Vou começar falando de minha alegria de estar em nossa 23ª Jornada Intersedes. E
do anseio pelo reencontro presencial em 2022.
Vou situar aqui o contexto dessa fala. Desde 1998 até janeiro de 2021, realizei parte
de meu trabalho como analista em serviço público de saúde mental infanto-juvenil, primeiro
no CAPSi Pequeno Hans e posteriormente no CAPSi CARIM/IPUB/UFRJ. Essa modalidade
de serviço atendeu, ao longo dos primeiros 15 anos, majoritariamente, autistas, psicóticos
e usuários de drogas. Recentemente, no entanto, algo mudou, no sentido do tipo de
sofrimento que passamos a acolher em larga escala: meninos furiosos ou fujões,
diagnosticados como portadores de TOD e, majoritariamente meninas, que se cortam, se
auto escarificam e, não raro, atentam, repetidas vezes, contra a própria vida. É dessa
“epidemia” em meninas que vamos falar agora, sem especificar uma em particular.
Freud, em “Inibição, Sintoma e Angústia”, nos introduz à condição estrutural de
desamparo sobre a qual o sujeito se constituirá. Ele nos aponta, nessa mesma obra, que a
matriz de toda angústia é este desamparo. O recalque virá, mais tarde, fornecer material
para reincidir sobre essa angústia, mas sua origem sempre terá sido o Hilflosigkeit próprio
à prematuração psíquica do humano enquanto sujeito em constituição diante do Outro.
Lacan nos sinaliza, em seu seminário XVII, que "a angústia é o afeto central em torno
do qual todo laço social se organiza". Temos aí então o mesmo operador para a constituição
do sujeito e para a organização do laço social. Supomos que essa conexão pode nos ajudar
a pensar: em que medida as formas atuais de organização política e social estão associadas
ao surgimento destes novos sintomas? O quanto a desesperança e o niilismo desta geração
vêm como resposta ao dito “fim das ideologias”, ao pragmatismo cruel do neoliberalismo
selvagem pós-moderno?
Sabemos também, todavia, que o gozo do sujeito tem função central em seu sintoma
ou ato. Como será que nessa mistura o desamparo vira autoagressividade? Em “O problema
econômico do masoquismo”, Freud admite pela primeira vez que o masoquismo é primário
e o sadismo é um movimento posterior a este.
Caberia, pois, à libido a tarefa de tornar inofensiva a pulsão destrutiva para o eu. Para tal, ela,
contando com (...) a musculatura, desviaria grandes parcelas da pulsão de morte para fora,
1Trabalho apresentado na XXIIIª Jornada Intersedes do Laço Analítico/Escola de Psicanálise em 20/11/2021. Jornada
on-line.
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dirigindo-as contra os objetos do mundo externo. Direcionada ao mundo externo, a pulsão de morte
passaria, então, a atuar como pulsão de destruição (...).2
Qual é a natureza desse ato que se repete? Como já destacamos, o ato de se cortar
incide sobre o corpo. Mas aqui não nos valemos muito de nosso saber prévio sobre o
funcionamento do corpo na histeria, nem na esquizofrenia, para nos ajudar nesses casos.
Nem mesmo os rituais corporais do ato obsessivo, que visam evitar que a representação
sexual recalcada venha à consciência, nos ajudam a entender esse modo de agir no corpo.
No caso dos fenômenos do ato de cortar-se, tanto o sangue quanto a dor são fundamentais.
Muitas pessoas que se cortam relatam que têm a sensação de se sentirem vivas ao ver o
sangue, ou seja, de viver o corpo como um objeto manipulável, passível de controle por meio
da experiência da dor; e é isto que se repete compulsivamente nestes casos.
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os ditames de uma cena que falta, buscando conteúdos capazes de preencher uma forma
vazia, autônoma, e, em última instância, irredutível aos seus próprios conflitos.
O acting-out é, em essência, a mostração, a mostragem, velada sem dúvida, mas não velada em si.
Ela só é velada para nós, como sujeito do acting-out, na medida em que isso fala, na medida em
que poderia ser verdade. Ao contrário, ela é, antes, visível ao máximo e é justamente por isso que,
num certo registro, é invisível, mostrando sua causa .3
A cena são as histórias enlaçadas na cadeia de significantes (representações); é o lugar onde se pode
falar das coisas do mundo, pois sob a égide das leis da linguagem. O mundo é o fora da cena, é este
lugar que simplesmente existe: ― de um lado, o mundo onde o real se comprime, e, do outro lado, a
cena do Outro, onde o homem (...) tem de assumir um lugar como portador da fala, (...) numa
estrutura que (...) é de ficção.4
O que será que se perdeu? E como isso se deu? Por que fica epidêmica essa reação
à dor? Será que as comunidades virtuais justificam tudo e a identificação é o fenômeno
grupal global que está por trás de tantos adolescentes em grave risco? Por que se torna tão
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difícil a possibilidade de estar na cena? De se enredar em uma estrutura de ficção? Na
passagem ao ato, não há operação simbólica nem mensagem a ser decifrada. O sujeito é
completamente apagado da barra que o funda, na medida em que se identifica com o objeto
a. E a estrutura do objeto a é, obviamente, imprópria para a subjetivação. Resta o resto.
Muitas vezes sob a forma do cadáver.
Acreditamos que não é o caso mais frequente que um ato de cortar-se se efetive como
passagem ao ato. Ainda assim, quando se efetiva, trata-se de um processo psíquico que
implica um recurso drástico, do ponto de vista da posição do sujeito, para lidar com a
angústia que o arrebatou.
Retomemos um pouco a interrogação sobre que sujeito é esse e que corpo ele corta
ou quer matar. O que se produz da relação com o objeto mais primordial (materno) efetua-
se com base no que poderíamos chamar de moeda do desejo do Outro. Isso se dá através
de alguns signos. Alguns deles são signos constitutivos através dos quais a criação do valor
é assegurada. Inclusive a medida do valor de si mesmo. Quando se debruça no processo de
construção da consciência moral, o grande freio do sujeito através do “sentimento
inconsciente de culpa”, Freud afirma:
O supereu surgiu quando os objetos das primeiras moções libidinosas do Id, os pais,
foram introjetados no eu. O supereu, como substituto do Complexo de Édipo, pode
também se tornar o representante do mundo real externo e, portanto, um modelo a ser
seguido pelos esforços do eu. Parece que há aqui uma insuficiência: quando a figura dos pais
não serve de matriz para o supereu-consciência-moral, este não se internaliza e a punição
precisa ser infinitamente advinda do mundo exterior.5
Muitas vezes o mundo exterior tem sido a lâmina que corta a carne.
Sabemos que ao longo de sua obra Lacan atribuirá ao supereu e às instâncias ideais
um papel decisivo quanto à constituição do sujeito. Desde os momentos mais iniciais de
sua obra, ele possui clara compreensão da origem alteritária dessas instâncias, em sua
íntima conexão com o aparato da linguagem. O supereu remete à face mais dura do Outro,
é testemunha permanente do não comparecimento do dom de amor. Lacan é bastante
eloquente e preciso ao falar do modo de constituição do supereu no Seminário IV, no qual
ele afirma que a origem do supereu tem relação com a passagem do objeto real da
necessidade, pela via da simbolização, a objeto simbólico. Este último, que é perfeitamente
materializado através da palavra, é incorporado como supereu fazendo uso do mesmo molde
que, na frustração de amor, os objetos primitivos de devoração utilizam para compensar a
criança. Ou seja, ali onde me recusaram o dom do amor, incorporarei as palavras mesmas
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da recusa do dom, palavras essas que me consolam do desamparo e me acompanham sob
a forma de supereu.
Esse termo é essencial. É mais essencial do que ter sido, neste ou naquele momento, uma criança
mais ou menos satisfeita. A expressão criança desejada corresponde à constituição da mãe como
séde do desejo, e toda a dialética da relação do filho com o desejo da mãe (...) se concentra no fato
primordial do símbolo da criança desejada.6
O desejo do qual se foi ou não objeto, e que não se pôde suportar, é o que sustentará
o significante da Criança Desejada, que é o significante que constitui primordialmente o
sujeito em seu ser: é preciso que se elabore algo aí, que o EU se aproxime disso de alguma
maneira. É aí que se constitui o Ideal do Eu, que marca todo o desenvolvimento psíquico
de um sujeito. Não nos esqueçamos: no mesmo ponto se constitui tanto aquilo que
escraviza, o supereu, quanto, também, o que será o cerne da construção de um projeto de
vida, o Ideal.
Em suma: sem ser lançado e se lançar no lugar de criança desejada, não se produz
a matéria-prima de construção do Ideal do Eu. Sem essas condições o mundo se torna um
lugar de onde não se consegue extrair prazer, porquanto o valor do Eu é língua estrangeira
que o sujeito não entende. E o que fica impedido ao sujeito é a projeção narcísica de sua
imagem em um outro a ser amado.
O ideal do eu, doravante constituído, introjetado, pode ser projetado sobre um objeto. Para dizer a
verdade, o fato de que a teoria clássica não faça distinção entre os três registros do simbólico, do
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imaginário e do real, faz com que as fases da introjeção e da projeção pareçam, não obscuras, mas
arbitrárias, suspensas, gratuitas, entregues a uma necessidade que somente se explica pela
contingência mais absoluta. E é na medida em que o ideal do eu pode ser reprojetado sobre um
objeto que esse objeto, se chegar a ser favorável a vocês, se os olharmos com bons olhos, será para
vocês objeto de investimento amoroso da maior importância.7
Obrigada.
7 Idem, O Seminário, livro VIII, A Transferência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1992. Pg.338.