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GUARULHOS
2021
Universidade Federal de São Paulo
EFLCH - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de História da Arte
GUARULHOS
2021
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos
autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório
Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer
ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico
para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.
Aprovação: 05/08/2021
Apesar das dificuldades durante o período pandêmico, pude contar com uma rede de
apoio que me amparou a todo o momento na elaboração desta pesquisa. Agradeço a meu
orientador, Prof. Dr. Osvaldo Fontes Filho, pela orientação atenciosa, por estar sempre
disposto a aprender com sua orientanda e por seu trabalho como pesquisador e docente, pelo
qual sou profundamente inspirada. Agradeço ao apoio da minha família, minha base, pelo
amor, fé, por me garantir uma boa educação ao longo da vida e por continuar apoiando meu
trabalho artístico, minha escrita e meu fascínio pela arte.
Ainda que esta pesquisa tenha sido iniciada de fato na pandemia, ela foi inevitavelmente
permeado por diversas reflexões e discussões que aconteceram nas “ágoras” filosóficas da
EFLCH-UNIFESP, dentro e fora das salas de aula, no bar, na fila do ônibus, no transporte
alternativo e na mureta em frente ao bandeijão. Agradeço a todxs com os quais pude
compartilhar inspirações, revoltas, lágrimas e abraços. Agradeço pelo carinho e apoio de
colegas como Ana Elise Soares, Gabriel Belvis, Amanda Louise, Gabriela Queiroz, Laila
Pereira, Marcelo Iego, Bruna Mozini, Hyana Moura, Vivi Belloto, Mayara Schimidt.
Agradeço também a todo o corpo docente do departamento de História da Arte da UNIFESP
por construir um curso interdisciplinar tornando possível uma visão ampliada da cultura e da
arte enquanto ciência humana, e não somente a partir das produções estéticas.
A jornada da graduação foi menos penosa com a presença e o apoio de amigos pelos
quais tenho uma profunda admiração, carinho e respeito: Rebecca Blasotti e Julia Midory,
pela lealdade, companheirismo e apoio; Rodolfo Feitoza, por sempre me lembrar da
importância histórica de ser uma mulher negra em uma universidade; Tabita Barbosa, por me
inspirar e me motivar a sempre ir mais longe do que posso ir. Ainda : Felipe Bispo, Vinicius
Brean, Guilherme Nobrega, Vitor Humberto, Rafa Queiroz e Julio Bueno, todos pela amizade
e pelas risadas sem fim.
Agradeço também a paciência e a disponibilidade da minha tia Margareth e de sua
amiga Elenice que estiveram dispostas a contar um pouco sobre a Umbanda, religião de
matriz africana, e que me introduziram à cosmologia iorubá. Infelizmente as religiões de
matrizes africanas ainda são constantemente atacadas no Brasil e muito desses ataques –
epistemológicos, físicos, psicológicos, etc. – geram danos irreparáveis à sociedade, à cultura e
à história da diversidade do povo brasileiro.
Origem e retorno
Fulgurante arco
De Olorum o poder
Fun-fun atuante
Homem, depois mulher
Híbrido de arco-íris
Envolvente, cromático
Símbolo de esperança
Movimento de beleza
Estático espectro
Solar
Grandeza maior
Faça o que deve ser feito
Por que quem o era
Já se foi! “Arroboboi”!
Encontra-se sua antítese
Destrua-a
Não como ela foi
De morte estranha e doída
Velha e carcomida
Como animal bestial
Tempo, tempo, tempo
Não temo meu ideal
Tudo em ti se transforma
E mais em ti “sursum corda”
Nada me resta, ancestral
A não ser tua sinuosa dança
De cobra, serpente coral!
ABSTRACT
In the context of emerging debates about issues of race, diaspora, spirituality and
sexuality, the art of Rotimi Fani-Kayode is characterized as a unique and provocative work to
think about the black body in contemporaneity. In Fani-Kayode's photography, sexuality
becomes a path that allows the ancestral encounter through the mystical experience, wheres
the ritual is established as a place of reconnection with this imagined past and which
reconfigures itself in the present under the distinct trait of a body in terms of its own desire.
Concepts such as “between-being” and “crossroads-body” used to deal with the ambiguity
through which the artist leads the black body in the image, thus proposing a new subjectivity
from the central point of the crossroads. Therefore, even in this context, to deal with the
dynamic, transitory and metamorphic character of the representation of the black body in
Rotimi's photography, the concept of “corpo-exusíaco” manifests as a transforming pulsion
and subversive potention.
INTRODUÇÃO 9
CONCLUSÃO 90
REFERÊNCIAS 92
APÊNDICE 97
9
INTRODUÇÃO
Em meio aos debates cada vez mais insurgentes em torno do tema da diversidade sexual
e da questão identitária, com a consequente desconstrução da subjetividade em seus
dispositivos usuais de sensibilização (polaridades, binarismo etc.), o trabalho artístico do
nigeriano Rotimi Fani-Kayode (1955-1989) mostra-se uma obra singular por sua cenografia
insinuante e pelo matiz provocador com que repensa o corpo negro na contemporaneidade.
Ao retratar o próprio corpo e aqueles de outros homens negros em situações íntimas de
sensibilidade e homoerotismo, Fani-Kayode protagoniza um lugar de visualidade que poucos
em sua época ousaram assumir a respeito da masculinidade negra.
Para tanto, o artista faz valer a fotografia como medium capaz de transfigurar uma
realidade adversa, intolerante, subvertendo seu caráter objetivo na produção de imagens de
onde verte uma ambiguidade provocada pela dimensão espiritual que o artista apreende da
mística iorubá. Consequentemente, seu trabalho se distancia das fotografias dos corpos negros
cosmopolitas de Robert Mapplethorpe, paradigma incontornável para o espectador ocidental,
ao ampliar o sentido da performance erótica no registro do êxtase místico. No intento de
renovar tipologias, Fani-Kayode incorpora ainda expressões da estética erótico-religiosa do
Barroco, em figurações nas quais o artista assume, por entre máscaras e adereços da cultura
iorubá, uma figura crística de ambígua gestualidade. O erotismo é celebração da vida, mas
não deixa de ser um flerte com a morte.
Nascido em Lagos, no seio de uma privilegiada família igbo e às vésperas da
independência da Nigéria, Rotimi Fani-Kayode cresceu em trânsito entre os continentes. Da
Europa à América, ele vivenciou o processo de intensas transformações culturais por que
passou o mundo entre as décadas de 60 e 80. Sua trajetória de formação e de vida é, assim,
atravessada pelos efeitos da diáspora, pelo sentimento de não pertença involuntariamente
assumido enquanto sempiterno imigrante na sociedade ocidental. Nesse sentido, a
sexualidade, tema central de sua narrativa estética, torna-se caminho de reencontro de raízes a
serviço de uma espiritualidade que se quer extática. Por meio do encontro, necessariamente
incongruente, entre o sexual e o espiritual, Fani-Kayode propõe em suas fotografias os
componentes cênicos de um lugar de ancestralidade, capaz de reconexão com um passado
imaginado e de reconfiguração no presente de um corpo em face de seu próprio desejo.
Junto a esse erotismo por assim dizer espiritualizado, Fani-Kayode potencializa a
imagem do corpo do homem negro, dotando-o de uma dimensão política capaz de atravessar
os lugares convencionais da representatividade para atingir o lugar de um “Eu” transfigurado.
10
Para tanto, o nigeriano estabelece uma ambiguidade entre o “corpo que sente” e o “corpo que
transcende”, isto é, que se sacrifica na experiência extática. Essa é uma das formas pelas quais
o artista nos faz ver que, no terreno do ritualístico, o sacrifício é menos entrega do corpo ao
místico quanto incorporação às transfigurações sugeridas pela cultura ancestral.
Ainda que seu trabalho tenha sido subestimado pelo circuito artístico europeu, Fani-
Kayode antecipou algumas liberdades expressivas na elaboração de imagens que transgridem
a noção de masculinidade negra tanto para o Ocidente, persuadido por estereótipos de
virilidade do negro, quanto para a África, onde a homossexualidade permanece uma prática
criminosa. Ao reivindicar uma posição crítica acerca da expectativa ocidental diante de um
artista africano, Fani-Kayode movimenta avant la lettre importante debate acerca das
questões de representatividade na arte e do modo como elas podem se desenvolver em face
das ideologias identitárias. Rotimi apresenta um ser multifacetado, dinâmico, capaz de romper
qualquer tentativa de fixação ou de simples sintetização que o coloque em lugares pré-
determinados, produto de um sensível olhar para uma dinâmica globalizada que começava a
formar-se em meados da década de 1980. É por esse motivo que o que se discute a partir do
trabalho desse artista faz-se tão presente em um contexto contemporâneo, e inclusive em um
contexto contemporâneo brasileiro, ao colocar em cheque questões de representatividade na
arte e o modo como elas são desenvolvidas em face das ideologias identitárias.
Apesar de intensa e marcante, a carreira artística de Rotimi Fani-Kayode foi breve,
durando apenas seis anos até a sua morte em 1989 em decorrência do HIV. Deixando uma
importante contribuição ressonante ao cenário artístico britânico com a fundação da
Autograph ABP – Associação de Fotógrafos Negros, cuja proposta está em valorizar e
institucionalizar trajetórias estéticas historicamente marginalizadas.
11
1
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1996, p. 94.
2
MAROCCO, Beatriz. Os negros na fotografia, às margens do jornalismo, signos do fotojornalismo. O Olho da
História. Salvador, n. 12, 2009, p. 7.
12
Agassiz aplica a sua crença na hierarquia das espécies animais, na compreensão das
“espécies humanas”. Como criacionista, para ele esta ordem hierárquica “expressava a
intenção divina de impor uma ordem no mundo”4. Os retratos produzidos por Auguste Stahl, e
outros fotógrafos como Walter Hunnewell, na catalogação de tipos raciais em apoio à teoria
de Agassiz observam uma métrica científica na representação dos corpos, posicionados de
frente, de perfil e de costas, segundo o modelo da antropometria (Fig. 1) e da identificação
que captasse com precisão as características físicas dos retratados.
Figura 1 – Fotografia de Augusto Stahl, Rio de Janeiro, 1865
3
MACHADO, Maria Helena P.T. Os Rastros de Agassiz nas Raças do Brasil: A Formação da Coleção
Fotográfica Brasileira. In: HUBER, Sasha; MACHADO, Maria Helena P.T. (orgs.). Rastros e Raças de Louis
Agassiz: fotografia, corpo e ciência ontem e hoje. 1. Ed. Rio de Janeiro: Capacete Entretenimentos, 2010, p.
31.
4
Ibid., p.33.
5
Tríptico somatológico, identificado como Inhambana. Coleção Fotográfica de Louis Agassiz, Série Raças
Puras, Álbum África. Cortesia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard para o livro
“Rastros e Raças de Louis Agassiz: fotografia, corpo e ciência ontem e hoje” de Sasha Huber e Maria Elena P.T.
Machado.
13
em seu trabalho a imagem de dois corpos nus, um masculino e outro feminino nomeados de
Adão e Eva. Em posição frontal, com as mãos e os braços paralelos ao corpo, a fisionomia
tanto do homem e da mulher chama a atenção pelo desconforto e pela seriedade visíveis. Ao
nomear as duas figuras como protagonistas do mito fundante cristão, Paulino subverte a
exposição física dos corpos nas imagens de Stahl, atribuindo-lhes lugar central em sua
narrativa acerca da constituição da sociedade brasileira.
Figura 2 – “Adão e Eva no paraíso brasileiro”, Rosana Paulino, 2014
6
Disponível em: http://www.rosanapaulino.com.br/. Acesso em 18 de mar. 2021
7
Conceito africano que sugere o retorno ao passado como caminho de busca pelo conhecimento, e a
necessidade de reconhecer a história como matéria primordial para compreender o presente e construir o futuro.
14
reconfigurem dentro desses espectro. Não mais como corpos aprisionados por uma ciência
desumanizante, mas sim enquanto produto de uma ancestralidade fundante.
O cientificismo nos retratos de Stahl revela o modo como a fotografia foi utilizada pelo
homem branco enquanto instrumento de catalogação do corpo negro e indígena. Com o aporte
científico, esses retratos violavam direitos então promovidos pelo abolicionismo. Assim como
o próprio Agassiz, Augusto Stahl também era um abolicionista8, evidenciando ainda mais as
marcas residuais do racismo na dinâmica racial mesmo após o fim do colonialismo no Brasil.
A relação de africanos escravizados e de seus descendentes com o retrato fotográfico
esteve diretamente vinculado ao homem branco também para fins comerciais direcionados aos
álbuns de famílias escravocratas, jornais e cartões postais. Koutsoukos lembra que a aquisição
de um retrato era vinculada às camadas sociais mais abastadas. Nesse sentido, o acesso ao
estúdio do fotógrafo atribuía lugar privilegiado na sociedade colonial devido “a possibilidade
de perpetuação de sua própria imagem”9. A autora aponta para a importância do retrato
fotográfico para as pessoas escravizadas que conquistavam sua liberdade, indicando assim o
pertencimento de sua imagem na sociedade e sua autonomia, já que até então ser fotografado
não poderia partir de sua própria iniciativa.
Mesmo que livre, um corpo negro poderia sinalizar diversas marcas da escravidão. Não
somente através da própria cor enquanto traço hereditário que o ligava à descendência com
um sujeito escravizado, mas também como inscrições de violência punitiva, marcas de posse
ou até mesmo marcas de escarificações próprias de algumas etnias africanas.
Diante dos diversos ataques direcionados às marcas do corpo negro, gerou-se a
necessidade de se esconder os traços daquilo que estampava uma distinção social entre
indivíduos negros e brancos, pois “o momento histórico exigia que, além de ser livre, a pessoa
nascida livre ou a alforriada parecesse livre para os outros. Ela tinha que fazer uso de
símbolos que indicassem a sua condição”10. A aparência da liberdade, nesse caso, estava
diretamente relacionada ao padrão estético do homem colonizador, suas roupas e poses, como
forma de sobrevivência e aceitação em uma sociedade racista.
8
Machado, op.cit., p. 32.
9
KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estúdio do fotógrafo, o rito da pose. In: No estúdio do fotógrafo:
representação e autorrepresentação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do
século XIX. Tese de Doutorado na pós-graduação em Multimeios – Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2006, p. 51.
10
Ibid., p.79.
15
11
Writing Diaspora Art History: On Rotimi Fani-Kayode and the 1980s, Ian Bourland, Youtube, 4 de out. 2020,
1h25m38s, UT Austin - Department of Art and Art History (Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=ACOR341UQag>). Acesso em 2 de ago. 2021.
12
MERCER, Kobena. Eros & Diaspora. In: Photographs. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.).
Londres: Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996. p. 110.
16
Fonte: imagem retirada do vídeo “Writing Diaspora Art History: On Rotimi Fani-Kayode and the 1980s”13
Na série Abiku, de 1988, Rotimi enquadra um corpo oprimido, voltado para dentro de si
mesmo (Fig. 4). A cabeça baixa e os braços que buscam cobrir as pernas e aproximá-las ao
tronco, revelam a prisão deste corpo anônimo enovelado por um cabo transparente utilizado
como instrumento de violência física (Fig. 5) e ferramenta de imobilidade. O cenário claro e
estéril do retrato é preenchido pela dupla exposição que produz um efeito de luz refletida
sobre a água, denotando a profundidade que se encontra este corpo submerso.
A palavra abiku em iorubá significa “nascido para morrer”, e está vinculado aos seres
que vivem em um constante trânsito entre o òrun e o ayé, entre o mundo espiritual e o mundo
físico. Os abiku, segundo a tradição, vão para o ayé com tempo já determinado para seu
retorno ao òrun, declaram a oníbodè òrun, o aduaneiro do mundo espiritual, o tempo que
pretendem ficar no mundo e o que farão até o momento de sua morte física 14. Se os pais da
criança nascida forem devidamente informados de seu destino pelo oráculo de Ifá, através de
diversas oferendas é possível manter o abiku no mundo por mais tempo, longe de cumprir a
promessa de retorno feita para oníbodè òrun.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ACOR341UQag. Acesso em 2 de ago. 2021.
14
VERGER, Pierre. A sociedade Egbe Òrun dos Abikü, as crianças nascem para morrer várias vezes. Afro-Ásia,
Universidade Federal da Bahia (Salvador), n. 14, 1983, p. 138.
17
15
Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-44-autumn-2018/portfolio-rotimi-fani-kayode-desire-
exile-mark-sealy. Acesso em 18 de mar. 2021.
16
Verger, op. cit., p.145.
18
17
Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-44-autumn-2018/portfolio-rotimi-fani-kayode-desire-
exile-mark-sealy. Acesso em 18 de mar. 2021.
18
ARGOLO, Pedro; DUARTE, Evandro Piza; QUEIROZ, Marcos Vinicius Lustosa. A Hipótese Colonial, um
diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema
penal. Universitas JUS, CEUB (Brasília), v. 27, n. 2, 2016. p.3.
19
Os fios estão presentes também na série Tecelãs (Fig. 7), de 2003, novamente evidenciados
pelo enfoque no corpo da mulher e suas formas peculiares; filamentos que saem dos olhos e
da boca da figura enovelando seu pescoço e, consequentemente, obstruindo o funcionamento
do olhar e da fala da figura. Tanto em Abiku quanto nos desenhos de Paulino, a presença dos
fios que imobilizam e oprimem o corpo são simbolismos do aprisionamento marcado pelo
racismo e pela hiperssexualização dos corpos negros.
Figura 6 – “Proteção Extrema Contra a Dor e o Sofrimento”, Rosana Paulino, 2011
19
Disponível em: http://site.videobrasil.org.br/exposicoes/galpaovb/agorasomostodxsnegrxs/artistas/rosana-
paulino. Acesso em 2 de ago. 2021
20
20
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. 1. ed. São Paulo:
Elefante, 2019. p. 36-37.
21
Disponível em: https://www.rosanapaulino.com.br/blog/category/desenhos/. Acesso em 2 de ago. 2021.
21
europeu, Rotimi assumiu um papel importante no cenário cultural britânico negro dos anos 80
como protagonista da ruptura com um realismo documental para despontar na criação de
novas trajetórias estéticas e na revalorização da diferença cultural. Ao enquadrar o corpo
masculino negro como sujeito da experiência corporizada e reivindicar uma sexualidade livre
da fetichização do colonizador, Fani-Kayode atravessa o simples (e, por vezes, superficial)
efeito da construção de uma representatividade identitária, para atingir um potencial
anárquico na reconfiguração de um corpo fragmentado, deslocado e múltiplo, que se nega
enquanto estrutura organizada e completa, para ser força e pulsão.
Ao escolher a fotografia como medium e instrumento artístico na produção de suas
imagens, Rotimi se insere em um campo permeado por uma longa tradição de exploração
imagética em torno da figura do homem negro, assim como do imaginário ocidental acerca de
África. É por essa razão, ele assume uma postura crítica ao confrontar os cenários nos quais o
corpo negro foi representado pela fotografia ao longo da história e sobre como a sexualidade
pode funcionar como “mediadora” na relação entre o branco e o negro. Desde o seu
surgimento até a contemporaneidade, o artista compreende como a fotografia foi utilizada
como um suporte nas propagandas ideológicas à cultura de massa:
“[...] A mitologização exploradora da virilidade negra em nome da burguesia
homossexual não é, em última instância, diferente da vulgar objetificação da África
como conhecemos, em um extremo o trabalho de Leni Riefenstahl e no outro, das
imagens de vítimas que aparecem constantemente na mídia. Cabe a nós agora
reapropriarmos tais imagens e transformá-las ritualisticamente em imagens de nossa
própria criação. Para mim, isso envolve uma investigação imaginativa da negritude,
da masculinidade e da sexualidade, através de uma abordagem mais honesta.”22
22
FANI-KAYODE, Rotimi. Traces of Ecstasy. Londres, 1987. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.)
In: Photographs. Londres: Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996. p.6.
22
23
Disponível em: https://autograph.org.uk/exhibitions/works-on-loan-to-masculinities-exhibition-gropius-bau.
Acesso em 18 de mar. 2021.
23
Nesse sentido, em Snap Shot cabe a leitura de uma crítica que Rotimi estabelece em
relação a “mitologização exploradora da virilidade negra”24 produzida por um certo tipo de
voyeurismo da fotografia homossexual ocidental presente, por exemplo, nas fotografias de
Robert Mapplethorpe. A obsessiva representação da genitália masculina negra na fotografia
de Mapplethorpe, sua hiperssexualização, mostra-se oposta à experiência erótica e mística da
fotografia de Fani-Kayode, isto porque o nigeriano produz intensa pesquisa acerca das
potencialidades do erótico como princípio de subjetivação do corpo. Diferente da ejaculação
floral no retrato de Dennis Speight (Fig. 9) pelo fotógrafo norte-americano, que sintetiza o
corpo pela potencialidade exclusiva do pênis, o simbólico da flor como elemento sugestivo
em Fani-Kayode é ampliado e traduzido em Tulip Boy II (Fig. 10) como atributo de
sensibilidade.
Figura 9 – “Dennis with Flowers”, Robert Mapplethorpe, 1983
24
Fani-Kayode, op. cit., p. 7.
25
Disponível em: https://www.mutualart.com/Artwork/Dennis-with-flowers---and-Dennis-with-
th/0D43896B785CC2F3. Acesso em 2 de ago. 2021.
24
tomada dos meios de elaboração da imagem pelo negro e a reconfiguração destes imaginários
através da arte enquanto potência subjetiva. Essa posição crítica em relação à arte e à
fotografia permanece ao longo de sua carreira artística como princípio transformador da busca
decolonial em romper com uma tradição iconográfica do corpo negro na história da arte.
Figura 10 – “Tulip Boy II”, Rotimi Fani-Kayode, 1989
26
Disponível em: https://www.instagram.com/p/B2w-AVCFPgf/?igshid=vc6761rnx1c9. Acesso em 2 de out.
2021.
25
27
FOSTER, Hal. O artista como etnógrafo. In: O retorno do real. Tradução de Célia Euvaldo. 1. ed. São Paulo:
Ubu Editora, 2017. p.166-167.
26
28
Disponível em: https://www.swissinfo.ch/por/homenagem-a-man-ray--%C3%ADcone-
dad%C3%A1/29890830. Acesso em 2 de ago 2021.
29
Disponível em: https://escalettecollection.chapman.edu/objects/1650/in-gods-we-
trust;jsessionid=112051A894233734AE1F48715A4FC0B8. Acesso em 2 de ago. 2021
27
30
Idem, 1996, p.237.
31
Foster, 1996. p.237.
32
Ibid., p.242.
28
33
Disponível em: https://www.moma.org/learn/moma_learning/pablo-picasso-les-demoiselles-davignon-paris-
june-july-1907/. Acesso em 19 abr. de 2021.
34
CONDURU, Roberto. Uma crítica sem plumas - a propósito de Negerplastik de Carl Einstein. Revista
Concinnitas, 2008, v.1 n.12. p. 160.
29
Negerplastik atraiu os olhares das vanguardas europeias, bem como a valorização de uma
“arte primitiva” enquanto movimento artístico.
Na concepção de muitos artistas modernos, tal como André Malraux, essa metamorfose
dos objetos africanos elencados como objetos artísticos representava sobretudo “a passagem
desses objetos de um contexto não estético, o africano, para um estético, o europeu”35. Essa
afirmação da inexistência de um contexto estético africano, evidencia o desconhecimento por
parte de artistas e teóricos da vanguarda europeia do contexto desses objetos e o modo como,
numa análise das nuances dessa abordagem estética europeia, a invenção de “um outro” não-
ocidental ocupa uma posição singular para a lacuna da autenticidade, que necessitava ser
preenchida pelo modernismo e seu confronto com as convenções acadêmicas e culturais da
própria Europa36.
Diante do trabalho de Rotimi Fani-Kayode, é possível perceber que o artista esteve
consciente da história desses movimentos artísticos ocidentais em relação à produção no
continente africano, principalmente no que diz respeito à arte. E, principalmente, como esteve
consciente do resíduo de um “primitivismo modernista” predominante na recepção
institucional de seu trabalho artístico. Esse continuum do primitivismo no pensamento
ocidental evidencia, sobretudo, um modo particular de desejo “enraizado na crença atávica de
que o espírito do „primitivo‟ reside nos corpos dos Outros de pele escura cujas culturas,
tradições e estilos de vida podem ter sido, na realidade, irrevogavelmente alterados pelo
imperialismo, pela colonização e pela dominação racista”37. Esse “remorso liberal-
humanista”, para utilizar do termo empregado por Hal Foster, gera a necessidade de
“conservar” o estado “puro” do Outro, baseado no idealismo estético e na consequente
objetalização do corpo, que passa a não ser nada além de um instrumento de conceituação
cultural, isto é, representativo do conceito de cultura de seu povo38.
“Não é mais a estranheza do corpo do Outro que fascina, mas o fato de se estar
diante de um corpo representativo da cultura. [...] A satisfação que um tal
estereótipo acarreta é desconcertante: a pedagogia coletiva das trocas culturais passa
pelo reconhecimento de uma multiplificação de rótulos identificadores culturais que
35
MACEDO, Rafael Gonzaga de. Negerplastik: a invenção da arte africana. Projeto História, São Paulo, n. 56,
2016. p. 411.
36
Ibid., p. 413.
37
HOOKS, bell. Comendo o outro: desejo e resistência. In: Olhares negros: raça e representação. Tradução de
Stephanie Borges. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2019. p. 71.
38
JEUDY, Henri-Pierre. As metáforas do corpo na arte e na vida quotidiana: os silêncios do desejo. In: O corpo
como objeto de arte. Tradução de Tereza Lourenço. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 76.
30
os corpos devem exibir. [...] O que chamamos integração cultural não é senão uma
maneira de assimilar o corpo como mercadoria cultural.” 39
39
Ibid., p.77.
31
40
Disponível em: https://kam.illinois.edu/collection/dan-mask. Acesso em 2 de ago. 2021.
32
41
Disponível em: resumofotografico.com/2021/05/retratos-e-autorretratos-como-iconografia-na-obra-de-fani-
kayode.html. Acesso em 2 de ago. 2021.
33
vivo, guardando um segredo que permite a quem ousa e se aventurar a romper com a
anedonia cultural [...] e experimentar renovação sensual e espiritual.” 42.
Figura 16 – “Vanilla Nightmares, #1”, Adrian Piper, 1986
42
Hooks, op.cit., p. 74.
43
Disponível em: http://vogesundpartner.com/artists/adrian-piper/6/. Acesso em 20 abr. de 2021.
44
Hooks, op.cit., p.75.
34
Ainda que Rotimi prefira adotar uma posição mais subjetiva em seus retratos do que em
relação ao ativismo explícito presente nas figuras negras de Adrian Piper, o artista buscou
abordar essa complexa relação transcultural movido pelo desejo e pela sexualidade, forçando
os estereótipos e os “primitivismos” das representações do corpo negro até uma explosão
crítica a respeito da desqualificação da masculinidade negra na cultura branca. Essa
desqualificação que o artista identifica e evidencia em seu trabalho está nos esforços do
mundo branco em emascular o sexo do homem negro, ao mesmo tempo que em ressaltar uma
pressuposta animalização em contraste com o homem branco.
O interesse de Fani-Kayode em desestabilizar essas percepções exploratórias da
representação do homem negro, partindo do hibridismo dessas representações com artefatos
da cultura erótica ocidental, revela um processo de autoprimitivização capaz de perturbar as
estruturas basilares de um “erotismo primitivista” que envolve a relação do ocidente com a
África. O uso da máscara africana é resgatada por Rotimi para não somente inserir uma
dimensão espiritual, mas também como um recurso de readaptação desses objetos na arte
contemporânea:
“Na arte africana tradicional, a máscara não representa uma realidade material: em
vez disso, o artista se esforça para abordar sua realidade espiritual através de
imagens sugeridas por formas humanas e animais. Acho que a fotografia é capaz de
projetar as mesmas interpretações imaginativas da vida.”45
45
Fani-Kayode, op. cit., p. 6.
46
Mercer, op. cit., p. 110.
35
47
Disponível em: https://arteref.com/arte/curiosidades/quem-foi-a-mulher-retratada-em-olympia-de-manet/.
Acesso em 3 de ago. 2021.
36
48
HIRST, Alex. Acts of god. In: Photographs. FANI-KAYODE, Rotimi; HIRST, Alex. (orgs.) Londres:
Autograph; Paris: Revue Noire Ed., 1996, p. 32.
37
49
Foster op. cit., 2017, p. 182-183.
38
50
No livro “A Fotografia: entre documento e arte contemporânea”, André Rouillé estabelece duas categorias
para analisar a fotografia: a fotografia-documento e a fotografia-expressão. Sendo a primeira, aquela que
compreende as primeiras ideologias aplicadas à fotografia desde à sua invenção e a segunda a fotografia
instaurada pelas ideias do movimento do modernismo na Europa do século XX.
51
REIS FILHO, Osmar Gonçalves dos; MORAIS, Isabelle de. Autorretrato: a fotografia em performance.
Revista Fronteiras – estudos midiáticos, São Paulo, v. 18, n.1, 2016. p. 4.
52
POUIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia?.
PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, RS, v. 21, n. 35, ago. 2017. p.104.
53
Ibid., p.105.
39
54
BAUDRILLARD, Jean. A precessão dos simulacros. In: Simulacros e Simulações. Portugal, Relógio
D‟Água, 1991. p. 8-9.
55
POUIVERT, Michel. Notas sobre a imagem encenada, paradigma reprovado da história da fotografia?.
PORTO ARTE: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre, RS, v. 21, n. 35, ago. 2017. p.105.
56
Ibid., p.106.
57
Ibid., p.107.
40
58
Fani-Kayode, op. cit., p.6.
59
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 18, n. 50, 2004, p.214.
60
Cf. NASCIMENTO, 2004, p.215-223.
61
Nascimento, op.cit., p. 218.
41
Um caso de adaptação realizada pelo TEN esteve presente na obra de Agostinho Olavo
Além do rio (1957), em que o autor se apoiou na fábula grega de Medea para produzir uma
peça adaptada através de uma composição estética baseada em danças e cantos tradicionais
brasileiros como o Candomblé e o Maracatu62. Além do rio conta a história de uma rainha
africana jinga, que trai seu povo pela paixão por um senhor branco e é trazida, escravizada, ao
Brasil do século XVII. Quando o homem branco passa a desprezá-la para casar com uma
mulher branca, a rainha africana – batizada de Medea no Brasil – mata seus próprios filhos no
rio, e retorna a seu povo. Como no exemplo da adaptação de Medea, a tragicidade grega é
incorporada na literatura teatral do TEN por meio de metáforas e analogias das marcas
deixadas pela violência da escravidão negra no Brasil, sempre buscando evidenciar e invocar
o protagonismo de atores negros nos palcos do teatro brasileiro.
De forma similar, Fani-Kayode busca essa experiência estética da negritude em suas
fotografias como uma adaptação teatral capaz de ampliar as possibilidades simbólicas para a
produção de um simulacro da diáspora a partir da cultura visual ocidental. Em Every Moment
Counts (Fig. 20) são apresentados dois homens negros em perfil na imagem, um mais velho
em relação ao outro, ambos inseridos em um tableau vivant, sugerindo um cenário simbólico
comum à estética erótico-religiosa do Barroco. A aplicação da expressão das paixões ao
diagrama facial dos personagens da mitologia cristã presente no retrato de Judite e Holofernes
ou os fortes contrastes de luz e sombra em O Sepultamento de Cristo, ambas criações de
Caravaggio; são recursos que podem ser observados na adaptação de Fani-Kayode.
Every Moment Counts I sugere a recriação da imagem mística e profética do Cristo
ocidental, contrariando a representação branca do ícone do catolicismo ao longo dos séculos
na arte européia. Nem santo, nem humano, na liturgia cristã a figura de Jesus é a
representação do veículo divino, a divindade incorporada na terra. No entanto, Hirst aponta
para uma hibridização entre a cultura religiosa ocidental e africana, ao considerar também a
representação do homem com o halo de pérolas na cabeça como uma figura sacerdotal e
espiritual, que guia o jovem homem negro, de “traços étnicos indeterminados”63, uma figura
miscigenada, iniciada nos conhecimentos e na sabedoria dessa figura ancestral.
Essa dualidade que Fani-Kayode e Hirst evidenciam entre as figuras, entende
evidenciar uma complementaridade entre passado e presente, corpo e espírito, matéria e alma,
fazendo uso do desejo enquanto substância mediadora da espiritualidade. A presença do
62
Idem.
63
Hirst, 1996, op. cit., p. 33.
42
jovem homem negro no quadro, despido de qualquer acessório que possa relacioná-lo a um
ícone religioso, procura provocar a ambivalência desse desejo na interação do corpo físico
com o corpo divino e, ao mesmo tempo, romper com os limites epistemológicos que separam
estes corpos. Há uma certa inocência, um desejo e um erotismo que se confundem com o
amor divino.
Figura 20 – “Every Moment Counts I”, Rotimi Fani-Kayode & Alex Hirst, 1989
64
OGBEBARA, Awofá. O início de tudo. In: Igbadu: a cabaça da existência: Mitos nagôs revelados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2014. p. 17.
44
iorubá representado pelos signos, os odus, que são interpretados pelos Bàbáláwo, através da
comunicação com as entidades místicas.
É por meio da exploração dos espaços ocultos da sexualidade e da espiritualidade que
Rotimi encontra sua materialidade poética e lança luz ao enigma da experiência do êxtase
humano65. Tais desdobramentos do corpo são definidos no programa estético do trabalho de
Fani-Kayode e apresentados em seu manifesto Traces of Ecstasy, de 1987 (vide Apêndice) e
publicado junto com sua primeira coleção de fotografias Black Men/White Men em 1988.
Apesar de ter deixado seu país de origem ainda bastante jovem, Fani-Kayode procura
comunicar sua ancestralidade na fotografia, utilizando-a como um instrumento de resistência
em meio à iconografia do homem negro produzida ao longo dos séculos no ocidente.
Estabelecendo o corpo como objeto central em sua composição, a aplicação da teatralidade se
aglutina à imagem pictórica enquanto narrativa ficcional, ou seja, retira o corpo como simples
objeto de representação e amplia sua ressonância simbólica como obra de arte, tão capaz de
comunicar uma realidade quanto um naturalismo instantâneo que a fotografia é capaz de
revelar através do nervo óptico.
Assim como na experiência da negritude no teatro com o TEN, as adaptações que Fani-
Kayode estabelece em seus retratos vão além de um multiculturalismo conciliatório e menos
como uma representatividade que negocia com parâmetros branco-ocidentais. Tais adaptações
buscam ressignificar o protagonismo negro em sua singularidade, com a realidade de
africanos em diáspora e o rompimento com os imaginários estabelecidos pela cultura branca.
Em uma aproximação filosófica, nas manifestações artísticas de artistas africanos em
diáspora, tanto no contexto da cultura afro-brasileira, quanto na arte de artistas imigrantes
como Rotimi, é possível observar traços do que pode ser compreendido como uma filosofia
africana, ou até mesmo traços de um pensamento pan-africanista, ao buscar traçar à partir de
uma “nova” subjetivação um sujeito que se constitui como um entre-ser66 .
Para um pensamento que apreende a diáspora enquanto processo chave na concepção de
um “outro” que se articula sobre um permanente exílio, a ideia de um “entre-ser” como um
ponto de encontro de saberes e atravessamentos transgride a pretensa noção do vácuo que o
desterro pode sugerir. Nesse sentido, Sodré aponta como toda desterritorialização implica
sempre o racismo, quando o migrante, o diferente, um “outro” que vem de fora e que – tal
como expressa um pensamento discriminatório – ameaça uma pressuposta pureza na
65
Mercer, 1996, op. cit., p. 108.
66
Cf. SODRÉ, 2017. p. 93-94.
45
67
RAMOS, Jarbas Siqueira. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço de
interseção. Anais ABRACE. Campinas, v. 20, n. 1, 2019. p. 4.
46
68
FANI-KAYODE; HIRST, 1996 apud MERCER, 1988, p. 110
69
SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques. In: Pensar Nagô. Petrópolis: Editora Vozes, 2017. p. 94
70
Idem.
47
71
Sodré, op.cit., p.90
72
Idem.
73
Termo mais adequado e inclusivo para referir-se à concepção de mundo de grupos que privilegiam outros
sentidos além da visão. Segundo a filósofa nigeriana Oyèrónk Oyěwùmí, o termo “cosmovisão” aponta para
uma terminologia eurocêntrica utilizada para resumir a lógica de uma sociedade sob a ótica ocidental e que
privilegia a visão negando, ou excluindo, a concepção filosófica de outros povos.
74
PAULA, Naiara; WER, Claudia. Filosofia Africana: um estudo sobre a conexão entre ética e estética.
Voluntas: Revista Internacional de Filosofia. Santa Maria, v.10, 2019. p. 128.
48
povo, após a sua morte passa ser reverenciado como òrìsà75. A imortalização dos saberes
ancestrais e a divinização da figura ancestral, é uma prática de grande relevância na
cosmopercepção iorubá. Assim,
...todo adulto que morre [e tem merecimento], vem a ser um ancestral, e um pequeno
òrìsà em seu próprio local. A morte, entretanto, é vista como um meio de
transformação dos seres humanos, de um nível de existência, no ayé, para outro
nível de existência, no òrun. Quando um homem muda de um nível de existência
para outro, ele [se tiver merecimento], automaticamente adquire grande poder e
autoridade e vem a ser um òrìsà para sua própria família ou linhagem. 76
75
Ibid., p.130.
76
Abimbola, op. cit., p.3-4.
77
Paula; Wer, op.cit., p. 132.
78
Ibid., p.133.
79
Idem.
49
Através de uma tradição oral que perpassou séculos, a filosofia iorubá tem como
premissa a formação de um mundo sincrético em que as vivências, as experiências humanas e
o sistema metafísico são vinculados, apontam caminhos para o autoconhecimento pessoal, o
que reverbera na relação com a comunidade pela qual pertence. Nesse sentido, a visão
filosófica de Òrúnmìlà aponta para dois importantes fundamentos no pensamento iorubá a
respeito da conscientização do sujeito sobre si mesmo: a ciência da cabeça e a cartografia do
caminho. Partindo da noção de que a realidade se constitui através dos quatro elementos: ar,
terra, água e fogo, tanto a ciência da cabeça quanto a cartografia do caminho são concebidos
através do arranjo desses elementos para a definição do modo de ser de cada indivíduo e o
caminho a ser tomado83.
A princípio, a ciência da cabeça consiste na investigação do orí, palavra da língua
iorubá para designar “cabeça”, mas entendendo-se aqui, na concepção filosófica do
80
Cf. RAMOS, Jarbas Siqueira. Desvelando o corpo-encruzilhada: reflexões sobre a encruzilhada como espaço
de interseção. Anais ABRACE. Campinas, v. 20, n. 1, 2019.
81
RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, p. 49-66. Tradução
de Arnaldo Vasconcellos. p.1-2.
82
RAMOSE, 1999 apud. PAULA; WEIR, 2019. p.134.
83
NOGUERA, Renato. A questão do autoconhecimento na filosofia de Orunmilà. Odeere: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB. Bahia, v.3, n.6, 2018, p.
34-35.
50
pensamento iorubá, “cabeça” como constituição e concepção de cada indivíduo antes mesmo
de tomar “forma” humana, o ara. No mito da criação do ser humano, Ajàlá, o oleiro, é o
responsável por moldar os orí, mas devido a sua personalidade descuidada e irresponsável,
nem todas as cabeças são moldadas de formas iguais: algumas ele esquece de cozer, outras
são mal feitas, e ainda existem aquelas que ficam inacabadas84. Acredita-se ainda que, cada
indivíduo, mesmo antes de ter ara, é livre para selecionar o orí que desejar, independente de
sua aparência, e a isso é atribuída a noção de livre-arbítrio. Entretanto,
a maioria das cabeças moldadas por Ajàlá são ruins e imprestáveis, [e como a quase
todos os ara-òrun não consultam Ifá antes], segue-se que a quase totalidade dos
indivíduos que vão para a casa de Ajàlá, escolherão cabeças ruins e imprestáveis.
Além de Ajálà, somente Òrúnmìlà, o senhor da divinação e sabedoria, é a outra
testemunha do ato da livre escolha dos orí. Daí, a importância de consultar Ifá de
tempos em tempos, para saber o desejo do seu Orí85.
84
Abimbola, op. cit., p. 9-10.
85
Ibid., p.10.
86
Noguera, op.cit., p.37.
87
Idem.
88
Ibid., p. 38-39.
51
89
Noguera, op.cit., p.37.
52
90
OYĚWÙMÍ, Oyèrónk . Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects in: COETZEE, Peter
H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002. Trad.
Wanderson Flor do Nascimento. p. 4.
91
Ibid., p. 19.
92
Ibid., p. 20-21.
53
É nesse sentido que falar acerca de uma cosmopercepção da diáspora é também falar de
uma filosofia africana, onde princípios éticos, saberes mitológicos e espirituais formam
pilares para a perpetuação desse pensamento em culturas afrodiaspóricas do Atlântico negro.
A potência desses saberes resistiu aos esforços de objetificação e desencantamento do corpo
negro aplicado pela lógica colonial, articulando e assentando sobre esse corpo princípios e
fundamentos que o capacitava à sobrevivência pessoal e coletiva.
Sodré observa traços do que ele define de um “si-mesmo” corporal presente na filosofia
de culturas tradicionais, como a cultura iorubá. Ao designar este “si corporal” enquanto
“potência afetiva de ação” 95 que compreende o corpo como sendo ele próprio o “componente
fenomenológico da experiência singular” de ser humano no mundo, o filósofo aponta para a
dimensão de uma subjetividade orgânica compartilhada e que se desdobra na noção de
corporeidade. Essa corporeidade estaria relacionada a um “sujeito coletivo”, não “entidade
93
Cf. SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques: desejo como potência. In: Pensar Nagô. Petrópolis:
Editora Vozes, 2017.
94
Sodré op. cit., 2017, p. 100.
95
SODRÉ, Muniz. Filosofia a toque de atabaques: o si-mesmo corporal. In: Pensar Nagô. Petrópolis: Editora
Vozes, 2017. p.104-105.
54
96
Ibid., p.106.
97
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Tudo que o corpo dá. In: Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018, p. 47.
98
Ibid., p. 48.
55
dialogicidade da ação, mas agente no momento que aciona esse encantamento no próprio
corpo.
A cabeça enquanto princípio central na filosofia iorubá, considerado elemento
fundamental na concepção da identidade do sujeito, portadora do destino e da divindade que
ordena seu corpo, é principalmente cultuada nos rituais de iniciação no Candomblé de Ketú.
Na feitura do santo, o rito de passagem inicia-se com a raspagem dos cabelos e no
recolhimento do corpo, que fica resguardado durante 21 dias, quando são realizados banhos,
borís, oferendas, o processo de aprendizado nas rezas, nos cantos e no “assentamento da
cabeça”, como ritual em que a cabeça é pintada com efun99 (Fig. 23). A associação entre o
culto da cabeça nas regiões da sociedade iorubá Daomé (Benim), Nigéria e Togo, com os
rituais praticados no Brasil foi amplamente registrado pelo fotógrafo francês Pierre Verger,
que observou ao longo de seu trabalho de pesquisa as interconexões e a continuidade de uma
tradição mesmo após a discriminação dessa religiosidade na América-negra
Figura 23 – “Briki, Ifanhin, Benin”, Pierre Fatumbi Verger, 1958
99
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. Candomblé. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2010. Disponível em:
http://www.museuafrobrasil.org.br/docs/default-source/publica%C3%A7%C3%B5es/candombl%C3%A9.pdf.
Acesso em 17 jun. 2021. p. 3.
100
Disponível em: http://pierreverger.org/br/acervo-foto/portfolios/dieux-d-afrique.html. Acesso em 17 jun.
2021.
57
Nesse caso, o desterro do corpo negro causado pela imigração não impossibilita o
encantamento, aqui ele é reinventado. Se o trabalho fotográfico – e etnográfico – de Pierre
Verger acontece devido ao deslocamento e “ao retorno às raízes”, a produção fotográfica de
Rotimi vai de encontro às manifestações de resistência na cultura afro-brasileira, que
reinventa esse encantamento através do próprio corpo enquanto presença viva do rito e da
memória ativando espaços sagrados mesmo no contexto violento e traumático da
desterritorialização. Portanto, é possível apreender assim o quadro na retratística de Fani-
Kayode menos como um mero “palco” onde o corpo encena ou imita gestos, mas sim
enquanto espaço em que o corpo manifesta seu encantamento. Tal como no jogo de
capoeiragem, no benzimento, ou no espaço sagrado e ritualístico do terreiro.
Nesse espaço reinventado do rito, a proposta do corpo negro enquanto terreiro é
apresentada em cena na fotografia de Fani-Kayode. Entende-se aqui por “terreiro” uma
corporeidade que se manifesta em “potência afetiva de ação” de forma plural, para utilizar da
conceituação de Sodré. Nesse sentido, cada elemento que compõe a série Bodies of
Experience corresponde a uma experiência singular do corpo dentro da dimensão do terreiro
enquanto dimensão de ativação do encantamento e de atravessamentos possíveis da
corporeidade física e sensível. Mas também, como o primeiro registro do ser no mundo, o
corpo é presença e reivindicação de si101 é aquilo que nos dimensiona em existência e que
viabiliza atravessamentos múltiplos permeados pelas experiências vividas.
A potência gerada pela constelação dos corpos em performance firma o ritual, assenta e
invoca o rito no espaço da corporeidade, ora oferecendo o corpo como transmissor da cura,
ora preparando este corpo para o transe. No ritual iniciático, o corpo pintado de efun e
recolhido em um ciclo intenso de aprendizados é preparado e concentrado para receber o
transe. No retrato de Nothing to Lose XI (Fig. 24), o corpo é feito partindo da cabeça, ou
melhor, da face mascarada, neste novo corpo que veste ara. O simbólico de Nothing to Lose
XI é a reencenação do mito no espaço da corporeidade, que, de acordo com Sodré, é
justamente o lugar do ritualístico onde se principia a manutenção litúrgica, adaptado no
contexto da diáspora como agenciador dos afetos e das memórias, e tendo seu acesso no
intermédio de ayé e òrun por meio do transe.
101
Simas; Rufino, op.cit. p. 51.
58
102
Simas; Ruiz, op.cit. p. 52.
60
103
Fani-Kayode; Hirst, 1990 apud Mercer, 1988, p. 119.
104
FERNANDES, Alexandre de Oliveira. Um Corpo/Corpus para Exu: Nem Eros, nem Tânatos, nem Apolo,
nem Dionísio. Revista Nures - PUC-SP, ano 8, n. 21, 2013, p. 2.
61
“Sem fim e nem começo”, Èsù é uma figura atemporal na mitologia iorubá. Uma das
hipóteses é a de que seja um dos filhos de Òrúnmìlà que veio ao mundo em forma de òrìsà105,
mas isso não é um consenso entre estudiosos da mitologia iorubá, mesmo que ambas as
entidades estejam frequentemente associadas em diversos mitos. De fato, o que se concorda é
quanto a sua participação no mito cosmogônico que declara ser Èsù o “responsável pela
conservação do axé, o grande e divino poder com o qual as divindades realiza seus feitos
sobrenaturais”106, participante ativo da criação do mundo e na manutenção do jogo das forças
cósmicas. Segundo Ade Dopamu107, a maioria dos iorubás compartilham a ideia de que Èsù
personifica o mal e o responsabiliza por situações de discórdia, briga, perigo, má conduta e
loucura. Para Dopamu108, “Èsù é o inimigo invisível do homem”; ardiloso e hábil, ele aponta
para uma luta fundamental entre o Bem e o Mal que se articula em duas instâncias: no visível,
através das relações sociais, e no invisível, no íntimo do ser humano, onde Èsù é uma
realidade externa, bem como um demônio psicológico em nós”109.
Nas mais variadas vertentes da religiosidade africana instauradas no Brasil, Exu se
manifesta em múltiplos: é Exu-catiço, Tranca-Rua, Sete Facadas, Marabô, é Exu-orixá, Exu
iniciado ou travestido de Ogum110. Está presente na performance de Madame Satã111, bem
como nas fotografias documentadas de uma Salvador distópica de Mario Cravo Neto. No
pensamento afro-brasileiro, Exu é a entidade que ensina através do caos, e que por isso, é
potência vital, isto é, aquele que gera a vida. Através de suas várias faces e da ambiguidade
que compõe essa constelação formada pelo corpo – ou corpus de Exu112 – expande-se à
alteridade e tangencia-se às identidades polarizadoras para dar lugar ao movimento das
múltiplas e indeterminadas identidades possíveis, como em um constante devir. Aliás, é uma
economia do princípio que rege Exu, concebendo o “outro” como sendo o mesmo dele113, isto
é, dilui-se a oposição que pressupõe o sistema dialético e reconhece-se sua universalidade nas
configurações a respeito de todas essas identidades possíveis. Não pode haver uma
105
ALMEIDA, Maria Inez Couto de. Cultura Iorubá: costumes e tradições. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
p.100.
106
ABIMBOLA, 1976 apud RIBEIRO, 1998, p. 64.
107
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Deus, Divindades e Poder Ancestral. In: Alma africana no Brasil: os iorubás.
São Paulo: Oduduwa, 1998, p. 60.
108
Idem, 1992. p. 201.
109
Ribeiro, 1998, op.cit., p. 65.
110
Ibid., p. 5.
111
MADAME SATÃ. KarimAinouz. Videofilmes Produções Artísticas LTDA, 2002.
112
Fernandes, op. cit., p. 4.
113
Idem.
62
uniformização de Exu, pois ele se movimenta nos extremos, através de suas múltiplas formas
de comunicação.
Para dimensionar as expressões de Exu na retratística de Fani-Kayode, cumpre ajustar
as figurações “exusíacas” e seus domínios em vários sentidos da vida humana presentes na
constelação do pensamento afrodiaspórico, bem como sua configuração demoníaca na noção
iorubá. Já que a centralidade de sua obra encontra-se na presença do corpo-encruzilhada,
considerem-se todos os diversos atravessamentos e movimentos possíveis que acontece em
Exu, ora como articulador do mal, da loucura, da raiva, do desejo, do erotismo, do tempo, da
vida e da morte. Uma atribuição dessa divindade como princípio do sagrado e do profano114,
agente de energia paradoxal entre o humano e o divino, encontra-se sintonizado com o corpo
negro masculino presente na fotografia de Fani-Kayode de modo a confrontar as
representações desse corpo ao longo da iconografia ocidental.
Ao convocar Èsù, Rotimi afirma o caráter dinâmico dessa entidade presente em seu
trabalho. Como um trickster ou como o Senhor das Encruzilhadas, ele é movimento – nem
oposto, nem a favor – que gera a vida, mesmo “zombando” de nós, mesmo desordenando as
“placas de sinalização” dos caminhos e até mesmo nos amaldiçoando. Ele é também a
possibilidade do renascimento. É ele quem diviniza e potencializa o lugar do entre-ser, tão
central para pensar a subjetividade no trabalho do artista imigrante: é a entidade que articula
seu poder através dos extremos, sobre os trânsitos, é quem trapaceia, mas é também aquele
que promove e ordena a justiça. Tal relato não só insinua o poder dessa figura no trabalho
fotográfico do artista, como também evidencia a ampla dimensão simbólica que ela representa
na cosmopercepção iorubá, assim como sua relevância e centralidade na concepção de um
pensamento afrodiaspórico.
A alteridade que se expande sobre a figura simbólica de um Èsù iorubá até as múltiplas
manifestações do Exu transatlântico ocorre também nos corpos dos homens negros
apresentado por Fani-Kayode. Em seus ensaios fotográficos, o contato da entidade com o
“outro” na dimensão do quadro, da corporeidade ritualística encenada, acontece sem fixá-lo
em sistemas de oposições binárias, permitindo que os elementos localizados no espaço e no
tempo cruzem-se e incorporem-se em um processo de simbiose. Se, assim como afirma Juana
Elbein, “em cada ser há um Exu”115, seja como ordenador ou como “demônio psicológico”,
114
FERNANDES, Exu: sagrado e profano. Odeere: revista do programa de pós-graduação em Relações
Étnicas e Contemporaneidade – UESB, ano 2, n. 3, vl. 3, 2017, p. 56.
115
SANTOS, 1976 apud SODRÉ, 2017, p. 175.
63
somos envolvidos em uma relação antropofágica, produto da fusão e da diluição das fronteiras
individuais, onde não se sabe “onde um começa e o outro termina”116.
Através do transe, do encarnar ou incorporar Èsù nos corpos encenados da poética de
Fani-Kayode, pode-se perceber como o erotismo transgride qualquer interdito aplicado sobre
o corpo, a sexualidade e o poder. É por essa razão, que sua presença é tão temida pela
sociedade ocidental, principalmente nas regiões com um passado colonial como Brasil e
Cuba, onde a figura simbólica de Exu representa essa transgressão simbólica dos mais
diversos formatos de controle do corpo e da sexualidade instaurado pela Igreja e seu papel
civilizatório nas colônias. Contudo, mais do que representar uma contravenção ao puritanismo
do corpo conformado pela moral cristã, o princípio pelo qual Èsù incita e se aproxima do
conceito de erotismo está centrado na articulação da sedução como elemento da ordem do
mistério e que dá margem ao acesso pela via do sagrado.
Essa possibilidade de incorporar Èsù provocada pelo transe (pelo êxtase) estabelece a
relação entre sagrado e profano através da fusão do corpo mítico com o corpo humano,
resultando em uma sacralidade assentada na fisicalidade, na vida em geral, transbordando e
ultrapassando as barreiras do espaço mítico. Ao romper qualquer fronteira que separa a carne
do espírito, a figura de Èsù, bem como todo a cosmologia iorubá, se posiciona na contramão
de um pensamento cristão que vê no corpo as impurezas fisiológicas e animalescas do
instinto.
Corpo polimorfo que se apresenta através da sexualidade sagrada instrumentalizada no
confronto com a moral e a autoridade, Èsù é inscrito sobre a pele, convocando a plástica de
uma de suas possíveis representações simbólicas: com o falo evidente e chifres, no retrato
Untitled (Fig. 26). Apresentando a imagem de um corpo que estampa a figura de olhos e
chifres na parte inferior, onde o pênis projetado e pintado é propositalmente posicionado em
evidência na cena, Rotimi compõe a imagem da face oculta do interdito sagrado. O
rebaixamento da face implica, sobretudo, uma aproximação entre a divindade Èsù como o
signo do divino diabólico e o infame, além de desocultar essa face exusíaca que habita todo
corpo humano. Ao evidenciar o pênis como sendo parte de um rosto diabólico e exusíaco, o
artista remete a esse aspecto temido pela moral, mas que, no sistema patriarcal e falocêntrico,
é também vinculado ao desejo e ao poder masculino.
116
Fernandes, op.cit. p. 56.
64
117
SANTOS, Daniel dos. Ogó – encruzilhadas de uma história das masculinidades e sexualidades negras na
diáspora atlântica. Universitas Humanas, Brasília, v. 11, n. 1, 2014, p. 10-11.
118
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p. 139.
65
119
SODRÉ, Jaime. Exú: a forma e a função. Revista VeraCidade, ano 4, n. 5, 2009, p. 3.
120
Ibid., p. 4-5.
66
121
NUNES, Karliane Macedo. Representações míticas de exu no livro de fotografias Laróyè, de Mario Cravo
Neto. In: IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2008, Salvador. p. 6.
122
Disponível em: http://www.galeriamillan.com.br/artistas/mario-cravo-neto/obras?view=slider#7. Acesso em
15 jun. 2021.
67
123
Simas; Rufino, op. cit., p. 49.
124
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M, 1987.
68
125
Ibid., p.136.
69
126
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 59.
70
primeiro deve-se dar de comer a Exu. Essa é uma das explicações possíveis pela qual essa
entidade, na religiosidade iorubá, é sempre a primeira a comer antes de qualquer outro orixá.
A transgressão pela qual Èsù se assenta na dimensão de um corpo desordenado,
insubmissível, em devir, aproxima-se com o que Fani-Kayode apresenta no corpo do homem
negro em sua fotografia. Frente à violência discursiva e iconográfica cometida desde o
contexto colonial sobre pessoas africanas e seus descendentes, o fotógrafo estabelece um
movimento de contraversão, próprio da ironia, para esgarçar os sentidos estereotipados acerca
do homem negro, e recriá-lo dentro do contexto de encantamento e sensibilidade. Criando
desvios, inversões e mudanças de rotas na possibilidade de traçar essas vias de encantamento
sobre o corpo, o artista conduz o olhar para divindades profanas, corpos exusíacos, entidades
que habitam corpos encantados.
Interessa mais reconhecer essa potencialidade do artista em direcionar o pensamento
africano articulado em um contexto ocidental e tonalizar as nuances dessa relação, do que
criar uma oposição isolada entre os dois mundos. De fato, a filosofia nas duas localizações
tem em cada qual suas especificidades e limitações. No entanto, o que parece propor Fani-
Kayode com a presença do corpo negro e afrodiaspórico em uma dimensão erótica e mística é
expandí-lo em multifaces anônimas, através de uma corporeidade de ritos e seres que se
articulam nas mais diversas camadas sutis que envolvem o todo cosmológico. É, sobretudo, a
proposição de assentar esses corpos no tempo, um tempo ritualístico do aqui e agora, do
corpo-terreiro como espaço de diversos atravessamentos e sincretismos culturais.
Em sua fotografia, cada homem retratado é uma forma distinta de comunicação dessa
ancestralidade ativada em seus corpos na violência do transe. Entretanto, não se pode
pressupor que, nesse tempo presente do corpo-terreiro, são eles apenas agentes passivos dessa
ação. Ao invés disso, a teatralidade investida por Rotimi em seu trabalho pressente a
acomodação do ser no momento da entrega ao êxtase místico, isto é, na nostalgia de uma
continuidade perdida. Nesse sentido, o trabalho investido por Georges Bataille a respeito do
erotismo amplia as possibilidades para pensar e aproximar o corpo elaborado na retratística de
Fani-Kayode na dimensão do sagrado.
71
Segundo Bataille, o que impera sobre essa nostalgia pela continuidade que envolve a
vida descontínua é a obsessão e o desejo pela continuidade profunda por meio da substituição
da distinção que isola o ser. Tal procedimento não pode ocorrer sem a violação dos seres: a
violência é a consequência da passagem de um estado distinto para um outro. Toda invasão
ocorre sobre a violência. Mas no erotismo, essa destruição da estrutura individual do ser é
corrompida e nela se renova pela fusão desse violento encontro.
127
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: LP&M, 1987, p. 11.
128
Ibid., p. 15.
129
Ibid., p. 18.
72
130
Fani-Kayode; Hirst, 1996, apud Mercer, 1988, p. 118.
131
Hirst, 1996, op.cit., p.32.
74
A máscara africana pendurada com diversos colares de contas sobre uma plataforma
retangular e esguia assume um aspecto informe diante do homem prostrado, de cabeça baixa e
corpo recolhido. Vestido com um cinto cravado em metal, símbolo do mundo homoerótico
moderno, a postura de opressão no corpo flexionado do homem diante da máscara revela o
cenário do corpo na contraposição da tradição com a modernidade. É evidente que esse
encontro entre passado e futuro, sentido e vivido, provoca tensões, daí ele ser visto pela
apresentação íntima de um corpo afligido com a perturbação do choque entre duas forças
opostas.
Em um primeiro momento, a presença da máscara direciona o olhar para o
tradicionalismo africano, conduzindo a uma leitura biográfica do artista e a relação ambígua
com seu país de origem, a Nigéria. De fato, a Nigéria é um dos países africanos com os
maiores índices de homofobia e onde a união de pessoas de mesmo gênero é criminalizada
desde 2014132. Esse comportamento é compreendido por alguns estudiosos como um
movimento anti-colonial de confronto ao imperialismo cultural ocidental em que a percepção
tradicionalista e conservadora, com forte apelo religioso – visto que, no contexto nigeriano as
religiões que predominam o país são a islâmica e a cristã – considera a homossexualidade um
atentado contra os valores sobre uma “herança africana”133.
A partir dessa perspectiva, a questão do interdito sexual em um país de herança colonial
como a Nigéria diz respeito muito mais à influência cristã e islâmica, do que de fato
corresponde a uma ancestralidade africana e a um pensamento e religiosidade iorubá
propriamente ditos. Embora existam poucas pesquisas focadas na questão da sexualidade
partindo da epistemologia iorubá, Oyewùmí destaca a ausência da distinção de gênero na
própria língua como um aspecto ontológico de uma sociedade que não apreende o mundo
somente através da visão, mas inclusive e em grande parte, pela audição e através da
oralidade134. Essa aferição isolada não é o suficiente para a compreensão de como os iorubá
de fato pensam, ou pensariam, a respeito da homossexualidade, mas estabelece uma
importante distinção entre a “herança” africana e as influências externas na perspectiva
moralizante nigeriana.
132
FERREIRA, D. A. A Fotografia Homoerótica Africana de Fani-Kayode. Sankofa: Revista de História da
África e de Estudos da Diáspora Africana, [S. l.], v. 12, n. 23 , 2019, p. 166.
133
Idem.
134
Otewùmi, 2002, op. cit., p. 19.
75
135
Disponível em: https://www.halesgallery.com/exhibitions/169/works/. Acesso em 2 jul. de 2021.
76
não se aplica mais às fronteiras do corpo humano. A máscara bondage ocasiona essa
transformação, configurando-se como elemento mágico na ritualidade da cena erótica.
O vínculo entre a literalidade erótica dos objetos bondage e o fetichismo estético dos
modernistas com as máscaras africanas conduz a essa visualidade ambígua que extrapola e
restitui os sentidos dos objetos em detrimento de um retorno imaginário a uma herança
metafísica e transcendental. A consequência desse desgaste do corpo em sua forma humana,
como vimos, transforma-o em corpo informe, e mais tarde, em pulsão, não tão energética
como a degradação das formas na pintura de Francis Bacon, mas como força inesgotável e
transmórfica.
Rotimi afirma incorporar a espiritualidade em suas fotografias para que a ambiguidade
entre sagrado e profano, transgressão e interdito, seja ressaltada, principalmente na
centralidade do homoerotismo. Ao dimensionar o prazer sob a perspectiva espiritual, o artista
estabelece um novo cenário, longe da convenção e do padrão estético homossexual abordado
por outros artistas gays, para pensar o corpo à partir do homem negro e sua ancestralidade
como espaço de articulação da liberdade espiritual e sexual. Portanto, é possível fazer uma
leitura dessa articulação na retratística de Fani-Kayode partindo da noção batailliana do
erotismo como um campo de aprofundamento do ser.
77
136
Bataille, op. cit., p. 15.
78
137
MORAES, Eliane Robert. O acéfalo. In: O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002, p. 206.
138
Hirst, op. cit. p. 33.
139
Bataille, 1987, op. cit., p. 216.
140
Ibid., p. 221.
79
indicada por Ribeiro a respeito da incorporação de orixás presente nas religiões tradicionais
africanas, entre elas a iorubá. A autora entende o transe como uma mediação entre natureza e
humano, onde as divindades que representam um determinado elemento natural “penetram”
em corpos humanos141. A antropóloga e ialorixá relembra a leitura batailliana da dinâmica
sexual entre o ativo (homem) e o passivo (mulher) dissolvido por meio desse violento
encontro em sua descontinuidade. De modo análogo, a incorporação durante o transe
estabelece a continuidade no iniciado por meio da experiência mística da dissolução
temporária do ser no encontro com a divindade e que perpassa os movimentos de
subjetividade através de sonhos e outros produtos da própria imaginação do indivíduo
iniciado na religião142.
Enquanto uma religião que particulariza o transe como fundamento iniciático, iorubá é
uma religiosidade que indica uma transformação do indivíduo através da união entre o divino
com a fisicalidade do próprio corpo. O rito de iniciação nas religiões tradicionais africanas é
compreendido como “rituais de casamento” entre a divindade e o iniciado143. Ainda assim,
essa desassociação com uma vida descontínua no momento do transe por meio da
incorporação e do encontro com a divindade, flerta com um desejo de perder-se como um
viver violentamente uma vida divina. Desse modo, Bataille define a experiência do transe:
trata-se sempre de um desapego em relação à conservação da vida, da indiferença a
tudo o que tende a assegurá-la, da angústia sentida nessas condições até o instante
em que as forças do ser naufragam [...] para esse movimento imediato da vida que é
habitualmente comprimido e que se libera de repente no transbordamento de uma
alegria infinita de ser.144
Tal “alegria infinita de ser” pode ser aproximada de modo poético à alacridade do
pensamento iorubá que se concentra na concepção do axé como potência na medida em que
ocorre a incorporação da divindade. Por meio do ritual de casamento, segundo Ribeiro, o
iniciado recebe “uma nova identidade”145, o axé, através do processo de união da divindade
com o indivíduo resultando em uma intensa transformação e marcando assim uma nova etapa
em sua vida espiritual. Assim, a dinâmica do erotismo no âmbito do sagrado na
141
RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Apontamentos sobre erotismo e sagrado na religião tradicional Iorubá. Odeere:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade – UESB, [S.l], v. 2 n.
3, 2017: Legados Africanos e Experiências do Sagrado, 2017, p. 87.
142
Idem.
143
Ibid., p. 89.
144
Bataille, 1987, op. cit., p. 229-230.
145
Ribeiro, 2017, op. cit., p. 90.
80
cosmopercepção iorubá reflete a sedução ordenada pelo mistério que “penetra” o corpo e se
desenvolve na dança, na ginga, a manifestação da divindade.
Parece interessar ao trabalho de Rotimi menos a representação ortodoxa do erotismo
presente na religiosidade iorubá e sim desenvolver uma dimensão sagrada desprendida dos
interditos religiosos. O artista procura provocar tensões nessa esfera da ideia da religião como
sistema simbólico unindo elementos transgressores a uma suposta “pureza” mística. No
retrato de Nothing to Lose XI (Fig. 33), o artista trabalha essa questão com a imagem de um
homem vestido com uma manta branca, contas e um turbante, representando a figura de um
sacerdote ou babalawo. Atrás do homem, dois braços estendidos seguram dois objetos fálicos,
ambos talhados com figuras de traços humanos, mas que pertencem a contextos diferentes:
enquanto um pertence a uma tradição da escultura africana, mais especificamente iorubá, a
outra pertence à fantasia de artigos eróticos do mundo moderno ocidental.
Figura 33 – “Nothing to Lose XI”, Rotimi Fani-Kayode, 1989
146
Bataille, 1987, op. cit., p. 224.
147
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 13.
82
escapa do paradoxo que constitui toda hierofania: ao mesmo tempo que transforma, conserva
em certa medida o que sempre foi148, visto que é parte integrante de toda a fantasia que
envolve o rito.
O sacrifício do corpo na retratística de Fani-Kayode vai de encontro à ideia trágica de
que a liberdade está na morte: tanto como produto final da dissolução da forma humana, como
no encontro dessa continuidade profunda promovida pelo erotismo sagrado. Tal como os
abiku, na mítica iorubá, espíritos que não conseguem se desvencilhar das promessas feitas no
mundo sutil, a morte o liberta da distância e cumpre o retorno ao mundo sutil. Nesse contexto,
da dinâmica metafísica iorubá que preconiza a vida e a morte como movimentos cíclicos e
intrinsecamente conectados, a experiência da morte não é um fim perpétuo em si mesmo, mas
a redenção espiritual experimentada através do corpo físico, na vida descontínua.
A plenitude do corpo depois da violenta tensão do ser na incorporação da divindade e
do transe erótico ocorre no relaxamento das terminações nervosas apresentado por exemplo
em Nothing to Lose X (Fig. 34), em que é revelada a transição, a passagem de um estado para
o outro. Os olhos arregalados do homem inundado entre flores sobre seu corpo conserva a
centelha da vida e o desapego à carne pela enérgica presença do espírito. As aproximações do
corpo em passagem que remetem a personagem de Hamlet apontam para a posição de auto
sacrifício que ambos os personagens preconizam sobre o lirismo na presença das flores
durante morte. Ophelia (Fig. 35) de Millais expõe essa delicadeza na morte que Rotimi parece
esforçar-se para aplicar na presença fúnebre do corpo do jovem negro em seu retrato.
Observa-se aqui, novamente, o paralelo visual e a transversalidade simbólica de uma
iconografia europeia aplicada na arte diaspórica de Fani-Kayode, como uma reelaboração
estética e adaptações da negritude em uma cultura visual branca.
Ao distanciar-se gradualmente de um movimento homoerótico partindo somente do
estudo das formas corporais e dos atributos físicos, a estética híbrida pela qual Rotimi Fani-
Kayode em parceria com Alex Hirst propõe amplia as possibilidades e ressalta as
ambiguidades que a metafísica sobre o corpo consequentemente estabelece através do
paradoxo sagrado e profano. Embora muitas vezes seu trabalho tenha sido comparado
superficialmente com o trabalho de Robert Mapplethorpe, a fotografia do artista nigeriano
busca apresentar uma masculinidade negra entre os limites do erotismo e da espiritualidade
148
Idem.
83
149
Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/millais-ophelia-n01506. Acesso em 4 de ago. 2021
85
O tema do erotismo nos debates raciais ainda é pouco discutido entre intelectuais do
movimento negro no ocidente. As marcas que a colonização infligiu nos corpos de pessoas
africanas escravizadas deixaram resquícios ainda sentidos em um contexto psicanalítico,
estudado amplamente nos trabalhos de autores negros como Frantz Fanon. No Brasil, os
estudos da psicanalista Neusa Santos Souza150 analisam como a falta de uma identidade que
parte do reconhecimento do próprio indivíduo faz com que a experiência de ser negro em uma
sociedade branca seja desassociada de uma realidade calcada no si mesmo, ocasionando em
diversos momentos a incorporação de discursos de violência, códigos morais e
comportamentos como autopreservação frente ao mundo branco.
Em um contexto de diáspora africana marcada pelo trauma da escravidão, como pensar
a respeito de um erotismo desvinculado da sádica exploração do corpo negro enquanto objeto
de satisfação do desejo sexual do colonizador? Se o erotismo, pela perspectiva batailliana,
está vinculado à profundidade do ser em seu estado contínuo e preconiza sempre o encontro
entre dois seres capaz de romper com a individuação; uma leitura cuidadosa percebe que de
fato não pode haver erotismo na relação entre colonizador e colonizado. Não há a
possibilidade da colonização dos corpos na dimensão do erotismo batailliano, pois o princípio
está com efeito na dissolução de ambas as partes, ativa e passiva, do ato erótico, não
permitindo a conservação de nenhuma das partes.
Reduzido a um objeto sexual, o corpo negro na lógica colonial não tem direito ao
erotismo e, portanto, não tem direito ao desejo, pois não se configura dentro dos parâmetros
europeus como indivíduo e como ser. As relações homoeróticas e o exotismo no contexto
colonial brasileiro são apontadas pelo antropólogo Luiz Mott151 como efeito das fantasias
acerca da “selvageria dos negros”, indicando que apesar da hierarquia social dominante, no
domínio da sexualidade a repulsa racial não se efetiva no âmbito da intimidade. Ao longo do
texto, sob uma visão romantizada das relações entre colonizadores e escravos, Mott ressalta
um equívoco comum nas abordagens sociológicas de tradição intelectual a respeito da
150
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
151
Santos, 2014, op. cit., p. 7
86
152
Idem.
153
VEIGA, Lucas. Além de preto é gay: as diásporas da bixa preta. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf
Malungo de. (orgs.). Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo
Contínuo, 2019, p. 83.
87
superfície uma dimensão do erotismo e do prazer temida pela sociedade 154. Com uma
agressividade explícita, o fotógrafo e ativista busca revelar imagens de corpos que fogem às
formas de um padrão de beleza ocidental, permitindo retratos que demonstram diversos tipos
de masculinidades, negritude e gênero.
Figura 36 – “Black Circus Master”, Ajamu X, 1997
154
HUXTABLE, Isaac. Ajamu X is tired of waiting. 1854 - AGENDA, GENDER & SEXUALITY, POWER &
EMPOWERMENT, RACE & REPRESENTATION, Londres, 25 fev. 2021.
155
Disponível em: https://www.ajamu-studio.com/black-circus-master-series-1997. Acesso em 8 jul. 2021.
88
156
CUSTÓDIO, Túlio Augusto. Per-vertido Homem Negro: reflexões sobre masculinidades negras a partir de
categorias de sujeição. In: RESTIER, Henrique; SOUZA, Rolf Malungo de. (orgs.). Diálogos contemporâneos
sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2019, p. 133.
157
DUARTE, Eduardo de Assis. Passado, Presente e Futuro: Cadernos Negros 40. Belo Horizonte: Literafro,
2018.
158
CUTI, Luiz Silva. Poesia Erótica nos Cadernos Negros. Quilombhoje, [S.l.], [S.d.].
89
Talvez possamos assumir que a obra de Rotimi Fani-Kayode alcança proximidades com
a abordagem poética do Cadernos Negros no que diz respeito a esse tangenciamento com um
erotismo que aponta para a libertação do corpo negro na lógica da dominação e da exploração
de uma sociedade branca e racista. Em ambas manifestações artísticas, busca-se diversas
cartografias do corpo subjetivo, dos afetos e emoções sentidas pelo sujeito, contra uma
memória do corpo coletivo, de dor e sofrimento do trauma colonial, na negação do prazer para
o colonizado em detrimento da satisfação do colonizador. Em imagens, essa cartografia
ocorre na retratística de Fani-Kayode sob a dimensão da religiosidade iorubá, da percepção de
uma corporeidade que abriga os corpos e que aciona o encantamento. Tal como uma ode ao
homem negro e à potencialidade do erotismo como possibilidade do encontro com o sagrado.
159
Idem.
160
Idem.
90
CONCLUSÃO
iniciático, como também no ato erótico, transgredindo os limites da forma e dos padrões de
consumo que destaca o desejo ocidental e heteronormativo. Mais ainda, a experiência da
continuidade provocada pelo encontro com o sagrado na hierofania ativada sobre o corpo
durante a experiência do transe aponta para a ideia batailliana da aprovação da vida na morte,
visto que morrer durante o rito, na simbologia iorubá, é a morte de um estágio para acessar
uma nova etapa na composição dessa corporeidade presente na dinâmica metafísica e
ontológica do cosmos. A perpectiva branca ocidental aplica conceitos patriarcais e
heteronormativos como sinônimos de masculinidade, marginalizando assim qualquer outra
possibilidade que contradiga parâmetros de comportamento e código moral No contexto
homoerótico negro, essa masculinidade é posta em questão para configurar-se em
masculinidades num sentido plural, que, na perspectiva de Rotimi Fani-Kayode, está sempre
em devir, passível de se transfigurar, de se transmutar pela performance corporal.
92
REFERÊNCIAS
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97
APÊNDICE
O texto Traces of Ecstasy, cuja tradução inédita em português segue abaixo, foi
originalmente escrito e publicado por Fani-Kayode em 1987, na revista Ten. 8, importante
publicação de fotografia dos anos 80. Sua versão bilíngue (inglês/francês) pode ser encontrada
no livro Photographs, escrito por Fani-Kayode em parceria com Alex Hirst e publicado pela
editora Revue Noire de Londres em 1996. O tom é de certo conformismo em face das
inevitáveis exclusões vividas por um artista negro homossexual num ambiente das artes
visuais ainda dominado pela “hegemonia das convenções”. O que não impede a exaltação das
possibilidades expressivas inerentes a um processo de desapropriação das “subversões
culturais do neocolonialismo” em favor da celebração do “mundo secreto” da própria
ancestralidade .
Traços de Êxtase
TALVEZ TENHA SIDO MEU DESTINO acabar como um artista com o gosto sexual
por homens mais jovens. Como resultado disso, certa distância imperiosamente se
desenvolveu entre minhas origens e eu. A distância tornou-se ainda maior pelo fato de ter
partido da África como refugiado há 20 anos.
DE TRÊS MODOS POSSO ME DIZER UM MARGINAL: em questões de
sexualidade; em termos de deslocamento geográfico e cultural; e no sentido de não ter me
tornado o tipo respeitável de profissional casado que meus pais esperavam que eu fosse. Essa
situação me confortou na sensação de ter muito pouco a perder. Ela produz uma sensação de
liberdade pessoal em relação à hegemonia das convenções. O efeito disso é salutar para
alguém que conseguiu se manter fiel a seu próprio imaginário por entre as crises da
adolescência e a despeito das pressões para me conformar. Abrem-se assim espaços para uma
busca criativa que, de outro modo, talvez tivessem permanecido proibidos. Ao mesmo tempo,
traços dos valores antigos permanecem, tornando possível novas leituras a partir de um ponto
de vista incomum. Os resultados são forçosamente desorientadores.
Na arte africana tradicional, a máscara não representa uma realidade material; o artista
procura, antes, abordar sua realidade espiritual através de imagens que sugerem as formas
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conteúdo. Concretamente, isso também pode fornecer os meios para que artistas isolados e
sem poder mostrem seus trabalhos e insistam em serem levados a sério.
Uma consciência da História tem sido de fundamental importância para o
desenvolvimento de minha criatividade. A História da África e da raça negra tem sido
constantemente distorcida. Mesmo na África, minha educação foi dada em inglês em escolas
cristãs, como se a língua e a cultura do meu próprio povo, os Iorubás, fossem inadequadas ou
de alguma forma impróprias para o desenvolvimento saudável das mentes jovens. Ao explorar
a História e a Civilização Iorubá, redescobri e reavaliei vertentes de minha experiência e
compreensão do mundo. Vejo agora paralelos entre meu trabalho e o de artistas de Osogbo
em terras iorubás, que resistiram às subversões culturais do neocolonialismo e que celebram a
riqueza do mundo secreto de nossos ancestrais.
PERMANECE VERDADEIRO, entretanto, que as grandes civilizações iorubás do
passado, assim como outras culturas não europeias, ainda são confinadas pelo Ocidente aos
museus das artes e culturas primitivas. A cosmologia iorubá, comparável em sua sutileza e
complexidade aos mitos filosóficos gregos e orientais, é tratada como não mais que uma
superstição bizarra que, como que por milagre, teria inspirado a criação de alguns dos
artefatos mais sensíveis e delicados da história da arte. A arte moderna iorubá (na qual situo
minha própria contribuição), agora pode por vezes alcançar preços elevados nas galerias de
Nova York e Paris. Da mesma forma, as versões modernas das crenças iorubas, levadas pelos
escravos ao Novo Mundo tornaram-se, em sua forma carnavalesca, atrações turísticas. Eu
mesmo sou pego, inelutavelmente, nessa armadilha.
Outro aspecto da história, aquele da sexualidade, também me afeta profundamente. A
história oficial sempre negou a validade das relações e experiências eróticas entre pessoas do
mesmo sexo. Assim como no campo econômico e político, os historiadores das relações
sociais e sexuais foram prontamente auxiliados pela Igreja em suas produções. Mas apesar de
todas as tentativas da Igreja e do Estado em suprimir a homossexualidade, é evidente que
relações sexuais enriquecedoras entre pessoas do mesmo sexo sempre existiram. Elas são
parte da condição humana, mesmo que o conceito de identidade sexual seja uma noção mais
recente.
EXISTE UM CAPÍTULO TERRÍVEL DA HISTÓRIA EUROPEIA que nunca me foi
mencionado durante a escola. Somente muito mais tarde descobri que os nazistas haviam
desenvolvido a forma mais extrema de homofobia que já existiu nos tempos modernos, e que
haviam tentado exterminar homossexuais em campos de concentração. Isso não foi tanto uma
surpresa, mas mais um exemplo da longa tradição europeia de supressão violenta da
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alteridade. Isso me toca tanto quanto saber que milhões dos meus ancestrais foram
assassinados ou escravizados para assegurar a hegemonia política, econômica e cultural
europeia no mundo.
POR ESSA RAZÃO SINTO QUE É ESSENCIAL RESISTIR A TODAS AS
TENTATIVAS de desencorajamento da expressão da identidade individual. No meu caso,
minha identidade tem sido construída da minha própria noção de alteridade, seja cultural,
racial ou sexual. Os três aspectos coabitam em mim. A fotografia é a ferramenta pela qual eu
me sinto mais confiante para me expressar. Portanto, é a fotografia - negra, africana,
homossexual - que devo utilizar não somente como um instrumento, mas como uma arma se
quero resistir aos ataques a minha integridade e, inclusive, a minha existência em meus
próprios termos.
NÃO É SURPRESA VER QUE O TRABALHO DE ALGUÉM é evitado ou
ativamente desencorajado pelo sistema. Em contrapartida, a burguesia homossexual tem sido
mais solidária, não porque ela se distingue particularmente por defender artistas negros, mas
porque uma bunda negra vende tanto quanto um pau negro. Como resultado do interesse
homossexual, tive vários portfólios impressos na imprensa gay, e um livro de nus publicado
pela GMP. Também tem sido dada alguma atenção a meu trabalho erótico por parte de
galerias conformistas que recebem financiamento de autoridades locais mais progressistas.
Entretanto, no geral, as galerias e a imprensa se sentem mais seguras com meu trabalho
étnico. na clássica tradição liberal, ocasionalmente algumas de minhas imagens menos
abertamente ameaçadoras e ultrajantes foram aceitas . Mas o negro ainda é belo apenas
enquanto se mantém dentro dos quadros da referência branca.
TENHO FICADO CADA VEZ MAIS DESCONCERTADO com as respostas a meu
trabalho da parte de certos setores autoproclamados de vanguarda. Na exposição “Misfits” na
Oval House (que coincidiu com a inauguração da placa em comemoração ao nascimento de
Lord Montgomery de Alamein), fui solicitado, junto com outros artistas, a remover meu
trabalho caso atraísse publicidade desfavorável. Naturalmente, recusamos. Infelizmente, a
imprensa estava muito ocupada prestando homenagem a Monty, de modo que a reputação
nacional da Oval House foi salva, e a nós foi negada a publicidade gratuita.
QUANTO À PRÓPRIA ÁFRICA, se algum dia eu conseguir fazer uma exposição em,
digamos, Lagos, suspeito que ocorreriam manifestações de hostilidade. Certamente eu seria
acusado de ser um provedor dos valores corrompidos e decadentes do Ocidente.
No entanto, às vezes penso que se levasse meu trabalho para as áreas rurais, onde a vida
ainda está vigorosamente em contato consigo mesma e com suas raízes, a recepção poderia
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ser mais construtiva. Talvez reconhecessem meus deuses da varíola, meus sacerdotes
transsexuais, minhas imagens de homens negros desejáveis em estado de frenesi sexual ou a
tranquilidade da comunhão com o mundo espiritual. Talvez tenham menos medo em se
encontrar com o mais obscuro dos obscuros segredos da África pelos quais alguns de nós
buscam a fim de obter acesso à alma.