, e murmurava formulas répidas e repe- titivas em lingua Tukano. Ao tercetro estrondo — este entao estavat ‘quase em cima de nés ~ ele acendeu um charuto feito de folhas largas de parasitas e comegou a soprar a fumaca em torno do nosso acampamento, repetindo as férmulas de um modo quase histérico. Ento, 0s estrondos comegaram a ficar cada vez mais fracos, como se retornassem ao piintano, Beré abaixou a voz e continuou com sua monétona litania até o amanhecer. Eu dormitava de tempos em tempos ¢, ao acordar, Id estava ele em sia oragao sem tréguas. Na manha seguinte, ele se mostrou especialmente laconico, enquanto arrumavamos a tralha para voltar & beira do rio. ~ Que foi aquilo ontem a noite, eu perguntei. ~ Boraré, — O que te da tanta certeza? Fle sempre aparece assim, estourando dentro da escuridao, ~ Como € que ele fazaquele barulho? ~Batendo nas arvores com um porrete pesado que ele tem, —Por que é que ele veio até aqui? JORGE P0zz080N ~ Isso aqui deve ser uma casa de caca. Voce sabe, as bolas de terra alta como essa sao as casas onde o Boraré forma a caca nova. Ble té zangado com a gente? =Claro! Porque eu feri uma cria dele pra nada. ~E porque ninguém deu nada em troca, pra que ele pudesse fazer outra, 0 que era aquilo que vocé ficou murmurando a noite toda? ~Uma reza pra mandar ele embora. Voce poderia traduzir para o portugues? Nao sou capaz de reproduzir todos os detalhes dessa reza sur- reendente. Apenas me lembro de seus tragos gerais. Fla consiste de ‘um reftao invaridvel: “Vai embora, porque nés somos gente. Gente ‘mora em aldeia’ Depois desse refrdo, vem uma férmula preparat6- ria, “Na aldeia tem..” seguida de uma longa enumeragao de objetos. Por exemplo, “Na aldeia, tem a maloca. A maloca ¢ feta de esteios, Paredes e teto. Hé trés tipos de esteios: os esteios dos homens, os esteios das familias eos esteios das mulheres’ Entao, areza continua descrevendo o teto e as paredes da maloca. Quando a descrigao da ‘maloca termina, a eza volta férmula repetitiva:“Por isso vai embora, Porque nés somos gente, Gente mora em aldeia, Na aldeia tem..”. Entao vem sucessivamente o conjunto de objetosrituais,o conjunto dos equipamentos de pesca, de caca, dle processamento damandioca, ‘es objetos de cozinhae assim por diante, sempre repetindo a férmula principal: Por isso vai embora, porque nés somos gente’, “Caramba’’, eu disse para mim mesmo, “Lévi-Strauss acertou ‘na moscal Isso é um exemplo e tanto da oposicao natureza-cultura. Borar6 representa a fria da natureza, e como a gente esté em seus dominios, longe de qualquer aldeia indigena, Beré rezou para simu- Jar uma aldeia, com todos 0s elementos da cultura’. © papel destacado da maloca nessa reza nao é gratuito. As aldeias tradicionais dos Takano consistem de uma tnica maloca, « voces, erancas, nko TEM ALMA ‘normalmente com uns 20 m de comprimento. Cada maloca abriga uum cla diferente, Os clas se transmitem em linha paterna. Todos os homens e criangas de uma dada maloca se relacionam por meio de agos masculinos de parentesco. As mulheres casadas vém de outras ‘malocas (outros clas) ¢ as solteiras, quando casam, vao embora, ‘morar com os maridos. ‘As malocas tradicionais tém sempre a mesma estrutura basica. aco’ barranca da rio, até a porta das homens Naladanpasta, face as plantacdes de mandioca e a floresta, esta a porta das mulheres. Ente esses dois extremos, ficam os compartimentos familiares. Os esteios que sustentam 0 teto sao classificados segundo essa tepar- tigao do espaco interno. ritual Tukano mais importante é conhecido pelo nome de Jurupari, Nele, os homens adultos entram pela porta masculina, tocando flautas sagradas, que as mulheres nao podem ver. Para os {ndios, esse ritual encena o comego do mundo, quando os varios, las Tukano vieram até os trechos de rio que atualmente ocupam. ‘A maloca ¢ tao importante para esses indios, que seus mortos sao nelas enterrados. Os homens, debaixo da pista de danca do ritual Jurupari; as mulheres, no piso dos compartimentos familiares. Obviamente, areza de Beréestava reproduzindo dealguma forma a maloca tradicional, embora ele nao vivesse mais em uma delas desde a tenra infancia, “Para lutar contra a criatura mais perigosa a floresta," eu pensei, “ele tem que evocar o mais forte elemento de sua cultura, a maloca tradicional. Fazendo isso, ele manda a natureza de volta a selvageria que Ihe é propria, tamanho é 0 poder ‘magico das palavras’. Poucos metros depois de tomarmos a trilha de volta ao rio, encontramos um lugar onde as folhas mortas do chao haviam sido ‘amassadas por algo grande e pesado. Uma onga passou.a noite toda bem aqui. Ela ficou nos vigiando, ~Talvez.a espera de restos de comida, eu respondi, nce P0zz080" ~Duvido... Isso nao ¢ uma onga que existe, Mas entdo 0 que € ~Goisa ruim. Mas que tipo de coisa ruim, ora? —Borar. ~ Eu pensei que a tua reza tinha mandado ele embora. Eu também. Masele se transformou em umaongaevoltoubem ‘quieto, Eu nao me dei conta. Ai, eu baixei a forga da minha reza e quase peguei no sono. Bem esperto esse Koraro. Nem todos os Borarés sto tio espertos? Ah nao! Alguns so muito lesos... Mas nao esse al. = Entao, é melhor a gente empacotar a tralha e dar o fora. Agora voce falou direito. Eutinha sentimentos diibios. Asvezes, me dava aimpressao de que ele temia muito 0 encontro com o Povo da Zarabatana. Esabendo que eu nao partilhava seu medo, talvez.quisesse me apavorar com essas historias nativas de terror, para que eu desistisse da procura. Por outro, lado, havia aqueles estranhos estourosda noite anterior, Eurealmente indo sabia 0 que pensar a respeito ~ e, por sinal, ainda nao sel Continuamos conversando ao longo do caminho de volta & beira do rio: = 0s dardos mégicos sto a tinica arma do Boraré?, eu perguntei. = Nao, As vezes, ele tonteia as pessoas pra sugar 0 sangue © 0s ‘iolos delas. 0 que ele mais gosta so as mocinhas. -E£ mesmo? =Dizqueno ano passado Boraréandava namorando as mocinhas dasaldeias que ficam perto de Miraflores, na Colombia. Elese transfor- ‘mavaem um rapaz bonito e fodia elas, Quando a mocinha comecava ‘agozar, Boraré voltava a forma natural e devorava ela inteirinba. Ele matou muita mocinha desse jeito? Sim. As mulheres nao iam mais & roga, As pessoas estavam ‘morrendo de fome. voces, sRaNcos, AO TEM ALMA Eda? ~Eddafque eles chamaram a polcia. Policia colombiana. A mies: sma que anda lutando com os guerilheiros. elo um grupo armado de metralhadoras. Eles encontraram o tal rapaz perto de uma roga te esvaziaram os cartuchos nele. A 0s polcias se aproximaram do corpo, achando que ele tava morto. Mas de repente, Borard virow ‘nga enorme e summit urrando mato adentro. ‘Finalmente chegamos a margem esquerda do Marié. Verificamos se o bote estava em ordem e comecamos a inspecionar a margem ‘oposta, em busca de tracos da velha trill. De fato, ela continuava ‘namargem oposta. “Sela cortao curso do rio perpendicularmente ¢ acaba em im pAntano ao norte’, eu pensei, “entéo seu ponto de corigem deve estar ao sul do ri. 0 Povo da Zarabatana deve estar em alguma parte naquela direglo. Provaveimente eles vem até aqui na estagio seca para pescar no rio principal ecapturarris no pantano- Isso explica o aspecto abandonado da trilha, Eles a usam somente no perfodo seco" ‘Caminhamos para o sul ao longo da trilha velha, esperando estar desta vez.em um terreno alto e seco, grande o suficiente para sustentar um grupo de indios cagadores. Mas no comeco da tarde, ‘estvamos novamente face a um pantano sem fim. Isso me deixou ‘muito confuso. ~ Mas quem foram os merdas que fizeram essa trilha, cacete?, eu praguejei. » 0 Povo da Zarabatana, respondeu Beré, com toda a calma do mundo. — Pra qué, se ela vai de um pantano ao outro? — Fu ndo sei. Quem sabe eles fizeram essa trilha pra enfeitar a ‘casa do Boraré? Voc® sabe, os Maku sto amigos dele. ~ Mas os Maku tém medo dele, como todos os outros tndios, — Isso 6 verdade 86 pra os Maku da nossa vizinhanga. A gente ensinow eles a se comportarem como gente. Foi conosco que eles a once Pozz000% aprenderam a plantar, a fazer casa, panela de barro, tudo que écoisa de gente. Eles ndo aprenderam bem porque so muito teimosos. Mas pelo menos aprenderam a ficar longe dos mausespiritos da floresta. ‘S6 que 0 Povo da Zarabatana vive muito longe das nossas aldeias, 1né? A gente nunca pode ensinar nada pra eles... = Quer dizer que eles sdo meio parecidos com o Boraré, eu sugeri Isso mesmo. Pode ser que agora eles todos jé tenham virado Boraré. Como € que a gente vita Borard? = Gomendo s6 carne... comendo as irmas da gente... Os Tukano acreditam que 05 Maku no se comportam como gente porque preferem se casar entre habitantes das mesmas al- deias, em vez de procurarem mulheres nas aldeias vizinhas. Para os ‘Tukano, casar-se dentro da mesma aldeia 6 0 mesmo que se casar com a propria irma. Sabendo disso, eu contestei: ~ Mas vs Maku da sua vizinhianga comem as proprias irmas. Por ‘que eles ainda nao viraram Boraré? ~ Porque nés ensinamos eles a plantar e fazer farinha de man- dioca. Bles ficaram quase parecidos com a gente. Passamos a noite perto do novo pantano, Era muito tarde para retornar ao Marié antes da chuvarada. Na manha seguinte, acordei ‘me sentindo muito mal —Acho que eu t6 com febre, disse eu. Ele se aproximou e me pos amao na testa. = Sim, voce té com febre. Eu tive um sonho estranho. =Meconta, disse ele. ~Sonhei que eu encontrava a minha irma junto com duas outras garotas. Flas estavam comendo bombom. Muitos bombons. Quando ‘eu apareci, elas riram e me provocaram, oferecendo os bombons molhados entre os labios. Eu tinha que beijar cada uma na boca para poder comer os bombons. voces, sRANCOS, NAO TEM ALMA =Sonho ruim, fez ele, Por que? ~ Parece que voc@ foi envenenado, Por quem, eu pergunte, jé sabendo a resposta ~ Boraré. =Vocé acha que ele me atirou um dardo na outra noite? Sim, LLevamos mais de meio-dia para voltar ao nosso primero acam- pamento perto do rio. Euestava cansado e doente. Eno resto do dia, ‘enquanto Beré pescava um pouco, meu estado foi piorando. Ao por do sol, comecei a vomitar e tremer como um miserével moribundo. No dia seguinte, as coisas nao methoraram. Eu ndo podialevantar ecaminhar, e nada do pouco que eu comia me ficava no estomago. Continuava vomitando e tremendo como um cachorrolouco. Minha febre estava acima de 40° e subindo. 0 meu irmao, eu disse de dentto da rede. Eu acho que ou t6 no fim. Eu acho que voce t4, ele respondeu em tom casual. Aqui nessa regio morre muita gente vomitando e tremendo que nem voce. Eu nao estava bem de acordo com a ideia de morrer daquele jeito. Peguei meu rifle debaixo da rede. Mas ele logo adivinhou 0 que eu tinha em mente: —Nao faz isso, por favor! Me dé uma boa razao. ~ As pessoas vao pensar que fui eu quem te matou, ‘Afastei de mim o cano da arma e disparei umas dez vezes sobre ‘as érvores proximas, maldizendo 0 dia do meu nascimento. Bom, disse ele. Pouco depois, improvisou uma cama dentro do bote, arrastou- -me para dentro e embarcoua tralha. Erao fim da minha tolaaventu- +a, Agora estavamos definitivamente descendo o rio, Decepcionado e doente, minha reacao foi me deixar morter em silencio, sone ozz080H No fim do dia, a hélice do motor se quebrou contra uma érvore submersa. Nao havia maneira de evité-lo, jé que cu estava deitado € Beré permanecia na popa, controlando o leme. Era preciso que alguém ficasse na proa, vigiando arvores submersas e outtos obs- téculos dentro do rio. Bu estava muito fraco para fazer mais do que levantar a cabeca € vomitar fora da borda. Encarreguei Beré de substituir a hélice ‘quebrada, Mas o motor daquele bote era complicado demais para o pouco conhecimento que ele tinha demecanica. Além do mais, acho ue fui muito confuso ex minhas explicacoes de como consertar os danos. Eu nao podia juntar nem mesmo duas ideias para formar um raciocfnio, Alternava picos de delirio e estados de completo stupor. Entao, Beré decidiu remar durante o dia e deixar 0 bote boiar rio abaixo durante a noite, para ganhar tempo. Construiu lum teto de palmas sobre mim, para me proteger das tempestades edo sol equatorial. Nao sei dizer quantos dias ficamos & deriva. Eu continuava delirando e caindo naqueles medonhos estados de torpor. Lembro de uma certa rotina. O som dos remos se misturava a voz. suave de Beré, murmurando rezas sem fim em lingua Tukano. Cada vez que eu levantava a cabeca e vomitava fora da borda, ele se aproximava ‘eme oferecia uma infusao onde soprara fumaca de cigarro e benze-

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