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ANDREE KARTCHEVSKY-BULPORT DANIELE COMBES MONIQUE HAICAULT HELENE LE DOARE HELENA HIRATA q DANIFLE KERGOAT FATIHA HAKIKL-TALAHITE DANIELLE CHABAUD DOMINIQUE FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL ELISABETH SOUZA LOBO JOHN HUMPHREY LEDA GITAHY ROSA MOYSES DONATELLA RONCI MARIELLA PACIFICO ANNI BORZEIX MARGARET MARUANI BIANCA BECCALLI 0 SEXO DO TRABALHO PAZ E TERRA EM DEFESA DE UMA SOCIOLOGIA DAS RELAGOES SOCIAIS Da anélise critica das categorias dominantes & elaboragio de uma nova conceituacdo Danidle Kergoat 1, ARTICULAR PRODUGAO/REPRODUCAO, 1. Articular, no seio de uma problemética coerente, produgaio e reprodugio é para mim da ordem da necessidade. Necessidade que se impds & medida que avangava em meu primeiro campo de pesquisa: a génese da reivindicagdo operdria Deve-se observar, alids, que esse esforyo de articulagéo ¢ necessério, quer se estudem os homens ou as mulheres. Foi assim que se evidenciou que em posigdes semelhantes na estrutura pro- dutiva (operétios imigrantes, sem qualificagio, de mesma nacionali- dade, mesma faixa etéria, ocupando os mesmos postes de trabalho), a diferenca nos patamares de combatividade — modalidade e inten- sidade — era enorme. Essas diferencas 36 adquiriam sentido quando se abandonava o esquema pavloviano segundo 0 qual a combativi- dade seria uma resposia’(mediada ndo pelo grau de consciéneia) as condigdes de exploraco para Ihe substituir um raciocinio em termos de prdticas socials, isto 6, de um conjunto coerente (mas nio neces sariamente consciente) de comportamentos ¢ atitudes observaveis, no conjunto da vida quotidiana (conjunto que as relagdes sociais tornaram coerente, Examinarei essa questo mais adiante). No caso a que aludimos anteriormente, @ diferenga entre trabalhadores imi grantes devia, realmente, ser buscada na diregio dos projetos futu- ros € dos lagos com o pais de origem, isto é, com a esfera reprodutiva. Na mesma seqiiéncia de idéias, o universo produtivo 1, Pare uma andlise exaustiva desse caso, ef, D. Kergoat: Bulledor ou Uhis- toire d'une mobilisation ousriére, Seuil, Paris, 1975. siricto sensu nos pareceu rapidamente incapaz de explis Tencas de combatividade que se podiam observar entre a populagio operdria das fabricas de um mesmo grupo industrial, muito préxi- mas, geograficamente, uma das outras: para compreender essas di- ferencas, era preciso passar pela anélise da comunidade operétia, entidade bem viva na regido, e pela andlise da familia, que era simultaneamente a unidade de exploragdo da forca de trabalho? ¢ tum lugar de aprendizagem ¢ de exercicio da resisténcia contra a dominagio patronal: tudo se passava, na verdade, como se a com- batividade existisse globalmente ao nivel de cada familia e se incor porasse quase indiferentemente a um ou outro membro do grupo familiar, segundo o lugar de trabalho assalatiado desse grupo. 2. No que concerne as operditias, a necessidade de se conside- rar simultaneamente a produgao e a reprodugdo, se ela é da mesma natureza, impée-se ainda mais jé que ela é uma dupla condi prévia: inicialmente, para que seu grupo torne-se vistyel, para que cle se transforme em objeto socioldgico,em seguida, para que se poss examiné-lo. Vou-me explicar. Nao € por zcaso que a literatura, prédiga a propésito dos operdirios ou da classe operdria (assexuada como se sabe. ..), é um feto estranhamente raro quando se trata das operirias, Hé dex obretudo desde o inicio da crise, multiplicaram-se as andl ‘mostram a diversidade sendo os interesses conflitantes dos gru- pos que constituem a classe operéria: jovens/velhos, trabalhadores astaveis/precérios, operdrios qualificados/nio-qualificados, ete Mas é um fato marcante que essas anélises referem-se a uma classe de sexo univoca: a dos homens. As mulheres aparecem apenas como vategoria de mao-de-obra ou de forca de trabalho; muito raramente como ator social. Se me permitem uma imagem, ditia que os con- ceitos “nasculinos tiveram o papel de um retrovisor: 0 cendrio sendo apreendido apenas por intermédio desse retrovisor, as mulheres 2. Tratase agul de uma indGstria (xi) implantada hé mais de um s hha regldo e fortemente marcads pelo paternalismo, Durante muito tempo, jgiese que quando um operirio trabalhasse na empresa, seus filhos deviam Sauslmente ttabelhar nela, sob pena de demissio, A politica patronal é agri- ios salérios numa mesma familia: dessa forma, sentese menos 0 peso (um operdrio te Esse caso foi analisado em Les pratiques icatives ouvrigres; processus revendicatifs et dynamigues collectives, D Kergost, C.'S. On Patis, relatrio mimeografado, 1978 80 operirias permaneceram, de algum modo, no ponto morto do carro sociolégico; elas no so visiveis.* Tudo se passa, pois, como se, ‘20 nivel dos discursos sociolégico e politico, a relagio capital/tra- balho criasse apenas classes masculinas — ou mais exatamente como se a passagem do estudo de uma relaggo social ao estudo de um grupo social necessitasse, para ser realizavel, da escamoteacdo de toda dimensio sexual. E certo que esse siléncio 6 a emanacdo da ideologia dominante. Mas no apenas isso. Pois se refletirmos bem, mesmo que as mulhe- res operdrias tivessem se tomado visiveis a seus) olhos, milo obstan- te esse fato, elas continuariam sendo totalmente inassimildveis pela conceituacdo clissica da sociologia do trabalho, Mais precisamente, ssa conceituacdo faz com que efetivamente seja impossivel falar das operirias, salvo dissociando seu estatuto de reprodutoras) de seu estatuto de produtorasi O estudo do grupo operério feminino no pode, entdo, ser autonomizado, jé que os instrumentos de and- lise, totalmente dicotmicos, ndo podem em nenhum caso dar conta da coeréncia (vivida concretamente) das préticas socias. Para isso, foi preciso que um movimento social impusesse as categorias de Sexo como varivel social, logo, abordavel sociologi camente; 0 que coloca em questio a diversidade das duas ordens produtiva e reprodutiva e interpela a acepgfo tradicional do con- ceito trabalho: & somente nas pegadas do feminismo, gragas 40 questionamento epistemolégico que ele impés,* que a reflexio sobre as priticas sociais das operdrias tomava-se possivel. Il. DA ARTICULAGAO PRODUCAO/REPRODUGAO AO QUESTIONAMENTO EM TERMOS DE RELACAO SOCIAL Mas se uma tal atticulagao producao/reprodugio & necesséria, ela esta longe de ser suficiente: ainda resta raciocinar em termos de relagdes sociais. Isso € Obvio, dirao alguns. Mas se insisto a esse 3. Para ilustrar essa afirmasio, basta consultar o livo de Georges Fried Le travail en miettes, Paris, Gallimard, 1956. O estudo de fébricas {aylorizadas nio Teva ‘em conta, em nenhum ‘momento, 0 fato de que os ttabelhadores implicados sejam.-. trabathadoras. 4.0 balango desse questionamento epistemol6gico foi tentado num nimero special de Sociologie et Sociétés, vol. 13, n. 2, outubro de 1981- 81 respeito, € porque as palavras nfo sio neuiras, as velhas idéias sho resistente resvalar entre os campos te6ricos (produ eGo, reproducdo) © os lugares coneretos onde a divistio social do trabalho (entre classes, entre sexos) se opera (a fébrica, a familia) Ora, nao é suficiente para compreender as préticas sociais desta ou daquela categoria de mulheres — no caso presente, das operé: rigs — estudar simultaneamente familia ¢ fabrica; Se se proceder assim, corrigem-se 08 erros metodoldgicos;* nao se rompé a canga das ideologias dominantes. £ suficiente, para que se convenca a esse Tespeito, ver como, nestes sltimos anos, a sociologia do trabalho saiu da fabrica, para olhar em direcao a0 urbano, ao consumo, as politicas industriais. .. sem por isso, aparentemente, encontrar mais mulheres, Além disso, resvalar-se em termos de campos de pesquisa tem um outro petigo: o de cristalizar as relagdes sociais em um dado momento ¢, logo, de privilegiar uma anélise em termos de determi nismo: © sistema reproduzirse-ia por si mesmo até 0 infinito, tendo-se em conta seus tinicos imperatives de valorizagio (e as operdtias sao, sob esse aspecto, um campo privilegiado porquanto inseridas nas relagdes de produgdo e nas relagées de reproducao. ..), precisamente contra essa concepgiio cristalizada da estrutura social " que se insurge 0 raciocinio em termos de relades sociais (com seu corolério: as praticas sociais); relagao jsignifica contra digo, antagonismo, luta pelo poder, recusa @ considerar que os sistemas dominantes (capitalismo, patriarcado) sio totalmente deter- © que as préticas socials apenas refletem essas determine- ses. Em resumo, o que ¢ importante na nogéo de relacio social — definida pelo antagonismo entre grupos sociais — é a dindmica que ela reintroduz, visto que isso implica introduzir a contradigio, © antagonismo entre grupos sociais no centro da anélise. Tratase, cfetivamente, de uma contradigdo viva, perpetuamente em vias de modificagao, de recriagio 3. Segundo a expressio de Christine Delphy em “Les femmes dans les tudes de stratification” in obra eoletiva Femimies, sexisme ef socigiés, PALF Paris, 1977 6. Concepsao perfeitamente ilustrada pelas Categorias Sécio-Profissionais, ‘epresentagao cristalizada v ideoldgica da estrutura social, que nao pode. em nenhum caso, ser considerada como senda a representagao concrcia das we Mas vamos até o fim do raciocinio: querer articular produgio/ reproducdo significa, para mim, trabalhar simultaneamente sobre dois grupos de relagées sociais, relagGes entre os sexos ¢ relagdes de classe, relagSes que chamaremos respectivamente opressao © exploragio. Essa formulago nao € anédina: ela implica, entre outras coisas, a recusa a hierarquizar essas relagSes sociais. Para mim, nao hd nem from principal, nem inimigo principal. Uma telagio social nao pode ser um pouco mais viva do que uma outra; ela Uma tal problemética no deixa de ter consegiiéneias. sobre fas teorizagGes correntemente admitidas, no que concerne 0 compo do trabalho. Voltarei a esse ponto mais adiante, mas gostaria agora de ilustrar esse procedimento através de duas séries de resultados, tuma tendo por objeto as operdrias: @ outra, os operdios, Ill. A VBRIFICAGAO DESSA PROBLEMATICA, DOIS EXEMPLOS 1. © exemplo da qualificagdo/formagao das operdrias ilustra bem o esforco de desconstrugio/reconstrugio a0 qual essa proble- atica obriga: se a8 operdrias ocupam a parte inferior da escala das classificages profissionais, seria, inicialmente, porque clas sto rmalformadas pelas instituigdes escolares e, em seguida, porque elas Jutam pouco pelos problemas de qualificagio. Esse € 0 discurso desenvolvido pelos economistas ¢ pelos socidlogos ¢ sobre 0 qual a esquierda c a direita esto, grosso modo, de acordo, Insurgimo-nos contra essas afirmagdes suas conseqiléncias segundo as quai: — seria suficiente reformar as instituigdes de treinamento pro- fissional, abrir as fileiras das categorias profissionais masculinas, por exemplo, para que as mulheres tenham os meios de adquirir ‘uma formagao superior, bastante negocidvel no mercado de trabalho: bastaria que as mulheres fossem mais conscientes do que implica a qualificagéo na relacdo capital/trabalho, para que elas lutassem © vencessem nesse campo ‘A esse taciocinio, em termos de desigualdade ¢ de voluntaris ‘mo (ou de conscientizagio, o que significa a mesma coisa), opomos 83 4 seguinte argumentaglo:* ao invés de dizer que as operérias tém uma formagao inexistente ou mal adaptada, dizemos 0 contrério, gue elas tém uma formagdo perfeitamente adaptada aos empregos industriais, que se Ihes propdem, Dizemos também que elas a adqui riram, inicialmente, através de um aprendizado (na profissio de fuitura mulher, quando eram meninas), depois mediante uma forma- Go continua (trabathos domésticos). As operdrias ndo so operdrias rao-qualificadas ou trabalkadoras manuais porque sao malforma das pela escola, mas porque sao bem formadas pela totalidade do trabalho reprodutivo m duas conseqiiéncias das mulheres, no sendo adquitida por canais institucionais reconhecidos, pode ser negada pelos empre- adores; observemos, de passagem, que a qualificagio masculina € também o que esté em jogo nas relagdes capital/trabalho, © que © patronato procura sempre negi-ta; mas o que é especifico, no caso das mulheres, € que 0 nao reconhecimento das qualidades que se hes demandam (destreza, mimticia, rapidez, etc.) aparece como so- cialmente legitimo, visto que essas qualidades so julgadas como de- vendo ser inatas,'e nao adquiridas; serem fatos de natureza'e no de cultura — € a» prdprias operdrias interiorizam essa banalizagao de sua priptia qualificagio ¢, algumas vezes mesmo, a desvalorizagio de seu trabalho; & que a aquisicdo de seu savoir-faire, pelo fato de se realizar fora dos canais institucionais de qualificagao, sempre em referencia a esfera privada, thes aparece como uma aquisigdo indi- vidual © nao coletiva Um tal ravioeinio se reduz, pois, a inverter a problemética tra dicional da qualificacao/formagdo e a contestar a efiedcia das solu ges politicas. propostas: — fazendo aparecer a totalidade do sistema no qual estdo inserides as operdrias, a inseparabilidade dos elementos produgao & reprodugio, bem como a espiral de seu reforgo mito; esse racio- cinio demonstra que a questo nio se resolve nem no problema de desigualdade nem no de intensidade da exploragio (a superexplo- agi) 7. Essa arpumentagdo foi desenvelvida em Les Owvriéres. D. Kergoat, Syeo more, Paris, 1982 8a — disso decorre que se langar apenas contra uma das duas frentes nfo faz sendo deslocar os problemas, e de modo algum conitibui para resolvé-los: fala-se muito atualmente da abertura das categotias profissionais masculinas as mulheres; mas para que essa abertura no se reduza as tinicas categorias desvalorizadas ou, em vias de se tornarem rapidamente obsoletas, 0 esforgo legisla tivo nao basta: ainda seria necessério desenvolver, em relagao a esses problemas, uma dupla luta, de classe ¢ de sexo; Iuta na qual fs operdrias seriam, ao mesmo tempo, aliadas e antagénicas em relagdo aos operdrios: cle permite, enfim, compreender melhor as priticas exis: tentes, bem como o campo de forgas no qual elas se desenvolvem , por conseguinte, as condigdes te6ricas nas quais elas podem evoluir. Em outros termos, essa problemética permite controlar as duas faces do problema: como o sistema social e sua evolugio deter minam o lugar das operdrias na escala das qualificagSes, e como/ por que as operdirias interiorizam esse lugar; mas, também, como as operirias podem transformar esse sistema ¢ em que pontos preci sos elas comegaram a fazé-lo. Observemos, para concluir, que uma tal problemética no diz respeito, unicamente, a0 campo da teoria sociolégica. Ela diretamente secante a certas opgdes estratégicas as quais sto con ntados os movimentos das mulheres € operdtio, visto que ela conduz ao questionamento da eficécia de solugdes politicas, que sio comumente propostas, enquanto que ela permite fundamentar a recusa de se aprisionar na alternativa reivindicagdes gerais/reivin dicagdes especfficas, mostrando que estas tiltimas referem-se, de fato, ndo a um grupo social particular, mas & relacdo social homens/ mulheres ¢, por conseguinte, a0 corpo social em sus totalidade. 2. A relacdo ao aspecto reprodutivo como critério de elassifi- cago possivel para os homens: 0 caso de jovens operdrios Relatamos em um outro trabalho as conclusdes de uma pes: quisa feita sobre jovens trabalhadoras, no que se referia as moda: lidades diferenciais da articulago produgo/reprodugio, segundo seu lugar na estrutura de classes.® Gostariamos aqui de apresentar 8. 0, Chenal © D. Kergoat: "Production et reproduction: les jeunes travail: leures, le salariat et la famille", Critiques de lEconomie Politique, n° 17 novembre 1981 85 os resultados obtidos @ partir do mesmo Foyer de Jeunes Travail leurs.© mas, desta vez, no que se refere aos operirios rabalhamos a partir do seguinte questionamento: & produ cente para compreender a relagio das mulheres com 0 trabalho assalariado, © com o emprego, partir, @ priori ¢ simultaneamente, do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo? © que se passa, entiio, quando se deixa de considerar o universo da producto como linico universo referencial possivel para os homens? O que se encontra quando eles so confrontados com uma definigio do traba- ho que abrange trabalho produtivo e trabalho reprodutivo? Se todes so eriticos em relagio as formas que assume, para s mulheres, a divisao sexual no trabalho assalariado (todos insis- tem sobre a debilidade dos trabalhos que se thes propdem e sobre 1 dureza extrema), © grupo divide-se claramente, ao contrétio, a respeitd dil designagio unicamente das mulheres para o trabalho 1. Se todos esto conscientes do papel fundamental da i, quanto a fungio de reprodugao da forea de tra: \ maioria deles nfo pode conceber outro modelo de mulher senio © da mulher parando de trabalhar a partir do momento em ve tem filhos, enquanto que uma minoria afirma que, apesar das Jificuldades, nio & menos verdade que trabalhar & tao indispen vel para uma mulher quanto para um homem." No primeiro caso, cio ao trabalho doméstico é totalmente mediada pela mulher: seundo, os jovens operdrios abordam, espontanea ¢ longamente mas © tém uma relagdo direta, pessoal, com a esfera « undlise quulitativa evidenciou & que essa clive a partir da relagdo ao aspecto reprodutive, se walmente, emt cada etapa da andilise em relagio a0 2 solidariedade operétia, ete. Nao € eviden- Je uma espéeie de penstiorinternato para trabalhadores € \uiedo francesa administrada pelo Estado. saguin eristaligase em terme do trabalho assalariado das mulheres nis cxitamente de suas futuras mulheres pois, & bem verdade que ngusnte so permaneve om nivel de generalidades. todos sio pelo trabalho Horio dis mulheres: essa atitude, em compensaedo, tomna-se considers inte matizads, desde que se trate de suas mulheres. temente possivel retomar aqui a totalidade das correlagdes estabe lecidas: tenteremos. pois, resumi-las do seguinte modo:" — © primeiro grupo caracterizase por um sistema de valores bindrio € maniqueista (bem/mal, homem/mulher, tabalho/ vcio. celibato/casamento), sistema de rétulos que permite designar as coisas muito mais do que compreendélas, Eles acreditam em uma gualificagio natural das mulheres para os trabalhos domésticos ¢ ériagdo dos filhos. Isso acarreta, consequentemente, uma aceitagio minima da divisio sexual no trabalho assalariado: simetricamente, a relagao dos homens com a qualificagio aparece sob um novo Angulo — querer ser qualificado, para um homem, nfo seria apenas guerer um trabalho mais interessante, melhor remunerado. ... mas seria, de alguma maneira, a realizagao genética do sexo masculino. E 6 exatamente 0 mesmo sistema de referéncias que se vé atuando quando eles evocam as divisoes entre operirias: elas seriam intruns poniveis enquanto expresso de caracteristicas naturais dos grupos analisados. — 0 sisteme de valores do segundo grupo sc caracteriza, 90 contrario, pela recusa a acreditar em uma ordem de coisas natural inelutével, quer se trate do trabalho, da qualificagio, da relagio capital/trabalho, quer das relagdes homens/mulheres; assim, para eles, igualmente, © trabalho assalariado das mulheres casadas no € algo simples; mes enquanto © primeiro grupo resolve as contra digdes suprimindo um dos termos da altemativa (rrinha mulher nio trabalharé) em nome do determinismo biolégico, 0 segundo coloca essas contradigBes como sociais ¢, logo, como objetos de Jebate. sobre os quais podemos atuar. Eles si. alids, os sinicos 10. Todo + € redutor, mas particularmente nesse caso, jf que era preciso apreseniar, em slgumas finhas, configuragoes extremamente comple xas de idcologias de priticas sociais. E preciso, pois, sublinha insstencia sabre lridades ¢ as cocréncias inkernss dos dois mode te. a que classifiquemos os operétios ¢ des em relacio as tarefes reprodutivar permitem predizer automaticemente a totaidade de outeas atitudes. Pogo, pois, ao para reter somente 0 aspecto heurfatico de wma tal incursio’ nas pritions masculine 11. Tinhames tentado uma primeira sbordagem desse problema em “La combativté ovvritre dans une usine de construction de caimions” — L'enirée en lutte des ousriors spécialsés, D, Kergoat, relatéria de pesquisa, CSO. Paris. 19 87 1 falar de opressio (ec, conseqiientemente, de relagdes.sociais): se ndo sio partidérios da mulher no lar, € precisamente porque recusam a relagfio homem/mulher a que induz esse estatuto. No caso do primeiro grupo, o sistema'de valores remete, pois, a um universo seqiiencial, binério, profundamente marcado por uma ideologia‘naturalista Lideologia do(dom, rrenga em uma ordem natural das coisas) que abre perspectiva a todas as resignagdes sociais (Fatalismo operério) © & reprodugio de todas as opressoes, (exismo, racismo, adesio a pena de morte, ete. ..)."¥ Inversamente, os operdtios do segundo grupo tém uma visio do mundo muito ais socializada onde as relagdes entre 03 sexos, o trabalho, a soli- datiedade. .. podem tornar-se 0 objeto de possiveis agSes indivi- duais ¢/ou coletivas. Que a relagio a0 trabalho reprodutivo seja um ctitério de classificagio dos homens, eis ja 0 que prova que isolar a relagio 0 trabalho da totalidade das representagdes ideolégicas (e, em particular, das referentes & vida privada) € uma postura arbitréria {que apenas reproduz as separagGes induzidas pelo capitalismo entre produgio ¢ reprodugio. O fato de se levar em conta @ totalidade do trabalho é necessério tamto para os homens quanto para as mulheres; © essa insergio nas priticas sociais através do trabalho produtivo + trabalho reprodutivo parece realmente abrir 0 cami- ‘iho, tanto para os homens quanto para as mulheres, para uma ise sexuaca das préticas sociais Tinhamos evidenciado, a propésito das jovens mulheres desse mesmo Foyer de Jeunes Travailleurs, 0 efeito mutuamente reforga dor da opressio e da exploracio: mais precisamente, tentamos mostrar como o néo-questionamento da relagdo de servigo condu- zia & aceitagio das modalidades capitalistas do trabalho; ¢ como, simetricamente, a superexploragio extrema levava as mulheres a accitarem as formas da dominacio patriarcal. E, entio, a uma demonstragao simétrica que tenderia essa andlise sobre os operéios entre os jovens operirios, os que ndo questionam a divisio de 12, Deinemos claro aqui que nossa amostra no tem nenhuma pretensio de representatividede do conjunto da classe operiria, Tratase aqui de jovens operirios, desestabilizados, na sua grande maioria, em trés niveis: geogré eo. do emprepo e da qualificagio. f essa situasio que pode explicar que o sistema de valores seja a caricatura das atitudes mais reacionérias que se podem observar na classe operiis, a8 trabalho entre os sexos siio precisamente os mesmos que so os mais vulnerdveis & concorréncia induzida pelo capital entre os traba Ihadores j4 que, como dissemos anteriormente, cles explicam essa Jas diferengas naturais, por conseguinte, intranspo- niveis entre os grupos operdrios (jovens/ velhos, franceses/imigran- tes, origem operdria/camponesa. . Por enquanto, limitamo-nos 2 demonstragao parcial da coerén: Gia entre os fenémenos; a mesma demonstragao deveria ser refeita sobre grupos mais amplos, Mas desde j4, parece ser possivel avangar fa hipdtese de que, no que s¢ refere a0s operdrios, a accitacso da divisdo sexual do trabalho, legitimada por uma visio naturalista da sociedade, € uma enorme trava que se opde io das divi- ses no grupo operdrio e A construcdo da solidariedade. Ademais, ‘uma tal hipotese permitiria avancar a compreensfio de como o capi- latismo soube utilizar, para se fortalecer, as relagdes de sexos que Ihe preexistiam, IV. PROBLEMAS DE METODO, PROBLEMAS TEORICOS Certamente, essa consideragio simultanea de duas relacdes so- ciais é mais facil de se recomendar do que de efetuar coneretamente. AA literatura consagrada as préticas operdtias femininas di 0 teste rmunho dessas dificuldades, na dicotomia que ela opera de fato Os trabalhos que descrevem Iutas exemplares, deixando vestigios na vida cotidiana, se opGem objetivamente Aqueles segundo os qu as operdrias se definem prioritariamente como mies-esposas, endo se engajam, pois, no universo industrial Fssa visio contradit6ria da classe operéria feminina (mulheres combativas/mulheres submissas) merece que nos detenhamos um pouco nela. Pois a explicagio dessas divergéncias néo se pode esgotar nem na definigao dessas mulheres, nem na busca de earac teristieas que explicariam, mecanicamente, por que tumas so com- bativas e outras nao; nem na orientagdo ideotdgica de quem obser va essas mulheres. 1880 me parece infinitamente mais complexo, pois essas descrigées opostas poderiam, em muitos casos, se aplicar ds mesmias operdrias. Mas, por no se considerar 0 conjunto produ- /reprodugao como ui todo indissoeidvel, tudo se passa como Se devéssemos encontrar um principio de coeréncia tinico, e que essa coeréncia devesse jonada a wn lugar institucional: a farm 89 ou a fébrica, O que & apenas, no fim das contas, uma das me neiras de por em funcionamento a dicotomia classica: aos homens, rabalho assafariade — © quando as mulheres i lamente nesse espaco, isto continua is mulheres, @ familia ugar fechado. inserem-se posit 4 ser considerado como excep. lugar de enclausuramento © de Essas oposigdes parecem-nos ser a iluste propria dificuldade coletiva pa rias dominantes ‘aco vonereta de nossa Pensar a realidade fora das cate. © quisermos ir além delas, precisamos, com ia, instaurar um quadro teético © uma metodalogia multidi. rensionais que reflitam esse esforgo de descontrusio/reconstru. S20 ds categorias de pensamenio. Uma tal elaboracao sé. pode cvidentemente, ser coletiva e estamos ainda apenas no inicio de claboragao. Mas jé parece fortes em torno dos quais el |. Nao se trataria de procurar, para as priticas sociais, neipio de coeréneia nico que aplaine as contradig fas; tratarse-ia, a0 contrério, de ssa T possivel destacar alguns. elementos la se organiza ou poder-se-ia organizar s observa. situar a diversidade ¢ a contra: ico no centro da definigao das priticas sociais: combatividade € submissio no se oporiam nem se influenciariam reciprocamnente, segundo © principio dos vasos comunicantes, faces de mas seriam as duas ima mesma prética social: cada uma das manciras de ‘frontar um destino de trabalhador comporte sempre le Fesignacae, de deriva, ¢ uma de e uma parte recusa da condigao de operéria 2. Tralarse-ia de romper com o postulado implicito, segundo « dual tal relagdo social se exerce em uma esfera determinada, rea |rmando e explorando 0 fato de que as relagdes de classes e entre “sxos orgenizam a totalidade das priticas sociais, qualquer que seja sfere onde elas se exeryam; em outras palavras: nao é apenas em casa/na fibrica que se exerce ou que se sofre, que se combate PU que se aceite a opressio e a exploracio, A construcio de cansideraglo nossos objetos de pesquisa deveria levar em fue precede. Resta, contudo, que se trate aqui do Principio teérico de organizagio da andlise. Como, praticamente, 3. Ch. Alain Coutereau, *Intreduction: au texte de Denis Poulet, Le sce bvime. Paris. Maspéro, 1980. p. 40 vontade de levar em conta. simultaneumente, relagdes entre sexos © de classes passa contudo. necessariamente, por idas e vindas entre esferas,"* & indispensivel que eriemos os meios de fundir — e nem sempre é facil — a modalidade especifica assu: ida por tal relagdo social em determinado lugar ou institwigio com 4 totalidade dessa relagao social: assim, a relagao entre os sexos ho se esgota na relago conjugal. como a relagao de classes nao se esgota na relacdo de producdo stricto sensu, ou na relagao salari 5. Em vez de procurar raciocinar a partir do corte analitico do espace dos grupos ¢ das priticas socials, seria conveniente, pois, atribuir outra ver 20 tempo o estatuto de categoria epistemolégice fundamental, Diferentes estudos jé comecaram, e de forma muito proficua, esse trabalho de reconstrugio," que remete simultanea. mente a um esforco metodoldgico, bem como inextricavelmente a tum questionamento dos quadros teéricos comumente admitides. F assim que se torna possivel abordar o problema das modalidades das praticas sociais referentes as categorias de sexo e de class {assim como, correlativamente, o problema da consciéneia) sem ser em termos Tineares © normativos, mas em termos de variacdes no modo de viver das conjunedes, Em se cruzando o lugar na produc lugar atual ou passado) ¢ a reprodugio com os momentos de vida (definidos pela intersecgo da historia pessoal ¢ social), uma tal abordagem permite desde jd avangar hipsteses explicativas sobre jatores, que véo da natursza dos dados estat ideo: Bias (Go consumo. do lazer ou da comunidade residencial), passando pela setorizagio da agao estatal, impedem a apreensio da produsdo e da repre ducdo em su ‘uma dificuldade concrets, que conhecem muito bem os an trabalho das mulheres, os quais se recusam a estudar alternadamente, © emptezo feminino © o trabalho doméstico", D. Combes, Representations des rappuris de production et appraches des ‘nodes de we CSW. Paris, 1981, py 15. E 0 que demonstra 0 relatério de D. Chabaud, D. Fougeyrollas, F. Som thonnan, Le travail domestigue et les pratigies de deplacement des femines et des hommes. C.A.ES.A.R., Universidade de Paris X — Nantersc, 198 16. A tiuulo de exemplo, podemos citar no nivel do emprego, as categorias Propostas por A. Labourie-Racapé, MT. Letablier, A. M. Vasseur: av torois/ativas descontinuas: inativas.aluais/inativas totais, in. *L-activite fe minine”, Cahier n° 11 du Centro d'Etudes de VEmploi, P.UE., 1977, pode ‘mes citar igualmente, numa outra diregla, os trabalhos de A. Langevin tabre devolugao social do tempo da maternidade |) a5 modalidades de formas de luta (individuais e/ou coletivas, contra # exploragdo ¢/ou opressio) das mulheres ¢ dos homens da classe operitia,"” 4. Tratarse-ia, enfim, de forjar novos instrumentos ou con: ecitos — ou de se reapropriar, de maneira original, dos antigos — para dar conta do que constitui a esséncia mesma das relacdes sociais: seu dinamismo, mas também, para tentar vencer © mal-estar semdntico ' ressentide, por tantos dentre nés, forjando instrumen: tos teéricos aplicdveis tanto aos homens quanto as mulheres. Nao podemos sendio evocar aqui as pistas possiveis e, precisa: mente, neste sme a meu préprio campo de pesquisa. F © gue se passa, por exemplo, com a nagio de aprendizagem coletiva que desenvolvemos num outro trabalho,** © qual tentava unificar comportamentos ¢ representagdes ideoligicas, ¢ isso, em dois niveis, 0 coletivo e 0 individual, situando, no centro da anélise, as contradigées, as defasagens observadas (no tempo ¢ no espago) no discurso, entre os discursos. ¢ entre os comportamentos ¢ os dliscursos. -as0, no que conk Ultima pista enfim: a retomada possivel de conceitos marxis- tas, Nao se tratatia, de modo algum, de retomar resultados de and: tises feitas por/sobre os homens e de aplicé-los as mulheres, muito menos postular a snalogia classe/sexo, Mas trata-se de recuperar Jina til abordagem foi elaborada por A, Cowtereau in Le Sublime, op. ct. CC. sus tipologia das familias operitias; cf igualmente, para ilusrar set pro eilimento, 9 seguinte citagio: As numterasas jovens operdrias, remsneradas ‘om saldrio de complementagzo (a metade dos saldrios dos homens), no podem fiear solteiras independemtes. Mas, com ou sem filkos, @ maioria delas hiv tom w oportunidade de consttuir ye familia estdvel, antes gute oF Ho- ns, to inicio do dectinio, nao sintam, eles préprios, necessidade disso ls unides se fisam quando os operdries nia podem mais se oferecer un servica doméstico cont seu dinhelro ou com sua sedugto; quando eles devem prever recursos suplementares de mulheres ¢ de criancas; quando sew des baste aumenta os riscos de doenca e de desensprego (p. 31), 18. A expressio mal-estar semantico designa o seguinte problema: como uti Tizar conceituage habitual (utilizagéo indispensavel, s¢ quisermos com hnicar © scumular resultados) sem nos deixar aprisionar, ao mesmo. tempo, fm ea ses da realidade que ela supe e que nio nos satisfazem? E exatamente esse probleme que esteve ne origem da constituigio do grupo Ge estudos sobre a Divisio Social e Sexual do Trabalho (GEDISST) ©, em Seguida, dos seminérios organizados por tal grupo 19 Ch Bulledor, op. it conceitos, ¢ conceitos que foram forjados para explicar a luta de dominados contra dominadores. .. Penso, por exemplo, na nocao de trabalhador coletivo, que quer exprimir simultaneamente a indi viduacdo imposta pelas relagdes de produgdo € seu inverso, a socia- lizagao nessa mesma producao. E aesse esforgo de construgio que desejo consagrar meus tra: balhos futuros.

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