Você está na página 1de 12

SARTRE

(Franklin Leopoldo e Silva)

Sartre inverteu os ditames da filosofia clássica quando afirmou que “a


existência precede à essência”. E disso resultam vários desdobramentos que
são importantes para configurar o perfil da filosofia dele. Porque essa
precedência (causalidade) faz com que a existência seja determinada por
aquilo que é essencial. A essência é o tributo principal da coisa, sem o qual ela
não é mais ela, e os acidentes, aquilo que está junto da essência e não
constituem atributos principais (ex: Sócrates é músico; Sócrates é ateniense;
Sócrates é poeta) e podem acontecer ou não. Mas Sócrates é racional,
indubitavelmente, caso contrário não poderia ser considerado um ser humano.
Essa determinação bem especificada da existência pela essência será
modificada por isso, pois não temos mais a anterioridade da essência, ela não
será mais um fator determinante em relação a aquilo que a sucede.
A existência, por sua vez, continua sendo ambígua, contingente e
ambiental como sempre foi, mas Sartre a coloca em primeiro lugar, enquanto a
essência será postergada, para um tempo indeterminado, de tal forma que eu
não parto mais da essência, mas, se for o caso, eu devo encontrá-la. Isso traz
uma série de considerações, que Sartre é obrigado a fazer.
A primeira delas é a INDETERMINAÇÃO. Como não existe mais uma
essência que determine especificamente a existência, aquela será
INDETERMINADA. Isso constitui também uma grande modificação na tradição:
tudo aquilo que existe, precisa der determinado para que possa ser conhecido.
Desde Aristóteles existe essa fórmula básica na filosofia: conhecer é
determinar. Se não determino alguma coisa em detrimento de causas,
essência, acidente e tudo aquilo que a compõe, significa que não conheço essa
coisa, ou seja, permanece na indeterminação. E é o que ocorre com a
premissa de Sartre, mas nem por isso é determinante, continua com as
características que sempre teve e, portanto, o que caracteriza a existência no
caso do ser humano é a indeterminação.
É uma grande mudança em relação à tradição, porque perturba aquilo
que chamamos de condutas e escolhas morais do ser humano. Se ele é
indeterminado, não havendo nada que o cause especificamente, ele não terá
responsabilidade quanto a aquilo que ele vai determinar como sendo a si
mesmo, e à sua conduta. Sartre considera essa indeterminação de
LIBERDADE.
Na maioria das vezes, a liberdade é entendida como livre arbítrio, ou
seja, temos duas ou mais opções que se colocam para nós, e escolhemos uma
delas (como numa estrada com bifurcação). Fazemos uma escolha livremente,
mas dentro daquele conjunto que se apresenta como a origem das suas
escolhas. Portanto, livre arbítrio difere de liberdade, pois significa escolher
dentro de um conjunto dado de possibilidades.
Sartre procura mostrar que, sendo a liberdade uma indeterminação
total, ela não pode ter esse conjunto, a priori, de possibilidades, que já seria de
alguma forma determinado. Se tenho três possibilidade, tenho uma certa
determinação, porque não podemos escolher de forma diferente delas.
No caso da sua filosofia, a sua indeterminação qualificadora da
liberdade faz com que não tenhamos nenhuma prerrogativa, nada de prévio à
minha escolha está posto, portanto, não temos as escolhas do caminho a
seguir, como no caso do livre arbítrio, assim como não temos escolha sobre
qual critério iremos utilizar para escolher um daqueles caminhos.
Então, a liberdade é uma indeterminação total porque significa que
escolhemos tanto a ação que vou seguir, quanto o critério que corresponde à
ação. Portanto, a liberdade é como uma criação, e Sartre a compara com a
criação de uma obra de arte, a qual chamamos de gratuita, ainda que não
sejam. Se perguntarmos ao artista quais os motivos para ter criado uma obra
talvez ele não saiba explica-los, mas certamente ele sabe o porquê.
A liberdade também tem essa conotação, porque inventamos os
critérios e a ação a seguir, sabendo mais ou menos o que iremos fazer e
porquê, mas explica-las é difícil, porque somos guiados por critérios analíticos
que configuram o nosso pensamento, e sempre envolvem uma causa e efeito.
Então, não podemos determinar qual é a causa de ter escolhido tal ação e me
fixado em algum critério para a escolha dessa ação.
Se o início do processo fosse a essência, haveria algo determinante
nessas escolhas, porque a essência já contém tudo que seria explicitado na
existência. A existência não poderia conter nada de novo, ou seja, não poderia
ser criativa, porque tudo aquilo que ela teria ao longo do tempo já está
condensado na essência.
Para Sartre, então, livre arbítrio é uma liberdade parcial, assim sendo,
concluiu que temos a liberdade total, significando a criação ou invenção, tanto
da ação quanto do critério.
Nesse caso, aquilo que o ser humano É já não é tão significativo
quanto foi no passado, porque o que diz aquilo que alguma coisa ou pessoa “É”
é a sua essência, assim, não havendo essência, mas sim determinação total,
podemos dizer que o ser humano é originalmente NADA.
É uma noção muito importante na filosofia de Sartre, a qual afirma que
o ser humano é um NADA de onde tudo deriva. Significa que tudo aquilo que
eu puder vir a ser, será uma espécie de construção de mim mesmo, e se faz
através de escolhas, denominados PROJETOS. O ser humano, antes de ser
uma projeção no futuro, ele é NADA, apenas uma projeção.
A nossa consciência não é como uma coisa, como se pensava
antigamente (uma coisa que continha uma porção de outras coisas dentro
dela), ela é NADA, apenas uma intencionalidade, ou seja, uma intenção de se
fazer alguma coisa, de agir. E essa intenção se dá na forma de projetos, pois
sempre temos algo a produzir, e se constrói fora de si/consciência, tendo em
vista que dentro dela não há nenhum tipo de conteúdo.
Ele adota a concepção que faz com que a consciência seja, antes de
mais nada, apenas uma intencionalidade, um movimento que designa a
intenção que temos de fazer alguma coisa, um projeto. O que nos liga aos
objetos com os quais temos contato não é o fato de que os tomamos e o
interiorizamos na consciência, mas a intencionalidade de apreende-lo. E essa
intenção é justamente aquilo que formula a ligação entre a nossa consciência e
as coisas.
Não significa que há um movimento real de apropriação das coisas
pela consciência, mas a intenção de apreende-las, ama-las, odiá-las, etc.
Qualquer tipo de relação entre a consciência e as coisas deriva dessa
intencionalidade que a caracteriza, logo, em si mesma, ela não é nada, não é
algo que possamos definir ou caracterizar, a não ser pelo movimento de
intenção, que é a saída da consciência em direção a alguma coisa.
Dessa forma, pela primeira vez, a exterioridade (aquilo que é exterior
ao sujeito/consciência) adquire uma importância fundamental. Como já
colocava Descartes: as coisas são, antes de mais nada, ideias na consciência.
E tais ideias sairão da consciência para tornarem-se coisas novamente.
Portanto, a princípio, não há coisas, apenas ideias. Por isso é chamado de
idealista: aplica a filosofia do predomínio da ideia.
Descartes afirma que a exterioridade é a alguma coisa projetada pelo
próprio sujeito e, portanto, não tem existência em si mesma. Para Sartre a
exterioridade é muito importante, pois representa o término desse trajeto de
intencionalidade que a consciência projeta, e chega até um objeto que
sobrevive na exterioridade dessa consciência (porque não poderia ser dentro
dela), sendo assim real.
Existe uma realidade da consciência tênue (intencionalidade em si
mesma) e outra realidade mais densa, na qual as coisas são em si mesmas, e
são intencionadas pelas consciências que as apreendem dessa maneira.
Desse ponto de vista, a consciência, através dessa intencionalidade,
quando vai na direção de algum objeto ou coisa (que deseja apreender), sai de
si mesma. Assim, pela primeira vez na história da filosofia, a exterioridade se
apresenta como algo real e denso sobre o qual não paira dúvida alguma.
Lembrando que Descartes não duvidava de si e da sua interioridade, mas da
existência de coisas exteriores. Essa visão mudou a partir de Sartre, porque a
consciência passou a ter o ser enfraquecida, enquanto as coisas exteriores
tiveram o ser fortalecido, tidas como indubitavelmente reais. E, dessa maneira,
a consciência vai em busca dessas coisas através de uma realidade sui
generis, que é a sua intencionalidade.
Por isso a transição do sujeito para o exterior é muito importante para
Sartre, porque a consciência é o que ela faz, transitando de si mesma para as
coisas que ela deve apreender através dessa intencionalidade.
Então, se quisermos dar uma definição de ser humano, ela muda
completamente, pois não é mais aquele que, segundo Descartes, é interior a si
próprio. Ser humano, no viés de Sartre, é exterior a si próprio, se busca e se
procura no meio das coisas, na exterioridade, sendo essencial que passe a
viver exteriormente a si, daí advindo a ideia de projeto, que deriva de projetar,
buscar alguma coisa que esteja além de mim, se tornando a minha
característica principal.
Surge, dessa ideia, o conceito de PARA-SI, o sujeito. Tem duas
significações: a) se refere a uma busca, um trânsito; o sujeito está para-si, ou
seja, indo na direção de si (nunca se atinge propriamente, porque não há o que
atingir, já que a consciência não é uma coisa), através dos projetos que ele
formula com o objetivo de atingir a si mesmo com alguma densidade. Como
resultado disso, temos que entender aquilo que nós chamamos de
IDENTIDADE (que é uma certa densidade da consciência que nos caracteriza)
é algo construído por nós mesmos, mas ela não existe, porque a consciência
não é nada que possa ser idêntica a si mesmo em dois momentos do tempo,
estando sempre procurando um objeto ou alguma coisa, e se ela é o sujeito,
está sempre em busca de si.
Um legado importante dessa filosófica de Sartre é a desmistificação da
identidade, que para nós é tão valiosa e significa a essência de nós mesmos.
Mas, como não há essência, não há identidade. E, a cada dia, nos servimos de
um projeto para encontrarmos, fora de nós mesmos, aquilo que realmente
somos.
O sujeito está sempre, de alguma forma, não junto a si, imanente a si,
como dizia a tradicional filosofia de Descartes, mas sempre longe si,
projetando-se em alguma coisa.
Sartre extraiu seu pensamento a partir do seu predecessor, Heidegger,
o qual já havia colocado essa característica de que o ser humano é um ser das
lonjuras (sempre longe de si), procurando-se onde ele não está, e essa busca
de nós mesmos onde não estamos terá consequências dentro dessa filosofia.
O projeto é uma espécie de síntese entre uma criação ética (um valor
que eu procuro atingir, mas que eu mesmo inventei) e alguma coisa que me
causa muita angústia.
Quando fazemos escolhas morais, temos sempre um respaldo, uma
série de opções ou de critérios já determinados entre os quais iremos escolher
(religião, família, época que vivo, partido político, dentre várias outras
convicções), que formulam uma série de critérios a priori, que se traduzem para
nós como sendo opções que temos que seguir, e temos que escolher dentro
desse arcabouço (ou seja, uma tabela de critérios pronta para que escolhamos
conforme nos convém).
Sartre, então, coerente com sua concepção, não admite que esses
critérios estejam previamente postos para que o indivíduo escolha. O valor
moral, a ação moral, o critério moral, são sempre criações individuais que
brotam da consciência, portanto, do nada. Essa angústia que se faz presente a
cada escolha que fazemos provém do desamparo, que nos afeta muito nas
nossas opções morais. Quando fazemos uma opção moral, gostamos de ter a
certeza de que aquilo já foi anteriormente experimentado, que tem valor em si,
e que escolheremos algo que já possui um valor em si, por estrar prescrito na
nossa religião, na sociedade, no partido político, e assim por diante.
Assim, quando temos que escolher sem respaldo do exterior, o qual
daria valor à nossa escolha, nos sentimos angustiados em detrimento da
sensação de estarmos pairando sobre o nada. Não temos um amparo que
ratifique a escolha de fizemos. É uma angústia de vertigem, semelhante a
quem está se equilibrando sob um fio, pairando numa altura exorbitante. Olhar
para baixo é ter certeza de sentir vertigem, porque tem-se a certeza de que não
há nada que o segure em torno.
Esta é a escolha moral, e por isso provoca essa espécie de angústia,
que o Sartre assinala como uma espécie de vertigem que temos quando
olhamos para nossa vida e verificamos que precisamos reinventa-la a cada
momento, poque não traz nada em si mesma que possa preservá-la.
O para-si representa eu mesmo, essencialmente, o sujeito na sua
identidade. Então, vivenciamos o ser-em-si, que é viver o sujeito em sua
identidade própria, coisa, objeto.
Ao formular a expressão para-si, Sartre afirma que não existe esse SI,
dotado de identidade própria, mas sim um caminho para ele, e é nisso que
consiste a existência: caminhar para si, em direção à essência, sem qualquer
certeza sobre a nossa chegada.
A outra concepção do para-si é a que vemos aplicada nas expressões
que usamos quando dizemos “paramédico” (aquele que faz as vezes do
médico num desastre, mas não é um médico). Esse para-si simula uma
essência, simula um sujeito, mas não é, não tendo a possibilidade de agir como
um sujeito dotado de essência, de determinação. São essas duas metáforas
embutidas na expressão para-si, tornando-a bastante móvel através do trânsito
contínuo que fazemos em relação a nós mesmos, e essa espécie de imitação
(no lugar de alguém – do si).
Na obra “O Ser e o Nada” (1943), Sartre escreveu que o final de toda
existência é sempre frustrante, porque o sujeito termina de existir sem ter
atingido a si mesmo, aquilo que deveria constituir a meta da caminhada. Isso
sofre toda sorte de mistificações, por exemplo, quando produzimos a biografia
de alguém que já faleceu, totalizamos a sua vida, damos a aparência de
totalidade como se tivesse chegado no lugar que pretendeu. O fazemos porque
ele morreu, porque se vivo estivesse ele poderia nos desmentir no momento
seguinte, fazendo outras coisas, realizando outros projetos de vida, e assim por
diante.
Acerca disso, Sartre formulou que “a morte transforma a vida em
destino”, caracterizando esse modo de lidar com a vida e com aquilo que
chamamos de destino. A morte transforma a vida em destino, porque o
indivíduo chegou a algum lugar, e aquele era o último onde poderia chegar
porque morreu. Assim, dizemos que aquele era seu destino.
No entanto, aquilo não estava destinado, mas a sua existência foi
interrompida ali, quando ele poderia muito bem ter continuado a sua existência
formulando novos projetos e morreria igualmente frustrado, ou seja, sem ter
atingido a realização completa desses projetos que ele formulou para si
mesmo. Isso significa que há um desdobramento da liberdade total, o fato de
não poder atingir um objetivo, e nele me fixar, como se tivesse encontrado o
meu si mesmo e a minha essência, fazem com que a liberdade seja algo mais
do que um atributo, porque, na tradição, dizemos que o homem tem dois
atributos, um é o entendimento (conhecimento intelectual), e o outro é vontade
(liberdade), e Sartre acha que isso é uma coisificação das faculdades.
A liberdade não é algo que nos pertence como um atributo – eu existo
e tenho a minha liberdade. Da maneira como ela é posta, de maneira total e
indeterminada, o correto é afirma que “eu sou a minha liberdade”. Nós não
TEMOS a liberdade, nós SOMOS a nossa liberdade, porque tudo que fazemos
é perseguir através dessa liberdade um destino, um objetivo, uma meta, uma
realização de um projeto qualquer que nunca iremos completar, e portanto
somos essa espécie de itinerância permanente em busca de alguma coisa que
nunca se realiza plenamente.
O caráter transitório que é consequência dessa indeterminação do ser
humano, faz com que o tempo forte da existência seja sempre o futuro.
Estamos sempre transitando em relação ao futuro, cuja meta imaginamos que
podemos de alguma forma administrar, mas na verdade não podemos.
Podemos, entretanto, projetar uma meta, e assim que atingimos é o que
acontece com o desejo, por exemplo, porque quando o realizamos, outro vem.
Assim, terminamos a nossa existência ser realizar todos os desejos.
Essa liberdade total que se dá nessa temporalidade, oferece duas
dificuldades antecipadas por Sartre:
a) SITUAÇÃO – é configuração da nossa vida em cada momento do tempo, e
na dependência desses momentos. É aquilo que traz para defrontar com a
nossa liberdade, tudo aquilo que nós não escolhemos.
Há uma série de coisas que se defrontam com a nossa liberdade, que devemos
enfrentar, as quais ele chama de SITUAÇÕES, e que não escolhemos. Se
refere ao punhado de coisas que já existiam no mundo quando passamos a
existir.
Como disse Ponty “o mundo é mais velho do que eu”.
São determinações mundanas que fazem parte do mundo quando passamos a
existir, e não temos escolha a não ser aceita-las e conviver com elas. Se
resumem em duas:
 FATOS – podem ser físicos ou sociais. Não temos domínio sobre a
configuração na qual iremos nascer. Tudo isso representam fatos que
temos que administrar, e têm que se compor com a sua liberdade e
mantê-la na sua totalidade.

 OS OUTROS - as outras pessoas, as quais já encontramos no mundo


(principalmente a família). Sartre apoia bastante Freud na concepção do
caráter fundamental da infância, exatamente por causa da
vulnerabilidade da família. A criança é alguém que atravessa um quarto
escuro, porque não sabe o que está acontecendo, só sente as
determinações que chegam do exterior, principalmente da família.
As outras pessoas influem sobre nós, direta ou indiretamente, pois
estando em contato com eles, no meio das histórias, sofremos
influências que tendem a nos determinar, apesar da liberdade. A nossa
liberdade tem que reagir a essas pessoas, de tal forma que Sartre diz
uma frase paradoxal: “eu sou livre porque eu posso fazer de mim
qualquer coisa com aquilo que fazem de mim”.
As pessoas fazem algo de nós, e nós aprendemos e fazemos algo para
nós com isso. Eu sou aquele que faz algo com o que as pessoas fizeram
de mim. Faço para mim algo com aquilo que outras pessoas fizeram de
mim.
É uma manifestação dessa permanência da liberdade total em meio as
determinações, mas, de maneira geral, a filosofia de Sartre aspirava a
ser uma antropologia.

Todos os fatos, sejam eles físicos ou sociais, que tendam a me


determinar, fazem parte da minha humanidade. Significa que estão sujeitos a
uma interpretação que fazemos deles. Na medida em que a filosofia tende a
ser uma antropologia, não existe nenhum fato bruto que possa me determinar a
entrar em contato comigo sem que eu já tenha feito dele uma interpretação. E
essa interpretação que fazemos de todos os fatos de nos acontecem, me dão
uma liberdade (não de fazer com que de fato exista ou muda-lo enquanto tal)
de interpretá-lo.
Nós damos significação aos fatos (o que é tragédia, calamidade,
desastre) de acordo com a afetação que nos causam. Então, tudo é humano,
porque o fato bruto depende da nossa significação.
Podemos interpretar os fatos de maneiras diferentes, seja como
destino, como contexto histórico, etc. E agiremos de acordo com as
significações que damos a eles.
Por isso temos tanta facilidade em lidar com as pessoas ao nosso
redor, porque as rotulamos de acordo com o momento/circunstâncias no qual
as vimos/encontramos, então podem ser estereotipadas como boas, ruins,
inteligentes, burras, bem humoradas ou não.
Consequentemente, é impossível que as tratemos como se fossem
outros SUJEITOS e não meros OBJETOS. Como respondemos por eles acerca
de quem são e como estão, tornam-se projeções nossas. Essa é uma
consequência da filosofia de Descartes que Sartre acompanha. Ele acredita
que sob o ponto de vista da intersubjetividade, não se encontrou uma solução
adequada para entender o outro como outro sujeito, porque sempre o
entendemos como objeto da nossa subjetividade.
Na obra Crítica da Razão Dialética (1960), Sartre se aproximou mais
do marxismo, mas ao mesmo tempo traz uma recepção crítica ao marxismo
oficial que começou a figurar na França na década de 50, o qual Sartre se
opunha.
Nos dois livros se conservou a questão do sujeito que fazia da filosofia
humana uma espécie de antropologia, ou seja, a individualidade e a
objetividade em igualdade de condições. Sartre ponderou sobre a seguinte
frase escrita por Marx: “O ser humano faz a história que o faz”, o ser humano
faz a história e a história faz o ser humano, concomitantemente.
A princípio não se entende como ambos podem ocorrer ao mesmo
tempo se são opostas. A dialética infere a solução. À época, se pensava que
havia que escolher entre essas alternativas: a) o ser humano faz a história –
consciência cartesiana, soberana, hegemônica, a qual a história se submete;
ou adota a segunda perspectiva leninista (afirma que a consciência é apenas
um reflexo da história ou das condições econômicas, denotando que a
consciência não tem consistência, refletindo apenas o meio e condições do
indivíduo), b) a história faz o ser humano – cada um de nós é uma história que
se insere na história geral.
A história é marcada por contingências, e no vocabulário filosófico
representa o contrário da necessidade, e os marxistas oficiais do tempo de
Sartre achavam que a decorrência da história era necessária, havendo as
etapas pelas quais ela passa até chegar à revolução. Com a compreensão
dialética que Sartre tinha da história, não conseguia enxergar a possibilidade
de um término da história, porque senão a dialética não seria um movimento da
realidade, mas uma coisa provisória. Acabando a dialética, toda história ter um
fim.
Essa era a concepção do Hegel, e por isso foi tão valorizada pelo
marxismo. Hegel considerava que a dialética é um movimento que vai tocando
a história até que a finalidade dela se realize, ou seja, o espírito absoluto, uma
coisa que é sujeito, objeto, tudo ao mesmo tempo. Tudo que foi engendrado na
história torna-se uma coisa só, se ergue como espírito absoluto e ela termina.
Sartre entendia que o uso que se fazia da dialética, principalmente
pelos marxistas, se aproximava da analítica, um modo habitual de pensar, em
que as oposições tendiam a se resolver. Sendo assim, para ele, as oposições,
enquanto fossem dialéticas, não se resolviam, tal como se resolviam para
Hegel e Marx.
A história é feita de oposições, e portanto haverá dialética. E a história
do indivíduo, enquanto pequenas histórias, também é feita dessa maneira.
A existência pode ser chamada então de “o drama da liberdade”,
segundo Sartre, em consequência da constante ameaça do NÃO SER, da
contradição. Enfrentamos todas as determinações que ameaçam a minha
liberdade, e conseguimos driblar algumas através da noção de significação,
além de outros procedimentos que ele acrescenta na Crítica da Razão
Dialética.
A palavra final do livro diz que “a liberdade e o determinismo são dois
polos de uma mesma dialética”, então, o que nós vivemos é uma dialética entre
a liberdade e o determinismo, demonstrando uma visão um pouco diferente do
primeiro livro, e que ele tomou por influência das suas leituras sobre o
marxismo.
Literatura engaja, denominada por Sartre, tem como princípio
descrever a realidade do indivíduo através da dramaticidade, mostrando aquilo
que ele é. “A literatura é uma espécie de espelho crítico da sociedade”,
devendo ser feita de tal maneira que o indivíduo, ao olhar aquele espelho, se
reconheça, mas também reconheça outros fatores que estão submetidos à sua
existência.
O espelho crítico não é um espelho comum, pois o sujeito se vê como
uma história contraditória inserida em outra história também contraditória. Ele
vê um drama em outro drama. Ele vê se vivendo no drama da liberdade, que já
não é uma coisa simples.
Para descrever o nosso tempo não basta uma filosofia pacificada, das
noções, dos conceitos, é preciso dramatizar tudo isso para que atinja o cerne
da existência humana tal como ela é. Sartre faz a história dessa maneira pela
qual ele chegou a esse ponto, descrevendo aquilo que nós vamos chamar de
geração de 30, considerado um fenômeno especial, pois até hoje nunca
tivemos nada parecido com aquela década.
Todos os indivíduos que participaram dessa geração escreveram e
organizaram suas obras em termos de espelho crítico daquela sociedade.
Sartre disse que eles viviam, no início da década de 30, sob o impacto
(positivo) do passado, da belle époque (final do século XIX até 1914), e de uma
certa ilusão de que a 1ª guerra - pelo seu caráter inusitado - seria a última. Tal
ideia foi adotada pelos grandes pensadores da época, bem como por toda a
sociedade europeia. Essa geração teve uma relação completamente dramática,
até mesmo trágica, com a história: “a história caiu sobre nossas cabeças”.
A posição de Sartre em relação ao marxismo é relativamente ambígua,
porque ao mesmo tempo em que ele ataca a doutrina do Partido Comunista
Francês, também dizia que o partido tem que ser apoiado porque é a única
arma que o proletariado tem para se libertar. Isso provocava uma atitude
curiosa do outro lado, pois sempre que ele apoiava o partido francês, eles
recusavam a aceita-la: “ele não nos apoia, não é um dos nossos” por se tratar
de um apoio crítico.
Num ensaio, ele escreveu o “Que é a Literatura”, sendo um tratado
onde ele esclarece vários aspectos da sua ética, filosofia da história, aplicadas
ao ofício literário. Conta no livro muitas histórias sobre o episódio da resistência
francesa, que foi muito heterogênea em termos de membros, mas vinculados
contra a ocupação alemã. O tempo de duração da resistência equivaleu ao
tempo de paz entre os membros.
Os comunistas diziam que a luta contra o nazismo era pela
humanidade, ainda que travada por países determinados. E assim que o
regime nazista fosse derrotado, acreditavam que a dignidade seria reposta, e
passaríamos a viver numa espécie de paraíso. Em que pese a derrota do
nazismo, a França passou a ser governada por Charles de Gaulle, e todas as
esperanças de paz caíram por terra, pois ele implantou a política tradicional,
inclusive colocando num ministério um integrante do Partido Comunista,
anulando-o.
Sartre conta que, nesse ínterim, o partido anunciou que qualquer greve
seria considerada traição à pátria. De onde se esperava alternativa, seguia
surgindo conflito. Daí deriva a sua crítica à adesão, o oportunismo, e a falta de
firmeza do Partido Comunista, acrescentando-se que os intelectuais autênticos
eram sempre os primeiros a serem expurgados, justamente pela sua
independência e crítica. “Nós somos excomungados por todas as Igrejas,
porque nenhum partido dos quer”.
Como se sabe, muitos dos grandes pensadores, como Rousseau,
foram utilizados pela Revolução Francesa a fim de colocar a burguesia na
posição que desejava atingir, e em 1789, já tinha o controle econômico em
detrimento do estado falido. Nobres estavam falidos por deverem a algum
burguês, e o que a burguesia realmente queria era o controle político da nação,
que ainda estava sob o domínio da monarquia, e lograram o objetivo, passando
de classe ascendente para classe dominante.
Tal mudança foi crucial, pois representou a independência burguesa
em relação ao poder. A partir daí, o entretenimento passou a ser o foco, onde a
burguesia passou a ler os romances por diversão, não mais com a intenção de
fomentar Revolução ou ideais (Flaubert, por exemplo).
Isso anulou o possível engajamento da literatura, que passou a servir
como trivialidade. Sartre tirou as consequências disso. Portanto, o destino dos
escritores burgueses, no período pós-revolucionário, foi o mesmo de Flaubert:
“eu os odeio, mas os entretenho”, e com isso ganhavam dinheiro.
Tal posição dúbia, assumida por muitos escritores, tornou essa
literatura do entretenimento em manifestação, do ódio à classe burguesa,
tornando-os, colaboradores e traidores ao mesmo tempo.
Em consequência, os intelectuais foram oferecer seus serviços à
classe oprimida, o proletariado, os quais recusaram tal apoio porque “quem trai
uma vez, trai sempre”. Essa foi a desconfiança que se prolongou pelos partidos
comunistas do mundo afora com outros intelectuais, pois se já não são
traidores, têm potencial. Os intelectuais se transformaram numa categoria sem
classe, e repudiados tanto pela classe dominante como pela classe oprimida.
Os escritores sofrem, particularmente, esse drama histórico, pois a
história roubou-lhes o lugar, e Sartre afirma de maneira muito contundente que
o que lhes resta como escritores é escrever, mesmo que isso seja inútil.
A Filosofia e a Literatura precisam estar sempre juntas para compor um
quadro dessa situação dramática vivida contemporaneamente. Ele não afirma
que as duas sejam iguais, mas que possuem certa confluência devido a
possibilidade de descreverem dramaticamente a situação humana numa
determinada época. Com isso, ele vê ambas sendo fieis à historicidade. A
história é intrínseca ao ser humano e nós a vivemos internamente e
externamente, através desse compromisso com a liberdade e sua efetivação.
Com isso, Sartre volta à uma posição que ele teve logo após finalizar a
obra “O Ser e o Nada” (caracterizado como um livro pessimista a respeito da
condição humana), assim, recebeu muitos ataques por parte da filosofia oficial,
da filosofia marxista e também da filosofia cristã, apontando que ele havia
tomado uma posição niilista e gratuita.
Niilista deriva fato de que ele concebe a consciência como um NADA
que se desdobra nas figuras anteriormente analisadas. E a gratuidade é o fato
de que não podemos dar à existência a fundamentação que antes era dada
pela essência. Como a existência vem antes da essência, ela não a
fundamenta. Portanto, foi acusado de conceder à condição humana uma
existência gratuita.
Se redime dessa acusação com uma analogia com a arte: se você
perguntar a determinado artista o porquê de ter feito determinada obra ele não
sabe dizer, mas o fez por alguma razão. E essa mesma razão é a que move a
conduta humana, a moralidade e a ética nessa existência não fundamentada.
Porque a existência fundamentada depende do seu fundamento, de alguma
coisa que não ela mesma, e assim viola o princípio de que ela é princípio de si
mesma.
A palavra final de Sartre é uma espécie de visão quase niilista,
principalmente ao envelhecer, da inutilidade da ação e ao mesmo tempo da
obrigação da ação. Isso o fez debater com Ponty, que dizia que Sartre aderia
às coisas e saía delas com muita facilidade, portanto não seria um filósofo, por
não refletir sobre o que faz, porque se o fizesse, aderiria à alguma coisa com
fundamento, e sairia dela com fundamento.
Por sua vez, Sartre lhe respondeu que nenhuma pessoa viva é filósofa,
só depois que morre, e que por isso seguia o princípio de todo ser vivo,
aderindo e não aderindo, saindo, se opondo, cometendo toda uma sorte de
erros e acertos comuns ao ser humano. Do contrário, estaríamos nos
assumindo como filósofos, detentores dos fundamentos de todas as coisas,
podendo fazer tudo de maneira fundamentada.
Assume, assim, a contingência radical da história, que faz com que não
possamos emprestar a qualquer fato histórico o caráter de necessidade, nem
aquilo que ocorre fora de mim, nem aquilo que eu faço. Ele exemplifica tal
pensamento a partir da Revolução Francesa, a qual iniciou-se com o
republicanismo radical, que fazia com que os adeptos da revolução se
julgassem herdeiros da república romana (na época do império). Terminou com
Napoleão num império expansionista.
Portanto, para ele, a história é contingente, então não podendo dar à
ela um caminho necessário, porque quando praticamos algum ato o colocamos
no palco da história, e esse palco é contingente, podendo se tornar qualquer
outra coisa, inclusive aquilo que nós não queremos que aconteça.
A história despõe tudo aquilo que o ser humano põe. A não
necessidade/contingência faz com que ela viva dessas oscilações. E isso
Sartre viveu até o fim, terminando a sua vida como diretor de um jornal, sempre
recebendo duras críticas, com as quais não se incomodava por acreditar que o
importante era o engajamento do momento, porque nada é duradouro,
necessário e definitivo.
Esse modo de usar a liberdade, que parece um tanto leviano, é aquilo
que caracteriza para Sartre o verdadeiro humanismo. Diziam para ele que sua
filosofia não era humanista, porque a condição humana é muito pobre.
No entanto, reafirmou que isso era o humanismo, o qual exige coragem
para que o indivíduo assuma as rédeas da própria vida, mesmo a partir da
miséria da condição humana.
Em que pese ele não acreditar em destino, crê na existência de uma
linha sobre a qual nossa vida se desenrola. A vida é um jogo de perde e ganha,
para sermos o que realmente queremos ser. Sartre nos ensina sobre essa
contingência radical da condição humana e da nossa conduta. Sua literatura
está majoritariamente permeada pela ética, ainda que não tenha escrito
nenhuma obra sobre esse tema específico.

Você também pode gostar