Cláudio J. de A. Mello1
Introdução
Quando temos que tratar do assunto literatura de autoria feminina, sempre nos vem
à mente um caso acontecido em uma turma quando lecionávamos Teoria da literatura na
UNESP de Assis, no ano de 2006. No primeiro dia de aula, uma aluna se apresentou à
turma como sendo uma bruxa. Após o espanto de todos, ela fez um histórico da resistência
da mulher ao longo do desenvolvimento da sociedade ocidental e justificou a sua identidade
esclarecendo que participava de um movimento para emancipação da mulher, que à época
e ainda hoje possui em média uma renda inferior à do homem pelo mesmo trabalho; carrega
o estigma da inferioridade numa sociedade patriarcal, como se vê na perda do seu
sobrenome em seus descendentes; é objeto de fetiche sexual, incansavelmente vendido
pela propaganda. Todos compreenderam que a condição de bruxa de nossa amiga estava
associada a uma certa visão da mulher, criada para invalidar a sua resistência. Ser bruxa
era, portanto, uma opção política, e não mística.
De fato, para perceber o viés fundamentalmente político da literatura de autoria
feminina, é necessário situar essa manifestação no quadro histórico em que se insere a
mulher. Para tanto, basta lembrar que na 1° constituição Republicana Brasileira, era vedado
à mulher o direito ao voto e à candidatura à representação política, conquista só alcançada
há menos de oitenta anos, na constituição de 1934; no início do século,os códigos jurídicos
consideravam crime contra costumes o adultério - somente o feminino; na ditadura
salazarista, em Portugal, a mulher precisava de autorização do marido para deixar o país; e
os casos se multiplicam.
Dessa forma, não é de estranhar que a voz feminina na literatura seja um dado
recente, que se inicia basicamente na primeira metade do século XX e se intensifica nos
últimos sessenta anos. No Brasil, a primeira obra de autoria feminina é apontada como O
ramalhete, de 1845, escrito por Ana Baldanha, do Rio Grande do Sul, embora haja autores
que apontem a cearense Maria Firmino como a estreante nessa área com Úrsula, de 1854
(DUARTE, 1998). De qualquer modo, a visão presente nessas obras ainda não é aquela
radicalmente feminina do século posterior; a primeira participa dos ideais românticos, a
segunda está mais voltada para a questão do abolicionismo. O fato de a mulher não ter uma
voz essencialmente diferente nos escritos sobretudo do passado é objeto da crítica literária
feminista, que indica como provável razão os limites impostos à mulher na sociedade
patriarcal.
Esses limites, por outro lado, fazem com que uma parcela de mulheres, no século
XIX, afastadas da vida política e econômica, disponham de tempo livre para dedicar-se à
leitura e à educação, o que, intensificado no século seguinte e associado a variadas
questões de ordem econômica, social e política permitiram à mulher sua emancipação e o
exercício da escrita e sua publicação.
Neste texto buscamos situar o advento da literatura de autoria feminina no
arcabouço da pós-modernidade e refletir acerca do seu viés político e ideológico no contexto
do pós-modenismo, verificando o modo como aspectos tanto políticos quanto formais
assinalam o descentramento de perspectivas e a libertação da voz feminina em algumas
obras representativas da tradição brasileira, com o objetivo de relacionar as manifestações
literárias ao processo emancipatório da mulher, situando-o historicamente.
Pós-modernidade
Pós-modernismo
Pós-modernismo não é uma estética, um estilo de época adotado por grupos de
artistas, nem um espírito do tempo, uma revelação metafísica; bem ao contrário, é um
fenômeno histórico calcado no processo de transformação por que passa a humanidade,
cuja gênese guarda relações com a modernidade, particularmente, primeiro, com a
sociedade industrial (até a primeira metade do século XX) e pós-industrial (período iniciado
após o final da Segunda Guerra Mundial) (LYOTARD, 1986) e, segundo, com a estética
modernista que, também naquele primeiro período, rompe com a tradição da volta ao
passado e encara o futuro, criando formas novas, exprimidas pelas vanguardas. O pós-
modernismo, portanto, se fundamenta na sociedade que o criou, e sua expressão artística
(que nos interessa aqui especificamente) manifesta uma ideologia.
O pós-modernismo é uma corrente ou tendência de pensamento de difícil
caracterização de forma estritamente precisa, pois parece mesmo fazer parte de sua
configuração polimorfa o trânsito por diversas áreas, bem como uma gênese que pode ser
filiada a variadas causas, desde uma sequência natural do modernismo ou a sua negação
(dubiedade que se caracteriza em seu próprio título, “pós” e simultaneamente “moderno”),
até a expressão de uma fase adiantada do capitalismo global, tardio, como o caracterizou
Mandel (1990), em que uma consciência política se sente fracassada diante da onipotência
do sistema, que coopta, anulando-as, as forças de resistência políticas e culturais.
É nos Estados Unidos que, nas décadas de 60 e 70, o pós-modernismo se
desenvolve para contrapor-se a uma certa versão do modernismo, aquela que é
domesticada nos anos 50 e usada pelo pensamento liberal-conservador, inclusive para
atacar cultural e politicamente o alinhamento comunista. Investindo contra a exagerada
codificação elitista do “alto modernismo”, nomes como Duchamp, Cage e Warhol buscam
revitalizar a herança da vanguarda europeia. Na década de 70 esse vanguardismo já não
fazia tanto sentido, restando, de um lado, “a emergência de uma cultura do ecletismo, um
pós-modernismo amplamente afirmativo que abandonara qualquer reivindicação de crítica,
transgressão ou negação”, e de outro, “um pós-modernismo alternativo em que resistência,
crítica e negação do status quo foram redefinidas em termos não-vanguardistas e não-
modernistas, que se adequavam mais efetivamente aos avanços políticos da cultura
contemporânea do que as antigas teorias do modernismo” (HUYSSEN, 1991, p. 31).
No final da década de 70, o termo pós-modernismo se estende para a Europa, por
meio de ícones como Jürgen Habermas (2002), na Alemanha, e François Lyotard (1986), na
França. O primeiro, preocupado com a revalorização dos valores da razão iluminista,
enxerga nessa corrente de pensamento uma espécie de contestação neoconservadora,
preocupada essencialmente com a desconstrução dos mitos modernistas e da
estandardização da identidade cultural ocidental. O segundo, em oposição, comemora o
declínio do iluminismo na modernidade, e acentua a importância do pensamento pós-
moderno no questionamento das grandes narrativas, como o liberalismo e o marxismo, cujo
conceito de totalidade é questionado.
Nos anos 80, já é uma tautologia dizer que o debate envolvendo modernismo e pós-
modernismo, na arte, e modernidade e pós-modernidade, na teoria social, é um elemento
central nas preocupações da intelectualidade.
Conforme Jameson (1997), o pós-modernismo não é o aspecto cultural de ordem
social totalmente nova, mas sim o reflexo e o aspecto de transformações do capitalismo.
Para situá-lo historicamente, não se deve fixá-lo em datas rígidas, pois ele guarda
correspondência com movimentos dispersos em amplos períodos, e, além disso, diversos,
como os econômicos, sociais e políticos. O que há, portanto, é um momento (mais ou
menos preciso) que em certas precondições se consolidam e dão lugar ao surgimento de
um pensamento que se manifesta nas mais diversas áreas, como a arquitetura, a televisão,
a moda, a literatura etc. e vai tomando forma como expressão de uma consciência coletiva
de uma época de crises. Culturalmente, o período se situa em torno daquelas
transformações sociais e psicológicas dos anos 60, desde os movimentos políticos
estudantis até a liberação sexual e a identificação de massa dos jovens com o rock`n roll;
economicamente, a preparação do capitalismo tardio começou após a Segunda Guerra
Mundial, com a estabilização da demanda por bens de consumo e duráveis, nos anos 50. O
fato é que o pós-modernismo é a reação de um pensamento político, que se concretiza na
estética, dentre outras áreas,como acontece na literatura de autoria feminina.
Huyssen reconhece que grande parte da produção pós-moderna desde a década de
70 pode ser caracterizada como acrítica, claramente afirmativa, mas não concorda com
Jameson (1997), que considera o pós-modernismo como a lógica cultural do capitalismo
tardio. A posição de Huyssen (1991, p. 48-49) é que se deve procurar ver o pós-modernismo
como uma possível contribuição crítica, de oposição, resgatando-o da associação com o
neoconservadorismo.
Concordamos com a visão do pós-modernismo de Jameson como um fenômeno
histórico (portanto, econômico, social e político), associado à expansão capital tanto no
âmbito multinacional, como, dado o alcance da lógica capitalista em todos os setores da
vida humana, no interpessoal; o pós-modernismo é a “dominante cultural da lógica do
capitalismo tardio” (JAMESON, 1997, p. 72).
Entendemos também que tendências da arte pós-moderna buscaram voltar-se
contra o dogmatismo. Conforme lembra Heloísa Buarque de Hollanda (1991, p. 7-9), de uma
forma geral, há duas reações pós-modernas: uma de resistência, que procura explicitar as
questões ideológicas subjacentes ao projeto do modernismo, e outra de afirmação, que
questiona o modernismo, mas celebra o status quo. É esta última corrente que se identifica
com os neoconservadores, que repudiam o modernismo em face dos males existentes na
sociedade advindos da modernização. E é na primeira que situamos a literatura de autoria
feminina, compreendida como forma de resistência ao status quo.
Na América Latina e no Brasil, em particular, há de um lado a identificação do pós-
modernismo como signo do capitalismo tardio, típico das culturas centrais, razão por que
não serviria para uma aplicação à realidade latino-americana; e de outro lado há o
reconhecimento da importância do pós-modernismo no questionamento do cânone cultural
“do centro”.
A força do feminismo
Considerações finais
Referências
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