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Captulo Denise
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A história da loucura e as
transformações no cuidado em
saúde mental
Introdução
71
para Casa, que tem como finalidade assegurar os direitos da
pessoa em tratamento psiquiátrico em seu território.
Outro marco importante dentro dessas mudanças
foi a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
considerado uma instituição modelo no atendimento
psicossocial. O CAPS, como referência no atendimento à
saúde mental, atua como principal articulador da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) dos municípios, facilitando a
comunicação entre a Atenção Básica de Saúde e a pessoa em
acompanhamento psicossocial na sua comunidade.
Contudo, nem sempre a atenção à pessoa em
sofrimento mental foi prioridade nos sistemas
governamentais. A loucura, como era conhecida a
manifestação dos problemas mentais até o período que
antecede a Reforma Psiquiátrica, era compreendida e tratada
de acordo com os paradigmas sociopolíticos de cada
momento histórico. Assim, conhecer a história da
saúde/doença mental nos ajuda a compreender não só as
mudanças positivas que ocorreram, como mencionado
anteriormente, mas também os estigmas que ainda
permanecem em torno dessa população. Como afirma
Foucault (1972, p. 124) em seu livro A história da loucura na
idade clássica: “queremos crer que é por havermos conhecido
mal a natureza da loucura, permanecendo cegos a seus
signos positivos, que lhe foram aplicadas as formas mais
gerais e mais diversas de internamento.” Compreende-se,
dessa forma, que, por desconhecimento da psicopatologia,
julgou-se mais prudente alocar os pacientes acometidos pela
loucura em hospitais psiquiátricos em busca da sua cura;
porém os métodos usados não eram reconhecidos como
eficazes e não buscavam a autonomia do paciente.
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Diante do exposto, este ensaio é uma tentativa de
problematizar a atenção e o cuidado em saúde mental sob o
viés da história da loucura. Para tanto, apoia-se em Michel
Foucault como referencial teórico na apresentação e
discussão dessa temática. Para melhor compreensão, o texto
está organizado da seguinte forma: num primeiro momento
discorre-se sobre a loucura em cada momento histórico, em
seguida contextualiza-se o movimento da Reforma
Psiquiátrica, sobretudo a Reforma Psiquiátrica Brasileira, e,
por fim, discutem-se a criação e o papel desempenhado
pelos CAPS no campo da saúde mental.
Dessa maneira, a Reforma Psiquiátrica Brasileira
trouxe consigo a intenção de desinstitucionalizar, realizando
um movimento de migração para o espaço social e trazendo
aos seus usuários um tratamento humanizado. Assim,
ressalta-se que o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS),
diferentemente das internações em hospitais psiquiátricos,
busca fazer com que o sujeito tenha condições de se tratar
em seu meio familiar e social e participar de forma ativa de
seu tratamento.
A história da loucura
73
exorcismo ou adorcismo.2 Dessa forma mantinha-se a crença
da possessão sobrenatural como causa dos problemas
mentais. Assim, o louco, ao ser considerado doente de alma,
era visto como ameaça à sociedade (Foucault, 2013) e,
consequentemente, à sua família.
No entanto é o período denominado Idade Clássica 3
que representa um marco para o estudo do nascimento da
Psiquiatria e das práticas médicas de intervenção sobre a
loucura (Amarante, 2000; Batista, Silva, Ferreira & Batista,
2018). A loucura, desde os primórdios, vem sofrendo
mudanças significativas em sua realidade histórica,
transfigurando-se em determinado momento em um
conhecimento de insanidade, o qual a delimitava como
doença mental. Todavia não seria este o verdadeiro fato de
sua história, pois se durante algum tempo era baseada nessas
informações, é por não existir ainda conhecimento de que
poderia haver novas formas de tratamento médico (Foucault,
2013).
A noção sobre a história dos fatos e fenômenos
sociais é a porta para compreender as contradições e
determinações presentes na trajetória da vida humana. É
comum pensar que os termos Reforma e Psiquiatria
tornaram-se parceiros apenas recentemente. Ao contrário
disso, eles caminham juntos desde o surgimento da
2
Adorcismo: ação mágico-terapêutica que buscava restabelecer no
indivíduo sua alma “perdida”.
3
A definição de Idade Clássica utilizada é a da arqueologia das
ciências humanas, postulada por Michel Foucault, que apresenta
três períodos: o Renascimento, a Idade Clássica e a Modernidade.
O período do Renascimento, que vai até o século XVI; o período
Clássico, que compreende do fim do século XVI ao início do
século XVIII; e o período da Modernidade, que se inicia a partir do
fim do século XVIII.
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Psiquiatria. Sabe-se que foram os reformadores da
Revolução Francesa que conferiram a Pinel o papel de
humanizar e dar um sentido terapêutico aos hospitais em
geral, onde os loucos ficavam recolhidos junto a outros
indivíduos marginalizados da sociedade (Gonçalves & Sena,
2001; Tenório, 2007).
Segundo Foucault (2013), a loucura e a razão estão
intimamente ligadas, e uma pode ser alterada em função da
outra. Ou seja, toda loucura tem um pouco de razão que a
julga e controla e toda razão tem um pouco de loucura em
que ela encontra sua verdade módica, assim, ambas se
respaldam e se designam reciprocamente. Entretanto, o
enfoque da loucura como patologia e da psiquiatria como
especialidade médica passou a ser reconhecido pela história
da humanidade há aproximadamente pouco mais de 200
anos. Foi a partir do século XVIII que o homem idealizou
uma nova forma de se compreender e vivenciar a condição
humana. Na realidade, a loucura sempre existiu, assim como
o ambiente para tratar os loucos, como instituições,
domicílios e templos, porém a instituição psiquiátrica é uma
construção do século XVIII (Gonçalves & Sena, 2001).
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da sociedade. Assim, o doente mental, que até então era
excluído do convívio dos iguais (dos normais), foi afastado
dos produtivos, dos donos da razão e dos que não
apresentavam ameaças à sociedade (Gonçalves & Sena,
2001). Nesse momento surgem os asilos, que foram
construídos para abrigar os loucos e todos aqueles que, por
alguma razão, não se adaptavam às normas sociais vigentes
(Foucault, 2013).
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Procuravam-se as formas mórbidas da loucura,
encontrou-se apenas as deformações da vida
moral. Neste percurso, é a própria noção de
doença que se alterou, passando de uma
significação patológica para um valor puramente
crítico. A atividade racional que repartia os signos
da loucura transformou-se secretamente numa
consciência razoável que os enumera e denuncia.
(Foucault, 2013, p. 198).
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Foucault (2013) relata sobre a grande internação que
diz respeito a como era tratada a loucura, em que foram
internados todos aqueles ditos libertinos e sem condições,
sendo vista como a grande internação da pobreza. Os
indivíduos encarcerados tinham em si algo em comum: “Em
todos eles, havia apenas uma certa maneira, bastante pessoal
e variada em cada indivíduo, de modelar uma experiência
comum: a que consiste em experimentar o desatino.”
(Foucault, 2013, p. 122). A partir desse enfoque, tem-se a
dissipação da origem sobrenatural da loucura e a sua
amarração:
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mental se correlaciona à experiência jurídica da alienação, na
constituição do estatuto do que seja um indivíduo incapaz,
perturbador do grupo, de acordo com os preceitos morais,
sociais, éticos e políticos dos séculos XVII e XVIII. Nesse
sentido, a loucura clássica não é uma doença, no entanto “o
extremo dos defeitos”. Por exemplo, foram internados
indivíduos considerados: “grande mentiroso”, “pregador de
cartazes”, “espírito inquieto, triste e ríspido”, “homem que
passa os dias e as noites a atordoar os outros com suas
canções e a proferir as blasfêmias mais horríveis.” (Foucault,
2013).
Aos poucos a loucura passa a se individualizar das
outras categorias. Como é o momento em que a pobreza
deixava de ser enclausurada enquanto a loucura continuava
sendo privada do convívio social. Somente em fins do século
XVIII e início do século XIX, com o surgimento de abrigos
e atendimentos terapêuticos, a loucura passa a ser definida
como “alienação mental”, apontada por Philippe Pinel, e
integrada ao campo da Medicina. Foi por intermédio de
Pinel que se tornou possível ter acesso ao paciente
acometido pela loucura e, dessa maneira, buscar reintegrá-lo
à sociedade. Todavia isso não quer dizer que a prática de
internamento seria excluída, ela apenas estava sendo
modificada para um tratamento mais humanizado, fazendo
com que o louco se reconhecesse como doente, porque ele
não foi inteiramente deposto de suas faculdades mentais;
ainda existiam lampejos de razão. Isso conceberia, por
exemplo, o retorno a um estado dito como normal após uma
crise de loucura (Batista, 2014). De acordo com Cantele,
Arpini e Roso (2012), a principal intenção da Reforma
Psiquiátrica diz respeito ao rompimento da mácula da
loucura como doença somática, reconstruindo uma nova
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visão diversificada do doente mental, reconhecendo-o como
um todo.
81
uma vez que já que não tinha mais a oportunidade de fazer
suas próprias escolhas (Brandão, 2010). Com a ocorrência
dos movimentos de reformulação da assistência psiquiátrica
em nível mundial, foram estabelecidas novas ações para
modificar as realidades asilares, criando, dessa forma, novas
possibilidades. Com isso, onde havia somente exclusão e
isolamento foi proposta a cidadania, a convivência
comunitária e a escuta subjetiva. O principal objetivo da
Reforma Psiquiátrica foi, além de oferecer uma nova clínica,
produzir um novo ambiente social para a loucura na tradição
cultural brasileira (Pereira, 2008).
Outro acontecimento importante destacado por
Tílio (2007) e que merece destaque foi a reformulação do
conceito de saúde mental como eixo diagnóstico, pois,
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1948, a
saúde era considerada um estado de bem-estar físico, mental
e social para além da ausência da doença. A partir da nova
redação, em 2001, deu-se uma ampliação e complexização
das percepções sobre saúde e doença.
82
leitos hospitalares de psiquiatria passaram a ser destinados
para um modelo substitutivo de base comunitária (Brandão,
2010).
No Brasil, a loucura fazia parte do convívio social
desde o século XVI até o início do século XIX. A partir
dessa situação, começou a ser reconhecida como desordem e
perturbação da paz social, passando a ser apropriada pelo
discurso religioso (Vechi, 2004).
Gradativamente, os loucos foram sendo retirados do
contexto social e isolados nos porões das Santas Casas de
Misericórdia e nas prisões públicas. Para os médicos da
época, no entanto, essa situação não resolvia o problema da
loucura. A segregação, a falta de higiene e de tratamento
físico e moral adequado tornavam a cura impossível. Os
médicos, articulados com o então provedor da Santa Casa,
José Clemente Pereira, começam a reivindicar a criação de
um instrumento terapêutico específico para os loucos, o
hospício (Machado, Loureiro, Luz & Muricy, 1978).
Essa transição do modelo médico tradicional tem
acontecido desde 1980 e é reconhecida como Reforma
Psiquiátrica Brasileira, que pretende implantar uma prática
humanizada de assistência ao paciente com transtorno
mental, o qual passa a ser assistido na sociedade com apoio
familiar, podendo, dessa forma, resgatar os seus direitos
como cidadão, passando o tratamento da doença e
promoção da saúde mental a ser o foco desse novo modelo
(Castelo Branco, 2013).
O campo da saúde mental teve como marco
importante no contexto brasileiro o movimento da Reforma
Psiquiátrica. Historicamente sendo visto como um momento
que possibilitou a reconstrução da assistência em saúde
mental por meio da formulação de políticas públicas,
83
protestando sobre a maneira como as instituições
psiquiátricas se relacionavam com o processo saúde-doença
e o sistema manicomial em seu conjunto, destacando a
situação crítica e emergencial de buscar novas formas de
atuação dos profissionais no atendimento assistencial
ambulatorial. Essas transformações propostas pela Reforma
alcançaram as diferentes práticas que se encontravam já, em
alguma medida, consolidadas nas instituições manicomiais
(Cantele & Arpini, 2017).
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doentes mentais eram isolados da população em geral, sendo
internados em manicômios por tempo geralmente
indeterminado. Se antes a única alternativa desses pacientes
era os manicômios, com a Reforma Psiquiátrica esse quadro
se modificou, possibilitando uma nova assistência à saúde
mental (Abuhab, Santo, Messenberg, Fonseca & Aranha,
2005; Martinhago & Oliveira, 2012).
Vechi (2004) expõe que a iatrogenia, que favorece a
conservação da clientela, produzindo um efeito inverso ao
terapêutico, continuou vigente no discurso da
desinstitucionalização. A desinstitucionalização da loucura
não poderia se limitar ao mero processo de desospitalização.
“Nesse sentido, essa noção apontaria apenas para a mudança
do lócus de tratamento, isto é, dos grandes hospitais
psiquiátricos para os serviços comunitários, como os
hospitais-dia e os centros de atenção psicossocial.” (Vechi,
2004, p. 493).
Embora pareçam ter significados distintos,
desospitalizar e desinstitucionalizar têm significados bem
diferentes; enquanto um atua apenas no contexto da abolição
dos hospitais manicomiais, o outro atribui novo sentido ao
termo instituição que visa à compreensão das complexidades
das práticas e saberes de entender e se relacionar com
fenômenos sociais. Em consonância, não teria o paciente
mental que ser desinstitucionalizado, mas o entendimento
acerca da loucura que deveria ser modificado e transformado
(Figueiredo & Rodrigues, 2004).
Por meio da desinstitucionalização é possível
proporcionar aos pacientes a integração social e familiar,
fazendo com que eles tenham autonomia e encorajando-os a
se inserir em um ambiente social mais harmonioso, por
intermédio de diversos dispositivos clínicos, como oficinas,
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atendimentos médicos e psicológicos, tendo como base um
acompanhamento terapêutico assistencial à saúde mental
(Lewis & Palma, 2011; Lara & Monteiro, 2012).
O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) tem
como finalidade acolher os pacientes com transtornos
mentais, oferecer atendimento com uma equipe de
profissionais multidisciplinar composta por psiquiatras,
psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, artesãos,
educadores físicos, nutricionistas, assistentes sociais e
técnicos de enfermagem. Juntamente com a equipe, o
enfermeiro é responsável por receber os usuários, prestar os
cuidados, desenvolver os projetos terapêuticos, compartilhar
o espaço de convivência do serviço, resolver problemas
imprevistos e outras situações que requerem providências
imediatas, durante todo o período de funcionamento da
unidade, além de trabalhar nas atividades de reabilitação
psicossocial e na reinserção do portador de transtorno
mental ao convívio social (Melo & Furegato, 2008).
De acordo com o Ministério da Saúde, o Sistema
Único de Saúde (SUS) foi criado no dia 29 de dezembro de
2014:
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e apoiem a reorganização do processo de trabalho
dos profissionais vinculados a essas pessoas
(Brasil, 2014).
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de serem realizadas medidas por parte de serviços públicos
as quais visem à melhoria no suporte social e a diminuição
da sobrecarga dos familiares cuidadores. Assim, as
associações encontradas no presente estudo e outras, como
severidade do transtorno apresentado pelo usuário,
poderiam estar sendo avaliadas com maior frequência e
empenho. Contudo este estudo permitiu a identificação de
fatores que possibilitam a indicação de medidas de
prevenção e controle por meio de políticas públicas
propostas nas áreas de atenção básica e de saúde mental,
visando não apenas ao portador de transtorno mental ou de
outras doenças crônicas, mas a todos os usuários dos
serviços de saúde, sejam eles pessoas com algum tipo de
transtorno mental, sejam os cuidadores desses sujeitos.
Considerações Finais
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O CAPS se constitui em uma rede de atenção à
saúde mental embora ainda em transição e necessitando de
muitas reformas. Mesmo que haja um grande avanço desde a
sua criação, ainda é percebível um grande déficit em seus
postos de atendimento, seja pela falta de profissionais, pela
precariedade dos locais, seja pela grande demanda de
público, o que faz com que haja uma atenção redobrada por
parte das políticas públicas a fim de que possam viabilizar
mudanças que beneficiem os doentes mentais.
Referências
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Brasília, DF: Ministério da Saúde.
91
Figueiredo, V. V., & Rodrigues, M. M. P. (2004). Atuação do
psicólogo nos CAPS do estado do Espírito Santo. Psicologia em
Estudo, (9)2, 173-181.
Machado, R., Loureiro, Â., Luz, R., & Muricy, K. (1978). Danação
da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal.
92
Mello, R., & Furegato, A. R. F. (2008). Representações de
usuários, familiares e profissionais acerca de um centro de atenção
psicossocial. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, 12(3), 457-464.
93