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Universidade Federal de São Paulo

EFLCH - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de História da Arte

BRUNA LOPES DINIZ

O EROTISMO SAGRADO DE ROTIMI FANI-KAYODE.


UMA RETRATÍSTICA DO CORPO NEGRO NA DIÁSPORA AFRICANA

GUARULHOS
2021
Universidade Federal de São Paulo
EFLCH - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História da Arte

BRUNA LOPES DINIZ

O EROTISMO SAGRADO DE ROTIMI FANI-KAYODE.


UMA RETRATÍSTICA DO CORPO NEGRO NA DIÁSPORA AFRICANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em História da Arte
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Filosofia da Arte
Orientador: Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho

GUARULHOS
2021
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico
para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Diniz, Bruna Lopes.

O Erotismo Sagrado de Rotimi Fani-Kayode . Uma retratística do corpo


negro na diáspora africana / Bruna Lopes Diniz. – 2021. – 86 f.

Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História da Arte). –


Guarulhos : Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas.

Orientador: Prof. Dr.Osvaldo Fontes Filho.

Título em Inglês: Rotimi Fani-Kayode‟s Sacred Erotism. A Portrait of Black


Body in African Diaspora

1. Fotografia. 2. Sexualidade. 3. Erotismo. 4. Espiritualidade. 5. Diáspora. I.


Orientador. II. Título.
Bruna Lopes Diniz
O EROTISMO SAGRADO DE ROTIMI FANI-KAYODE.
UMA RETRATÍSTICA DO CORPO NEGRO NA DIÁSPORA AFRICANA

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em História da Arte
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Filosofia da Arte

Aprovação: 05/08/2021

Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho


Universidade Federal de São Paulo
AGRADECIMENTOS

Apesar das dificuldades durante o período pandêmico, pude contar com uma rede de
apoio que me amparou a todo o momento na elaboração desta pesquisa. Agradeço a meu
orientador, Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho, pela orientação atenciosa, por estar sempre
disposto a aprender com sua orientanda e por seu trabalho como pesquisador e docente, pelo
qual sou profundamente inspirada. Agradeço ao apoio da minha família, minha base, pelo
amor, fé, por me garantir uma boa educação ao longo da vida e por continuar apoiando meu
trabalho artístico, minha escrita e meu fascínio pela arte.
Ainda que esta pesquisa tenha sido iniciada de fato na pandemia, ela foi inevitavelmente
permeado por diversas reflexões e discussões que aconteceram nas “ágoras” filosóficas da
EFLCH-UNIFESP, dentro e fora das salas de aula, no bar, na fila do ônibus, no transporte
alternativo e na mureta em frente ao bandeijão. Agradeço a todxs com os quais pude
compartilhar inspirações, revoltas, lágrimas e abraços. Agradeço pelo carinho e apoio de
colegas como Ana Elise Soares, Gabriel Belvis, Amanda Louise, Gabriela Queiroz, Laila
Pereira, Marcelo Iego, Bruna Mozini, Hyana Moura, Vivi Belloto, Mayara Schimidt.
Agradeço também a todo o corpo docente do departamento de História da Arte da UNIFESP
por construir um curso interdisciplinar tornando possível uma visão ampliada da cultura e da
arte enquanto ciência humana, e não somente a partir das produções estéticas.
A jornada da graduação foi menos penosa com a presença e o apoio de amigos pelos
quais tenho uma profunda admiração, carinho e respeito: Rebecca Blasotti e Julia Midory,
pela lealdade, companheirismo e apoio; Rodolfo Feitoza, por sempre me lembrar da
importância histórica de ser uma mulher negra em uma universidade; Tabita Barbosa, por me
inspirar e me motivar a sempre ir mais longe do que posso ir. Ainda : Felipe Bispo, Vinicius
Brean, Guilherme Nobrega, Vitor Humberto, Rafa Queiroz e Julio Bueno, todos pela amizade
e pelas risadas sem fim.
Agradeço também a paciência e a disponibilidade da minha tia Margareth e de sua
amiga Elenice que estiveram dispostas a contar um pouco sobre a Umbanda, religião de
matriz africana, e que me introduziram à cosmologia iorubá. Infelizmente as religiões de
matrizes africanas ainda são constantemente atacadas no Brasil e muito desses ataques –
epistemológicos, físicos, psicológicos, etc. – geram danos irreparáveis à sociedade, à cultura e
à história da diversidade do povo brasileiro.
Origem e retorno
Fulgurante arco
De Olorum o poder
Fun-fun atuante
Homem, depois mulher
Híbrido de arco-íris
Envolvente, cromático
Símbolo de esperança
Movimento de beleza
Estático espectro
Solar
Grandeza maior
Faça o que deve ser feito
Por que quem o era
Já se foi! “Arroboboi”!
Encontra-se sua antítese
Destrua-a
Não como ela foi
De morte estranha e doída
Velha e carcomida
Como animal bestial
Tempo, tempo, tempo
Não temo meu ideal
Tudo em ti se transforma
E mais em ti “sursum corda”
Nada me resta, ancestral
A não ser tua sinuosa dança
De cobra, serpente coral!

Beatriz do Nascimento, Legbá, 1988


RESUMO

No contexto dos debates emergentes acerca das questões de raça, diáspora,


espiritualidade e sexualidade, o trabalho artístico de Rotimi Fani-Kayode se caracteriza como
uma obra singular e provocadora para pensar o corpo negro na contemporaneidade. Na
fotografia de Fani-Kayode, a sexualidade torna-se um caminho que permite o reencontro
ancestral por meio da experiência mística, onde o rito é estabelecido enquanto local de
reconexão com esse passado imaginado e que se reconfigura no presente sob o traço distinto
de um corpo em face do próprio desejo. Conceitos como entre-ser e corpo-encruzilhada,
utilizados para tratar da ambiguidade pela qual o artista conduz o corpo negro na imagem,
pressupõem possibilidades afirmativas frente à experiência da diáspora propondo assim uma
nova subjetividade a partir do ponto central da encruzilhada. Portanto, ainda nesse contexto,
para tratar do caráter dinâmico, transitório e metamórfico da representação do corpo negro na
fotografia de Rotimi, o conceito de corpo-exusíaco se manifesta enquanto pulsão
transformadora e potência subversiva.

Palavras-chave: Fotografia. Sexualidade. Erotismo. Espiritualidade. Diáspora.

ABSTRACT

In the context of emerging debates about issues of race, diaspora, spirituality and
sexuality, the art of Rotimi Fani-Kayode is characterized as a unique and provocative work to
think about the black body in contemporaneity. In Fani-Kayode's photography, sexuality
becomes a path that allows the ancestral encounter through the mystical experience, wheres
the ritual is established as a place of reconnection with this imagined past and which
reconfigures itself in the present under the distinct trait of a body in terms of its own desire.
Concepts such as “between-being” and “crossroads-body” used to deal with the ambiguity
through which the artist leads the black body in the image, thus proposing a new subjectivity
from the central point of the crossroads. Therefore, even in this context, to deal with the
dynamic, transitory and metamorphic character of the representation of the black body in
Rotimi's photography, the concept of “corpo-exusíaco” manifests as a transforming pulsion
and subversive potention.

Keywords: Photography. Sexuality. Erotism. Spirituality. Diaspora.


LISTA DAS ILUSTRAÇÔES

Figura 1 – Fotografia de Augusto Stahl, Rio de Janeiro, 1865 ................................................ 12


Figura 2 – “Adão e Eva no paraíso brasileiro”, Rosana Paulino, 2014 .................................... 13
Figura 3 – “Tongues Untied”, Rotimi Fani-Kayode, 1987....................................................... 16
Figura 4 – “Abiku”, Rotimi Fani-Kayode, 1988 ...................................................................... 17
Figura 5 – “Abiku”, Rotimi Fani-Kayode, 1988 ...................................................................... 18
Figura 6 – “Proteção Extrema Contra a Dor e o Sofrimento”, Rosana Paulino, 2011 ............. 19
Figura 7 – “Mundurucu”, desenho da série Tecelãs, Rosana Paulino, 2003 ............................ 20
Figura 8 – “Snap Shot”, Rotimi Fani-Kayode, 1988 ................................................................ 22
Figura 9 – “Dennis with Flowers”, Robert Mapplethorpe, 1983 ............................................. 23
Figura 10 – “Tulip Boy II”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 .......................................................... 24
Figura 11 – “Noire et Blanche”, Man Ray, 1926 ..................................................................... 26
Figura 12 – “In Gods We Trust”, Rotimi Fani-Kayode, 1980 ................................................. 26
Figura 13 – “Les Démoiselles d‟Avignon”, Pablo Picasso, 1907 ............................................ 28
Figura 14 – “Dan Mask”, Rotimi Fani-Kayode, 1989.............................................................. 31
Figura 15 – “Adebiyi”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ................................................................. 32
Figura 16 – “Vanilla Nightmares, #1”, Adrian Piper, 1986 ..................................................... 33
Figura 17 – “White Bouquet”, Rotimi Fani-Kayode, 1987 ...................................................... 35
Figura 18 – “Olympia”, Édouard Manet, 1863 ........................................................................ 35
Figura 19 – “Mask”, Rotimi Fani-Kayode & Alex Hirst, 1989 ............................................... 36
Figura 20 – “Every Moment Counts I”, Rotimi Fani-Kayode & Alex Hirst, 1989.................. 42
Figura 21 – “Black Friar”, Rotimi Fani-Kayode, 1900 ............................................................ 43
Figura 22 – “Nothing to Lose XIII”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ............................................ 55
Figura 23 – “Briki, Ifanhin, Benin”, Pierre Fatumbi Verger, 1958 .......................................... 56
Figura 24 – “Nothing to Lose XI”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ............................................... 58
Figura 25 – “Nothing to Lose XII”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 .............................................. 59
Figura 26 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1987-1988 ........................................................ 64
Figura 27 – Série Laróyè, Mario Cravo Neto, 1997-1999........................................................ 66
Figura 28 – “Nothing to Lose IV”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ............................................... 68
Figura 29 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1987-1988 ........................................................ 69
Figura 30 – “Nothing to Lose IX”, Rotimi Fani-Kayode, 1987 ............................................... 73
Figura 31 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ................................................................. 75
Figura 32 – “Bronze Head”, Rotimi Fani-Kayode, 1987 ......................................................... 78
Figura 33 – “Nothing to Lose XI”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ............................................... 80
Figura 34 – “Nothing to Lose X”, Rotimi Fani-Kayode, 1989 ................................................ 83
Figura 35 – “Ophelia”, Sir John Everett Millais, 1851-1852 ................................................... 84
Figura 36 – “Black Circus Master”, Ajamu X, 1997................................................................ 87

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

[Elemento opcional. Consiste na relação alfabética das abreviaturas e siglas utilizadas no


texto, seguidas das palavras ou expressões correspondentes grafadas por extenso. Recomenda-
se a elaboração de lista própria para cada tipo.]
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

1 O CORPO NEGRO E O RETRATO FOTOGRÁFICO 11


1.1 O CORPO “PRIMITIVO” DO “OUTRO” COMO OBRA DE ARTE 25
1.2 A TEATRALIDADE DO CORPO NEGRO NA FOTOGRAFIA DE FANI-KAYODE 38

2 O PENSAMENTO IORUBÁ NA OBRA DE ROTIMI FANI-KAYODE 46


2.1 A CORPOREIDADE E O ENCANTAMENTO EM BODIES OF EXPERIENCE 52
2.2 O CORPO “EXUSÍACO” NO TRABALHO DE ROTIMI FANI-KAYODE 60

3 O EROTISMO NA FOTOGRAFIA DE FANI-KAYODE 71


3.1 O EROTISMO SAGRADO DO CORPO 77
3.2 A PROPOSTA DE UM EROTISMO AFRODIASPÓRICO 85

CONCLUSÃO 90

REFERÊNCIAS 92

APÊNDICE 97
9

INTRODUÇÃO

Em meio aos debates cada vez mais insurgentes em torno do tema da diversidade sexual
e da questão identitária, com a consequente desconstrução da subjetividade em seus
dispositivos usuais de sensibilização (polaridades, binarismo etc.), o trabalho artístico do
nigeriano Rotimi Fani-Kayode (1955-1989) mostra-se uma obra singular por sua cenografia
insinuante e pelo matiz provocador com que repensa o corpo negro na contemporaneidade.
Ao retratar o próprio corpo e aqueles de outros homens negros em situações íntimas de
sensibilidade e homoerotismo, Fani-Kayode protagoniza um lugar de visualidade que poucos
em sua época ousaram assumir a respeito da masculinidade negra.
Para tanto, o artista faz valer a fotografia como medium capaz de transfigurar uma
realidade adversa, intolerante, subvertendo seu caráter objetivo na produção de imagens de
onde verte uma ambiguidade provocada pela dimensão espiritual que o artista apreende da
mística iorubá. Consequentemente, seu trabalho se distancia das fotografias dos corpos negros
cosmopolitas de Robert Mapplethorpe, paradigma incontornável para o espectador ocidental,
ao ampliar o sentido da performance erótica no registro do êxtase místico. No intento de
renovar tipologias, Fani-Kayode incorpora ainda expressões da estética erótico-religiosa do
Barroco, em figurações nas quais o artista assume, por entre máscaras e adereços da cultura
iorubá, uma figura crística de ambígua gestualidade. O erotismo é celebração da vida, mas
não deixa de ser um flerte com a morte.
Nascido em Lagos, no seio de uma privilegiada família igbo e às vésperas da
independência da Nigéria, Rotimi Fani-Kayode cresceu em trânsito entre os continentes. Da
Europa à América, ele vivenciou o processo de intensas transformações culturais por que
passou o mundo entre as décadas de 60 e 80. Sua trajetória de formação e de vida é, assim,
atravessada pelos efeitos da diáspora, pelo sentimento de não pertença involuntariamente
assumido enquanto sempiterno imigrante na sociedade ocidental. Nesse sentido, a
sexualidade, tema central de sua narrativa estética, torna-se caminho de reencontro de raízes a
serviço de uma espiritualidade que se quer extática. Por meio do encontro, necessariamente
incongruente, entre o sexual e o espiritual, Fani-Kayode propõe em suas fotografias os
componentes cênicos de um lugar de ancestralidade, capaz de reconexão com um passado
imaginado e de reconfiguração no presente de um corpo em face de seu próprio desejo.
Junto a esse erotismo por assim dizer espiritualizado, Fani-Kayode potencializa a
imagem do corpo do homem negro, dotando-o de uma dimensão política capaz de atravessar
os lugares convencionais da representatividade para atingir o lugar de um “Eu” transfigurado.
10

Para tanto, o nigeriano estabelece uma ambiguidade entre o “corpo que sente” e o “corpo que
transcende”, isto é, que se sacrifica na experiência extática. Essa é uma das formas pelas quais
o artista nos faz ver que, no terreno do ritualístico, o sacrifício é menos entrega do corpo ao
místico quanto incorporação às transfigurações sugeridas pela cultura ancestral.
Ainda que seu trabalho tenha sido subestimado pelo circuito artístico europeu, Fani-
Kayode antecipou algumas liberdades expressivas na elaboração de imagens que transgridem
a noção de masculinidade negra tanto para o Ocidente, persuadido por estereótipos de
virilidade do negro, quanto para a África, onde a homossexualidade permanece uma prática
criminosa. Ao reivindicar uma posição crítica acerca da expectativa ocidental diante de um
artista africano, Fani-Kayode movimenta avant la lettre importante debate acerca das
questões de representatividade na arte e do modo como elas podem se desenvolver em face
das ideologias identitárias. Rotimi apresenta um ser multifacetado, dinâmico, capaz de romper
qualquer tentativa de fixação ou de simples sintetização que o coloque em lugares pré-
determinados, produto de um sensível olhar para uma dinâmica globalizada que começava a
formar-se em meados da década de 1980. É por esse motivo que o que se discute a partir do
trabalho desse artista faz-se tão presente em um contexto contemporâneo, e inclusive em um
contexto contemporâneo brasileiro, ao colocar em cheque questões de representatividade na
arte e o modo como elas são desenvolvidas em face das ideologias identitárias.
Apesar de intensa e marcante, a carreira artística de Rotimi Fani-Kayode foi breve,
durando apenas seis anos até a sua morte em 1989 em decorrência do HIV. Deixando uma
importante contribuição ressonante ao cenário artístico britânico com a fundação da
Autograph ABP – Associação de Fotógrafos Negros, cuja proposta está em valorizar e
institucionalizar trajetórias estéticas historicamente marginalizadas.
11

1 O CORPO NEGRO E O RETRATO FOTOGRÁFICO

“O estabelecimento de uma leitura canônica da fotografia não é de forma alguma


universal ou democrática. A fotografia para quem está excluído dos meios de
produção de imagem torna-se uma barreira impossível para o direito ao
reconhecimento humano total e igual... Especialmente se a existência por si só é um
ato de sobrevivência.” – Mark Sealy

Na História da Arte ocidental, a retratística foi intimamente vinculada aos ideais de


identidade e de individualidade, restrita, a princípio, a figuras que representavam papéis
políticos, culturais e religiosos, que ocupavam posições de destaque na sociedade. Às classes
populares, o retrato era reservado à chamada “pintura de gênero”, menos prestigiada no
mundo artístico e com frequência ligada aos valores de coletividade e trabalho. Com o avanço
da tecnologia ótica na era industrial, a fotografia toma lugar primordial na produção
retratística, o fotógrafo se assume como produtor de imagens documentais do mundo e das
novas tipologias emergentes. O Estado intervém no patenteamento da descoberta de Nièpce e
Daguerre, coloca-a sob domínio público e viabiliza assim sua disseminação por toda a
Europa1.
Percebendo cedo seu caráter testemunhal e sua indicialidade, a imprensa transformou a
imagem fotográfica em instrumento primordial para compor a narrativa jornalística,
estabelecendo a união do jornalismo com a fotografia, denominado posteriormente como
fotojornalismo. Mais do que ilustrar as páginas de um jornal, a imagem reproduzida tornou-se
“o resultado de uma prática singular de reconhecimento do presente” que atribuiu ao fotógrafo
“a figura epistemológica, o estatuto e a função” de retratar o contemporâneo do qual se
insere2.
Nas regiões colonizadas de África e América, a fotografia enquanto produtora de
realidades foi capaz de gerar efeitos profundamente complexos na formação do imaginário do
sujeito da diáspora africana. No Brasil, a iconografia do corpo negro foi fundada nos
primeiros retratos da escravidão tanto em cenários de violência do cotidiano, nas gravuras de
Debret, quanto inseridos em paisagens exóticas e romantizadas de Rugendas. Com a
fotografia, os retratos elaborados pelo fotógrafo alemão Auguste Stahl, encomendados pelo
naturalista suíço Louis Agassiz, foram fundamentados pelo estudo das raças humanas. Após

1
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1996, p. 94.
2
MAROCCO, Beatriz. Os negros na fotografia, às margens do jornalismo, signos do fotojornalismo. O Olho da
História. Salvador, n. 12, 2009, p. 7.
12

se envolver no debate norte-americano a respeito das raças e aderir à teoria da degeneração


provocada pela miscigenação, Agassiz inicia em 1865 uma expedição ao Brasil:
“Em contato com os pensadores racialistas e os poligenistas, Agassiz deu mais um
passo para completar sua teoria, incluindo a espécie ou as espécies humanas em seu
antigo esquema zoológico do criacionismo. Para um defensor do criacionismo, o
poligenismo surgia como consequência natural, que permitia a resolução do quebra-
cabeças do mistério da origem da vida.”3

Agassiz aplica a sua crença na hierarquia das espécies animais, na compreensão das
“espécies humanas”. Como criacionista, para ele esta ordem hierárquica “expressava a
intenção divina de impor uma ordem no mundo”4. Os retratos produzidos por Auguste Stahl, e
outros fotógrafos como Walter Hunnewell, na catalogação de tipos raciais em apoio à teoria
de Agassiz observam uma métrica científica na representação dos corpos, posicionados de
frente, de perfil e de costas, segundo o modelo da antropometria (Fig. 1) e da identificação
que captasse com precisão as características físicas dos retratados.
Figura 1 – Fotografia de Augusto Stahl, Rio de Janeiro, 1865

Fonte: HUBER; MACHADO, 2010, p. 835


A artista brasileira Rosana Paulino resgata os retratos de Stahl em Adão e Eva no
paraíso brasileiro (Fig. 2) para explorar a relação entre ciência e escravidão. A artista compõe

3
MACHADO, Maria Helena P.T. Os Rastros de Agassiz nas Raças do Brasil: A Formação da Coleção
Fotográfica Brasileira. In: HUBER, Sasha; MACHADO, Maria Helena P.T. (orgs.). Rastros e Raças de Louis
Agassiz: fotografia, corpo e ciência ontem e hoje. 1. Ed. Rio de Janeiro: Capacete Entretenimentos, 2010, p.
31.
4
Ibid., p.33.
5
Tríptico somatológico, identificado como Inhambana. Coleção Fotográfica de Louis Agassiz, Série Raças
Puras, Álbum África. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard para o livro
“Rastros e Raças de Louis Agassiz: fotografia, corpo e ciência ontem e hoje” de Sasha Huber e Maria Elena P.T.
Machado.
13

em seu trabalho a imagem de dois corpos nus, um masculino e outro feminino nomeados de
Adão e Eva. Em posição frontal, com as mãos e os braços paralelos ao corpo, a fisionomia
tanto do homem e da mulher chama a atenção pelo desconforto e pela seriedade visíveis. Ao
nomear as duas figuras como protagonistas do mito fundante cristão, Paulino subverte a
exposição física dos corpos nas imagens de Stahl, atribuindo-lhes lugar central em sua
narrativa acerca da constituição da sociedade brasileira.
Figura 2 – “Adão e Eva no paraíso brasileiro”, Rosana Paulino, 2014

Fonte: Site de Rosana Paulino6


Ainda na colagem de Rosana Paulino são projetadas sombras sob as figuras de Adão e
Eva. As silhuetas dos dois corpos apresentados em alto contraste parecem demonstrar um
espaço a ser preenchido em que, sobre um movimento sankofa7, o presente se volta para o
passado. Nesse movimento, a artista convida o espectador a não somente pensar a história da
formação do povo brasileiro, mas também permite que pessoas negras se reconheçam e se

6
Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br/. Acesso em 18 de mar. 2021
7
Conceito africano que sugere o retorno ao passado como caminho de busca pelo conhecimento, e a
necessidade de reconhecer a história como matéria primordial para compreender o presente e construir o futuro.
14

reconfigurem dentro desses espectro. Não mais como corpos aprisionados por uma ciência
desumanizante, mas sim enquanto produto de uma ancestralidade fundante.
O cientificismo nos retratos de Stahl revela o modo como a fotografia foi utilizada pelo
homem branco enquanto instrumento de catalogação do corpo negro e indígena. Com o aporte
científico, esses retratos violavam direitos então promovidos pelo abolicionismo. Assim como
o próprio Agassiz, Augusto Stahl também era um abolicionista8, evidenciando ainda mais as
marcas residuais do racismo na dinâmica racial mesmo após o fim do colonialismo no Brasil.
A relação de africanos escravizados e de seus descendentes com o retrato fotográfico
esteve diretamente vinculado ao homem branco também para fins comerciais direcionados aos
álbuns de famílias escravocratas, jornais e cartões postais. Koutsoukos lembra que a aquisição
de um retrato era vinculada às camadas sociais mais abastadas. Nesse sentido, o acesso ao
estúdio do fotógrafo atribuía lugar privilegiado na sociedade colonial devido “a possibilidade
de perpetuação de sua própria imagem”9. A autora aponta para a importância do retrato
fotográfico para as pessoas escravizadas que conquistavam sua liberdade, indicando assim o
pertencimento de sua imagem na sociedade e sua autonomia, já que até então ser fotografado
não poderia partir de sua própria iniciativa.
Mesmo que livre, um corpo negro poderia sinalizar diversas marcas da escravidão. Não
somente através da própria cor enquanto traço hereditário que o ligava à descendência com
um sujeito escravizado, mas também como inscrições de violência punitiva, marcas de posse
ou até mesmo marcas de escarificações próprias de algumas etnias africanas.
Diante dos diversos ataques direcionados às marcas do corpo negro, gerou-se a
necessidade de se esconder os traços daquilo que estampava uma distinção social entre
indivíduos negros e brancos, pois “o momento histórico exigia que, além de ser livre, a pessoa
nascida livre ou a alforriada parecesse livre para os outros. Ela tinha que fazer uso de
símbolos que indicassem a sua condição”10. A aparência da liberdade, nesse caso, estava
diretamente relacionada ao padrão estético do homem colonizador, suas roupas e poses, como
forma de sobrevivência e aceitação em uma sociedade racista.

8
Machado, op.cit., p. 32.
9
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estúdio do fotógrafo, o rito da pose. In: No estúdio do fotógrafo:
representação e autorrepresentação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do
século XIX. Tese de Doutorado na pós-graduação em Multimeios – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2006, p. 51.
10
Ibid., p.79.
15

No trabalho de Fani-Kayode, o corpo negro se apresenta em encruzilhadas. Ele procura


se reconfigurar em lugares de desejo e de violência, subvertendo uma estética nomeada pelo
ocidente como “primitiva” ou “étnica”. Isso porque, em seus retratos o artista suscita questões
que provocam fissuras tanto na exploração visual da imagem do homem negro no ocidente;
quanto no conservadorismo acerca da masculinidade e da sexualidade inerente à tradição
nigeriana. Enquanto homem negro, africano e homossexual, Fani-Kayode explora a dimensão
da sexualidade e da racialidade colocando em evidência o corpo como organismo vivo e
multifacetado, potência da memória e das percepções do presente.
Assim como na obra de Rosana Paulino, a retratística de Rotimi Fani-Kayode busca
romper com uma iconografia da opressão ao corpo negro para reconectar-se a um passado
ancestral como via de compreensão acerca das múltiplas camadas de identidade de um “eu”
contemporâneo pós-colonial. Enquanto artista da diáspora, a todo momento o trabalho de
Rotimi apela para um conflito de subjetividades atravessadas pelos trânsitos que perpassam o
Atlântico e que não deixam de produzir ambiguidades nas identidades dos sujeitos. O
sentimento de não pertença e marginalização é provocado não somente pela experiência do
exílio, mas também pela homofobia e pelo racismo vivido na realidade do homem gay negro,
traduzido em fotografias como Tongues Untied (Fig. 3) de 198711. Na imagem, um corpo nu,
masculino e negro é posicionado em um espaço indeterminado – mas que se assemelha em
certa medida a uma praia – subindo os degraus de uma escada que não dá para lugar nenhum.
Essa espacialidade indeterminada e expandida na fotografia, como consequência, apontar
tanto para a relação entre chegada e partida, a experiência do desterro, quanto para a
experiência mística da ascendência ao céu e da transcendência do corpo. Publicada no livro
Black Men/White Men, de 1987, Tongues Untied foi posteriormente adaptada como capa para
um livro de antologia poética compondo poemas de Essex Hemphill, Aaab Richards, Isaac
Johnson, Craig G. Harris e Assotto Saint, além de inspirar o filme experimental de Marlon
Riggs, também com o mesmo título12, evidenciando assim a participação e influência notória
do trabalho de Fani-Kayode no movimento queer negro norte-americano.

11
Writing Diaspora Art History: On Rotimi Fani-Kayode and the 1980s, Ian Bourland, Youtube, 4 de out. 2020,
1h25m38s, UT Austin - Department of Art and Art History (Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=ACOR341UQag>). Acesso em 2 de ago. 2021.
12
MERCER, Kobena. Eros & Diaspora. In: Photographs. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.).
Londres: Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996. p. 110.
16

Figura 3 – “Tongues Untied”, Rotimi Fani-Kayode, 1987

Fonte: imagem retirada do vídeo “Writing Diaspora Art History: On Rotimi Fani-Kayode and the 1980s”13
Na série Abiku, de 1988, Rotimi enquadra um corpo oprimido, voltado para dentro de si
mesmo (Fig. 4). A cabeça baixa e os braços que buscam cobrir as pernas e aproximá-las ao
tronco, revelam a prisão deste corpo anônimo enovelado por um cabo transparente utilizado
como instrumento de violência física (Fig. 5) e ferramenta de imobilidade. O cenário claro e
estéril do retrato é preenchido pela dupla exposição que produz um efeito de luz refletida
sobre a água, denotando a profundidade que se encontra este corpo submerso.
A palavra abiku em iorubá significa “nascido para morrer”, e está vinculado aos seres
que vivem em um constante trânsito entre o òrun e o ayé, entre o mundo espiritual e o mundo
físico. Os abiku, segundo a tradição, vão para o ayé com tempo já determinado para seu
retorno ao òrun, declaram a oníbodè òrun, o aduaneiro do mundo espiritual, o tempo que
pretendem ficar no mundo e o que farão até o momento de sua morte física 14. Se os pais da
criança nascida forem devidamente informados de seu destino pelo oráculo de Ifá, através de
diversas oferendas é possível manter o abiku no mundo por mais tempo, longe de cumprir a
promessa de retorno feita para oníbodè òrun.

13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ACOR341UQag. Acesso em 2 de ago. 2021.
14
VERGER, Pierre. A sociedade Egbe Òrun dos Abikü, as crianças nascem para morrer várias vezes. Afro-Ásia,
Universidade Federal da Bahia (Salvador), n. 14, 1983, p. 138.
17

Figura 4 – “Abiku”, Rotimi Fani-Kayode, 1988

Fonte: Site oficial da Tate Modern Museum15.


Ao mesmo tempo em que os retratos em Abiku implicam uma relação autobiográfica de
Rotimi através de seu próprio nome, que simboliza um dos quarenta e dois nomes possíveis
atribuídos aos abiku na tradição iorubá16, eles também evidenciam questões sociais, históricas
e políticas relacionadas ao corpo do homem negro. Do processo de desumanização produzido
pela migração forçada no sistema colonial às táticas de extermínio através da violência
policial e do encarceramento em massa, o corpo negro é compreendido como um objeto de
poder a ser controlado, disciplinado e eliminado pelos mais diversos aparatos
institucionalizados pelo Estado, revelando a sistemática do racismo no ocidente.

15
Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-44-autumn-2018/portfolio-rotimi-fani-kayode-desire-
exile-mark-sealy. Acesso em 18 de mar. 2021.
16
Verger, op. cit., p.145.
18

Figura 5 – “Abiku”, Rotimi Fani-Kayode, 1988

Fonte: Site oficial da Tate Modern Museum17.

O vínculo entre teorias racialistas e teorias da criminalidade instituiu no século XIX


uma criminologia positivista na qual acreditava-se “existir uma criminalidade diferencial dos
afrodescendentes e indígenas que era explicada/justificada com o argumento da inferioridade
racial”18. Ainda hoje, a seletividade baseada na ideologia da branquitude demonstra traços
desse racismo, operando de forma a determinar quais condutas devem ser criminalizadas e
quais pessoas devem ser fichadas. Sendo este último aspecto o elemento fundamental na
criminalização de jovens negros, mais vulneráveis à violência e maiores vítimas de mortes
violentas, refletindo na população com a maior taxa de mortalidade no Brasil e no mundo.
Deste modo, o conceito da palavra iorubá abiku cabe como metáfora para pensar acerca da
expectativa de vida do homem negro, inserido no mundo ocidental na dinâmica da diáspora,
nascido com a promessa da morte.
É possível traçar um paralelo visual entre os Abiku de Rotimi e os desenhos de Rosana
Paulino na série Proteção Extrema Contra a Dor e o Sofrimento (Fig. 6), de 2011, onde as
lágrimas da figura feminina sentada e acuada caem como fios que cobrem todo o seu corpo.

17
Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-44-autumn-2018/portfolio-rotimi-fani-kayode-desire-
exile-mark-sealy. Acesso em 18 de mar. 2021.
18
ARGOLO, Pedro; DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinicius Lustosa. A Hipótese Colonial, um
diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema
penal. Universitas JUS, CEUB (Brasília), v. 27, n. 2, 2016. p.3.
19

Os fios estão presentes também na série Tecelãs (Fig. 7), de 2003, novamente evidenciados
pelo enfoque no corpo da mulher e suas formas peculiares; filamentos que saem dos olhos e
da boca da figura enovelando seu pescoço e, consequentemente, obstruindo o funcionamento
do olhar e da fala da figura. Tanto em Abiku quanto nos desenhos de Paulino, a presença dos
fios que imobilizam e oprimem o corpo são simbolismos do aprisionamento marcado pelo
racismo e pela hiperssexualização dos corpos negros.
Figura 6 – “Proteção Extrema Contra a Dor e o Sofrimento”, Rosana Paulino, 2011

Fonte: Site oficial Video Brasil19


O retrato contemporâneo do homem negro na fotografia de Fani-Kayode não poderia
deixar de ressaltar as cicatrizes de um corpo marcado pelos resíduos da violência colonial e
diaspórica. Muito embora sua perspectiva crítica resgate lugares de denúncia social diante de
um passado de violência e opressão, a esperança de um renascimento através do erotismo e da
espiritualidade amplia o debate sobre a dimensão e a complexidade do sujeito pós-colonial. O
trabalho do artista nigeriano, assim como de outros artistas emergentes do pós-moderno e da
diáspora, estabelece um novo paradigma crítico de representação do corpo negro a partir dos
modelos hegemônicos. Mais do que subverter uma iconografia ocidental, interessa
reconfigurar este corpo sob outra perspectiva que não a do homem branco europeu. Nesse
aspecto, a escritora e ativista estadunidense bell hooks aponta para a importância de produzir

19
Disponível em: http://site.videobrasil.org.br/exposicoes/galpaovb/agorasomostodxsnegrxs/artistas/rosana-
paulino. Acesso em 2 de ago. 2021
20

essas novas representações e de compreender essa chamada “representatividade” muito além


de uma crítica ao status quo, mas principalmente a partir da necessidade “de transformar as
imagens, criar alternativas, questionar quais tipos de imagens subverter, apresentar
alternativas críticas e... nos afastar de pensamentos dualistas acerca do bom e do mau.”20
Figura 7 – “Mundurucu”, desenho da série Tecelãs, Rosana Paulino, 2003

Fonte: Site de Rosana Paulino21


Em Abiku, Rotimi apresenta a complexidade de um corpo negro e sua luta pela
sobrevivência. O cordão umbilical, fonte de vida e alimento, é transformado em instrumento
de violência na imobilidade e no enforcamento, até a morte prematura do corpo físico. Apesar
da efemeridade da vida física de abiku, através do intento da oferenda há a possibilidade de
prolongar sua passagem ao mundo físico e evitar que o espírito abandone o corpo e volte ao
orun. Mesmo assim, o que importa é menos o tempo de permanência no mundo, e mais o
cumprir em vida a promessa feita à oníbodé orun.
Rotimi Fani-Kayode, tal como um abiku, fez uma breve passagem ao mundo físico,
tendo o desenvolvimento de seu trabalho artístico interrompido pela sua morte em 1989.
Mesmo por pouco tempo de carreira e tendo seu trabalho subestimado pelo circuito artístico

20
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. 1. ed. São Paulo:
Elefante, 2019. p. 36-37.
21
Disponível em: https://www.rosanapaulino.com.br/blog/category/desenhos/. Acesso em 2 de ago. 2021.
21

europeu, Rotimi assumiu um papel importante no cenário cultural britânico negro dos anos 80
como protagonista da ruptura com um realismo documental para despontar na criação de
novas trajetórias estéticas e na revalorização da diferença cultural. Ao enquadrar o corpo
masculino negro como sujeito da experiência corporizada e reivindicar uma sexualidade livre
da fetichização do colonizador, Fani-Kayode atravessa o simples (e, por vezes, superficial)
efeito da construção de uma representatividade identitária, para atingir um potencial
anárquico na reconfiguração de um corpo fragmentado, deslocado e múltiplo, que se nega
enquanto estrutura organizada e completa, para ser força e pulsão.
Ao escolher a fotografia como medium e instrumento artístico na produção de suas
imagens, Rotimi se insere em um campo permeado por uma longa tradição de exploração
imagética em torno da figura do homem negro, assim como do imaginário ocidental acerca de
África. É por essa razão, ele assume uma postura crítica ao confrontar os cenários nos quais o
corpo negro foi representado pela fotografia ao longo da história e sobre como a sexualidade
pode funcionar como “mediadora” na relação entre o branco e o negro. Desde o seu
surgimento até a contemporaneidade, o artista compreende como a fotografia foi utilizada
como um suporte nas propagandas ideológicas à cultura de massa:
“[...] A mitologização exploradora da virilidade negra em nome da burguesia
homossexual não é, em última instância, diferente da vulgar objetificação da África
como conhecemos, em um extremo o trabalho de Leni Riefenstahl e no outro, das
imagens de vítimas que aparecem constantemente na mídia. Cabe a nós agora
reapropriarmos tais imagens e transformá-las ritualisticamente em imagens de nossa
própria criação. Para mim, isso envolve uma investigação imaginativa da negritude,
da masculinidade e da sexualidade, através de uma abordagem mais honesta.”22

Aqui, Rotimi Fani-Kayode anuncia a necessidade do confronto com o imaginário


ocidental acerca tanto de África quanto do homem negro na fotografia, com o modo como a
câmera foi instrumentalizada pelo Ocidente na fetichização através do desejo erótico, na
espetacularização da violência diante do outro. Assinalando como estes dois traços
compartilham a mesma crença de objetificação do corpo negro, o artista aponta para a
necessidade de reapropriação dessa iconografia pela arte, afim de elaborar uma refiguração
através da subjetividade do corpo. Como consequência disso, nas fotografias de Fani-Kayode
vê-se a transposição do corpo negro enquanto objeto de arte, pois é através da arte que a
imagem do corpo alcança a sua imortalidade e a sua sacralidade.

22
FANI-KAYODE, Rotimi. Traces of Ecstasy. Londres, 1987. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.)
In: Photographs. Londres: Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996. p.6.
22

Embora Rotimi faça valer o tradicionalismo e a espiritualidade iorubá ao imaginar esse


movimento sankofa como caminho a um retorno imaginário, sua fotografia abre janelas para
desconcertar a visão do espectador que espera de seu trabalho uma estética de teor “étnico” ou
simples sinais de identificação que possam enquadrá-lo como apenas um fotógrafo nigeriano,
negro e homossexual. Ao invés disso, o artista insere seu corpo como potência transgressora
do olhar voyeur fotográfico, compondo dimensões ambíguas através de recortes que
evidenciam o corpo e centralizam-no enquanto território de embates entre discursos distintos.
Um exemplo da tratativa do corpo como essa potência transgressora está na fotografia Snap
Shot (Fig. 8), um autorretrato em que Rotimi posiciona a câmera fotográfica no lugar de seu
órgão genital. O teor irônico não dissimula o sentido crítico engendrado pela analogia do
gesto em substituir o falo pela câmera fotográfica. Aqui, o fotógrafo ao mesmo tempo em que
explora a qualidade de voyeur que envolve o trabalho fotográfico, aponta para um dos
desdobramentos possíveis de seu próprio desejo como uma espécie de mediador na relação
entre o fotógrafo e o objeto fotografado. A imagem não deixa de provocar as convenções
acerca da masculinidade em um sistema falocêntrico e patriarcal que toma o pênis como uma
metáfora da potência sexual do homem.
Figura 8 – “Snap Shot”, Rotimi Fani-Kayode, 1988

Fonte: Site da ABP Autograph23.

23
Disponível em: https://autograph.org.uk/exhibitions/works-on-loan-to-masculinities-exhibition-gropius-bau.
Acesso em 18 de mar. 2021.
23

Nesse sentido, em Snap Shot cabe a leitura de uma crítica que Rotimi estabelece em
relação a “mitologização exploradora da virilidade negra”24 produzida por um certo tipo de
voyeurismo da fotografia homossexual ocidental presente, por exemplo, nas fotografias de
Robert Mapplethorpe. A obsessiva representação da genitália masculina negra na fotografia
de Mapplethorpe, sua hiperssexualização, mostra-se oposta à experiência erótica e mística da
fotografia de Fani-Kayode, isto porque o nigeriano produz intensa pesquisa acerca das
potencialidades do erótico como princípio de subjetivação do corpo. Diferente da ejaculação
floral no retrato de Dennis Speight (Fig. 9) pelo fotógrafo norte-americano, que sintetiza o
corpo pela potencialidade exclusiva do pênis, o simbólico da flor como elemento sugestivo
em Fani-Kayode é ampliado e traduzido em Tulip Boy II (Fig. 10) como atributo de
sensibilidade.
Figura 9 – “Dennis with Flowers”, Robert Mapplethorpe, 1983

Fonte: Site MutualArt25


Na contramão de uma literalidade fotográfica, clara no trabalho de Mapplethorpe, o
artista nigeriano trabalha com o elemento da ambiguidade como um jogo de desvios
simbólicos que o afasta de certas convenções estéticas. Ao mesmo tempo em que, para
Rotimi, além da crítica às questões raciais que envolvem a fotografia do ocidente, importa a

24
Fani-Kayode, op. cit., p. 7.
25
Disponível em: https://www.mutualart.com/Artwork/Dennis-with-flowers---and-Dennis-with-
th/0D43896B785CC2F3. Acesso em 2 de ago. 2021.
24

tomada dos meios de elaboração da imagem pelo negro e a reconfiguração destes imaginários
através da arte enquanto potência subjetiva. Essa posição crítica em relação à arte e à
fotografia permanece ao longo de sua carreira artística como princípio transformador da busca
decolonial em romper com uma tradição iconográfica do corpo negro na história da arte.
Figura 10 – “Tulip Boy II”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: Imagem retirada do Instagram26

26
Disponível em: https://www.instagram.com/p/B2w-AVCFPgf/?igshid=vc6761rnx1c9. Acesso em 2 de out.
2021.
25

1.1 O CORPO “PRIMITIVO” DO “OUTRO” COMO OBRA DE ARTE

Com a virada do século XX e início do mundo moderno, as diversas imagens que


colocaram o corpo negro em função das fantasias científicas sobre a inferioridade racial dão
lugar a um novo processo de investigação destes corpos lidos agora como um “outro”. O
produto dessas pesquisas formuladas pelas novas áreas de estudo das chamadas ciências
humanas, a antropologia e a ciência psicanalítica, chama a atenção de artistas, teóricos e
historiadores das artes, na produção de um novo paradigma no pensamento cultural do
ocidente capaz de romper com os racionalismos fascistas que até então emergiam, bem como
com o arcaísmo de um mundo representativo. Embora aqui o corpo seja projetado de forma
distinta daquela medida através da diferença racial, mesmo sob a roupagem do moderno, o
corpo negro configura ainda objeto de estereótipos de excitação do desejo, ora sob as
estratégias de extermínio e inferioridade, ora como oferta de um novo deleite marcado pelo
sublime modernista. Mesmo após a era colonial, a lógica de exploração das fantasias acerca
deste “outro” “selvagem” tem sua continuidade através das nuances do pensamento moderno.
A crise de identidade do ocidente, faz com que os artistas modernos abandonem o
modelo cartesiano do classicismo para incorrer na complexidade do inconsciente e da
investigação do “não-ocidental”, instrumentalizando a psicanálise e a antropologia na
elaboração do discurso modernista27 e em sua fascinação com o “primitivo”. Associado às
políticas de alteridade, o modernismo oferece ao ocidente uma “etnicidade estetizada”,
ajustada em certa medida aos rigores europeus, como um “tempero” que pudesse conferir um
aspecto mais “instigante” ao sabor insosso que as artes pré-modernistas até então sugeriam ao
paladar vanguardista. Interessa observar como o uso das máscaras como artifício infenso à
estética acadêmica europeia foi adaptado em trabalhos de artistas de vanguarda como Man
Ray. Por exemplo, em Noire et Blanche (Fig. 11), o enfoque está na diferença entre o branco e
o negro como contrastes entre a brancura da pele de Kiki de Montparnasse e o ébano da
máscara africana. Em contrapartida, Fani-Kayode se representa em In Gods We Trust (Fig.
12) revelando a máscara do branco sobre a face do homem negro, pela presença de mãos
cenograficamente brancas sobre os olhos da figura masculina, traduzindo o modo como a
influência cultural branca e europeia limita – e cega – o olhar do sujeito negro.

27
FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In: O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. 1. ed. São Paulo:
Ubu Editora, 2017. p.166-167.
26

Figura 11 – “Noire et Blanche”, Man Ray, 1926

Fonte: Site Swissinfo28


Figura 12 – “In Gods We Trust”, Rotimi Fani-Kayode, 1980

Fonte: Site Escalette Permanent Collection of Art29


Em O inconsciente primitivo da arte moderna ou pele branca, máscaras negras, Hal
Foster aponta Les Démoiselles d’Avignon (Fig. 13) de Pablo Picasso como um exemplo dessa

28
Disponível em: https://www.swissinfo.ch/por/homenagem-a-man-ray--%C3%ADcone-
dad%C3%A1/29890830. Acesso em 2 de ago 2021.
29
Disponível em: https://escalettecollection.chapman.edu/objects/1650/in-gods-we-
trust;jsessionid=112051A894233734AE1F48715A4FC0B8. Acesso em 2 de ago. 2021
27

ressonância através do uso de artefatos africanos pelo modernismo30. A conciliação de dois


cenários transgressores para o conservadorismo cristão europeu do início do século XX, o
bordel e a presença das máscaras africanas, inspirada pela coleção do Museu de Etnografia do
Trocadéro, desponta para uma mediação do “primitivo” em nome do ocidente. Picasso une
desejo e medo em relação a este “primitivo” inserido no outro feminino, evidenciando o uso
do primeiro como “arma” para afastar aquilo que Foster chama de “outridade” a respeito
desse encontro transcultural. Os usos aplicados das máscaras pela arte moderna incorporada
como transgressão à tradição ocidental passam a serem vistos como pertencentes à própria
produção dos artistas da vanguarda europeia.
Embora a afinidade de Picasso com as máscaras africanas, em Les Démoiselles
d’Avignon, promovesse uma ruptura estética aos modelos estéticos do pré-modernismo e o
consequente desgaste do primitivismo evolutivo, a descontextualização dos objetos
etnográficos inseridos em prol de um universalismo pretende-se mais como uma alternativa
em resolver “um remorso liberal-humanista” do que de fato propor uma processualidade
intercultural. “É aí que um passo para fora da tradição é tido como algo que coincide com um
salto para dentro dela”31. Frente às afinidades propostas pelas obras do modernismo, sejam
elas morfológicas, metafóricas ou semiológicas, Foster articula um questionamento
apropriado para pensar o papel dessa afinidade como “o efeito da supressão da diferença”, em
que é possível ajustar este “outro” através de uma relação de espelhamento distorcido, capaz
de produzir uma “imagem especular do moderno visto na máscara do tribal”32.

30
Idem, 1996, p.237.
31
Foster, 1996. p.237.
32
Ibid., p.242.
28

Figura 13 – “Les Démoiselles d‟Avignon”, Pablo Picasso, 1907

Fonte: Site do MoMA33


O paradigma que as máscaras africanas instauram nas artes ocidentais permanece em
debate mesmo após um século da publicação de Negerplastik do teórico e historiador da arte
Carl Einstein, cujo trabalho atribui mportância significativa para o mundo ocidental ao elencar
todo um regime de enunciações estéticas na atribuição das máscaras e outros objetos criados
por mãos africanas o estatuto da arte34. O formalismo na perspectiva de Einstein para a
elaboração teórica em Negerplastik aponta para o modo unilateral de seu trabalho, ao
desprezar especificações importantes como autoria, localização e significação dos objetos
apresentados de acordo com suas origens, em detrimento de características formais sobre as
soluções tridimensionais adotadas, a multiplicidade de dimensões aplicadas, e de um esforço
em provocar semelhanças e aproximações com as artes modernas.
Ao propor a metamorfose de objetos etnográficos na sociedade ocidental como objetos
de arte, Einstein estabelece parâmetros relativistas e essencialistas, uma unidade da “arte
africana” através de parâmetros estilísticos. Modo de categorizar de forma arbitrária o que de
fato estaria mais próximo de uma “pureza” da “arte negra”. Fato é que as determinações
estilísticas aplicadas pelo formalismo de Carl Einstein e essa invenção de uma África em

33
Disponível em: https://www.moma.org/learn/moma_learning/pablo-picasso-les-demoiselles-davignon-paris-
june-july-1907/. Acesso em 19 abr. de 2021.
34
CONDURU, Roberto. Uma crítica sem plumas - a propósito de Negerplastik de Carl Einstein. Revista
Concinnitas, 2008, v.1 n.12. p. 160.
29

Negerplastik atraiu os olhares das vanguardas europeias, bem como a valorização de uma
“arte primitiva” enquanto movimento artístico.
Na concepção de muitos artistas modernos, tal como André Malraux, essa metamorfose
dos objetos africanos elencados como objetos artísticos representava sobretudo “a passagem
desses objetos de um contexto não estético, o africano, para um estético, o europeu”35. Essa
afirmação da inexistência de um contexto estético africano, evidencia o desconhecimento por
parte de artistas e teóricos da vanguarda europeia do contexto desses objetos e o modo como,
numa análise das nuances dessa abordagem estética europeia, a invenção de “um outro” não-
ocidental ocupa uma posição singular para a lacuna da autenticidade, que necessitava ser
preenchida pelo modernismo e seu confronto com as convenções acadêmicas e culturais da
própria Europa36.
Diante do trabalho de Rotimi Fani-Kayode, é possível perceber que o artista esteve
consciente da história desses movimentos artísticos ocidentais em relação à produção no
continente africano, principalmente no que diz respeito à arte. E, principalmente, como esteve
consciente do resíduo de um “primitivismo modernista” predominante na recepção
institucional de seu trabalho artístico. Esse continuum do primitivismo no pensamento
ocidental evidencia, sobretudo, um modo particular de desejo “enraizado na crença atávica de
que o espírito do „primitivo‟ reside nos corpos dos Outros de pele escura cujas culturas,
tradições e estilos de vida podem ter sido, na realidade, irrevogavelmente alterados pelo
imperialismo, pela colonização e pela dominação racista”37. Esse “remorso liberal-
humanista”, para utilizar do termo empregado por Hal Foster, gera a necessidade de
“conservar” o estado “puro” do Outro, baseado no idealismo estético e na consequente
objetalização do corpo, que passa a não ser nada além de um instrumento de conceituação
cultural, isto é, representativo do conceito de cultura de seu povo38.
“Não é mais a estranheza do corpo do Outro que fascina, mas o fato de se estar
diante de um corpo representativo da cultura. [...] A satisfação que um tal
estereótipo acarreta é desconcertante: a pedagogia coletiva das trocas culturais passa
pelo reconhecimento de uma multiplificação de rótulos identificadores culturais que

35
MACEDO, Rafael Gonzaga de. Negerplastik: a invenção da arte africana. Projeto História, São Paulo, n. 56,
2016. p. 411.
36
Ibid., p. 413.
37
HOOKS, bell. Comendo o outro: desejo e resistência. In: Olhares negros: raça e representação. Tradução de
Stephanie Borges. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2019. p. 71.
38
JEUDY, Henri-Pierre. As metáforas do corpo na arte e na vida quotidiana: os silêncios do desejo. In: O corpo
como objeto de arte. Tradução de Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 76.
30

os corpos devem exibir. [...] O que chamamos integração cultural não é senão uma
maneira de assimilar o corpo como mercadoria cultural.” 39

Intimamente consciente da movimentação nos debates emergentes na década de 1980


acerca das políticas raciais e das críticas levantadas a respeito da diáspora nos estudos
culturais da Grã-Bretanha, Fani-Kayode aponta para a necessidade da reapropriação e da
transformação dessas imagens do “primitivo” como imagens produzidas pelos próprios
artistas negros. Essa retomada, para ele, corresponde a uma retomada transformadora através
da ritualidade no ato de criar uma imagem, modo de ironizar as fabulações e
descontextualizações modernistas, como também de subverter o sentido etnográfico de
representação. Essa forma de subversão está presente em Dan Mask (Fig. 14), de 1989, uma
espécie de autorretrato em que o artista obscurece a representação de si em face da reverência
à máscara. Aqui, Rotimi atribui enfoque ao espelhamento das convenções “mascaradas” como
prática limitante e mercadológica, um encaixe em “rótulos identificadores”, como aponta
Jeudy. Não é sem interesse, ainda, uma aproximação visual com Noire et Blanche de Man
Ray: onde o rosto familiarmente branco e europeu se perfila ao lado do rosto diferente,
estranho e negro, mero embate com uma estranheza inquietante e distante, em Dan Mask vê-
se a clara sujeição à acefalia no jogo ritualístico da máscara, isto é, o objeto não mais
assumido como simulacro, mas como substituição à face humana.
Outra forma de ironizar e subverter a incorporação das máscaras africanas pela
fabulação primitivista do modernismo está também presente no retrato Adebiyi (Fig. 15) onde
Fani-Kayode apresenta uma máscara com as cores do deus da mitologia iorubá Exu, ou Èsù, o
deus trickster, malandro e zombeteiro, divindade da sátira e da mutabilidade. Embora a
máscara apresente características que remetam ao deus iorubá, em seu aspecto formal não se
aproxima da “autenticidade” das máscaras tradicionais, sendo apenas um molde, transformado
em significante da ironia e da contravenção exusíaca. Nessa fotografia, o jovem que segura a
máscara tem os olhos fechados em concentração, quiçá imerso no sistema ritualístico de
incorporação da divindade sob o gesto de vestir a máscara. Mais do que uma simples sátira,
Rotimi dá enfoque e prepara na imagem um cenário místico, tornando-se assim, em um
primeiro momento, difícil observar as nuances irônicas pelas quais o artista se vale a respeito
da crítica ao primitivismo modernista.

39
Ibid., p.77.
31

Figura 14 – “Dan Mask”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: Site Krannert Art Museum40


A concepção do corpo no trabalho de Fani-Kayode percorre aspectos do
transculturalismo e do homoerotismo. Esse último, em particular, centraliza a fotografia de
Rotimi no local de uma potente subversão, ao posicionar a sexualidade como um elemento
oculto (ou quase oculto) da ligação entre a África e o Ocidente. Em uma composição narrativa
semelhante, Adrian Piper apresenta figuras fantasmagóricas de corpos negros sobrepostas nas
manchetes diárias do The New York Times e dos artigos e anúncios que compõem o jornal
estadunidense. As figuras desenhadas em carvão e giz por Adrian Piper na série Vanilla
Nightmares são inseridas nas páginas jornalística em uma relação de contraste entre texto e
imagem, evidenciando muitas vezes a ambiguidade entre as ideologias ocultas incorporadas
na sociedade norte-americana e a suposta imparcialidade documental.

40
Disponível em: https://kam.illinois.edu/collection/dan-mask. Acesso em 2 de ago. 2021.
32

Figura 15 – “Adebiyi”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Site Resumo Fotográfico41


No primeiro trabalho que compõe a série, Piper sobrepõe o desenho da cena de um ato
sexual interracial, entre uma figura feminina e outra figura masculina, com fotografias de
manifestações ao redor do mundo contra o apartheid. O modo com que é realizada essa
sobreposição estabelece um movimento de ocultação e desocultação, permitindo o choque de
ambiguidades na relação entre política e sexualidade na questão racial do ocidente.
Há ainda, em Vanilla Nightmares #1 (Fig. 16), a tentativa de dissimular os efeitos
ressonantes do movimento apartheid sobre o ato sexual interracial, entendido aqui como mais
uma das fantasias, ou pesadelos do ocidente (permite-se aqui também a leitura ambígua do
que é característico ao sonho), é ainda provocada pelas duas expressões interrogativas em
destaque no trabalho de Adrian Piper: “What if...?”, “E se...?” e “So what?”, “E daí?”. A
crítica que Piper propõe nesse trabalho vai de encontro ao que bell hooks sugere no texto
“Comendo o outro: desejo e resistência”, onde a autora busca analisar os desdobramentos
históricos, sociais e políticos da sexualidade do ponto de vista da cultura ocidental em relação
às diferenças raciais, demonstrando que, no ponto de vista da hegemonia branca,
“encontros com a Outridade são claramente marcados como mais excitantes, mais
intensos e mais ameaçadores. O fascínio está na combinação de prazer e perigo. No
mercado cultural, o Outro é codificado como quem tem a capacidade de ser mais

41
Disponível em: resumofotografico.com/2021/05/retratos-e-autorretratos-como-iconografia-na-obra-de-fani-
kayode.html. Acesso em 2 de ago. 2021.
33

vivo, guardando um segredo que permite a quem ousa e se aventurar a romper com a
anedonia cultural [...] e experimentar renovação sensual e espiritual.” 42.
Figura 16 – “Vanilla Nightmares, #1”, Adrian Piper, 1986

Fonte: Site da Voge Gallery43


A sintetização do ato sexual em detrimento do olhar e da postura ocidental diante do
apartheid na África do Sul sugere lugares ambíguos do erotismo e dos modos como o corpo
negro é retratado na iconografia ocidental. Embora o confronto da sexualidade interracial
possa incitar o rompimento das fronteiras raciais impostas não somente pela África com o
apartheid, mas também nos Estados Unidos com a Lei de Segregação Racial. Em uma outra
perspectiva, o trabalho de Adrian Piper abre lacunas para pensar como a sexualidade se
articula dentro da fantasia do “primitivo” e como o prazer, nessa relação entre o
“branco/ocidental-negro/primitivo”, pode agir como subversão e rompimento com o desejo de
dominar44.

42
Hooks, op.cit., p. 74.
43
Disponível em: http://vogesundpartner.com/artists/adrian-piper/6/. Acesso em 20 abr. de 2021.
44
Hooks, op.cit., p.75.
34

Ainda que Rotimi prefira adotar uma posição mais subjetiva em seus retratos do que em
relação ao ativismo explícito presente nas figuras negras de Adrian Piper, o artista buscou
abordar essa complexa relação transcultural movido pelo desejo e pela sexualidade, forçando
os estereótipos e os “primitivismos” das representações do corpo negro até uma explosão
crítica a respeito da desqualificação da masculinidade negra na cultura branca. Essa
desqualificação que o artista identifica e evidencia em seu trabalho está nos esforços do
mundo branco em emascular o sexo do homem negro, ao mesmo tempo que em ressaltar uma
pressuposta animalização em contraste com o homem branco.
O interesse de Fani-Kayode em desestabilizar essas percepções exploratórias da
representação do homem negro, partindo do hibridismo dessas representações com artefatos
da cultura erótica ocidental, revela um processo de autoprimitivização capaz de perturbar as
estruturas basilares de um “erotismo primitivista” que envolve a relação do ocidente com a
África. O uso da máscara africana é resgatada por Rotimi para não somente inserir uma
dimensão espiritual, mas também como um recurso de readaptação desses objetos na arte
contemporânea:
“Na arte africana tradicional, a máscara não representa uma realidade material: em
vez disso, o artista se esforça para abordar sua realidade espiritual através de
imagens sugeridas por formas humanas e animais. Acho que a fotografia é capaz de
projetar as mesmas interpretações imaginativas da vida.”45

Assim como a máscara na tradição africana é um recurso para a materialização do


espiritual, Rotimi estabelece uma relação entre os diversos recursos e instrumentalizações à
serviço do erotismo, como uma forma de materializar a fantasia erótica e articular as mais
variadas formas de utilização da máscara na sociedade ocidental. Um exemplo desse
“mascarar-se” está na mise-en-scène construída em White Bouquet (Fig. 17), de 1987, em que
o artista estabelece uma analogia com a Olympia de Manet (Fig. 18), como um diálogo crítico
com a tradição artística europeia, bem como uma inversão formal de gênero e raça presente
no quadro realista. De costas para o espectador, um homem branco em pé oferece um buquê
de flores diante de um homem negro reclinado. A subversão aqui decorre não somente do
aspecto racial na relação de poder entre nobre e criado, mas também através do gesto em que
o corpo perverte o retraimento em Olympia, transformando-o em um ato de dádiva46.

45
Fani-Kayode, op. cit., p. 6.
46
Mercer, op. cit., p. 110.
35

Figura 17 – “White Bouquet”, Rotimi Fani-Kayode, 1987

Fonte: CHIKUKWANGO, [S.d.], p. 21.


Figura 18 – “Olympia”, Édouard Manet, 1863

Fonte: Site ArteRef47


A readaptação de uma cena da arte europeia que estampa diferendos raciais é ironizada
na perspectiva da homossexualidade, deixando em aberto as diversas leituras possíveis. O
gesto irônico em inverter a posição das figuras incorre em inevitável crítica aos cânones
artísticos e aos “lugares comuns” impostos pelo discurso estético europeu.
No caso de Mask (Fig. 19), parceria com seu companheiro Alex Hirst, Fani-Kayode
invoca a máscara como um recurso gestual. Na imagem, o ato de mascarar corresponde ao
gesto do confronto, da ocultação e do anonimato como armas de guerra. As folhas escondem

47
Disponível em: https://arteref.com/arte/curiosidades/quem-foi-a-mulher-retratada-em-olympia-de-manet/.
Acesso em 3 de ago. 2021.
36

os olhos da figura masculina que confronta a imagem, impedem o reconhecimento de sua


identidade para que o embate seja do corpo “do outro”, “do primitivo” contra o olhar
fotográfico, ocidental, eurocêntrico, civilizado.
Figura 19 – “Mask”, Rotimi Fani-Kayode & Alex Hirst, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.31.


Em um olhar mais aprofundado, nota-se que a figura masculina veste um cinto de couro
cravejado em metal e um anel peniano na boca. Tais elementos, segundo Hirst, são
apresentados nesse retrato como símbolos do homoerotismo moderno, atribuindo à figura uma
configuração erotizada e violenta, reduzida a “nada mais do que uma máquina de sexo que
jorra sêmen e palavras sujas”48. Ao mesmo tempo em que a máscara é aqui utilizada como
fator de ocultação da identidade, ela também revela uma essência que Fani-Kayode e Hirst
buscaram compor nesse trabalho, articulando o medo e o desejo como elementos provocativos
e ambíguos na concepção de uma figura quase divina. Através desse sincretismo de erotismo
e religiosidade africana, os artistas criam provocações a respeito do medo e do desejo presente

48
HIRST, Alex. Acts of god. In: Photographs. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.) Londres:
Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996, p. 32.
37

no inconsciente modernista em relação às máscaras africanas. Afinal, não há nada que


apresente maior excitação para as convenções acadêmicas e para os esquematismos caducos e
sem vida da arte moderna europeia do que o sabor pelo encontro do desconhecido, do exótico,
do selvagem, mesmo que em um primeiro momento “a novidade” seja recebida com temor.
Partindo da referência das diversas forças teóricas diante do “primitivo” que ainda
despontam nos mais variados contextos da arte contemporânea – indicando assim fortemente
resquícios de uma continuidade da tradição modernista –, Foster aponta para o problema das
identidades quando solicitadas em determinados artistas para ocuparem a complicada posição
de representatividade institucional em determinados contextos artísticos49. No caso de Rotimi,
enquanto artista nigeriano, imigrante e homossexual, as instituições esperavam que sua
produção concordasse com certos rigores estéticos formulados de acordo com suas
identidades. Assim como outros artistas contemporâneos que têm consciência das diversas
limitações que as “chancelas” das artes ocidentais impõem a artistas “não ocidentais”, Rotimi
evidencia isso em seu trabalho, por vezes encenando os estereótipos do “selvagem”, da
virilidade e da sexualização da genitália masculina negra, parodiando, mistificando e
confrontando esses imaginários com uma ritualidade encenada, devolvendo assim
explosivamente essas imagens inventadas pelo ocidente.

49
Foster op. cit., 2017, p. 182-183.
38

1.2 A TEATRALIDADE DO CORPO NEGRO NA FOTOGRAFIA DE FANI-KAYODE

Com a emancipação da subjetividade do autor e o consequente abandono da posição de


um operador técnico da máquina, o fotógrafo conquista seu direito de ser compreendido
enquanto artista no meio das artes. Ao romper com uma fotografia comprometida com o real,
inicia busca por uma fotografia-expressão50, para usar o conceito de Rouillé, em que, na
qualidade de ser mais livre do mimetismo da máquina, o fotógrafo permite-se recorrer às
potencialidades da performance enquanto discurso poético para a fabricação de uma nova
ordem visual51. Entenda-se aqui performance uma prática que insere o corpo em uma
narrativa e que se apropria dela para dar forma à imagem por meio de uma ação.
Pouivert sugere que esse “performar” e, consequentemente essa criação de uma situação
performática na fotografia, evidencia um vínculo singular deste meio com os tableaux vivants
e o teatro52. De fato, a questão da teatralidade aplicada à prática da fotografia promove
historicamente uma mudança no modo habitual de elaboração da imagem durante os
primeiros anos desde a sua invenção, abrindo assim possibilidades no meio e instaurando um
tipo de imagem encenada. A encenação na imagem estabelece uma linguagem visual à partir
da pose fotográfica, opondo-se à tradução do que é instantaneamente interpretado com a
imagem documental. Nela, não se trata de “reeditar aquilo que pode ser percebido, de
aprisionar uma representação que já aconteceu”53, mas de incorporar a interpretação através
da imagem.
Na fotografia surrealista, por exemplo, a encenação opera através de uma interpretação
crítica, já que o poder da imagem encenada é capaz de potencializar os efeitos das analogias
de representação do real. A possibilidade de relacionar o corpo ao mundo imaginário e a
capacidade de intervenção em um evento ficcional através da imagem desperta o interessa dos
surrealistas principalmente no que diz respeito à produção de um simulacro, capaz de
desordenar as próprias bases daquilo o que ela representa. À respeito da noção de simulacro,

50
No livro “A Fotografia: entre documento e arte contemporânea”, André Rouillé estabelece duas categorias
para analisar a fotografia: a fotografia-documento e a fotografia-expressão. Sendo a primeira, aquela que
compreende as primeiras ideologias aplicadas à fotografia desde à sua invenção e a segunda a fotografia
instaurada pelas ideias do movimento do modernismo na Europa do século XX.
51
REIS FILHO, Osmar Gonçalves dos; MORAIS, Isabelle de. Autorretrato: a fotografia em performance.
Revista Fronteiras – estudos midiáticos, São Paulo, v. 18, n.1, 2016. p. 4.
52
POUIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia?.
PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, RS, v. 21, n. 35, ago. 2017. p.104.
53
Ibid., p.105.
39

Baudrillard54 refere-se a uma desassociação da realidade, em que o real se produz e se


reproduz a partir de memórias, de modelos, de matrizes, assim infinitas vezes. A realidade
pode ser articulada, moldada, distorcida pelo resgate e, pela consequente, reformulação de
símbolos do passado, afim de elaborar uma nova realidade.
“A teatralidade das atitudes dos personagens traduz esta origem invertida da
imagem, o espectador tem a sensação de que os “atores”, ou, na verdade, os modelos
que agem, interpretam a imagem, ou seja, a engendram por sua presença
interpretada. Ainda que o fotógrafo possa ser considerado corretamente como
diretor, a imagem se completa verdadeiramente pela interpretação.” 55

Ao se fazer uso do termo “imagem encenada” automaticamente se estabelece-se a


relação entre o modelo, o “ator”, isto é, aquele que se apresenta na imagem e o espectador,
pois o fotógrafo enquanto um operador técnico, se oculta em detrimento da concepção do
cenário que se apresenta. O que está em jogo é menos uma estilização do olhar, e sim o modo
como o fotógrafo articula seu enredo por meio do registro mecânico a serviço “de uma cena
suscetível de escapar de qualquer realismo”56. Nesse sentido, a ambiguidade entre verdadeiro
e falso se opera por meio de uma teatralidade, provoca intencionalmente a desordem e o
desconforto diante da razão, pois ao mesmo tempo que a imagem se assume verdadeira
através da noção documental que seu registro promove, mostra-se também falsa já que se
apresenta enquanto representação.
A imagem encenada estimula a fotografia a se guiar através das possibilidades estéticas
do corpo, principalmente no que diz respeito a uma linguagem corporal, particular das teorias
que circundam o teatro. As transmutações e a capacidade de provocar dessemelhanças que os
artistas buscam aplicar ao corpo, é aqui apresentado na fotografia enquanto matéria
concentrada na dimensão de imagem, se desvelando sobre o olhar do espectador por meio da
ação corporal. Mais do que isso, a imagem encenada “é uma imagem que impõe à consciência
do espectador a natureza refletida da representação ao afirmar seu caráter artificial”57,
estabelecendo assim uma partilha entre o corpo na imagem e o espectador.
A teatralidade pela qual o homem negro se apresenta na fotografia de Rotimi Fani-
Kayode coloca em questão não somente os desdobramentos da individuação do corpo e da

54
BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: Simulacros e Simulações. Portugal, Relógio
D‟Água, 1991. p. 8-9.
55
POUIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia?.
PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, RS, v. 21, n. 35, ago. 2017. p.105.
56
Ibid., p.106.
57
Ibid., p.107.
40

valorização do negro através da arte, mas sobretudo os valores culturais centrais do


pensamento iorubá. Ao artista interessa a desassociação com a noção de realidade que se
opera através do processo mecânico do registro. Interessa-o também desordenar, em especial,
a realidade pela qual o negro é inserido na imagem do ocidente, e projetar através disso uma
nova singularidade, uma nova realidade que, ao mesmo tempo, seja capaz de manifestar
expressões mais honestas acerca do negro, ainda que inseridas na esfera de um mundo
místico.
Minha realidade não é como aquela que muitas vezes é apresentada nas fotografias
ocidentais. Como africano trabalhando em um meio ocidental, eu tento apresentar
uma dimensão espiritual nas minhas fotos para que os conceitos de realidade se
tornem ambíguos e sejam abertos à reinterpretações. Isso requer o que os sacerdotes
iorubás e os artistas chamam de técnica de êxtase.58

Em confronto com um contexto artístico opressivo e estereotipado, de modo bastante


expressivo o Teatro Experimental do Negro, ou TEN, fundado na cidade do Rio de Janeiro,
guiou-se por uma proposta que se aproxima do modo como Rotimi invoca a tragicidade para
ir além de uma superficialidade nos modos de representação do negro. Mais do que isso, tanto
na elaboração de um teatro negro brasileiro no TEN, quanto com o corpo teatralizado do
homem negro a fotografia de Fani-Kayode, há uma necessidade de ultrapassar a síndrome do
olhar etnográfico do homem branco sobre o negro. Nas palavras de Abdias do Nascimento,
“uma coisa é aquilo que o branco exprime como sentimentos e dramas do negro;
outra coisa é o seu até então oculto coração, isto é, o negro desde dentro. A
experiência de ser negro num mundo branco é algo intransferível”59.

Há também, em ambas as manifestações do corpo negro, não somente o reconhecimento


e a valorização de uma ancestralidade africana, e afro-brasileira no caso do TEN, mas
inclusive a possibilidade de releituras que interpelam as convenções simbólicas e
representativas na iconografia ocidental. No caso do TEN, as adaptações de fábulas e
tragédias gregas, muito comum na prática teatral, ressurgem na literatura dramática afro-
brasileira com o protagonismo e a evidência de atores negros60, resultando numa experiência
próxima ao da negritude, movimento político-estético protagonizado e pensado pelos poetas
antilhanos Aimée Césaire e Léopold Senghor61.

58
Fani-Kayode, op. cit., p.6.
59
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 18, n. 50, 2004, p.214.
60
Cf. NASCIMENTO, 2004, p.215-223.
61
Nascimento, op.cit., p. 218.
41

Um caso de adaptação realizada pelo TEN esteve presente na obra de Agostinho Olavo
Além do rio (1957), em que o autor se apoiou na fábula grega de Medea para produzir uma
peça adaptada através de uma composição estética baseada em danças e cantos tradicionais
brasileiros como o Candomblé e o Maracatu62. Além do rio conta a história de uma rainha
africana jinga, que trai seu povo pela paixão por um senhor branco e é trazida, escravizada, ao
Brasil do século XVII. Quando o homem branco passa a desprezá-la para casar com uma
mulher branca, a rainha africana – batizada de Medea no Brasil – mata seus próprios filhos no
rio, e retorna a seu povo. Como no exemplo da adaptação de Medea, a tragicidade grega é
incorporada na literatura teatral do TEN por meio de metáforas e analogias das marcas
deixadas pela violência da escravidão negra no Brasil, sempre buscando evidenciar e invocar
o protagonismo de atores negros nos palcos do teatro brasileiro.
De forma similar, Fani-Kayode busca essa experiência estética da negritude em suas
fotografias como uma adaptação teatral capaz de ampliar as possibilidades simbólicas para a
produção de um simulacro da diáspora a partir da cultura visual ocidental. Em Every Moment
Counts (Fig. 20) são apresentados dois homens negros em perfil na imagem, um mais velho
em relação ao outro, ambos inseridos em um tableau vivant, sugerindo um cenário simbólico
comum à estética erótico-religiosa do Barroco. A aplicação da expressão das paixões ao
diagrama facial dos personagens da mitologia cristã presente no retrato de Judite e Holofernes
ou os fortes contrastes de luz e sombra em O Sepultamento de Cristo, ambas criações de
Caravaggio; são recursos que podem ser observados na adaptação de Fani-Kayode.
Every Moment Counts I sugere a recriação da imagem mística e profética do Cristo
ocidental, contrariando a representação branca do ícone do catolicismo ao longo dos séculos
na arte européia. Nem santo, nem humano, na liturgia cristã a figura de Jesus é a
representação do veículo divino, a divindade incorporada na terra. No entanto, Hirst aponta
para uma hibridização entre a cultura religiosa ocidental e africana, ao considerar também a
representação do homem com o halo de pérolas na cabeça como uma figura sacerdotal e
espiritual, que guia o jovem homem negro, de “traços étnicos indeterminados”63, uma figura
miscigenada, iniciada nos conhecimentos e na sabedoria dessa figura ancestral.
Essa dualidade que Fani-Kayode e Hirst evidenciam entre as figuras, entende
evidenciar uma complementaridade entre passado e presente, corpo e espírito, matéria e alma,
fazendo uso do desejo enquanto substância mediadora da espiritualidade. A presença do

62
Idem.
63
Hirst, 1996, op. cit., p. 33.
42

jovem homem negro no quadro, despido de qualquer acessório que possa relacioná-lo a um
ícone religioso, procura provocar a ambivalência desse desejo na interação do corpo físico
com o corpo divino e, ao mesmo tempo, romper com os limites epistemológicos que separam
estes corpos. Há uma certa inocência, um desejo e um erotismo que se confundem com o
amor divino.
Figura 20 – “Every Moment Counts I”, Rotimi Fani-Kayode & Alex Hirst, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.99


As apropriações no retrato de Every Moment Counts I se revelam não somente na
inserção de atores negros em uma composição simbólica barroca, mas sobretudo na
reconfiguração desse corpo “santo” do cristianismo em consonância com a união entre corpo
espiritual e corpo físico presentes na epistemologia iorubá. Como consequência dessa
convergência do erotismo e do desejo como substâncias da espiritualidade e da relação entre
corpo físico e corpo “santo” na concepção cristã-ocidental, Rotimi resgata uma vasta tradição
de artistas ao longo da história da arte e da literatura que buscaram transgredir em suas
representações os modos como o cristianismo adotou a noção de corpo. O retrato em questão
compõe a série Ecstatic Antibodies e, assim como as outras obras que compõe a série, Every
Moment Counts I, retém o movimento corporal e o estatismo de um simulacro a serviço da
sacralização do desejo.
Em parceria com seu companheiro Alex Hirst, Fani-Kayode adota a teatralidade em sua
estética fotográfica por meio do contraste da luminosidade no retrato. A semi-penumbra
43

alimenta o viés trágico na desocultação do corpo, modo de enfatizar a expressividade corporal


dos personagens. Dessa forma, mais do que a reprodução de um tableau vivant barroco, a
imagem encenada de Fani-Kayode executa sua própria interpretação. Em Black Friar (Fig.
21), é apresentada uma figura mística encapuzada que se projeta das sombras com o rosto
parcialmente revelado.
Figura 21 – “Black Friar”, Rotimi Fani-Kayode, 1900

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.103


O arquétipo da figura encapuzada, geralmente associada à mitologia da figura do mago,
do frade, do sacerdote, em geral figuras que carregam segredos ocultos, carrega como
acessório o capuz, que simbolicamente intenciona certa invisibilidade do corpo com a
proteção da cabeça e a padronização do vestuário entre os monges. O que Rotimi apresenta
em Black Friar é essa composição da luminosidade como recurso da teatralidade que articula
os desdobramentos visuais da cena: o sacerdote capaz de ver além da escuridão, que ainda não
pode ser visto em detalhes, traria a luz dos mistérios que não podem ser revelados de
imediato, pois provocam o assombro quando encarados sob o excesso de luz. No pensamento
iorubá, a figura responsável por trazer à tona o sutil dos mistérios ocultos do mundo físico é
Òrúnmìlà, considerado no mito cosmológico como o senhor do destino e detentor do saber
transcendental64. Òrúnmìlà é o òrìsà patrono do sistema oracular denominado Ifá da tradição

64
OGBEBARA, Awofá. O início de tudo. In: Igbadu: a cabaça da existência: Mitos nagôs revelados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2014. p. 17.
44

iorubá representado pelos signos, os odus, que são interpretados pelos Bàbáláwo, através da
comunicação com as entidades místicas.
É por meio da exploração dos espaços ocultos da sexualidade e da espiritualidade que
Rotimi encontra sua materialidade poética e lança luz ao enigma da experiência do êxtase
humano65. Tais desdobramentos do corpo são definidos no programa estético do trabalho de
Fani-Kayode e apresentados em seu manifesto Traces of Ecstasy, de 1987 (vide Apêndice) e
publicado junto com sua primeira coleção de fotografias Black Men/White Men em 1988.
Apesar de ter deixado seu país de origem ainda bastante jovem, Fani-Kayode procura
comunicar sua ancestralidade na fotografia, utilizando-a como um instrumento de resistência
em meio à iconografia do homem negro produzida ao longo dos séculos no ocidente.
Estabelecendo o corpo como objeto central em sua composição, a aplicação da teatralidade se
aglutina à imagem pictórica enquanto narrativa ficcional, ou seja, retira o corpo como simples
objeto de representação e amplia sua ressonância simbólica como obra de arte, tão capaz de
comunicar uma realidade quanto um naturalismo instantâneo que a fotografia é capaz de
revelar através do nervo óptico.
Assim como na experiência da negritude no teatro com o TEN, as adaptações que Fani-
Kayode estabelece em seus retratos vão além de um multiculturalismo conciliatório e menos
como uma representatividade que negocia com parâmetros branco-ocidentais. Tais adaptações
buscam ressignificar o protagonismo negro em sua singularidade, com a realidade de
africanos em diáspora e o rompimento com os imaginários estabelecidos pela cultura branca.
Em uma aproximação filosófica, nas manifestações artísticas de artistas africanos em
diáspora, tanto no contexto da cultura afro-brasileira, quanto na arte de artistas imigrantes
como Rotimi, é possível observar traços do que pode ser compreendido como uma filosofia
africana, ou até mesmo traços de um pensamento pan-africanista, ao buscar traçar à partir de
uma “nova” subjetivação um sujeito que se constitui como um entre-ser66 .
Para um pensamento que apreende a diáspora enquanto processo chave na concepção de
um “outro” que se articula sobre um permanente exílio, a ideia de um “entre-ser” como um
ponto de encontro de saberes e atravessamentos transgride a pretensa noção do vácuo que o
desterro pode sugerir. Nesse sentido, Sodré aponta como toda desterritorialização implica
sempre o racismo, quando o migrante, o diferente, um “outro” que vem de fora e que – tal
como expressa um pensamento discriminatório – ameaça uma pressuposta pureza na

65
Mercer, 1996, op. cit., p. 108.
66
Cf. SODRÉ, 2017. p. 93-94.
45

hegemonia territorial. Esse lugar do entre-ser é, consequentemente, um lugar de confronto.


Mas também, e ao mesmo tempo, um lugar intermediário, uma encruzilhada que se traça
dentro de si.
Vivendo parte significativa de sua vida em trânsito entre África, América e Europa,
Rotimi percorreu caminhos que carregam ainda rastros de um desterro que sobre várias
nuances transcende o tempo e o espaço territorial. Por essa razão, mais do que uma solução
para este “não-lugar” do sujeito em diáspora, o entre-ser se caracteriza como lugar de
potência, ponto de intersecção ou um lócus de intermediação.
[...] Por mais que possam manter as características dos seus elementos formadores
(como as memórias das existências de cada uma das vias ou elementos que o
formaram), já não são exatamente os mesmos espaços. Daí a constituição de novas
memórias, de novas experiências, de outro lugar. Esse novo lugar pode ser
entendido como o espaço do “entre”.67

Essa dimensão de encontros e atravessamentos na cultura brasileira já foi amplamente


observada e até mesmo mistificada e romantizada no bojo do mito da democracia racial.
Interessa aqui, especificamente, tratar sobre como esse entre-ser é articulado no trabalho
fotográfico de Rotimi Fani-Kayode para ancorar uma nova subjetivação do corpo negro no
âmbito da diáspora e como ele se inscreve em uma filosofia afrodiaspórica apresentando
chaves simbólicas para uma filosofia iorubá.

67
RAMOS, Jarbas Siqueira. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço de
interseção. Anais ABRACE. Campinas, v. 20, n. 1, 2019. p. 4.
46

2 O PENSAMENTO IORUBÁ NA OBRA DE ROTIMI FANI-KAYODE

Nascido em Lagos, Rotimi Fani-Kayode pertence a uma família proeminente da


sociedade nigeriana e parte importante da tradição do povo iorubá na Nigéria. Crescendo no
trânsito entre África, América e Europa, refugiado ainda jovem da Guerra Civil da Nigéria, a
observação e o contato com a dinâmica social presente nesses três continentes acentuou ainda
mais a relação com suas origens. Nesse sentido, a experiência da diáspora constituiu um fator
determinante tanto na vida quanto no trabalho de Rotimi, condicionando-o a uma
autorrepresentação crítica como artista partindo dessa ruptura com suas origens. Sobre as
marcas provocadas pela migração, Alex Hirst, companheiro e amante de Rotimi, revela:
É importante saber que [Rotimi Fani-Kayode] continuou a acreditar em muitos dos
valores que lhe tinham sido incutidos no passado… O fato de ter deixado a África
como exilado aos onze anos fez com que, durante toda a sua vida, se sentisse
acometido pelo desejo de compreender determinados mistérios que se deparava
sobre si mesmo: as tradições e crenças dos seus antepassados. Tentou entende-los no
contexto de um universo deslocado. Brighton e a escola situada no campo inglês
eram obviamente bastante diferentes de Lagos e Ibadan68.

Partindo do relato de Hirst sobre a complexa relação de Fani-Kayode com o


deslocamento cultural que o exílio provocou na percepção subjetiva do artista, explica-se a
ênfase atribuída ao paradoxo deste entre-ser que caracteriza o sujeito afrodiaspórico em seu
trabalho, menos como um vácuo ou um fosso existencial, e sim como um espaço transitório
que se localiza em si e para além de si mesmo69. É no lugar da encruzilhada como local
epistemológico que o artista encontra a liberdade mesmo através do processo de
desterritorialização de suas origens, que por sua vez é recuperada em sua fotografia através da
busca por uma ancestralidade do corpo. Na retratística,em particular, os mitos e os ritos são
aqui adaptados como formas coletivas de reencontro e restauração de um corpus mítico70
manifestado no próprio corpo-presente, recriando mundos e encantamentos.
Pode-se assumir que o modo como a espiritualidade é articulada na retratística de Fani-
Kayode vai de encontro com a experiência coletiva das comunidades-terreiros no Brasil. A
reter como o filósofo e escritor Muniz Sodré aponta para uma “restituição da soberania
existencial” no sentido de pertencimento ontológico do grupo originário que é tomada, a
princípio, através da experiência do exílio. Sodré assinala ainda que nessa restituição o

68
FANI-KAYODE; HIRST, 1996 apud MERCER, 1988, p. 110
69
SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques. In: Pensar Nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017. p. 94
70
Idem.
47

fenômeno do culto ocupa a posição central na reprodução da “continuidade de outra forma


coletiva de subjetivação”71. No caso das comunidades-terreiros, isso ocorre de forma central,
de modo que a experiência ontológica é reatualizada com o sentido de pertencimento através
do encontro coletivo e da incorporação do mito no campo ritualístico. Na arte de Rotimi, essa
religiosidade – mesmo confinada na dimensão do quadro e da representação – é articulada
esteticamente como vínculo com suas origens através de uma peculiar auto-investigação e, ao
mesmo tempo, como uma possibilidade de adentrar a um mundo sutil que permite encontros e
associações com questões tanto subjetivas quanto sociais.
Sodré faz uma analogia entre o termo grego Arkhé no sentido de “origem” e no sentido
aristotélico de “princípio material” para estabelecer as entidades (òrìsà) como princípios
filosóficos que perpassam a crença religiosa, pois articulam modos de pensamento
cosmológicos e éticos, e assim afirmam “o divino como uma faceta da vida, mas sem
teologia”. Nesse sentido, o pensamento iorubá relaciona-se sempre a partir de dois modos: um
humano, e o outro pelos ancestrais e pelos òrìsà72. A primeira parte, liga-se a certa
fenomenologia na percepção do mundo através do homem e como este se comunica através
dele. A segunda parte, referente ao domínio dos òrìsà, relaciona-se ao modo como a
cosmopercepção73 iorubá é articulada no sujeito individual.
Se a palavra “filosofia” para designar o pensamento iorubá possa parecer , a alguns fiéis
ao pensamento grego inventado pela teologia cristã, inconcebível à um sistema filosófico de
“roupagem” religiosa, para outros, a proximidade entre uma filosofia iorubá e uma filosofia
grega originária é uma leitura possível tanto em coincidências históricas, quanto em relação
ao conjunto teórico de ambos os sistemas de pensamento. A filósofa nigeriana Sophie Bosede
Oluwole, em ocrates and r nm two patron saints of c assica phi osoph , traça esse
paralelo possível entre as figuras míticas da tradição ocidental e africana, Sócrates e
Òrúnmìlà, respectivamente74. Segundo Oluwole, Òrúnmìlà foi um ser humano histórico que
de fato existiu em tempos remotos na Civilização Iorubá (V a.C.) e que, devido a sua
sabedoria e contribuição à ciência política, a filosofia e ao aprimoramento do saber de seu

71
Sodré, op.cit., p.90
72
Idem.
73
Termo mais adequado e inclusivo para referir-se à concepção de mundo de grupos que privilegiam outros
sentidos além da visão. Segundo a filósofa nigeriana Oyèrónk Oyěwùmí, o termo “cosmovisão” aponta para
uma terminologia eurocêntrica utilizada para resumir a lógica de uma sociedade sob a ótica ocidental e que
privilegia a visão negando, ou excluindo, a concepção filosófica de outros povos.
74
PAULA, Naiara; WER, Claudia. Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética.
Voluntas: Revista Internacional de Filosofia. Santa Maria, v.10, 2019. p. 128.
48

povo, após a sua morte passa ser reverenciado como òrìsà75. A imortalização dos saberes
ancestrais e a divinização da figura ancestral, é uma prática de grande relevância na
cosmopercepção iorubá. Assim,
...todo adulto que morre [e tem merecimento], vem a ser um ancestral, e um pequeno
òrìsà em seu próprio local. A morte, entretanto, é vista como um meio de
transformação dos seres humanos, de um nível de existência, no ayé, para outro
nível de existência, no òrun. Quando um homem muda de um nível de existência
para outro, ele [se tiver merecimento], automaticamente adquire grande poder e
autoridade e vem a ser um òrìsà para sua própria família ou linhagem. 76

O trabalho de Oluwole aponta para as semelhanças entre as figuras de Sócrates e


Orunmilá em diversos sentidos, tanto históricos – acredita-se que ambos viveram nos
entornos de 500 a.C – quanto a respeito da própria existência dessas figuras, já que tudo o que
se sabe sobre eles advém de fontes secundárias77. Para além das semelhanças míticas entre
Sócrates e Òrúnmìlà, a pesquisa de Oluwole torna-se inovadora em estabelecer semelhanças
entre o conteúdo teórico e as ideias dos dois filósofos, assim como distanciamentos no modo
como ambos articulam o pensamento.
Ao esclarecer a binariedade presente na filosofia de Sócrates, Oluwole aponta para uma
visão desarticulada do mundo em que há sempre a distinção entre um mundo sensível e outro
inteligível. Essa realidade dividida em duas partes independentes fundamenta o pensamento
ocidental e a tradição de uma filosofia clássica78. Em contrapartida, a filosofia de Òrúnmìlà
está associada a um pensamento articulado na interconexão dos mundos, uma
cosmopercepção abrangente que Oluwole denomina de “complementaridade binária” em que
é possível perceber a si mesmo e ao outro sem oposições79. Desse modo, é possível ler na arte
de Fani-Kayode essa “complementaridade binária” que se articula a partir do vínculo entre o
ritualístico sagrado em conformidade com o ritualístico erótico e a interdependência entre um
mundo sensível e um mundo inteligível.
Essa associação da religiosidade iorubá e de elementos homoeróticos não somente
transgride o exotismo branco-ocidental em relação à espiritualidade africana, mas sobretudo
na formação de um corpo a partir do entrecruzamento e do atravessamento de diversos
saberes e vivências, isto é, o entre-ser, que se constitui aqui como uma espécie de corpo-

75
Ibid., p.130.
76
Abimbola, op. cit., p.3-4.
77
Paula; Wer, op.cit., p. 132.
78
Ibid., p.133.
79
Idem.
49

encruzilhada80, permeado por diversos desdobramentos e atravessamentos de si. Não existe


um corpo apenas, mas vários corpos em várias instâncias. Para o pensamento iorubá, esses
corpos que se somatizam em um são o resultado da união não somente de corpos derivados do
mundo sutil, como também da noção de um corpo que é formado a partir da comunidade. Esta
última ideia se aproxima, por exemplo, da noção de ubuntu, presente na filosofia bantu da
complementaridade entre as diversas formas de existência. Mogobe B. Ramose afirma que,
apesar das variações entre um grupo e outro, pode-se inferir uma afinidade filosófica e um
parentesco ontológico e epistemológico entre os povos do continente africano e que, por essa
razão, pode-se considerar como a base para a compreensão de uma filosofia africana81. Entre
as conceituações levantadas a respeito de ubuntu, no texto A Filosofia do Ubuntu e Ubuntu
como Filosofia, Ramose escreve:
A lógica de Ubuntu é em direção ao sufixo formador de substantivos abstratos (-
dade). Esta lógica se coloca em oposição ao dogmatismo do raciocínio fragmentado.
Um dos primeiros princípios da ética ubuntu é a libertação do dogmatismo. É
flexibilidade orientada para o equilíbrio e para a harmonia no relacionamento entre
seres humanos, e entre os últimos e o mais abrangente ser-sendo ou natureza82.

Através de uma tradição oral que perpassou séculos, a filosofia iorubá tem como
premissa a formação de um mundo sincrético em que as vivências, as experiências humanas e
o sistema metafísico são vinculados, apontam caminhos para o autoconhecimento pessoal, o
que reverbera na relação com a comunidade pela qual pertence. Nesse sentido, a visão
filosófica de Òrúnmìlà aponta para dois importantes fundamentos no pensamento iorubá a
respeito da conscientização do sujeito sobre si mesmo: a ciência da cabeça e a cartografia do
caminho. Partindo da noção de que a realidade se constitui através dos quatro elementos: ar,
terra, água e fogo, tanto a ciência da cabeça quanto a cartografia do caminho são concebidos
através do arranjo desses elementos para a definição do modo de ser de cada indivíduo e o
caminho a ser tomado83.
A princípio, a ciência da cabeça consiste na investigação do orí, palavra da língua
iorubá para designar “cabeça”, mas entendendo-se aqui, na concepção filosófica do

80
Cf. RAMOS, Jarbas Siqueira. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço
de interseção. Anais ABRACE. Campinas, v. 20, n. 1, 2019.
81
RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, p. 49-66. Tradução
de Arnaldo Vasconcellos. p.1-2.
82
RAMOSE, 1999 apud. PAULA; WEIR, 2019. p.134.
83
NOGUERA, Renato. A questão do autoconhecimento na filosofia de Orunmilà. Odeere: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. Bahia, v.3, n.6, 2018, p.
34-35.
50

pensamento iorubá, “cabeça” como constituição e concepção de cada indivíduo antes mesmo
de tomar “forma” humana, o ara. No mito da criação do ser humano, Ajàlá, o oleiro, é o
responsável por moldar os orí, mas devido a sua personalidade descuidada e irresponsável,
nem todas as cabeças são moldadas de formas iguais: algumas ele esquece de cozer, outras
são mal feitas, e ainda existem aquelas que ficam inacabadas84. Acredita-se ainda que, cada
indivíduo, mesmo antes de ter ara, é livre para selecionar o orí que desejar, independente de
sua aparência, e a isso é atribuída a noção de livre-arbítrio. Entretanto,
a maioria das cabeças moldadas por Ajàlá são ruins e imprestáveis, [e como a quase
todos os ara-òrun não consultam Ifá antes], segue-se que a quase totalidade dos
indivíduos que vão para a casa de Ajàlá, escolherão cabeças ruins e imprestáveis.
Além de Ajálà, somente Òrúnmìlà, o senhor da divinação e sabedoria, é a outra
testemunha do ato da livre escolha dos orí. Daí, a importância de consultar Ifá de
tempos em tempos, para saber o desejo do seu Orí85.

Em linhas gerais, a ciência das cabeças se articula de modo a determinar uma


constituição interna (orí) do indíviduo e analisar como os quatro elementos se manifestam no
respectivo orí escolhido anteriormente. A partir dessa ciência, a filosofia de Òrúnmìlà aponta
para a recomendação filosófica da leitura de si mesmo e o reconhecimento da história da
família, dos ancestrais, das relações sociais e da cultura a que pertence o indivíduo e os
caminhos que o levaram a chegar ao momento presente86. Um olhar superficial pela
complexidade desse sistema filosófico pode estabelecer um conflito entre as noções de
determinismo e livre-arbítrio, já que o orí, em uma leitura mais aprofundada, refere também o
conceito de destino e individualidade.
Ainda assim, para o pensamento iorubá, o destino não é perpétuo e o orí percorre
diversos caminhos ao longo de toda sua jornada tanto no òrun quanto no ayé. Assim, faz-se
necessário “compreender os caminhos possíveis considerando a natureza do orí e como ele se
movimentará”87, traçando deste modo uma cartografia dos caminhos. Essa cartografia não diz
respeito a uma ordem determinista em como o indivíduo deve ou não seguir devido ao seu
orí, mas sim corresponde a um modo de pensar em que esse caminhar dá-se através da
intersecção de caminhos dos quais o orí percorrerá quando guiado por cada um dos quatro
elementos88.

84
Abimbola, op. cit., p. 9-10.
85
Ibid., p.10.
86
Noguera, op.cit., p.37.
87
Idem.
88
Ibid., p. 38-39.
51

Ao contrário do dogmatismo e da imutabilidade que constituem o pensamento


fragmentado da tradição filosófica ocidental, é possível falar de uma filosofia africana – no
sentido de afinidade filosófica entre os grupos bantu e iorubá como propõe Ramose e Oluwole
– tendo como premissa uma cosmopercepção que apreende um mundo sensível e outro
inteligível, interconectado e interdependente a uma mesma realidade epistemo-ontológica.
Tendo sido parte de uma longa tradição familiar de Bàbáláwo da cidade mítica de Ile-
Ife, Rotimi Fani-Kayode mesmo após o exílio buscou contato com essa base filosófica iorubá
de Òrúnmìlà, buscando associá-la em sua arte através daquilo que o artista denomina “traces
of ecstasy” para representar essa interconexão entre dois aspectos de uma mesma realidade: o
mundo físico e o mundo espiritual, o mundo ocidental e a tradição iorubá. Sem disassociar
elementos aparentemente opostos, Rotimi adapta essa “complementaridade binária”
desenvolvida na filosofia de Sophie Oluwole para articular esses elementos e ampliar a
percepção da relação transcultural entre Ocidente e África.
Além disso, ao centralizar o corpo do homem negro, Rotimi transforma a retratística
numa prática da leitura de si – mesmo quando não se trata efetivamente de um autorretrato –,
menos como uma produção narcisística na obsessão da imortalidade de sua própria imagem,
mas principalmente na perspectiva do espelho de Ọṣun, que mais do que revelar a imagem de
quem o observa, é sobretudo capaz de “demonstrar o percurso que tornou possível que o
sujeito esteja onde está”89. A imagem aqui na metáfora do espelho de Ọṣun corresponde
menos esse espelhamento do real, mas seu aspecto multidimensional, transcendente a essa
caminhada que ultrapassa os caminhos do corpo em existência física transformado em ara,
para ir de encontro às encruzilhadas percorridas pelo orí.

89
Noguera, op.cit., p.37.
52

2.1 A CORPOREIDADE E O ENCANTAMENTO EM BODIES OF EXPERIENCE

Tal como dito anteriormente, a centralidade do pensamento iorubá – assim como na


filosofia bantu, observada por Ramose – está na cosmopercepção do mundo através da
complementariedade dos elementos ecológicos, ontológicos e metafísicos.
Consequentemente, a noção de corpo tem seu lugar nessa percepção de interdependência entre
os elementos que compõem este cosmos iorubá. No entanto, falar da noção de corpo na
filosofia iorubá é falar de um movimento contrário à tradição cartesiana dualista no ocidente
que preconiza a oposição entre corpo e mente, e que, ao mesmo tempo, supervaloriza o corpo
enquanto princípio de determinação biológica e de diferenciação social.
Essa última distinção é observada pela socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí como
um “racionalismo corporal”. Em seu texto Visualizing the Body: Western Theories and
African Subjects, a autora analisa como, em relação à sociedade iorubá, o pensamento
ocidental atribui ao corpo categorias sociais correspondentes a um determinismo biológico na
sociedade90. Isso se deve ao fato de que no ocidente a visão foi e tem sido o único sentido na
apreensão da realidade e o princípio ordenador da diferenciação e categorização dos corpos,
em relação a ausência ou até a presença de determinados órgãos. Segundo Oyewùmí, tal
atribuição é inconcebível em um pensamento que apreende o mundo através de uma
multiplicidade de sentidos e do qual o corpo não ocupa lugar em vista (e à vista) de
categorizações sociais únicas e imutáveis91. Nesse sentido, o corpo é parte integrante e
pertencente ao mundo concebido como um todo interligado, interdependente, sem privilegiar
o metafísico sobre o físico e vice-versa, pois ao atribuir “um foco na visão como o principal
modo de compreender a realidade eleva o que pode ser visto sobre o que não é aparente aos
olhos; perde os outros níveis e as nuances da existência”92. Em outras palavras, o corpo na
cosmopercepção iorubá estaria relacionado à simultaneidade da existência e,
consequentemente, da interdependência entre os mundos físico e sensível, percebidos e
apreendidos através de todos os outros sentidos disponíveis além da visão.
Enquanto artista africano da diáspora, Rotimi Fani-Kayode transgride o posicionamento
do corpo masculino negro e como ele é estabelecido na dinâmica de uma “semiologia” visual

90
OYĚWÙMÍ, Oyèrónk . Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects in: COETZEE, Peter
H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002. Trad.
Wanderson Flor do Nascimento. p. 4.
91
Ibid., p. 19.
92
Ibid., p. 20-21.
53

da cultura ocidental. Razão porque, em sua retratística, os corpos-encruzilhadas ultrapassam a


lógica colonial que investiu na objetificação de seres humanos. Mais do que refletir um desejo
sobre outros corpos masculinos ou traçar caminhos autobiográficos, a centralidade do corpo
negro masculino no trabalho de Fani-Kayode sugere o esforço em ultrapassar os sentidos
primários e atravessar uma subjetividade do corpo negro através da potência, do àse93, da
sabedoria originária e ancestral que se apoia em princípios de uma cosmopercepção da
diáspora como a ciência do encantamento e a noção da corporeidade, fundamentos chaves
para pensar a partir da constituição do pertencimento a um corpo desterritorializado.
Esse saber que percorreu as encruzilhadas transatlânticas e que se reinventa no Novo
Mundo, está presente nos terreiros, ou comunidades-terreiros, que promovem essa experiência
da corporeidade ultrapassando os limites da teologia para incorrer na dimensão tátil da
experiência humana. Essa cosmopercepção afro enquanto continuidade viva que possibilita a
invenção e o encantamento do mundo, implica
um tipo novo de subjetivação, em que ocupam um primeiro plano a experiência
simbólica do mundo, o primado rítmico do existir, o poder afetivo das palavras e das
ações, a potência de realização das coisas, as relações interpessoais concretas, a
educação para a boa vida e para a boa morte, o paradigma comunitário, a alegria
frente ao real e o reconhecimento do aqui e agora da existência. 94

É nesse sentido que falar acerca de uma cosmopercepção da diáspora é também falar de
uma filosofia africana, onde princípios éticos, saberes mitológicos e espirituais formam
pilares para a perpetuação desse pensamento em culturas afrodiaspóricas do Atlântico negro.
A potência desses saberes resistiu aos esforços de objetificação e desencantamento do corpo
negro aplicado pela lógica colonial, articulando e assentando sobre esse corpo princípios e
fundamentos que o capacitava à sobrevivência pessoal e coletiva.
Sodré observa traços do que ele define de um “si-mesmo” corporal presente na filosofia
de culturas tradicionais, como a cultura iorubá. Ao designar este “si corporal” enquanto
“potência afetiva de ação” 95 que compreende o corpo como sendo ele próprio o “componente
fenomenológico da experiência singular” de ser humano no mundo, o filósofo aponta para a
dimensão de uma subjetividade orgânica compartilhada e que se desdobra na noção de
corporeidade. Essa corporeidade estaria relacionada a um “sujeito coletivo”, não “entidade

93
Cf. SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques: desejo como potência. In: Pensar Nagô. Petrópolis:
Editora Vozes, 2017.
94
Sodré op. cit., 2017, p. 100.
95
SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques: o si-mesmo corporal. In: Pensar Nagô. Petrópolis: Editora
Vozes, 2017. p.104-105.
54

pessoal e interiorizada, mas “máquina” de conexões e intensidades num plano imanente ao


grupo”96. Nesse sentido, Sodré aponta para a importância da corporeidade inserida na
compreensão de corpo a partir do pensamento nagô e como isso reflete precisamente a
experiência coletiva que perpassa o corpo individual. Pois, assim como a complementaridade
entre o òrun e o ayé constitui o cosmo iorubá, o sujeito interdepende da comunidade, física e
espiritual, na concepção de sua própria existência e constituição enquanto pessoa.
Em um paralelo com a lógica de ubuntu presente no pensamento africano, na qual se
busca pensar um mundo integrado e apreendê-lo através da multiplicidade de sentidos, a
corporeidade corresponde à dinâmica entre intensidades individuais relativas a uma potência
coletiva, como uma espécie de aglutinação de corpos autônomos que compõem essa potência
integralizadora, promovendo um tipo especial de conhecimento intuitivo do mundo. Essa
experiência é vivida – e principalmente sentida – tanto na corporeidade das comunidades-
terreiros, como no jogo de capoeira, em que o corpo negro na lógica da diáspora se localiza
como suporte de saber e memória. A aproximação entre o terreiro e a capoeira enquanto
manifestações dessa corporeidade desponta para um modo singular de encarnação de um
pensamento africano inserido na cosmopercepção afrodiaspórica.
Os historiadores Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino abordam essa relação primordial
entre o corpo negro e seu pertencimento na dimensão do terreiro e da capoeiragem para o
pensamento afro-brasileiro97 enquanto assentamento e entrecruzamentos de práticas dos
saberes aplicados na fisicalidade do corpo. Eles consideram que
o corpo codificado como terreiro é aquele que é cruzado por práticas de saber que o
talham, o banham, o envolvem, o vestem e o deitam em conhecimentos pertencentes
a outras gramáticas. Tais ritos vigoram esses corpos os potencializando ao ponto que
os saberes assentados nesses suportes corporais, ao serem devidamente acionados,
reinventam as possibilidades de ser/estar/praticar/encantar o mundo. 98

Interessa aqui inscrever a apresentação do corpo na retratística de Fani-Kayode como


manifestações que decorrem desses corpos-encruzilhadas e corpos-terreiros. Evitando
representações de um tradicionalismo que acidentalmente recorreria à acepção ocidental de
um certo primitivismo, a aproximação que se faz aqui de sua produção com a lógica corporal
no pensamento afro-brasileiro apresenta uma potencialidade singular na representatividade do
corpo negro nas artes “ocidentocêntricas”, para utilizar de uma terminologia que estende a

96
Ibid., p.106.
97
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Tudo que o corpo dá. In: Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018, p. 47.
98
Ibid., p. 48.
55

dimensão “eurocêntrica” para incluir aqui a influência norte-americana. Ocorre que, na


dimensão de uma filosofia afrodiaspórica – no caso afro-brasileiro -, o pensamento africano
não ocupa uma posição exclusivamente litúrgica, tradicionalista ou teológica, mas é aqui
reinventado constantemente através do movimento, da ginga, do drible.
Na série Bodies of Experience, as imagens que Rotimi propõe vão de encontro a essa
experiência de entrecruzamento singular do corpo na dimensão do terreiro. Ao apresentar o
espaço do sagrado como meio de interação e articulação da corporeidade, o artista reencena a
ativação da potência do corpo negro na feitura do benzimento no caso de Nothing to Lose XIII
(Fig. 22). Nessa fotografia, Rotimi toca com as mãos e um punhado de folhas a cabeça de um
homem, gesto comum nos rituais das religiões de matrizes africanas na diáspora, e na tradição
brasileira, como o benzimento enquanto prática espiritual.
Figura 22 – “Nothing to Lose XIII”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p. 97


Nas comunidades remanescentes, o gesto de benzer a cabeça funciona tanto como cura
espiritual, como tratamento de saúde física e dos “males do corpo”, registro que a
racionalidade e os aparatos da medicina ocidental não conseguem alcançar. Através dessa
cosmopercepção que não apreende o corpo e o espírito como elementos separados, o
tratamento de um consequentemente afeta o tratamento do outro. A palavra, a reza e os gestos
corporais na feitura do benzimento compõem o âmbito do rito e da fé encarnada naquele que
benze, mas também naquele que recebe o benzimento, não como sujeito passivo na
56

dialogicidade da ação, mas agente no momento que aciona esse encantamento no próprio
corpo.
A cabeça enquanto princípio central na filosofia iorubá, considerado elemento
fundamental na concepção da identidade do sujeito, portadora do destino e da divindade que
ordena seu corpo, é principalmente cultuada nos rituais de iniciação no Candomblé de Ketú.
Na feitura do santo, o rito de passagem inicia-se com a raspagem dos cabelos e no
recolhimento do corpo, que fica resguardado durante 21 dias, quando são realizados banhos,
borís, oferendas, o processo de aprendizado nas rezas, nos cantos e no “assentamento da
cabeça”, como ritual em que a cabeça é pintada com efun99 (Fig. 23). A associação entre o
culto da cabeça nas regiões da sociedade iorubá Daomé (Benim), Nigéria e Togo, com os
rituais praticados no Brasil foi amplamente registrado pelo fotógrafo francês Pierre Verger,
que observou ao longo de seu trabalho de pesquisa as interconexões e a continuidade de uma
tradição mesmo após a discriminação dessa religiosidade na América-negra
Figura 23 – “Briki, Ifanhin, Benin”, Pierre Fatumbi Verger, 1958

Fonte: Acervo Pierre Verger100

A composição das fotografias presentes na série Bodies of Experience de Rotimi Fani-


Kayode abre caminhos para o olhar diante de uma narrativa encenada do corpo encantado.

99
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. Candomblé. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. Disponível em:
http://www.museuafrobrasil.org.br/docs/default-source/publica%C3%A7%C3%B5es/candombl%C3%A9.pdf.
Acesso em 17 jun. 2021. p. 3.
100
Disponível em: http://pierreverger.org/br/acervo-foto/portfolios/dieux-d-afrique.html. Acesso em 17 jun.
2021.
57

Nesse caso, o desterro do corpo negro causado pela imigração não impossibilita o
encantamento, aqui ele é reinventado. Se o trabalho fotográfico – e etnográfico – de Pierre
Verger acontece devido ao deslocamento e “ao retorno às raízes”, a produção fotográfica de
Rotimi vai de encontro às manifestações de resistência na cultura afro-brasileira, que
reinventa esse encantamento através do próprio corpo enquanto presença viva do rito e da
memória ativando espaços sagrados mesmo no contexto violento e traumático da
desterritorialização. Portanto, é possível apreender assim o quadro na retratística de Fani-
Kayode menos como um mero “palco” onde o corpo encena ou imita gestos, mas sim
enquanto espaço em que o corpo manifesta seu encantamento. Tal como no jogo de
capoeiragem, no benzimento, ou no espaço sagrado e ritualístico do terreiro.
Nesse espaço reinventado do rito, a proposta do corpo negro enquanto terreiro é
apresentada em cena na fotografia de Fani-Kayode. Entende-se aqui por “terreiro” uma
corporeidade que se manifesta em “potência afetiva de ação” de forma plural, para utilizar da
conceituação de Sodré. Nesse sentido, cada elemento que compõe a série Bodies of
Experience corresponde a uma experiência singular do corpo dentro da dimensão do terreiro
enquanto dimensão de ativação do encantamento e de atravessamentos possíveis da
corporeidade física e sensível. Mas também, como o primeiro registro do ser no mundo, o
corpo é presença e reivindicação de si101 é aquilo que nos dimensiona em existência e que
viabiliza atravessamentos múltiplos permeados pelas experiências vividas.
A potência gerada pela constelação dos corpos em performance firma o ritual, assenta e
invoca o rito no espaço da corporeidade, ora oferecendo o corpo como transmissor da cura,
ora preparando este corpo para o transe. No ritual iniciático, o corpo pintado de efun e
recolhido em um ciclo intenso de aprendizados é preparado e concentrado para receber o
transe. No retrato de Nothing to Lose XI (Fig. 24), o corpo é feito partindo da cabeça, ou
melhor, da face mascarada, neste novo corpo que veste ara. O simbólico de Nothing to Lose
XI é a reencenação do mito no espaço da corporeidade, que, de acordo com Sodré, é
justamente o lugar do ritualístico onde se principia a manutenção litúrgica, adaptado no
contexto da diáspora como agenciador dos afetos e das memórias, e tendo seu acesso no
intermédio de ayé e òrun por meio do transe.

101
Simas; Rufino, op.cit. p. 51.
58

Figura 24 – “Nothing to Lose XI”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.90-91

No intermédio, local suspenso do sagrado, dos trânsitos entre as entidades e as pessoas,


lugar onde nada se firma, o corpo ocupa a função de ebó, oferenda ou sacrifício direcionado
às entidades em determinadas ocasiões. Cada òrìsà recebe um determinado tipo de ebó feito
com os mais diversos elementos, frutas, animais, comidas, etc. Aqui, no retrato de Rotimi, o
corpo ofertado instaura a fisicalidade de seu trabalho na dimensão do sagrado. Nothing to
Lose XII (Fig. 25) é a manifestação do corpo-encruzilhada, como lugar sacrificial do corpo,
direcionado não exclusivamente a um determinado òrìsà de forma explícita, mas em
detrimento e em razão da ação erótica, implicada pelo desnudamento, capaz de provocar a
dissolução até a imolação, com vistas à continuidade perpetuada pela morte.
Ao convocar aqui a lógica do corpo-encruzilhada, faz-se uma analogia fundamental no
princípio cosmológico de Èsù como figura mediadora, dinâmica, que tem o poder e a
permissão de transitar livremente entre o ayé e o òrun. O próprio senhor das encruzilhadas, do
mundo suspenso e ordenador dos movimentos da vida e da morte, Èsù , se faz presente na
retratística de Fani-Kayode sob os domínios de um erótico sagrado, mas também enquanto
princípio transgressor, subversivo, que ordena e desordena, confunde para explicar. O lugar
do entre-ser na fotografia de Rotimi é potencializado pelo entre-lugar da encruzilhada e da
dinamicidade que a entidade que transita por ela incide. Por isso, mais do que um elemento
metafórico, Èsù é um princípio que ordena esses corpos aqui retratados e figura que merece
atenção especial.
59

Figura 25 – “Nothing to Lose XII”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.95

Ainda que Bodies of Experience firme o encantamento do corpo negro assentado no


espaço ritualístico, Rotimi nega qualquer tipo de fronteira existente entre o erotismo e a
ritualidade que habita os corpos masculinos aqui retratados, e encontra no princípio de Èsù a
ambiguidade e os extremos das emoções que o artista busca ressaltar em seu trabalho. Em
comunhão com essa corporeidade do espaço do terreiro, o erotismo presente em diversos
momentos de sua fotografia traça paralelos e cruzamentos possíveis entre o aspecto sagrado
do ritualístico no jogo entre vida e morte. Trata-se aqui de estabelecer o paralelo entre as
potencialidades do corpo tanto no transe sexual, quanto no transe espiritual, onde sagrado e
profano se encontram através da dimensão do erotismo. Ao versar sobre as ambivalências,
dominando e operando princípios de possibilidades e imprevisibilidades 102, a figura
transgressora de Èsù na cosmovisão ocidental desperta lugares ambíguos e desordenadores
que Rotimi identifica como fundamentais para a concepção de seu trabalho fotográfico.

102
Simas; Ruiz, op.cit. p. 52.
60

2.2 O CORPO “EXUSÍACO” NO TRABALHO DE ROTIMI FANI-KAYODE

Por ocasião da exposição The Invisible Man, em 1988, na Goldsmiths Gallery de


Londres, Rotimi apresenta a série Abiku (Born to Die), acompanhada de um texto que compõe
o catálogo da exposição em que o artista convoca Èsù – o princípio cosmológico entre o òrun
e o ayé no pensamento iorubá – como uma metáfora constante em seus trabalhos. A intenção
do texto não é delimitar uma única representação de Èsù, mas sim estabelecer uma
conceituação dos distintos modos pelos quais a manifestação dessa entidade se faz presente,
apresentando de modo poético sua relação com o erotismo, o corpo, o tempo, a vida e a
morte:
Èsù presides here because we should not forget him. He is the Trickster, the Lord of
the Crossroads, sometimes changing the signposts to lead us astray. At every
masquerade (which is now sometimes called Carnevale – a farewell to flesh for the
period of fasting) he is present, showing off his phallus one minute and crouching as
though to give birth the next. He mocks us as we mock ourselves in masquerade.
But while our mockery is joyful, his is potentially sinister… We fear that under the
influence of Èsù‟s mischief our masquerade children will have a tough birth or will
be born sickly. Perhaps they are Abiku – born to die. They might soon return to their
friends in the spiritual world, those whom they could not forget. We see them here
beneath the caul of the amniotic sac or with the umbilical cord around their neck or
wrist. We see their struggle for survival in the face of great forces…These images
are now offered to Èsù because he presides here. It is perhaps through him that
rebirth will occur.103

É impossível estabelecer uma definição para o corpo da figura complexa, dinâmica e


multifacetada que representa Èsù. Embora existam contradições a respeito das características
que o distingue das outras entidades, a citação de Rotimi demonstra como Èsù se apresenta
enquanto um conjunto de enunciados104 e uma figura multifacetada também na lógica
afrodiaspórica presente nas religiões de matrizes africanas na América. O que há, na verdade,
é uma suposta formalização que agrupa as multifaces dessa entidade dinâmica e plural, uma
constelação pela qual Èsù se articula e se mascara, não podendo haver uma efetiva
uniformização ou uma unicidade que funda a de identificação dessa figura.

103
Fani-Kayode; Hirst, 1990 apud Mercer, 1988, p. 119.
104
FERNANDES, Alexandre de Oliveira. Um Corpo/Corpus para Exu: Nem Eros, nem Tânatos, nem Apolo,
nem Dionísio. Revista Nures - PUC-SP, ano 8, n. 21, 2013, p. 2.
61

“Sem fim e nem começo”, Èsù é uma figura atemporal na mitologia iorubá. Uma das
hipóteses é a de que seja um dos filhos de Òrúnmìlà que veio ao mundo em forma de òrìsà105,
mas isso não é um consenso entre estudiosos da mitologia iorubá, mesmo que ambas as
entidades estejam frequentemente associadas em diversos mitos. De fato, o que se concorda é
quanto a sua participação no mito cosmogônico que declara ser Èsù o “responsável pela
conservação do axé, o grande e divino poder com o qual as divindades realiza seus feitos
sobrenaturais”106, participante ativo da criação do mundo e na manutenção do jogo das forças
cósmicas. Segundo Ade Dopamu107, a maioria dos iorubás compartilham a ideia de que Èsù
personifica o mal e o responsabiliza por situações de discórdia, briga, perigo, má conduta e
loucura. Para Dopamu108, “Èsù é o inimigo invisível do homem”; ardiloso e hábil, ele aponta
para uma luta fundamental entre o Bem e o Mal que se articula em duas instâncias: no visível,
através das relações sociais, e no invisível, no íntimo do ser humano, onde Èsù é uma
realidade externa, bem como um demônio psicológico em nós”109.
Nas mais variadas vertentes da religiosidade africana instauradas no Brasil, Exu se
manifesta em múltiplos: é Exu-catiço, Tranca-Rua, Sete Facadas, Marabô, é Exu-orixá, Exu
iniciado ou travestido de Ogum110. Está presente na performance de Madame Satã111, bem
como nas fotografias documentadas de uma Salvador distópica de Mario Cravo Neto. No
pensamento afro-brasileiro, Exu é a entidade que ensina através do caos, e que por isso, é
potência vital, isto é, aquele que gera a vida. Através de suas várias faces e da ambiguidade
que compõe essa constelação formada pelo corpo – ou corpus de Exu112 – expande-se à
alteridade e tangencia-se às identidades polarizadoras para dar lugar ao movimento das
múltiplas e indeterminadas identidades possíveis, como em um constante devir. Aliás, é uma
economia do princípio que rege Exu, concebendo o “outro” como sendo o mesmo dele113, isto
é, dilui-se a oposição que pressupõe o sistema dialético e reconhece-se sua universalidade nas
configurações a respeito de todas essas identidades possíveis. Não pode haver uma

105
ALMEIDA, Maria Inez Couto de. Cultura Iorubá: costumes e tradições. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
p.100.
106
ABIMBOLA, 1976 apud RIBEIRO, 1998, p. 64.
107
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Deus, Divindades e Poder Ancestral. In: Alma africana no Brasil: os iorubás.
São Paulo: Oduduwa, 1998, p. 60.
108
Idem, 1992. p. 201.
109
Ribeiro, 1998, op.cit., p. 65.
110
Ibid., p. 5.
111
MADAME SATÃ. KarimAinouz. Videofilmes Produções Artísticas LTDA, 2002.
112
Fernandes, op. cit., p. 4.
113
Idem.
62

uniformização de Exu, pois ele se movimenta nos extremos, através de suas múltiplas formas
de comunicação.
Para dimensionar as expressões de Exu na retratística de Fani-Kayode, cumpre ajustar
as figurações “exusíacas” e seus domínios em vários sentidos da vida humana presentes na
constelação do pensamento afrodiaspórico, bem como sua configuração demoníaca na noção
iorubá. Já que a centralidade de sua obra encontra-se na presença do corpo-encruzilhada,
considerem-se todos os diversos atravessamentos e movimentos possíveis que acontece em
Exu, ora como articulador do mal, da loucura, da raiva, do desejo, do erotismo, do tempo, da
vida e da morte. Uma atribuição dessa divindade como princípio do sagrado e do profano114,
agente de energia paradoxal entre o humano e o divino, encontra-se sintonizado com o corpo
negro masculino presente na fotografia de Fani-Kayode de modo a confrontar as
representações desse corpo ao longo da iconografia ocidental.
Ao convocar Èsù, Rotimi afirma o caráter dinâmico dessa entidade presente em seu
trabalho. Como um trickster ou como o Senhor das Encruzilhadas, ele é movimento – nem
oposto, nem a favor – que gera a vida, mesmo “zombando” de nós, mesmo desordenando as
“placas de sinalização” dos caminhos e até mesmo nos amaldiçoando. Ele é também a
possibilidade do renascimento. É ele quem diviniza e potencializa o lugar do entre-ser, tão
central para pensar a subjetividade no trabalho do artista imigrante: é a entidade que articula
seu poder através dos extremos, sobre os trânsitos, é quem trapaceia, mas é também aquele
que promove e ordena a justiça. Tal relato não só insinua o poder dessa figura no trabalho
fotográfico do artista, como também evidencia a ampla dimensão simbólica que ela representa
na cosmopercepção iorubá, assim como sua relevância e centralidade na concepção de um
pensamento afrodiaspórico.
A alteridade que se expande sobre a figura simbólica de um Èsù iorubá até as múltiplas
manifestações do Exu transatlântico ocorre também nos corpos dos homens negros
apresentado por Fani-Kayode. Em seus ensaios fotográficos, o contato da entidade com o
“outro” na dimensão do quadro, da corporeidade ritualística encenada, acontece sem fixá-lo
em sistemas de oposições binárias, permitindo que os elementos localizados no espaço e no
tempo cruzem-se e incorporem-se em um processo de simbiose. Se, assim como afirma Juana
Elbein, “em cada ser há um Exu”115, seja como ordenador ou como “demônio psicológico”,

114
FERNANDES, Exu: sagrado e profano. Odeere: revista do programa de pós-graduação em Relações
Étnicas e Contemporaneidade – UESB, ano 2, n. 3, vl. 3, 2017, p. 56.
115
SANTOS, 1976 apud SODRÉ, 2017, p. 175.
63

somos envolvidos em uma relação antropofágica, produto da fusão e da diluição das fronteiras
individuais, onde não se sabe “onde um começa e o outro termina”116.
Através do transe, do encarnar ou incorporar Èsù nos corpos encenados da poética de
Fani-Kayode, pode-se perceber como o erotismo transgride qualquer interdito aplicado sobre
o corpo, a sexualidade e o poder. É por essa razão, que sua presença é tão temida pela
sociedade ocidental, principalmente nas regiões com um passado colonial como Brasil e
Cuba, onde a figura simbólica de Exu representa essa transgressão simbólica dos mais
diversos formatos de controle do corpo e da sexualidade instaurado pela Igreja e seu papel
civilizatório nas colônias. Contudo, mais do que representar uma contravenção ao puritanismo
do corpo conformado pela moral cristã, o princípio pelo qual Èsù incita e se aproxima do
conceito de erotismo está centrado na articulação da sedução como elemento da ordem do
mistério e que dá margem ao acesso pela via do sagrado.
Essa possibilidade de incorporar Èsù provocada pelo transe (pelo êxtase) estabelece a
relação entre sagrado e profano através da fusão do corpo mítico com o corpo humano,
resultando em uma sacralidade assentada na fisicalidade, na vida em geral, transbordando e
ultrapassando as barreiras do espaço mítico. Ao romper qualquer fronteira que separa a carne
do espírito, a figura de Èsù, bem como todo a cosmologia iorubá, se posiciona na contramão
de um pensamento cristão que vê no corpo as impurezas fisiológicas e animalescas do
instinto.
Corpo polimorfo que se apresenta através da sexualidade sagrada instrumentalizada no
confronto com a moral e a autoridade, Èsù é inscrito sobre a pele, convocando a plástica de
uma de suas possíveis representações simbólicas: com o falo evidente e chifres, no retrato
Untitled (Fig. 26). Apresentando a imagem de um corpo que estampa a figura de olhos e
chifres na parte inferior, onde o pênis projetado e pintado é propositalmente posicionado em
evidência na cena, Rotimi compõe a imagem da face oculta do interdito sagrado. O
rebaixamento da face implica, sobretudo, uma aproximação entre a divindade Èsù como o
signo do divino diabólico e o infame, além de desocultar essa face exusíaca que habita todo
corpo humano. Ao evidenciar o pênis como sendo parte de um rosto diabólico e exusíaco, o
artista remete a esse aspecto temido pela moral, mas que, no sistema patriarcal e falocêntrico,
é também vinculado ao desejo e ao poder masculino.

116
Fernandes, op.cit. p. 56.
64

Diante dos diversos formatos estereotípicos discriminatórios sobre o corpo do homem


africano durante o processo de escravização e de tráfico humano no período colonialista, o
pênis se caracteriza como um elemento primordial na construção das projeções imagéticas
coletivas sobre a sexualidade do homem negro. Seu desempenho, desenvoltura e
comportamento sexual é associado ao tamanho, configurando-o assim dentro do estigma de
detentor do sexo e do prazer na contrução da relação de erotismo e erotização dos corpos. No
contexto colonial, portanto, além do corpo masculino negro ser animalizado, inferiorizado e
objetificado, também se transformou em um elemento de luxúria para o colonizador117.
Figura 26 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1987-1988

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.89

Mesmo que desejada, a presença do pênis do homem negro em um sistema falocêntrico,


é também temido, inclusive pelo homem branco inserido nesse sistema que considera o
tamanho e a proporção dos órgãos sexuais masculinos como uma metáfora relacionada a
virilidade e a potência sexual. Em sua abordagem psicanalítica, Frantz Fanon observa como o
homem negro é sintetizado no olhar ocidental a partir de sua genitália e como o corpo negro
em si representa uma ameaça a consciência sexual para o homem branco118. Esse paradoxo
que se estabelece em torno do pênis no pensamento falocêntrico ocidental acaba sendo
apropriado conscientemente e, ou inconscientemente – pelo próprio homem negro vítima de

117
SANTOS, Daniel dos. Ogó – encruzilhadas de uma história das masculinidades e sexualidades negras na
diáspora atlântica. Universitas Humanas, Brasília, v. 11, n. 1, 2014, p. 10-11.
118
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 139.
65

violências psicológicas e sexuais, em certos valores patriarcais presentes no código de


comportamento masculino do homem branco, como a força física e o desempenho sexual.
As diversas metamorfoses e os sincretismos pelos quais essa entidade foi permeada
desde a origem na sociedade iorubá até a diáspora africana foram observados pelo historiador
Jaime Sodré, que buscou registrar a presença multifacetada de Exu “como elemento
dinamizador das práticas [representativas] de nações [afrodiaspóricas]”119. O historiador
convoca as observações de Pierre Verger a respeito das representações plásticas da figura de
Exu nas regiões do Brasil e em Cuba, identificando “a configuração de elementos que o
associam com o diabo”120, por vezes apresentando características fálicas, e relacionado
intencionalmente com a cor vermelha, apresentando chifres e um tridente. No contexto
africano, a figura de Èsù é representada como o princípio fundador em Elegbará, ou Èsù-
Elegbá, em geral, são estatuetas de figuras masculinas e femininas, cujo traço mais
característico, conforme observa Sodré, é a cabeleira longa e recurvada para trás e sempre
pintada de preto.
No retrato de Fani-Kayode, o pênis é demonizado, tal como a própria representação
plástica de um Exu nas Américas. Inscrito e desenhado sobre o corpo, o artista associa e
incorpora a divindade da religiosidade tradicional africana com questões que ainda perpassam
a subjetividade do homem negro no mundo ocidental desde o contexto do colonialismo. A
simbologia do pênis no sistema falocêntrico e patriarcal é aqui restituído em uma nova
linguagem mística do princípio de Èsù, que não se opõe ao sagrado e ao profano. Mais ainda,
Rotimi intenciona fabricar uma poética exusíaca do corpo revelando um erotismo que
representa o Mal e o diabólico sagrado, isto é, a tentação que a sexualidade propõe. Tal é a
ambiguidade que fundamenta a entidade de Èsù e que o artista apropria para esculpir esses
corpos-encruzilhada de seu trabalho, reconstruindo o mito sobre um outro contexto cultural.
Esse território do corpo, onde sagrado e profano se encontram como fundamentos para a
elaboração de um erotismo místico, também é observado na série do livro Laróyè do fotógrafo
brasileiro Mario Cravo Neto, que documenta cenas das ruas da cidade de Salvador entre as
décadas de 1970 a 1990 retratando os diversos cenários que coexistem dentro da dinâmica do
espaço público. O livro intitulado com a saudação que se faz a Exu no candomblé compõe
141 imagens que, em conjunto, formam uma constelação simbólica dessa divindade na

119
SODRÉ, Jaime. Exú: a forma e a função. Revista VeraCidade, ano 4, n. 5, 2009, p. 3.
120
Ibid., p. 4-5.
66

paisagem soteropolitana e no corpo negro marcado pelo passado de escravidão121. Através de


um ponto de vista particular, Mario Cravo Neto aponta a sua câmera para os aspectos mais
crus da dimensão marginal pela qual o erotismo se encontra na sociedade brasileira. De fato, o
fotógrafo documenta cenários imprevisíveis, como se a câmera invadisse espaços íntimos das
pessoas e dos espaços ali retratados. Nas fotografias que compõem Laróyè, Nunes identifica
aspectos das narrativas mitológicas sobre Exu, reunidas previamente no estudo do sociólogo
Reginaldo Prandi em Mitologia dos Orixás, e como os mitos se articulam na visualidade do
fotógrafo. A fotografia selecionada (Fig. 27) apresenta uma cena provavelmente clicada
durante o carnaval de rua de Salvador, projetada de cima, a imagem incide sobre homens
negros aglomerados, alguns vestidos e outros sem camisa: dançam e cantam na multidão.
Figura 27 – Série Laróyè, Mario Cravo Neto, 1997-1999

Fonte: Acervo da Galeria Millan122

O recorte dessa fotografia de Mario Cravo Neto parece focalizar os movimentos


corporais do homem que ocupa o centro da imagem, o modo como seu corpo se posiciona, se
articula e se amplia no trânsito de pessoas que se entrecruzam na multidão, demonstrativo do
preparo e da concentração do corpo que entra na roda, na ginga. É um corpo que se posiciona
na encruzilhada dos olhares, dos corpos em fluxo e que se expande por meio do jogo e da
dança. É este o corpo exusíaco que, na encruzilhada, é ele próprio a intersecção dos caminhos.

121
NUNES, Karliane Macedo. Representações míticas de exu no livro de fotografias Laróyè, de Mario Cravo
Neto. In: IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2008, Salvador. p. 6.
122
Disponível em: http://www.galeriamillan.com.br/artistas/mario-cravo-neto/obras?view=slider#7. Acesso em
15 jun. 2021.
67

A máxima da filosofia do corpo de Mestre Pastinha, mestre capoeirista e um dos maiores


propagadores da tradição da Capoeira Angola, pode ser aqui aproximado do conceito de corpo
exusíaco observado na fotografia de Mario Cravo Neto: “a capoeira é tudo que a boca come e
tudo o que o corpo dá!”123. O cruzamento que se faz entre esse pensamento e a dimensão do
corpo exusíaco está sobretudo no poder da transformação, da possibilidade e da mobilidade
do princípio de Exu.
Tanto na fotografia de Rotimi Fani-Kayode, quanto no trabalho do fotógrafo brasileiro
Mario Cravo Neto, o corpo exusíaco encontra-se sempre sujeito a intensas metamorfoses, seja
no espaço ritualístico em Fani-Kayode, ou no sutil encantamento do corpo negro pelas ruas de
uma Salvador mística de Cravo Neto. Isso porque não há limite para as possibilidades na
transformação de um ser que se manifesta na multiplicidade dos fatores, das relações, dos
corpos. Mas essa mesma transformação acontece de modo precisamente violento, na violência
medida e sábia da luta, onde o corpo é capturado a serviço da entidade. Essa violenta
transformação que é ativada sobre o corpo e que faz dele um corpo devidamente encantado,
isto é, exusíaco, seja na experiência do transe ou na dança, é o que estabelece a comunicação
que vincula em comum partes diferentes. Essa relação aproxima-se da conceituação
formulada por Georges Bataille a respeito do erotismo124, que pressupõe a dissolução do ser
no ato erótico. Na perspectiva batailliana, o corpo exusíaco estaria nesse limiar dos estados
extremos da vida, na medida em que ele se dispõe a permissividades, na desordem das
paixões, dos desejos, modo de rebaixar as formas sólidas e viáveis.
Mais do que incorporar a metafísica ou encenar o mito, o corpo exusíaco na arte de
Fani-Kayode se estabelece no estado paradoxal do transe como o produto dessa relação
erótico e sagrado. Em Nothing to Lose IV (Fig. 28) trata-se da inevitável violência residual
que viola a individualidade descontínua durante a experiência do encontro do corpo com o
sagrado. Essa transfiguração violenta que já não é mais homem, nem entidade, encontra-se no
limiar da animalidade pulsional, para onde aponta todo ato erótico.
Nessa imagem, a figura masculina tem na face dois ramos de folhas e flores colocados
de modo a camuflar parcialmente seus olhos. Novamente, é observada aqui a construção de
uma máscara na qual o artista faz uso de elementos naturais associados a gestos corporais
extremos, para indicar o estado de instinto em que se encontram o corpo. Na imagem, a figura
morde com força a flor que segura com uma das mãos. Aqui, a animalidade torna-se

123
Simas; Rufino, op. cit., p. 49.
124
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M, 1987.
68

consequência da transgressão do corpo provocado pela diluição do ser em contato com o


sagrado, o erotismo, segundo Bataille, é por si mesmo, a transgressão da humanidade. No ato
do transe, do instinto, a humanidade é indubitavelmente profanada, maculada, transgredida125.
Figura 28 – “Nothing to Lose IV”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.80

Em outra perspectiva, a presença desse corpo exusíaco no retrato em questão aponta


para o próprio caráter extremo que se propaga nas multiplicidades das representações de Èsù.
É ele que incita a raiva, o ódio, o excesso, bem como o desejo e a paixão. Nas emoções mais
extremas, da dança ao transe, o desejo que impera é o de se perder, mesmo que por um breve
momento. Na presença dessa mesma figura em um outro recorte fotográfico (Fig. 29), a
desfiguração de seu corpo implica em sua dissipação no espaço da cena na medida em que o
movimento é capturado: a cabeça se projeta conforme a mordida que se expande sobre a flor.

125
Ibid., p.136.
69

Figura 29 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1987-1988

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.80

A violenta metamorfose do corpo assume no movimento de devorar, rompe com os


contornos e as fronteiras que concentram a energética limitada. Essa energia de origem
pulsional se expande e transborda: têm-se o trágico desgaste da figura sobre uma violenta
reação do corpo. Essa expansão energética não ocorre pela ordem exógena, e sim como
expressão interior, isto é, endógena, o que na cosmopercepção nagô-iorubá se define como
axé, como potência transformadora de ação. O axé que potencializa, pulsiona e aciona a
atividade do encantamento nos corpos na dança, no jogo, na ginga, no transe, no êxtase.
O próprio ato de devorar aproxima o mito de Exu presente na mitologia dos orixás
brasileiros em ambos os retratos com a narrativa a respeito da insaciedade dessa entidade, que
mesmo depois de morto faz sentir “sua presença devoradora”126. No mito, a fome insaciável
de Exu faz dele uma grande força devoradora na terra, ao ponto de Ogum, seu irmão no mito,
ter de matá-lo, conforme a ordem de seu pai Orunmilá, nem mesmo a morte interrompe o
poder dessa entidade. Como solução, o oráculo de Ifá recomendou que para aplacar a fome de
Exu, desde aquele episódio, era preciso que sempre que um ebó é oferecido aos orixás,

126
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 59.
70

primeiro deve-se dar de comer a Exu. Essa é uma das explicações possíveis pela qual essa
entidade, na religiosidade iorubá, é sempre a primeira a comer antes de qualquer outro orixá.
A transgressão pela qual Èsù se assenta na dimensão de um corpo desordenado,
insubmissível, em devir, aproxima-se com o que Fani-Kayode apresenta no corpo do homem
negro em sua fotografia. Frente à violência discursiva e iconográfica cometida desde o
contexto colonial sobre pessoas africanas e seus descendentes, o fotógrafo estabelece um
movimento de contraversão, próprio da ironia, para esgarçar os sentidos estereotipados acerca
do homem negro, e recriá-lo dentro do contexto de encantamento e sensibilidade. Criando
desvios, inversões e mudanças de rotas na possibilidade de traçar essas vias de encantamento
sobre o corpo, o artista conduz o olhar para divindades profanas, corpos exusíacos, entidades
que habitam corpos encantados.
Interessa mais reconhecer essa potencialidade do artista em direcionar o pensamento
africano articulado em um contexto ocidental e tonalizar as nuances dessa relação, do que
criar uma oposição isolada entre os dois mundos. De fato, a filosofia nas duas localizações
tem em cada qual suas especificidades e limitações. No entanto, o que parece propor Fani-
Kayode com a presença do corpo negro e afrodiaspórico em uma dimensão erótica e mística é
expandí-lo em multifaces anônimas, através de uma corporeidade de ritos e seres que se
articulam nas mais diversas camadas sutis que envolvem o todo cosmológico. É, sobretudo, a
proposição de assentar esses corpos no tempo, um tempo ritualístico do aqui e agora, do
corpo-terreiro como espaço de diversos atravessamentos e sincretismos culturais.
Em sua fotografia, cada homem retratado é uma forma distinta de comunicação dessa
ancestralidade ativada em seus corpos na violência do transe. Entretanto, não se pode
pressupor que, nesse tempo presente do corpo-terreiro, são eles apenas agentes passivos dessa
ação. Ao invés disso, a teatralidade investida por Rotimi em seu trabalho pressente a
acomodação do ser no momento da entrega ao êxtase místico, isto é, na nostalgia de uma
continuidade perdida. Nesse sentido, o trabalho investido por Georges Bataille a respeito do
erotismo amplia as possibilidades para pensar e aproximar o corpo elaborado na retratística de
Fani-Kayode na dimensão do sagrado.
71

3 O EROTISMO NA FOTOGRAFIA DE FANI-KAYODE

“Tudo se reencontra na encruzilhada do erotismo.” – Georges Bataille

Georges Bataille pontua o erotismo como “a aprovação da vida até na morte”127,


definindo a relação intrínseca da dialética humana que perpassa toda a filosofia ocidental, e
inscrevendo o conceito de erotismo não somente através do efeito psicológico da ação sexual
na reprodução humana, mas também a partir dela. Tal fórmula batailliana coloca em evidência
a centralidade do erotismo no paradoxo da vida e da morte: nesse ciclo perpétuo, a relação
sexual com o fim na reprodução é a peça-chave na criação da vida, bem como a da morte. Em
linhas gerais, uma descontinuidade do ser é perpetuada através da reprodução humana que,
consequentemente, estabelece sua continuidade através da experiência da morte, pois,
conforme aponta Bataille, só a morte é capaz de dar sentido à continuidade do ser.
Nesse sentido, nascemos e vivemos enquanto seres descontínuos e, ao mesmo tempo,
carregamos conosco a passagem à continuidade, seja ela por meio da morte simbólica na
atividade sexual independente do seu fim, ou por meio da própria experiência da morte.
Desde a origem estamos fadados a viver nas mais diversas passagens entre o contínuo e o
descontínuo ou do descontínuo ao contínuo, por isso o paradoxo existencial pelo qual estamos
fadados: se de um lado não aceitamos o fato de viver sob o domínio de uma “individualidade
perecível”, por outro temos “o desejo angustiado da duração desse perecimento”128.
O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas.
[...] a dissolução dessas formas de vida social, regular, que fundam a ordem
descontínua das individualidades definidas que nós somos. Mas no erotismo, menos
ainda que na reprodução, a vida descontínua não está condenada [...] a desaparecer:
ela está somente posta em questão. Ela deve ser incomodada, perturbada ao
máximo.129

Segundo Bataille, o que impera sobre essa nostalgia pela continuidade que envolve a
vida descontínua é a obsessão e o desejo pela continuidade profunda por meio da substituição
da distinção que isola o ser. Tal procedimento não pode ocorrer sem a violação dos seres: a
violência é a consequência da passagem de um estado distinto para um outro. Toda invasão
ocorre sobre a violência. Mas no erotismo, essa destruição da estrutura individual do ser é
corrompida e nela se renova pela fusão desse violento encontro.

127
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M, 1987, p. 11.
128
Ibid., p. 15.
129
Ibid., p. 18.
72

No contexto da fotografia de Fani-Kayode, como visto anteriormente, o erotismo é


apresentado em sua forma sagrada. Nesse cenário ritualístico, como espectadores, nos
tornamos testemunhas e partícipes de um sacrifício em que o corpo é dissolvido para nos
revelar sua continuidade. Se, como aponta Bataille, todo sacrifício pressupõe não somente a
presença do desnudamento, como também a imolação da vítima, o que vemos nos corpos
masculinos na retratística de Fani-Kayode é uma violenta metamorfose do estado descontínuo
e individual, para introduzir um sentimento incessante de continuidade do ser e parte
fundamental na manutenção do sistema metafísico e ancestral.
As propriedades imperecíveis de um retrato fotográfico estabilizam esses corpos em um
movimento perpétuo de nascimento e morte prematura, flagrados na concepção fixada da
encruzilhada do erotismo sobre o êxtase que nunca se completa. No entanto, a estabilidade da
imagem não acomoda e nem mesmo controla as perturbações dos encontros, sejam eles
eróticos ou sagrados, causadas pelos interditos armados contra o corpo.
As imagens de Rotimi buscam transgredir os interditos acerca da sexualidade e da
masculinidade negra, operando de forma a confrontar esses pilares da moralidade cristã acerca
do corpo e do homoerotismo. O próprio artista assume o caráter explícito de sua obra e quais
são suas convicções em adotar esse recurso, ao sustentar:
“muitas dessas imagens são vistas como sexualmente explícitas ou, mais
especificamente, homossexualmente explícitas. Faço minhas fotografias
homossexuais de propósito. O homem negro do Terceiro Mundo não revelou ainda,
nem para o seu próprio povo, nem para o Ocidente, certo fato chocante: eles podem
desejar um ao outro.”

O artista denuncia como há certa espinhosidade em vincular sexualidade e raça como


um tema central em sua obra, visto que foi um assunto invisibilizado e até negado pela
comunidade afrodiaspórica por muitos anos. Poucos foram os artistas e intelectuais negros
emergentes no ocidente que de fato trataram do assunto de modo explícito e apropriado com a
realidade de homossexuais negros. Em seu texto Traces of Ecstasy (vide Apêndice), Rotimi
revela sua necessidade em se juntar a um movimento que pensasse a respeito da questão racial
e sexual como fatores de subjetivação e elaboração autorrepresentativa em sua produção
artística.
Durante o período de sua vivência nos Estados Unidos, Rotimi tem contato com um
importante movimento do cenário cultural gay durante a década de 1980, e passa a produzir
boa parte das obras que compõe o livro Black Male/White Male dedicado ao “espírito do
73

Clubhouse”130. Nesse contexto, a contribuição e participação de diversos outros artistas como


o poeta e ativista Essex Hemphill e a drag Assotto Saint, emergentes desse cenário cultural
norte-americano, foi relevante para os estudos de nus e quadros encenados na fotografia do
artista nigeriano e que percorre toda a plástica de seu trabalho ao longo dos anos. Apesar de
operar sobre uma perspectiva crítica em seus relatos e evidenciar sua preocupação com
questões políticas raciais e sexuais, Fani-Kayode é um artista que não busca definir sua arte
de forma identitária, preferindo menos assumir uma posição de ativismo político – o que de
certa forma associaria seu trabalho a determinados grupos – e sim ressaltar as
particularidades e universalidades sutis que perpassam o ser para além das camadas
superficiais da identidade e dos conceitos pré-estabelecidos da sociedade131.
Ainda assim, a dinâmica de complementaridade que se aplica ao sujeito e o perpassa
pelos âmbitos de gênero, raça e sexualidade, nem sempre ocorre de forma harmoniosa. Em
muitas oportunidades, esse encontro se dá de forma opressiva no corpo, onde o artista revela o
interdito e a transgressão em uma mesma cena. Em Nothing to Lose IX (Fig. 30), a presença
da máscara africana ocupa o princípio do tradicionalismo como interdito frente ao corpo
homoerótico.
Figura 30 – “Nothing to Lose IX”, Rotimi Fani-Kayode, 1987

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p. 85

130
Fani-Kayode; Hirst, 1996, apud Mercer, 1988, p. 118.
131
Hirst, 1996, op.cit., p.32.
74

A máscara africana pendurada com diversos colares de contas sobre uma plataforma
retangular e esguia assume um aspecto informe diante do homem prostrado, de cabeça baixa e
corpo recolhido. Vestido com um cinto cravado em metal, símbolo do mundo homoerótico
moderno, a postura de opressão no corpo flexionado do homem diante da máscara revela o
cenário do corpo na contraposição da tradição com a modernidade. É evidente que esse
encontro entre passado e futuro, sentido e vivido, provoca tensões, daí ele ser visto pela
apresentação íntima de um corpo afligido com a perturbação do choque entre duas forças
opostas.
Em um primeiro momento, a presença da máscara direciona o olhar para o
tradicionalismo africano, conduzindo a uma leitura biográfica do artista e a relação ambígua
com seu país de origem, a Nigéria. De fato, a Nigéria é um dos países africanos com os
maiores índices de homofobia e onde a união de pessoas de mesmo gênero é criminalizada
desde 2014132. Esse comportamento é compreendido por alguns estudiosos como um
movimento anti-colonial de confronto ao imperialismo cultural ocidental em que a percepção
tradicionalista e conservadora, com forte apelo religioso – visto que, no contexto nigeriano as
religiões que predominam o país são a islâmica e a cristã – considera a homossexualidade um
atentado contra os valores sobre uma “herança africana”133.
A partir dessa perspectiva, a questão do interdito sexual em um país de herança colonial
como a Nigéria diz respeito muito mais à influência cristã e islâmica, do que de fato
corresponde a uma ancestralidade africana e a um pensamento e religiosidade iorubá
propriamente ditos. Embora existam poucas pesquisas focadas na questão da sexualidade
partindo da epistemologia iorubá, Oyewùmí destaca a ausência da distinção de gênero na
própria língua como um aspecto ontológico de uma sociedade que não apreende o mundo
somente através da visão, mas inclusive e em grande parte, pela audição e através da
oralidade134. Essa aferição isolada não é o suficiente para a compreensão de como os iorubá
de fato pensam, ou pensariam, a respeito da homossexualidade, mas estabelece uma
importante distinção entre a “herança” africana e as influências externas na perspectiva
moralizante nigeriana.

132
FERREIRA, D. A. A Fotografia Homoerótica Africana de Fani-Kayode. Sankofa: Revista de História da
África e de Estudos da Diáspora Africana, [S. l.], v. 12, n. 23 , 2019, p. 166.
133
Idem.
134
Otewùmi, 2002, op. cit., p. 19.
75

A obra de Fani-Kayode parece conduzir-nos mais à ancestralidade que precede um


tempo colonial, sem a interferência da moralidade e do interdito cristão ou islâmico sobre o
corpo, como uma fonte de potencialidade para a composição de um erotismo vinculado a uma
contemporaneidade. Como uma provocação à visualidade ocidental, o retrato de Nothing to
Lose IX apresenta-se sobre dois elementos: a máscara e o homem negro como símbolos de um
mesmo fetiche, reduzidos a um objeto estético e, consequentemente erótico. Em confronto
com um passado roubado, o homem transforma-se em objeto sexual e é destituído, tal como a
máscara, de seu poder de encantamento e transformação. A presença do cinto bondage aponta
para essa face oculta do homoerótico e de fantasias estéticas que percorrem o desejo, como
um aprisionamento voluntário do corpo, configurando ainda mais essa perpétua continuidade
e uma consequente restituição das formas humanas, como pode ser visto, por exemplo no
retrato Untitled (Fig. 31), de 1989.
Figura 31 – “Untitled”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: Site Hales Gallery135


A incorporação desses artefatos eróticos na fotografia de Fani-Kayode expressa o
esforço do artista em trazer à superfície as fantasias sexuais e o homoerotismo como um
prazer marginalizado. Tal como os mistérios ocultos de um mundo sutil e transcendental, a
narrativa de sua obra faz emergir o submundo do erotismo que abriga uma transcendência
originada a partir das próprias capacidades do corpo. Essa restituição das formas humanas em
detrimento do desejo por uma continuidade do ser, visto em Untitled, produz um corpo
informe capaz de opor-se até mesmo ao interdito universal de uma liberdade sem limites, pois

135
Disponível em: https://www.halesgallery.com/exhibitions/169/works/. Acesso em 2 jul. de 2021.
76

não se aplica mais às fronteiras do corpo humano. A máscara bondage ocasiona essa
transformação, configurando-se como elemento mágico na ritualidade da cena erótica.
O vínculo entre a literalidade erótica dos objetos bondage e o fetichismo estético dos
modernistas com as máscaras africanas conduz a essa visualidade ambígua que extrapola e
restitui os sentidos dos objetos em detrimento de um retorno imaginário a uma herança
metafísica e transcendental. A consequência desse desgaste do corpo em sua forma humana,
como vimos, transforma-o em corpo informe, e mais tarde, em pulsão, não tão energética
como a degradação das formas na pintura de Francis Bacon, mas como força inesgotável e
transmórfica.
Rotimi afirma incorporar a espiritualidade em suas fotografias para que a ambiguidade
entre sagrado e profano, transgressão e interdito, seja ressaltada, principalmente na
centralidade do homoerotismo. Ao dimensionar o prazer sob a perspectiva espiritual, o artista
estabelece um novo cenário, longe da convenção e do padrão estético homossexual abordado
por outros artistas gays, para pensar o corpo à partir do homem negro e sua ancestralidade
como espaço de articulação da liberdade espiritual e sexual. Portanto, é possível fazer uma
leitura dessa articulação na retratística de Fani-Kayode partindo da noção batailliana do
erotismo como um campo de aprofundamento do ser.
77

3.1 O EROTISMO SAGRADO DO CORPO

Bataille afirma que “todo erotismo é sagrado”136 e, portanto, independente da forma em


que ele se manifeste, o que está sempre em questão é a substituição da individualidade que a
vida descontínua preconiza pelo sentimento de continuidade profunda do ser. Mas a busca por
essa continuidade capaz de ultrapassar os limites do mundo físico perpassa essencialmente a
dimensão religiosa. Para traçar uma especificidade entre o vínculo do erotismo pela
abordagem espiritual, o autor aponta para uma forma de erotismo sagrado que por meio da
experiência mística do transe encontra a continuidade do ser e tal como a própria ação erótica,
propicia sua dissolução.
Na fotografia de Fani-Kayode, o produto dessa continuidade estabelecida por meio do
transe espiritual ou erótica é o êxtase perpétuo fixado sobre o caráter imperecível da imagem.
Esse êxtase provocado pela experiência mística seria algo similar ao erotismo batailliano, “a
aprovação da vida até na morte”, visto que o caráter da continuidade do ser está na
imortalidade e que tais experiências promovem e introduzem esse sentimento. Distante de
uma plenitude, o erotismo sagrado tem a ambiguidade como princípio do encontro com o
profano e o pecado, nessa relação intrínseca entre transgressão e interdito. Rotimi esgota as
possibilidades dessa relação ao apresentar cenas onde o corpo é apresentado como força,
pulsão erótica e organismo místico, elementos complementares que incidem sobre as imagens.
Para além desses elementos, mesmo sobre o signo do sagrado, o artista não deixa de
destacar o caráter “impuro” e violento que caracteriza também o movimento sexual e do qual
todo erotismo está sujeito, levando fatalmente o ser ao encontro com a experiência da morte
de si mesmo em detrimento da vida divina. Em Bronze Head (Fig. 32), a ausência da cabeça é
subtraída pela centralidade quase que anal da cabeça de bronze, representação da alta
hierarquia e realeza da cidade de Ife, na Nigéria. A cabeça é posta sobre uma superfície
enquanto o corpo nu, visto de costas e com as pernas abertas realiza o gesto de sentar-se sobre
a escultura provocando uma relação ambígua entre dar a luz ao bronze de Ife e a ideia da
cabeça como um “falo sagrado” que penetra o corpo, ou seja, a imagem confunde as
potencialidades femininas e masculinas como receptores da fertilidade e da gestação divina.

136
Bataille, op. cit., p. 15.
78

Figura 32 – “Bronze Head”, Rotimi Fani-Kayode, 1987

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p. 29


A acefalidade que desponta em Bronze Head reforça a correspondência e oposição entre
ânus e boca indicado por Bataille, mas também a união entre nascimento e morte através do
rebaixamento da cabeça às partes inferiores do corpo, possibilitando o exercício imaginativo
de uma face oculta do homem137. Aqui, a face oculta tem seus resíduos na mística e na
tradição cultural a um só tempo exaltados e rebaixados. Para Hirst, Bronze Head
simbolicamente trata do esforço de Fani-Kayode enquanto artista da diáspora em transformar
antigos valores culturais em termos contemporâneos, como uma necessidade em trazer à tona
a questão da homossexualidade junto às concepções culturais africanas138.
Para Bataille, a seduçãoque se articula na dinâmica sexual no âmbito do sagrado é
aquela do desejo pela continuidade que se opõe como consequência ao sentido de reproduzir a
vida, ou seja, é “a vida divina procurada no morrer-se”139. Tal relação é muitas vezes
vinculada com a dinâmica sexual no momento da incorporação mística, como o caso estudado
por Marie Bonaparte a respeito do relato do Êxtase de Santa Teresa, apontado em um estudo
de caso pelo próprio Bataille140. A mesma aproximação entre as efusões mística e erótica, é

137
MORAES, Eliane Robert. O acéfalo. In: O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 206.
138
Hirst, op. cit. p. 33.
139
Bataille, 1987, op. cit., p. 216.
140
Ibid., p. 221.
79

indicada por Ribeiro a respeito da incorporação de orixás presente nas religiões tradicionais
africanas, entre elas a iorubá. A autora entende o transe como uma mediação entre natureza e
humano, onde as divindades que representam um determinado elemento natural “penetram”
em corpos humanos141. A antropóloga e ialorixá relembra a leitura batailliana da dinâmica
sexual entre o ativo (homem) e o passivo (mulher) dissolvido por meio desse violento
encontro em sua descontinuidade. De modo análogo, a incorporação durante o transe
estabelece a continuidade no iniciado por meio da experiência mística da dissolução
temporária do ser no encontro com a divindade e que perpassa os movimentos de
subjetividade através de sonhos e outros produtos da própria imaginação do indivíduo
iniciado na religião142.
Enquanto uma religião que particulariza o transe como fundamento iniciático, iorubá é
uma religiosidade que indica uma transformação do indivíduo através da união entre o divino
com a fisicalidade do próprio corpo. O rito de iniciação nas religiões tradicionais africanas é
compreendido como “rituais de casamento” entre a divindade e o iniciado143. Ainda assim,
essa desassociação com uma vida descontínua no momento do transe por meio da
incorporação e do encontro com a divindade, flerta com um desejo de perder-se como um
viver violentamente uma vida divina. Desse modo, Bataille define a experiência do transe:
trata-se sempre de um desapego em relação à conservação da vida, da indiferença a
tudo o que tende a assegurá-la, da angústia sentida nessas condições até o instante
em que as forças do ser naufragam [...] para esse movimento imediato da vida que é
habitualmente comprimido e que se libera de repente no transbordamento de uma
alegria infinita de ser.144

Tal “alegria infinita de ser” pode ser aproximada de modo poético à alacridade do
pensamento iorubá que se concentra na concepção do axé como potência na medida em que
ocorre a incorporação da divindade. Por meio do ritual de casamento, segundo Ribeiro, o
iniciado recebe “uma nova identidade”145, o axé, através do processo de união da divindade
com o indivíduo resultando em uma intensa transformação e marcando assim uma nova etapa
em sua vida espiritual. Assim, a dinâmica do erotismo no âmbito do sagrado na

141
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Apontamentos sobre erotismo e sagrado na religião tradicional Iorubá. Odeere:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB, [S.l], v. 2 n.
3, 2017: Legados Africanos e Experiências do Sagrado, 2017, p. 87.
142
Idem.
143
Ibid., p. 89.
144
Bataille, 1987, op. cit., p. 229-230.
145
Ribeiro, 2017, op. cit., p. 90.
80

cosmopercepção iorubá reflete a sedução ordenada pelo mistério que “penetra” o corpo e se
desenvolve na dança, na ginga, a manifestação da divindade.
Parece interessar ao trabalho de Rotimi menos a representação ortodoxa do erotismo
presente na religiosidade iorubá e sim desenvolver uma dimensão sagrada desprendida dos
interditos religiosos. O artista procura provocar tensões nessa esfera da ideia da religião como
sistema simbólico unindo elementos transgressores a uma suposta “pureza” mística. No
retrato de Nothing to Lose XI (Fig. 33), o artista trabalha essa questão com a imagem de um
homem vestido com uma manta branca, contas e um turbante, representando a figura de um
sacerdote ou babalawo. Atrás do homem, dois braços estendidos seguram dois objetos fálicos,
ambos talhados com figuras de traços humanos, mas que pertencem a contextos diferentes:
enquanto um pertence a uma tradição da escultura africana, mais especificamente iorubá, a
outra pertence à fantasia de artigos eróticos do mundo moderno ocidental.
Figura 33 – “Nothing to Lose XI”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p. 85


A excentricidade da cena demonstra como a vinculação de objetos e elementos
tradicionais africanos com artefatos homoeróticos atribui um sentido anacrônico para as
imagens e aponta para uma nova proposta de um olhar que avança em direção ao corpo e ao
prazer do homem negro por meio da transgressão de interditos morais. Interessa perceber
como a religiosidade é ironizada por Rotimi, ao mesmo tempo que a sacralidade do corpo é
enaltecida em diversos momentos ao longo de sua obra. Como se o corpo, na mediação do
81

espiritual alcançasse a liberdade extrema e rompesse com suas fronteiras ao transgredir


através do erotismo e fixar-se na permanência da imagem na continuidade perpétua.
Seja na presença de elementos simbólicos sagrados da tradição iorubá seja nos artefatos
homoeróticos, a dimensão sagrada do erotismo, da fantasia e do mistério que se articula nesse
sistema permeia as imagens, e ativa o encantamento do corpo, apresentado na retratística do
artista como um corpo-exusíaco. Ao convocar a noção de corpo-exusíaco no trabalho de Fani-
Kayode, toma-se o erotismo não de forma superficial, enquanto único elemento ordenador,
mas como caráter metamórfico e detentor de axé, potência de transformação das formas e do
encantamento do corpo na imagem fotográfica. Esse corpo se apresenta em todas as
possibilidades de um ser ambíguo, dinâmico e multifacetado: no retrato de um homem
vendado e vestido com luvas de borracha que devora uma fruta de modo exageradamente
sedutor, ou ainda na figura mágica de um jovem que se esconde através de ramos de flores.
Assim como a morte está ligada à experiência mística da incorporação, o corpo na
fotografia de Rotimi é tentado a essa condição extrema da vida que se assume na morte,
mesmo que temporariamente e continuando a viver146. Seria aqui uma tentativa experimental
da imortalidade por meio da experiência do transe, mesmo que inscrito sobre um pensamento
que não vê distinção física entre mundo sutil e mundo imediato. É certo que há nessa
imortalidade uma ousada busca em adquirir status do divino ou ainda em sacralizar o ato
erótico como um traço de hierofania147 sobre o corpo humano. A ambiguidade pela qual o
artista compõe suas imagens abre para esses lugares possíveis em que o corpo negro se
articula. O encantamento se ativa ora no êxtase místico, ora no êxtase sexual. O produto é
sempre o mesmo: a dissolução do ser e a violenta transformação do corpo que se apresenta na
ocultação ou na desocultação das formas humanas por meio da máscara.
Como o próprio Bataille afirma, os segredos e os mistérios são próprios do erotismo, e a
máscara, como atributo da fantasia, desenvolve esses elementos na sua presença. Ao mesmo
tempo que oculta as formas que identificam seu portador, a máscara em seu caráter mágico
contém o poder da metamorfose, da transformação. O que a máscara poderia “desocultar”
nesse caso é o axé, a espiritualidade acionada no espaço do ritualístico, a ancestralidade que
atravessa o atlântico e reascende no toque dos atabaques, na corporeidade mítica das
divindades que incorpora no iniciado, no prazer ilimitado apreendido através do erótico na
busca pela continuidade perdida. Enquanto objeto capaz de revelar o sagrado, a máscara não

146
Bataille, 1987, op. cit., p. 224.
147
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 13.
82

escapa do paradoxo que constitui toda hierofania: ao mesmo tempo que transforma, conserva
em certa medida o que sempre foi148, visto que é parte integrante de toda a fantasia que
envolve o rito.
O sacrifício do corpo na retratística de Fani-Kayode vai de encontro à ideia trágica de
que a liberdade está na morte: tanto como produto final da dissolução da forma humana, como
no encontro dessa continuidade profunda promovida pelo erotismo sagrado. Tal como os
abiku, na mítica iorubá, espíritos que não conseguem se desvencilhar das promessas feitas no
mundo sutil, a morte o liberta da distância e cumpre o retorno ao mundo sutil. Nesse contexto,
da dinâmica metafísica iorubá que preconiza a vida e a morte como movimentos cíclicos e
intrinsecamente conectados, a experiência da morte não é um fim perpétuo em si mesmo, mas
a redenção espiritual experimentada através do corpo físico, na vida descontínua.
A plenitude do corpo depois da violenta tensão do ser na incorporação da divindade e
do transe erótico ocorre no relaxamento das terminações nervosas apresentado por exemplo
em Nothing to Lose X (Fig. 34), em que é revelada a transição, a passagem de um estado para
o outro. Os olhos arregalados do homem inundado entre flores sobre seu corpo conserva a
centelha da vida e o desapego à carne pela enérgica presença do espírito. As aproximações do
corpo em passagem que remetem a personagem de Hamlet apontam para a posição de auto
sacrifício que ambos os personagens preconizam sobre o lirismo na presença das flores
durante morte. Ophelia (Fig. 35) de Millais expõe essa delicadeza na morte que Rotimi parece
esforçar-se para aplicar na presença fúnebre do corpo do jovem negro em seu retrato.
Observa-se aqui, novamente, o paralelo visual e a transversalidade simbólica de uma
iconografia europeia aplicada na arte diaspórica de Fani-Kayode, como uma reelaboração
estética e adaptações da negritude em uma cultura visual branca.
Ao distanciar-se gradualmente de um movimento homoerótico partindo somente do
estudo das formas corporais e dos atributos físicos, a estética híbrida pela qual Rotimi Fani-
Kayode em parceria com Alex Hirst propõe amplia as possibilidades e ressalta as
ambiguidades que a metafísica sobre o corpo consequentemente estabelece através do
paradoxo sagrado e profano. Embora muitas vezes seu trabalho tenha sido comparado
superficialmente com o trabalho de Robert Mapplethorpe, a fotografia do artista nigeriano
busca apresentar uma masculinidade negra entre os limites do erotismo e da espiritualidade

148
Idem.
83

como contraposição às esculturas cinzentas e os fetiches neuróticos do fotógrafo norte-


americano.
Figura 34 – “Nothing to Lose X”, Rotimi Fani-Kayode, 1989

Fonte: FANI-KAYODE; HIRST, 1996, p.


Ao distanciar-se gradualmente de um movimento homoerótico partindo somente do
estudo das formas corporais e dos atributos físicos, a estética híbrida pela qual Rotimi Fani-
Kayode em parceria com Alex Hirst propõe amplia as possibilidades e ressalta as
ambiguidades que a metafísica sobre o corpo consequentemente estabelece através do
paradoxo sagrado e profano. Embora muitas vezes seu trabalho tenha sido comparado
superficialmente com o trabalho de Robert Mapplethorpe, a fotografia do artista nigeriano
busca apresentar uma masculinidade negra entre os limites do erotismo e da espiritualidade
como contraposição às esculturas acinzentadas do fotógrafo norte-americano.
84

Figura 35 – “Ophelia”, Sir John Everett Millais, 1851-1852

Site Tate Britain149


Parece justo recorrer a uma perspectiva que leve em consideração o pensamento iorubá
em sua dinâmica metafísica e ontológica para buscar essa essência do corpo pelo qual Rotimi
parece querer ressaltar em sua obra. Ao mesmo tempo que a proposta de uma
contemporaneidade firmada através de sua relação com a ancestralidade é apresentada em seu
trabalho como um questionamento para pensar as diversas masculinidades que se articulam
nos trânsitos na diáspora africana e, principalmente, como pensar um erotismo na contramão
dos diversos traumas coloniais aplicados sobre o corpo negro afrodiaspórico.

149
Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/millais-ophelia-n01506. Acesso em 4 de ago. 2021
85

3.2 A PROPOSTA DE UM EROTISMO AFRODIASPÓRICO

O tema do erotismo nos debates raciais ainda é pouco discutido entre intelectuais do
movimento negro no ocidente. As marcas que a colonização infligiu nos corpos de pessoas
africanas escravizadas deixaram resquícios ainda sentidos em um contexto psicanalítico,
estudado amplamente nos trabalhos de autores negros como Frantz Fanon. No Brasil, os
estudos da psicanalista Neusa Santos Souza150 analisam como a falta de uma identidade que
parte do reconhecimento do próprio indivíduo faz com que a experiência de ser negro em uma
sociedade branca seja desassociada de uma realidade calcada no si mesmo, ocasionando em
diversos momentos a incorporação de discursos de violência, códigos morais e
comportamentos como autopreservação frente ao mundo branco.
Em um contexto de diáspora africana marcada pelo trauma da escravidão, como pensar
a respeito de um erotismo desvinculado da sádica exploração do corpo negro enquanto objeto
de satisfação do desejo sexual do colonizador? Se o erotismo, pela perspectiva batailliana,
está vinculado à profundidade do ser em seu estado contínuo e preconiza sempre o encontro
entre dois seres capaz de romper com a individuação; uma leitura cuidadosa percebe que de
fato não pode haver erotismo na relação entre colonizador e colonizado. Não há a
possibilidade da colonização dos corpos na dimensão do erotismo batailliano, pois o princípio
está com efeito na dissolução de ambas as partes, ativa e passiva, do ato erótico, não
permitindo a conservação de nenhuma das partes.
Reduzido a um objeto sexual, o corpo negro na lógica colonial não tem direito ao
erotismo e, portanto, não tem direito ao desejo, pois não se configura dentro dos parâmetros
europeus como indivíduo e como ser. As relações homoeróticas e o exotismo no contexto
colonial brasileiro são apontadas pelo antropólogo Luiz Mott151 como efeito das fantasias
acerca da “selvageria dos negros”, indicando que apesar da hierarquia social dominante, no
domínio da sexualidade a repulsa racial não se efetiva no âmbito da intimidade. Ao longo do
texto, sob uma visão romantizada das relações entre colonizadores e escravos, Mott ressalta
um equívoco comum nas abordagens sociológicas de tradição intelectual a respeito da

150
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
151
Santos, 2014, op. cit., p. 7
86

sexualidade brasileira como um campo onde as questões raciais supostamente são


neutralizadas152.
No esforço de ser reconhecido como pessoa, o homem negro incorpora códigos morais
que correspondem a uma masculinidade branca colonizadora e heterossexual, adotando até
mesmo lugares comuns e estereótipos de virilidade, bem como comportamentos violentos
cometidos contra seu próprio povo. Essa internalização atribui ao homem negro hétero um
lugar privilegiado na hierarquia social, que o faça sentir superior em relação ao gênero e à
orientação sexual de outras pessoas que compartilham da mesma experiência racial. Nesse
sentido, Veiga aponta para a experiência da descoberta da homossexualidade pelos homens
negros como uma segunda diáspora153, um segundo desterro que impossibilita de serem
integrados e acolhidos, por vezes pela própria família e comunidade, visto que a
homossexualidade ainda consiste tabu até mesmo na pauta dos movimentos negros.
No que tange à articulação de um pensamento afrodiaspórico a respeito do
homoerotismo contemporâneo e da questão da masculinidade negra no ocidente através das
artes, o trabalho de Fani-Kayode teve um profundo impacto na comunidade queer britânica e
americana da década de 1980. A influência de seu trabalho reverbera em muitos artistas
negros de gerações posteriores, dentre eles Ajamu X, fotógrafo, ativista queer e curador de
ascendência jamaicana. Ao preferir partir de um ponto de vista que privilegia o prazer, a
beleza e a alegria, ao invés de assumir um lugar de opressão do corpo negro masculino,
Ajamu aponta para um modo de expressar que evidencia o erótico e os modos marginalizados
do desejo que se articulam na dimensão do homoerotismo. Na contramão de um padrão
estético branco europeu como referência de consumo no mundo queer presente nas mídias e
no entretenimento, a retratística de Ajamu X pretende-se produtora de um erotismo próprio,
que não flerta com a referência masculina hegemônica patriarcal.
Na série Black Circus Master (Fig. 35), por exemplo, o artista apresenta elementos
bondage como o cinto cravado em metal e o chicote como elementos do tabu que envolve
essa dinâmica erótica específica. De modo similar à transgressão que Rotimi pretendia ao
incorporar esses elementos na sua fotografia, Ajamu X aborda-os como uma forma de levar à

152
Idem.
153
VEIGA, Lucas. Além de preto é gay: as diásporas da bixa preta. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf
Malungo de. (orgs.). Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo
Contínuo, 2019, p. 83.
87

superfície uma dimensão do erotismo e do prazer temida pela sociedade 154. Com uma
agressividade explícita, o fotógrafo e ativista busca revelar imagens de corpos que fogem às
formas de um padrão de beleza ocidental, permitindo retratos que demonstram diversos tipos
de masculinidades, negritude e gênero.
Figura 36 – “Black Circus Master”, Ajamu X, 1997

Fonte: Site Ajamu X Studio155


No Brasil, a obra de Rotimi Fani-Kayode é ainda pouco conhecida, porém aponta para
lugares necessários para pensar acerca das expressões subjetivas de masculinidades negras,
bem como para a produção artistíca a propósito do erotismo sob a perspectiva afrodiaspórica.
A hibridização do corpo na dinâmica espiritual e sagrada conduz o erotismo em seu sentido
profundo de (re)conhecimento de si, articulando-se de formas menos estéreis ou
exageradamente literais a respeito do homoerotismo, como acontece na fotografia de Ajamu
X, por exemplo. A espiritualidade ocupa aqui uma posição de ampliação dos sentidos
possíveis, que ultrapassam o corpo, transgridem sua forma física por meio da ativação do
encantamento.

154
HUXTABLE, Isaac. Ajamu X is tired of waiting. 1854 - AGENDA, GENDER & SEXUALITY, POWER &
EMPOWERMENT, RACE & REPRESENTATION, Londres, 25 fev. 2021.
155
Disponível em: https://www.ajamu-studio.com/black-circus-master-series-1997. Acesso em 8 jul. 2021.
88

Ao transformar e externalizar essa negação dos padrões opressivos e interditos sobre o


corpo em uma sociedade branca, a fotografia de Fani-Kayode subverte e perverte a dor e o
sofrimento em códigos performativos do que deseja ser e não mimetizar156. Em um
movimento que expõe esses conflitos marcados no corpo e que, simultaneamente, reverte o
seu sentido. Em retratos como Mask, de 1989 ou Snap Shot, de 1988, o artista ressalta os
paradoxos, as contradições e as ambiguidades presentes na encruzilhada do erotismo e que a
maioria dos estudiosos temem tratar de forma apropriada sob o recorte de raça e das
complexidades que ainda são sentidas com o trauma da escravidão.
Ainda no contexto brasileiro, o erotismo negro foi amplamente pesquisado e
aprofundado em seu sentido estético através da produção de versos e prosas de poetas,
cronistas e contistas negros na série Cadernos Negros, lançado em 1978. Partindo da
necessidade de uma tomada da enunciação pelo sujeito negro, de “arrancar as máscaras
brancas” e “por fim à imitação”, assumindo uma “legítima defesa dos valores do povo
negro”157, Cadernos Negros faz uso da poesia como instrumento retórico político na
consciência cultural a propósito da celebração e exaltação da negritude. No contexto da
ditadura militar até 2017, a iniciativa pioneira consistia na resistência e na afirmação como
elementos importantes para a construção de uma poética direcionada ao negro, sobre o negro
e escrito por pessoas negras.
Cuti denuncia como a presença de um “puritanismo militante”158 permeia os debates do
movimento negro fazendo prevalecer uma visão binária entre corpo (emoção) e mente (razão).
Fato é que se despreza a sexualidade como tema de análises raciais no contexto social
brasileiro. É nesse sentido que a poesia apresentada nos Cadernos Negros firma-se na
contracorrente de uma “poesia oficial branca” por meio de uma abordagem que busca destacar
elementos religiosos e políticos do povo negro como os orixás e a libertação originada pelos
quilombos. O poema a seguir de Márcio Barbosa, que compõe o volume de número 13,
aponta para essa distinção entre a marginalidade da poesia erótica negra em contraste com
uma poesia branca reconhecida, buscando ressaltar a cultura e a religiosidade negra em
detrimento da hegemonia da cultura ocidental branca europeia:

156
CUSTÓDIO, Túlio Augusto. Per-vertido Homem Negro: reflexões sobre masculinidades negras a partir de
categorias de sujeição. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf Malungo de. (orgs.). Diálogos contemporâneos
sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2019, p. 133.
157
DUARTE, Eduardo de Assis. Passado, Presente e Futuro: Cadernos Negros 40. Belo Horizonte: Literafro,
2018.
158
CUTI, Luiz Silva. Poesia Erótica nos Cadernos Negros. Quilombhoje, [S.l.], [S.d.].
89

“De quatro, Zeus figura


em (ex)cultura nativa
o(culto) orixá Exu
vai comendo-lhe o cu"159

Ao reter em “profanação” a figura grega, Zeus como símbolo da formação da cultura


ocidental, em detrimento de Exu como figura ativa no ato sexual, o eu lírico propõe a via
erótica como perspectiva de ruptura com a história de dominação que marcou o corpo negro
como objeto de uso do branco. A respeito da relevância do erotismo na poesia negra, Cuti
ressalta como a questão racial quando encarada com aspecto identitário encarna a posição da
militância em detrimento da vida concreta:
Quando se discute a legitimidade da expressão Poesia Negra, tem-se
costumeiramente apontado para aspectos relacionados ao combate contra o racismo
e a miséria. Esquece-se, contudo, que miséria significa também ausência de prazer,
incluindo aqui o sexual. A relação amor/morte, refletida na produção que insiste em
relacionar sexo com violência, originária da antiga Roma, vai encontrar certa
oposição por parte destes poetas160.

Talvez possamos assumir que a obra de Rotimi Fani-Kayode alcança proximidades com
a abordagem poética do Cadernos Negros no que diz respeito a esse tangenciamento com um
erotismo que aponta para a libertação do corpo negro na lógica da dominação e da exploração
de uma sociedade branca e racista. Em ambas manifestações artísticas, busca-se diversas
cartografias do corpo subjetivo, dos afetos e emoções sentidas pelo sujeito, contra uma
memória do corpo coletivo, de dor e sofrimento do trauma colonial, na negação do prazer para
o colonizado em detrimento da satisfação do colonizador. Em imagens, essa cartografia
ocorre na retratística de Fani-Kayode sob a dimensão da religiosidade iorubá, da percepção de
uma corporeidade que abriga os corpos e que aciona o encantamento. Tal como uma ode ao
homem negro e à potencialidade do erotismo como possibilidade do encontro com o sagrado.

159
Idem.
160
Idem.
90

CONCLUSÃO

Através de discursos e signos sobre o corpo negro articulados ao longo da história da


arte e da iconografia ocidental, observa-se diversos movimentos que oferecem novos olhares
às mesmas práticas. Seja através das imagens que pragmatizavam as teorias racialistas com a
fotografia antropométrica, ou por meio do fetiche modernista ao “primitivo” com a obsessão
pelas máscaras e artefatos roubados durante as expedições exploratórias pelo continente
africano, há sempre uma abordagem fantasiosa e arbitrária articulada politicamente pela
perspectiva branca ocidental. Frente a essas narrativas e construções simbólicas armadas
contra o corpo negro ao longo dos séculos, artistas, poetas e intelectuais da diáspora africana
articulam-se de maneira a assumir seu próprio destino e a ressignficar as imagens partindo da
perspectiva do próprio sujeito a respeito de si mesmo.
A poética fotográfica proposta pelo artista nigeriano Rotimi Fani-Kayode estabelece o
homem negro enquanto sujeito da enunciação acerca do seu próprio desejo, prazer, beleza e
espiritualidade. O fotógrafo destaca o corpo não somente como elemento social e político,
mas como potência mística e sexual, sem desintegrar o ser em setores binários entre corpo
(emoção) e mente (razão), ou buscar lugares fixos identitários. Nesse aspecto, Rotimi
aproxima sua estética com a máxima da filosofia tradicional africana que apreende o mundo
através da complementaridade de sentidos e sensações aparentemente opostas, esforçando-se
em não privilegiar um sentido sobre o outro.
Sob uma perspectiva contrária à racionalização, através da cosmopercepção do
pensamento africano, Rotimi admite uma amplitude do ser e das potencialidades do corpo
enquanto dispositivo de encantamento, através da experiência mística ou daquela erótica, mas
sempre através de uma abordagem capaz de ultrapassar as categorias fixas que aprisionam o
indivíduo no âmbito social. É nesse sentido que os conceitos de entre-ser e corpo-
encruzilhada, possibilidades afirmativas do sujeito afrodiaspórico, configuram-se como
caminho fundamental para a concepção do corpo negro na retratística de Fani-Kayode. É
também a partir desses conceitos que o caráter dinâmico, metamórfico e transgressor de um
corpo-exusíaco se manifesta no trabalho do artista nigeriano como pulsão transformadora e
potência subversiva.
A dinâmica do erotismo acontece em sua forma sagrada na busca pela reconexão
espiritual e ancestral, bem como no encontro místico do corpo com a divindade
correspondendo à experiência da morte. Esse erotismo sagrado presente nos retratos de
Rotimi amplifica as qualidades de encantamento do corpo negro não só no espaço do rito
91

iniciático, como também no ato erótico, transgredindo os limites da forma e dos padrões de
consumo que destaca o desejo ocidental e heteronormativo. Mais ainda, a experiência da
continuidade provocada pelo encontro com o sagrado na hierofania ativada sobre o corpo
durante a experiência do transe aponta para a ideia batailliana da aprovação da vida na morte,
visto que morrer durante o rito, na simbologia iorubá, é a morte de um estágio para acessar
uma nova etapa na composição dessa corporeidade presente na dinâmica metafísica e
ontológica do cosmos. A perpectiva branca ocidental aplica conceitos patriarcais e
heteronormativos como sinônimos de masculinidade, marginalizando assim qualquer outra
possibilidade que contradiga parâmetros de comportamento e código moral No contexto
homoerótico negro, essa masculinidade é posta em questão para configurar-se em
masculinidades num sentido plural, que, na perspectiva de Rotimi Fani-Kayode, está sempre
em devir, passível de se transfigurar, de se transmutar pela performance corporal.
92

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ago. 2020.
97

APÊNDICE

FANI-KAYODE, Rotimi. Traços de Êxtase*


*Tradução livre de Bruna Diniz do original Traces of Ecstasy, de Rotimi Fani-Kayode.

O texto Traces of Ecstasy, cuja tradução inédita em português segue abaixo, foi
originalmente escrito e publicado por Fani-Kayode em 1987, na revista Ten. 8, importante
publicação de fotografia dos anos 80. Sua versão bilíngue (inglês/francês) pode ser encontrada
no livro Photographs, escrito por Fani-Kayode em parceria com Alex Hirst e publicado pela
editora Revue Noire de Londres em 1996. O tom é de certo conformismo em face das
inevitáveis exclusões vividas por um artista negro homossexual num ambiente das artes
visuais ainda dominado pela “hegemonia das convenções”. O que não impede a exaltação das
possibilidades expressivas inerentes a um processo de desapropriação das “subversões
culturais do neocolonialismo” em favor da celebração do “mundo secreto” da própria
ancestralidade .

Traços de Êxtase

TALVEZ TENHA SIDO MEU DESTINO acabar como um artista com o gosto sexual
por homens mais jovens. Como resultado disso, certa distância imperiosamente se
desenvolveu entre minhas origens e eu. A distância tornou-se ainda maior pelo fato de ter
partido da África como refugiado há 20 anos.
DE TRÊS MODOS POSSO ME DIZER UM MARGINAL: em questões de
sexualidade; em termos de deslocamento geográfico e cultural; e no sentido de não ter me
tornado o tipo respeitável de profissional casado que meus pais esperavam que eu fosse. Essa
situação me confortou na sensação de ter muito pouco a perder. Ela produz uma sensação de
liberdade pessoal em relação à hegemonia das convenções. O efeito disso é salutar para
alguém que conseguiu se manter fiel a seu próprio imaginário por entre as crises da
adolescência e a despeito das pressões para me conformar. Abrem-se assim espaços para uma
busca criativa que, de outro modo, talvez tivessem permanecido proibidos. Ao mesmo tempo,
traços dos valores antigos permanecem, tornando possível novas leituras a partir de um ponto
de vista incomum. Os resultados são forçosamente desorientadores.
Na arte africana tradicional, a máscara não representa uma realidade material; o artista
procura, antes, abordar sua realidade espiritual através de imagens que sugerem as formas
98

humanas e animais. Penso que a fotografia é capaz de aspirar às mesmas interpretações


imaginativas da vida. Minha realidade difere daquela muitas vezes apresentada pelas
fotografias ocidentais. Como africano trabalhando em um meio ocidental, procuro em minhas
fotografias exaltar uma dimensão espiritual para que os conceitos de realidade se tornem
ambíguos e se abram a novas interpretações. Isso requer o que os sacerdotes e artistas iorubás
chamam a técnica do êxtase.
TANTO ESTETICAMENTE QUANTO ETICAMENTE, procuro traduzir minha raiva
e meu desejo em novas imagens que debilitem percepções convencionais para revelar mundos
ocultos. Muitas dessas imagens são vistas como sexualmente explícitas ou, mais
especificamente, homossexualmente explícitas. Faço minhas fotografias propositalmente
homossexuais. O homem negro do Terceiro Mundo ainda não revelou, nem para o seu próprio
povo nem para o Ocidente, esse fato chocante: eles podem desejar um ao outro.
Alguns fotógrafos ocidentais mostraram que eles poderiam também desejar homens
negros (embora um tanto neuroticamente, é verdade). Mas a exploração do mito da virilidade
negra pela burguesia homossexual não é, em última instância, diferente da vulgar
objetificação da África que conhecemos por força de dois extremos: por um lado, pelo
trabalho de Leni Riefenstahl, e por outro pelas imagens de vítimas que aparecem
constantemente na mídia. Cumpre agora nos reapropriarmos de tais imagens e transformá-las
ritualisticamente em imagens de nossa própria criação. Para mim, isso envolve uma
investigação original da negritude, da masculinidade e da sexualidade, em lugar de uma mera
documentação fotográfica.
ENTRETANTO, TALVEZ ISSO SEJA MAIS FÁCIL DE SER DITO DO QUE DE
SER FEITO. Ao trabalhar em um contexto ocidental, um artista africano inevitavelmente se
vê confrontado ao racismo. E visto que concentrei muito do meu trabalho no erotismo
masculino, conheci reações homofóbicas, tanto da comunidade negra quanto daquela branca.
Embora isso seja decepcionante de um ponto de vista puramente humano, um conflito
essencial foi assim engendrado, por meio do qual lutar por novas aspirações. Entretanto, esse
é um conflito entre parceiros desiguais e, nesse sentido, um conflito no qual sempre me
encontro em desvantagem.
RAZÃO PORQUE TENHO PARTICIPADO de vários movimentos organizados em
torno de questões de raça e sexualidade. Para o indivíduo, tal engajamento coletivo pode
proporcionar confiança e discernimento. Para os artistas, isso pode transformar e ampliar as
concepções ocidentalizadas - por exemplo, que a arte é um produto de inspiração individual
ou que ela deve estar em conformidade com certos princípios estéticos de gosto, estilo e
99

conteúdo. Concretamente, isso também pode fornecer os meios para que artistas isolados e
sem poder mostrem seus trabalhos e insistam em serem levados a sério.
Uma consciência da História tem sido de fundamental importância para o
desenvolvimento de minha criatividade. A História da África e da raça negra tem sido
constantemente distorcida. Mesmo na África, minha educação foi dada em inglês em escolas
cristãs, como se a língua e a cultura do meu próprio povo, os Iorubás, fossem inadequadas ou
de alguma forma impróprias para o desenvolvimento saudável das mentes jovens. Ao explorar
a História e a Civilização Iorubá, redescobri e reavaliei vertentes de minha experiência e
compreensão do mundo. Vejo agora paralelos entre meu trabalho e o de artistas de Osogbo
em terras iorubás, que resistiram às subversões culturais do neocolonialismo e que celebram a
riqueza do mundo secreto de nossos ancestrais.
PERMANECE VERDADEIRO, entretanto, que as grandes civilizações iorubás do
passado, assim como outras culturas não europeias, ainda são confinadas pelo Ocidente aos
museus das artes e culturas primitivas. A cosmologia iorubá, comparável em sua sutileza e
complexidade aos mitos filosóficos gregos e orientais, é tratada como não mais que uma
superstição bizarra que, como que por milagre, teria inspirado a criação de alguns dos
artefatos mais sensíveis e delicados da história da arte. A arte moderna iorubá (na qual situo
minha própria contribuição), agora pode por vezes alcançar preços elevados nas galerias de
Nova York e Paris. Da mesma forma, as versões modernas das crenças iorubas, levadas pelos
escravos ao Novo Mundo tornaram-se, em sua forma carnavalesca, atrações turísticas. Eu
mesmo sou pego, inelutavelmente, nessa armadilha.
Outro aspecto da história, aquele da sexualidade, também me afeta profundamente. A
história oficial sempre negou a validade das relações e experiências eróticas entre pessoas do
mesmo sexo. Assim como no campo econômico e político, os historiadores das relações
sociais e sexuais foram prontamente auxiliados pela Igreja em suas produções. Mas apesar de
todas as tentativas da Igreja e do Estado em suprimir a homossexualidade, é evidente que
relações sexuais enriquecedoras entre pessoas do mesmo sexo sempre existiram. Elas são
parte da condição humana, mesmo que o conceito de identidade sexual seja uma noção mais
recente.
EXISTE UM CAPÍTULO TERRÍVEL DA HISTÓRIA EUROPEIA que nunca me foi
mencionado durante a escola. Somente muito mais tarde descobri que os nazistas haviam
desenvolvido a forma mais extrema de homofobia que já existiu nos tempos modernos, e que
haviam tentado exterminar homossexuais em campos de concentração. Isso não foi tanto uma
surpresa, mas mais um exemplo da longa tradição europeia de supressão violenta da
100

alteridade. Isso me toca tanto quanto saber que milhões dos meus ancestrais foram
assassinados ou escravizados para assegurar a hegemonia política, econômica e cultural
europeia no mundo.
POR ESSA RAZÃO SINTO QUE É ESSENCIAL RESISTIR A TODAS AS
TENTATIVAS de desencorajamento da expressão da identidade individual. No meu caso,
minha identidade tem sido construída da minha própria noção de alteridade, seja cultural,
racial ou sexual. Os três aspectos coabitam em mim. A fotografia é a ferramenta pela qual eu
me sinto mais confiante para me expressar. Portanto, é a fotografia - negra, africana,
homossexual - que devo utilizar não somente como um instrumento, mas como uma arma se
quero resistir aos ataques a minha integridade e, inclusive, a minha existência em meus
próprios termos.
NÃO É SURPRESA VER QUE O TRABALHO DE ALGUÉM é evitado ou
ativamente desencorajado pelo sistema. Em contrapartida, a burguesia homossexual tem sido
mais solidária, não porque ela se distingue particularmente por defender artistas negros, mas
porque uma bunda negra vende tanto quanto um pau negro. Como resultado do interesse
homossexual, tive vários portfólios impressos na imprensa gay, e um livro de nus publicado
pela GMP. Também tem sido dada alguma atenção a meu trabalho erótico por parte de
galerias conformistas que recebem financiamento de autoridades locais mais progressistas.
Entretanto, no geral, as galerias e a imprensa se sentem mais seguras com meu trabalho
étnico. na clássica tradição liberal, ocasionalmente algumas de minhas imagens menos
abertamente ameaçadoras e ultrajantes foram aceitas . Mas o negro ainda é belo apenas
enquanto se mantém dentro dos quadros da referência branca.
TENHO FICADO CADA VEZ MAIS DESCONCERTADO com as respostas a meu
trabalho da parte de certos setores autoproclamados de vanguarda. Na exposição “Misfits” na
Oval House (que coincidiu com a inauguração da placa em comemoração ao nascimento de
Lord Montgomery de Alamein), fui solicitado, junto com outros artistas, a remover meu
trabalho caso atraísse publicidade desfavorável. Naturalmente, recusamos. Infelizmente, a
imprensa estava muito ocupada prestando homenagem a Monty, de modo que a reputação
nacional da Oval House foi salva, e a nós foi negada a publicidade gratuita.
QUANTO À PRÓPRIA ÁFRICA, se algum dia eu conseguir fazer uma exposição em,
digamos, Lagos, suspeito que ocorreriam manifestações de hostilidade. Certamente eu seria
acusado de ser um provedor dos valores corrompidos e decadentes do Ocidente.
No entanto, às vezes penso que se levasse meu trabalho para as áreas rurais, onde a vida
ainda está vigorosamente em contato consigo mesma e com suas raízes, a recepção poderia
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ser mais construtiva. Talvez reconhecessem meus deuses da varíola, meus sacerdotes
transsexuais, minhas imagens de homens negros desejáveis em estado de frenesi sexual ou a
tranquilidade da comunhão com o mundo espiritual. Talvez tenham menos medo em se
encontrar com o mais obscuro dos obscuros segredos da África pelos quais alguns de nós
buscam a fim de obter acesso à alma.

Rotimi Fani-Kayode, 1987.

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