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gem polisséinica, a Virgem pode desempenhar papel mais amplo do que um texto formal. Se os autores “criollos” ou “chapettones” criaram limitagdes estéticas, a culto da Virgem sobrepés-se a0s di cursos literdrios. E sua imagem que atrai as multidées até hoje, nao sonetos ou discursos. Numa sociedade quase agrafa, como a colo. nial mexicana, esta imagem foi poderosissima. vera Indiana” de puros elogios & beleza da figura guadalupana, j associada aqui com um nacionalismo curioso. Outro jesuita, Francis- co Javier Clavijero, faz no século XVIII um estudo sobre a “Imagen de Nuestra Sefiora de Guadalupe”. Neste estudo, em vez de deplo- rar a coincidéncia Tonantzin- Guadalupe, o Padre Clavijero escieve que: “Asf fue como quiso al verdadero Dios hacer ostentacién de su infinita misericordia en el mismo lugar en que el gentilismo habia hecho britlar su execrable crueldad; y que fuera consagrado a Maria, nuestra Madre piadosisima, el mesmo lugar que los supersticiosos ‘mexicanos hablan dedicado a su madre imaginaria”. In: VILLAR, Emesto de la Torre & ANDA, Ramiro Navarro de. Testimonios histdri cos guadalupanos, cit, p. 58. 190 | igreas, ragose pintrat Copitulo 6 . CATEQUESE E REPRESENTACAO: AVALIAGAO DE UM PROCESSO. Nunca fomos catequizados Oswald de Andrade A compreensao da extensa problematica que atingiu a evangelizagao da América Ibérica constituiu-se em rico elemento para conclusdes sobre o cardter da Catequese e da Representagio. Poderiamos dizer que, basicamente, os problemas se dividem em trés tipos': — Problemas em relagao aos indios; —Problemas internos do clero; — Problemas entre clero a autoridades civis. s indios foram retratacos pelos cronistas como “déceis”, aptos a evangelizacao, naturalmente inclinados a fé e profundamente devotados aos religiosos*. Para as crOnicas, os dissabores so ' Todo autor, ao falar em problemas na Conquista Espiritual da Améri- «a, parte de um pressuposto basicamente cristior a conquista deveria ser feita harmonicamente, 0s indios deveriam aceité-la e os espanhdis deveriam compartilhar dos ideais evangélicos; camo isto no ocorre, ha “problemas”. Nao queremos constatar apenas isto, mas inferir ras questdes sobre Representacio a partir desta problemética, o que ficard mais claro a partir do item Il Diz frei Mendieta: “Y esta increible subjeccion y respecto que a los religiosos tuvieron fué menester para el aprovechamiento de su cristiandad”, MENDIETA, Fray Ger6nimo de. Historia eclesfstica in- diana, 22 ed. México: Porrtia, 1980, p. 230. Ou, no Brasil, 0 mesmo pro- ccesso: “Pés-se o padre em ordem ¢, feitos os catecismos, batizou-os a todos, recebendo eles aquele sacramento com muita devogao e légri CCtequese e Represenagi:salacio de um processo. | 19 192 epiteliais, e a obra catequética-um projeto pessoal das ordens e do rei,considerado vitorioso. Porém,a relagao dos religiosos com os indios nem sempre foi de perfeita harmonia. Os mesmos indios que atendiam com tanto zelo 0s apelos missionarios, eram castigados corporalmente quando faltavam a missa dominical. Em 6 de junho de 1565, Frei Pedro de Ayala escreve a Filipe I, reciamando contra a suspensio destes cas- tigos corporais’. Os franciscanos tinham carceres privados em Tlatelolco, para castigo dos indios. Foram acusados de abuso fi- nanceiro sobre o trabalho indigena, enriquecendo a Ordem com a justificativa da catequese* ‘Aos abusos e violéncias, os indios reagem com outros atos de violéncia. Os frades Bernardo Cossin, Pablo de Acevedo, Juan de Herrera e Juan Tapia foram mortos ao Norte da Nova Espanha, Em Puebla, em 1559, os indios invadiram a noite 0 convento dos dominicanos, roubando tudo e quebrando os dentes do priorAndré de Moquer’ ‘ANova Galicia inteira rebelou-se em 1541, ¢ estes indios revol- tados mataram Frei Martin de Jesus. Nesta rebelido 0s indios mos- traram a importancia da cena: profanaram a cruz, fizeram sacrifi- eaten a eared | Catequese © Representa: aaligio de um processo cios e dancas pagas e parodiaram a missa utilizando uma “tortilla” como héstia. A curiosa inversao da catequese prosseguiu coma volta 8 poligamia e a obrigacao de peniténcia para os indios que tinham sido cristianizados’ Padre André de Olmos, o zeloso missiondrio, reclama que, passa- dos vinte anos de pregacao do evangelho na sua comarca, 0s indios permaneciam idélatras, com maus costumes e o proprio cacique de Matlatén permanece politeista, bébado e com dezoito concubinas!” Os religiosos, além dos problemas com os indios, tém freqiientes atritos entre si, Para citar apenas um exemplo, podemos analisar a obra de Frei Antonio de Ciudad Real. Este religioso foi secretario da visita de Frei Alonso Ponce & Nova Espanha. Frei Alonso encon- trou numerosas resisténcias a sua inspecao, sendo o livro um ema- ranhado de intrigas, subomos, imoralidades e até atentados a vida do visitador! Igualmente os religiosos das ordens mendicantes s4o acusados com freqiiéncia de enriquecimento ilicito. As dentincias so tama- nhas, que ha correspondéncia papal a respeito. Em 12 de agosto de 1562, 0 Papa Pio IV publica um breve, proibindo aos religiosos que voltassem a Espanha com riquezas. O papa afirma textualmente que “Nés, portanto, pensando que os ditos religiosos devem ir a estas regides com o objetivo de exercer um ministério nao mercan- tile sim espiritual [...’°, O problema dos padres e do dinheiro pa- rece ter permanecido, pois alguns anos depois encontramos uma constituigéo do Papa Gregério XIII condenando os que usavam 0 * Idem. Ibidem, p. 388, ? Ibidem, p. 394-5. A passagem é tdo mais notavel quando levamos em conta que nao interessava a nenhum religioso informar dos problemas ‘com 08 indios, pois implicava revelar fracassos na atividade que os religiosos exerciam. Somente assim entendemos nao haver um ime. +0 muito maior de revelagSes sobre 0s atritos religiosos-indios, pois estas revelagdes forneceriam material de critica aos leigos e seculares que pretendiam limitar a agao das ordens, REAL, Antonio de Ciudad. Tralado curiaso y docto de las grandezas de la ‘Nueoa Espatia, México: Unam, 1976, 2 vol. In: SUESS, Paulo (org.). A conguista espiritual da Amécica. Petrépolis: Vozes, 1992, p. 279. O papa excomunga os praticantes deste enriqueci ‘mento, acusando os frades pela freqilente distribuicao de riquezas en- tre parentes e amigos na Espanha CCatequase e Representagic: alagio de um processo._ | habito franciscano no México e Peru e voltavam a peninsula como seculares® © poder e a cobica dos religiosos sAo denunciados por varios cronistas. Gonzalo de Cervantes constata que 0s conventos esto tio disseminados de tal forma pela Nova Espanha e os religiosos adquirem tantas fazendas e casas, que “la mitad de esta Nueva Espajia est hoy en poderde frailes y teatinos””. ‘Mas nao apenas indios insubmissos ou religiosos dissidentes e ctipidos agitam a vida religiosa da Nova Espanha, Também a aco dos bispos contra os religiosos foram freqiientes, especialmente a partir do titimo quartel do século XVI. Depois das largas conces- sdes do inicio da obra missionéria, tanto 0 episcopado como a Co- roa procuraram tomar o controle. 'D. Alonso de Montiifer, religioso, escreve muitas cattas recla- mando do poder dos religiosos. O Ordinério denuncia que as or- dens consideram como suas as aldeias de indios, néo permitindo nem a visita do Ordinario nem das outras ordens. Denuncia 0 se- gundo antistite mexicano, que as ordens pretendiam, de fato, “que nao houvesse bispos mas que cada guardiao ou prior se encarre- gasse de seu guardianato ou priorato [..]" Mas é sob D. Pedro Moya de Contreras que este problema cresce. © terceiro arcebispo mexicano 6 secular, e, mais do que seus antecessores, antagoniza com as Ordens. A primeira causa de anta- gonismos é o dizimo, pois as ordens nao querem que os indios pe: ‘guem dizimos aos bispos. 4 os religiosos acusam os bispos de avare- za, e de colocarem obsticulos a administracao dos sacramentos aos indios, como na carta dos provinciais religiosos ao Rei Filipe II. ® In: RICARD, Robert. Op. cit, p- 359. "CERVANTES, Gonzalo Gémez de. La vida econémica y social de Nu Espaita, México: Porria, 1944, p. 184. Esta obra, escrita na tiltima déca- dda do século XVI, realiza uma confusio comum no XVE: confusio en- tre jesuitas e teatinos. Carta de Alonso de Mentifar a Filipe Il, in: SUESS, Paulo (org). A conguistaespiritual da Amériea Espankols, cit, p. 873. » In: SUESS, Paulo. Op. ct, p. 876. No perfodo inicial da catequese os religiosos tinham se apossado do privilégio episcopal da Crisma. Ti randoo privilégiode ordenar, todos os outrostinham sido encampados pelos religiosos. 194 | Catequere © Representario: wal de um processo D. Pedro de Moya y Contreras chega a pedir que o rei envie religiosos para uma reforma nos mosteiros da Nova Espanha redu- zindo os clérigos insubmissos". Centenas de cartas, clérigos indoe vindo & Corte para dentincias reeiprocas, intrigas varias: este 6 0 quadro da correspondéncia indiana, Estava em jogo o dominio re- ligioso da Nova Espanha eo monopélio sobre os indios. uw Todos os fendmenos, destacados nos capitulos anteriores deste trabalho, sto essencialmente catequéticos: foram criados e utiliza dos para um fim de conquista espiritual. Agora, enfocaremos a ‘catequese propriamente dita: 0 alcance, as aulas e os catecismos. Em primeiro lugar, ¢ impressionante o relato da velocidade e do ntimero de elementos convertidos. Pedro de Gante, 0 primeiro catequista do vale do México, fala em 14,000 batizados por dia. Motolinfa, integrante do grupos dos “doze” identifica cinco milhées de batizados em doze anos, entre 1524 e 1536". ‘Torquemada, mais modesto, fala de um milhao de batizados entre 1524 e 1539. Porém, a maior evidéncia do “taylorismo” batismal da conquista é revelado pelo proprio Torquemada: a todos os indios que se batizavam num dia os frades colocavam o nome de Juan,e, mulheres, Maria; a todos os do dia seguinte chamavam Pedro Catarina’, Nao é apenas uma falta de imaginacao onomastica que se evidencia aqui: é 0 proprio carter massificante da administra- In: SUESS, Paulo. Op. cit,,p. 950 e 951. O pedido é tio mais notével ‘quando levamos em conta que os religiosos que vinham para a Nova Espanha pertenciam, quase todos, a ordens recém-reformadas na Espanka. Ambos sio citados por RICARD, Robert. La conguisteespiritual de Mé: xxico. Méxicd: FCE, 1986, p. 175. Os dados dos cronistas religiosos, es- pecialmente em correspondéncia oficial com a Coroa, sdo sempre dus- vidosos, pois a eles interessava ampliara magnitude numérica da Con quista. Porém, considerando 0 carater densamente povoado do vale do México, o ntimero nio deve estar muito abaixo do identificado por Gante e Motolinia. 2 © TORQUEMADA, Fray Juan de. Monarguia indiana, México: Unaz, 1975, p.237. Carequese e Representagio:walagio de um procesto | do batismal e, por corseqiténcia, da superficialidade da catequese de introdugao ao Cristianismo. © caso do Brasil nzo oferece tantas descrigies numéricas, mas devemos considerar que quase todos 0s indios do litoral estdo re duzidos em 1596”, apesar do largo pélago ntimero de missioné- rios/némero de indios, e das distancias geograficas assombrosas da costa brasilica. ‘Apesar da eterna relatividade do mimero no XVI, Anchieta in- forma varias vezes, um grande numero de indios aldeados e con- vertidos. Os ntimeros s40 altissimos em comparagio com o reduzi- dontimero de catequistas". E-claro que tao grarde massa de convertidos nao implicava lon- ga catequese ou nem sequer um rito sacramental completo. A acu- sagdo constante, de batismo por aspersao (hissopo), sempre rechagada pelos franciscanos, parece ter tido fundamento. O Papa Paulo Ill mais de uma vez advertiu aos missiondrios que nio omi- tissem nenhuma parte da cerimOnia, chegando a especificar a bén- ao da 4gua batismal, catecismo e exorcismo de cada indio, pér sal, saliva, touca batismal e vela em dois ou trés; por o 6leo do crisma no alto da cabeca e 0 dleo dos catectimenos “sobre 0 coracao do homem adulto e dos meninos e meninas, nas mulheres adultas, por na parte que a decéncia aconselhar””, Rocasodo México,ocatecismo mais wizado fo elsboradopor © Cf. HOORNAERT, Eduardo (etal). Histéria da rea no Brasil 32 ed Peir6pols:Vozes, 195, p. 57. Leve-se em conta os nimeros da mesma bra sobre a quantidade de missiondrios esufas: 6 em 1539, 10 em 1574 e165 em 1610 “Nesta 5 igs, que tinhamos nesta Baia, se recotheu todo o gentio. desta comarca, que pelo menos seriam 16000 almas 1”. Mais adian- te, Anchieta informe que o nero podia subir a 60.000, mas pro- fundamente atingidespelas pests das "bexigas esarampBes No o- tal calcula Anchieta que foram descicas mats de "0.000 mil almas Os relatos sao extialdos da célebre "Informacko dos primeiros aldeiamentos’, inv ANCHIETA, Joseph de. Caras esltons 3 — yor Images, ragmeto his Griese sermes Belo Fiorizonte-Sto Pau lata Edusp, 1988, p. 360,361,385 e 586 PAULO Il, “Alttudo Divini Consili’, in: SUESS, Paulo. A conqust cspriual da Amévea Espanola. Petropolis Vozes, 1992, p.271. Somente (5 casos de emergenca podiam dispensar estes ito completes 196 | Catequese ¢ Represeneacio: walingSo de um pracesso um grupo de dominicanos liderados por Pedro de Cérdoba®. A obra, ao ser adaptada para o México, teve varios acréscimos sobre idolatria e questées de angelologia. A parte inicial expe perguntas sobre o Credo, explicando detidamente cada ponto bésico da f6 catélica. Surgem, para nossa surpresa, artigos de tomismo confuso. Aosabermos que Deus é Pai, aprendemos naDoctrina que “asi como el hombre es una naturaleza y esta naturaleza esti en muchas personas, y en mi yen cada uno de vesoteos y en todos los hombres, y asf muchas personas son una naturaleza, y asimismo la naturaleza de la piedra esta en muchas piedras, y todas ellas tienen una naturaleza que se Hama piedra, y asi de todas las otras cosas se puede decir”™ Certamente, ao invocar tradigbes teolégicas da Baixa [dade Mé- dia, até mesmo ressuscitando parte da “Querela dos Universais”, 0 autor tinha uma pretensdo de efeito catequético, porém, duvidoso. Apesar da cultura indigena do México ser extremamente desen- volvida em varios pontos, nao trabalhou com esta conceituasao européia-tomista-aristotélica. A Doctrina utiliza dois caminhos de exemplificagao: ou abstrai de forma vasta como no exemplo anterior, ou toma a questdo concreta. No caso dos sacramentos, a Doctrina diz. que “y asi como los céntaros y jarras son instrumen- tos y vasijas con que traemos el agua, y ia bebemos y echamos en nuestros est6magos, y nos quita y mata la sed, asf también los ® CORDOBA, Fr. Pedro de OP. Doctrinn crstona para insruccién dels indis. Salamanca: Ea. San Esteban, 1987. O orgenizador da edigho € Miguel Angel Medina OP A obra teve duas edigdes no México (Iai e 1588), tendo sido originalmente compostoe utilzado em Sio Domin. g0 de la Espafola entre 1510 e 1521, O autos Fray Peco de Cordoba fasceu provavelmente em 1482 echegou a Ainérica em 1310, Foi nota. vel pregador e escrtor, sendo seus sermesfamosos pelo Caribe his pico. Ocupou também o cargo inquisidor-geraldas[ndias.A obra Consta de uma intoclugso, uma Explicagio Dogmatica, una Expl. 0 Moral, Catequeses Mistagapicas e Orasées. CORDOBA, Fray Pedro de. Doctrina cristana para instrucion dls nds Salamanca: Eitorial San Fstebal, 1967, p. 208, Segundo a escola tomist, corzesiofeita por Frei Miguel Medina, seria exatamente: “9 homem participa da natureza, nfo ¢ uma natureza, pois ncresgota a natureze humana’. Este exemplo nio aparece mais na edigio de 1348, onde se prefere airmar 0 mistéio indevassivel sem exempifcar, CCatequese e Representagio:walagio de um processo. | sacramentos son céntaros 0 jarros 0 vasijas espirituales con que se echa y se pone la virtud y fuerza de la pasién de Cristo en nues- tras almas”®. Assim, exposta por meio de exemplo concreto, 0 catecismo produzia determinada compreensio do conceito caté- lico de sacramento: a idéia de um remédio para a sede concreta. Porém, o mais interessante: até este momento, estes diferentes conceitos estavam sencto expostos em espanhol. Além das dificul- dades inerentes aos conceitos como vimos, acrescenta-se a difi- culdade vocabular e de tradugdo. O catequista deveria ter dupla habilidade: traducao cultural no sentido mais amplo e tradugio lingitistica ‘A parte bilingiie do catecismo comeca no final. Ha um abecedario e uma ementério das principais oragées cristas em latim e néuatle. Apés as oragdes hé a famosa formula de perguntas e respostas, contendo o essencial da fé: “Eres cristiano? Si, cristiano soy por la gracia de Dios. Cémo 0 por qué eres cristiano? Porque creo en nuestro Seftor Jesucristo. Y también porque soy bautizado con el agua de Dios, que es el bautismo”®. E facil imaginar que esta {6r- mula “breve” e mais prética tinha tendéncia maior em ser utiliza- da, ndo apenas pela facilidade da lingua mas também pelo aspecto pragmitico. Uma das obras catequéticas mais famosas do Brasil do século XVI é da autoria do Padre Anchieta, o Dislogo da Fé". Esta obra bilingiie, tupi e portugués, trata dos rudimentos da fé crist’, po- rém, com diferencas em relacdo a obra de Frei Pedro de Cérdoba. As preocupacGes de Anchieta parecem menos escolasticas do que seu similar mexicano. Comega ensinando definig6es sobre o ser cris- a0, 0 batismo e Cristo. Porém, sua exatidao teolégica logo penetra ® Doctrina cristiana, cit, p. 9. ® Doctrina crstiana,cit., p. 287 e 288. Trata-se da edigio de 1548, ™ ANCHIETA, José de. Dislogo da fé. Sio Paulo: Loyola, 1988. Ao contré- rio da obra mexicana analisada, a obra de Anchieta no chegou a cir- cular como livro impresso no século XVI. Porém, além de trechos te rem citculado em forma manuscrita, élicito supor que, sendo a maior figura de missionério apés a morte de Nobrega, bem como sendo pro- vincial e conhecedor profundo de toda a Companhia no Brasil, seu manuscrito autégrafo revele a forma e 0 pensamento da catequese jesustica no Brasil. 198 | Catequese e Repressnnasio:valiasSo de um processo em conceituagao estranha ao universo indigena: “De que sorte é verdadeiro Deus? Sendo Filho [verdadeiro e tinico] de Deus Padte. De que sorte é verdadeiro homem? Sendo filho da Virgem Maria Santissima. Nao tem corpo enquanto Deus? Nao tem corpo, nem principio, nem tem mae [enquanto Deus verdadeiro]?. Nao tem pai, enquanto homem [verdadeiro}? Nao tem pai; somente concebido de sua Mae Santissima, sem obra de vario”®, Imaginemos agora as populaces tupis que ouviam tais afirma- es na sua lingua. Os cristéios tém um Deus que é Cristo. Este Deus 6 Filho de um ovtro Deus, que também é Deus como Ele. Porém, este Cristo é Filho de uma mulher, como homem tem corpo, mas como Deus nao iem. Como Deus nao foi criado, como homem é {iho de uma Virgem. A isto acrescenta-se a estranha partenogénese crista: tudo isto feito sem assisténcia de um marido. E facil supor que poderiamos identificar problemas de compreensio entre catequistas e catectimenos. Os problemas vao encontrando multiplicaggo. A importincia do gesto aparece na longa explicacdo sobre o sinal-da-cruz. Parece no haver problema quando se trata de explicar que devemos fazer este sinal antes de cada obra e depois de acabé-la, que devemos recorrer Apersignacao antes de dormir, ao acordar, ao sair de casa e ao comer. Voltamos a trabalhar com uma idéia européia: a transcendéncia Anchieta explica que nao fazemos reveréncia a0 madeiro da cruz, mas a seu significado (Paixdo e Morte de Jesus), e que nio estamos honrando a pedra ou pau ou barro de que sdo feitas as imagens, mas “lembrandonos de que sdo imagens suas que os represen- tam’, Ora: 0s povos indigenas da érea do Brasil desconheceram 0 uso efetivo de imagens de barro ou madeira. E facil supor que de- veriam desconhezer o conceito ocidental de transcendéncia e re- presentagio que uma imagem crista deveria evocar. © batismo, sacramento basico, merece 38 questées, com per- guntas e respostas. Explica-se a cerimOnia, os objetivos, define-se © Limbo como um lugar “muito escuro” e as palavras cerimo- niais”. Nenhum outro sacramento tem tratamento to extenso. % ANCHIETA, José de. Diogo da fe cit, p. 119 ¢ 120° * Idem. Ibidem, p. 123. ® Curiosamente, expressando um conceito ainda mais estranho a0s in (Catequese © Represenagio: nallsio de um processo 199 Como vimos na Graméti-a Estético-Religiosa das Ordens, os jesut- tas destacaram-se pela meditacao das cenas evangélicas, particu- larmente a Paixdo de Jesus. O catecismo de Anchieta é minucioso a este respeito. Flabora sete questdes para definir a Paixio, quarenta questées sobre as cenas nc Horto de Getsemani, onze perguntas sobre 0 encontro Jesus-Anés, vinte e oito sobre Caifés, catorze so- bre Pilatos-Herodes, vintw c trés sobre o acoitamento ¢ coroacao de espinhos, e, enfim, quarenta e cinco sobre a crucifixéo e morte de Jesus. Como elaboracdo teol6gica, estas meditagdes levariam 0 catectimeno a uma posture semelhante a do proprio jesufta que, antes dos votos permanentes, fazia os Exercicios e meditava com particular atencio sobre a Paixdo de Cristo, Da mesma forma, as reflexes pausadas sobre as oracées do Pai- Nosso, frase a frase, traduzem um habito inaciano. A rigor, tudo colaboraria para uma catequese efetivamente de adesao pessoal e profunda. Feitas porém na forma de perguntase respostas fica mais evidente imaginar que a reflexdo existencial e a imaginagao dao lugar a recitacéo emsi. A explicacdo dos mandamentos segue uma linha simples de exposicéo dos que incorrem no pecado relativo a cada mandamento®, Além deste “Didlogo”, Anchieta também concebeu outras obras catequéticas como a Doutrina Cristd®. Esta obra, também nao im- pressa no século XVI, teve larga utilizagao em forma manuscrita. A Doutrina comeca pelo fim: uma instrucao “in extremis”, ou seja, para utilizacio do padre com o indio moribundo. Esta profissao de f€ inclui uma declaragao sobre os atributos bsicos de Deus. Por fim, fala-se do carter indispensavel do batismo e da necessidade de arrependimento dos pecados. A cada afirmacao 0 moribundo devia responder sim ou ndo, ou outras respostas féceis, E légico dios, Anchieta mantém a palavra Espirito Santo na férmula, Assim, 0 Bide batiza em tupi dizendo: “le oromojasik Tupa Taba, Tafra, pirito Santo réra pupé. ei” Op. cit, p. 131, # Osexto mandamento encerra uma determinada visio de sexualidade. Ao explicar o que significa “nao fornicar”, Anchieta apenas fala dos homens que tém cépula com mulher, ou desejam ou falam sobre c6pu- las: todo 0 sentido sexual ativo é desiacado para o homem. A iniciativa ua existencia do desejo feminino nio é tratada, » ANCHIETA, Joseph de. Doutrina cristd, Sie Paulo: Loyola, 1993 200 | Carequese ¢ Representagio:aallasio de um processo entender, que uma instrucdo “in extremis”, deveria ser a mais sim- ples possivel. Porém, o que muda para o catecismo prolongado, que vem apés esta instrucao, é que nao varia a forma, apenas a quantidade de perguntas e respostas. Logo apés, encontramos uma lista das oragdes basicas do Catolicismo. Nestas oragées, o texto tupi mantém varias palavras em portugués: Santa Cruz, Espirito Santo, Amém, Jesus, Reino, tentacéo, Ave-Maria, graca, Santa Ma- ria, Assim, tomamos maior consciéncia da dificuldade de compre- ensao de um indio diante de uma questo como: Venha a nés 0 Vosso Reino. Ora, 05 indios nao conhecem o significado de Reino Politico, e, por conseqiiéncia, obviamente, néo conhecem a idéia de tum Reino de Deus, que nao corresponde exatamente & expressio Reino Politico, Nao sao apenas as palavras. A traducio literal do Credo em tupi traz ligeiras modificagdes em relacao aos originais europeus. Vejamos: 4) Credo tupi anchietano: Arobidr Tupa Tuba opakatd mbaé tetirua mofidnga etkattibae, ybaka, yby abé mofiangéra. Arobiar|esu Cristo abé. Tayra ojepébae asé jara, Espirito Santo imonangape pitangamo ofiemofidngbaepuéra aébae oar Maria Virgem sui. Pantio Pilétomorubixabamo sekéreme serekémemuabyramo sek6u, ybyré joasaba resé imojapyramo sekéu, ijukapyramo, itymimbyramo. Oguejyb yby apytéripe ara fiemomosapyra pupé, omandbae puéra sui sekobéjebyri. Ojeupir ybakype; Tupa Tuba. Opakatii mbaé tetirua mofdnga efkatibae, ekatudba koty séni. Aé sui tii omandbaepuérapab-e oikobébae rekémofngane. Arobiér Espi to Santo. Arobidr Santa Igreja Catélica. Arobiér Santos rek6katii femojadjadka, Arobidr tek6 angaipaba resé moroupé Tupa Ayrs. Arobiar asé rekobéjebyraguama Arobiar tekobé opabaerémeyma ‘Amém, Jesus! ) Tradugio literal do Credo tupi: "Creio em Deus Pai, de todas, as coisas poderoso em criat, criador do céu e da terra. Creio em Jesus Cristo também, um sé seu Filho, Nosso Senhor, por obra do Espirito Santo concebido crianga outrora, ele mesmo nasceu da Vir- gem Maria, Péncio Pilatos sendo governador, foi maltratado num travessio de lenho foi pregado, morto e sepultado. Desceu ao pro- fundo da terra e ao raiar 0 terceito dia, dentre os mortos tornou a viver. Subiu ao céu; de Deus Pai, de todas as coisas poderoso em criar, esta sentado & mao direita. Daf vird a todos os mortos de ou- troraa vivos para julgé-los. Creio no Espirito Santo. Creio na Santa Igreja Catdlica. Creio na grande repartigao das boas obras dos San- CCatequese e Representaglo:2aiagio de um processo | 201 tos. Creio que aos pecados da gente Deus perdoa. Creio que a gente voltara a vida. Creio na vida que nao acabard. Amém, Jesus®. Compare-se agora com um dos credos oficiais: ¢) Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terrae ‘em Jesus Cristo Seu tinico Bilho Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espirito Santo, nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Poncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu mansko do mortos, “ressuscitou a0 3° dia” (entre mortes) e subiu aos céus onde esta sentado a direita ce Deus Pai Todo-Poderoso donde ha de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espirito Santo, na Santa Igreja Catélica, na Comunhao dos Santos, na Remissio dos Pecados, 1a Ressurreicio da Carne, nz Vida Eterna, Amém”. Assim tomamos 0 Credo para evidenciar a dificuldade da trans- posicao eda traducao cultural e lingtiistica. Os jesuftas, porém, sao (0s que mais se esforcam na fundacao de uma nova ordem, a ordem cristé, Buscam palavras, compdem catecismos, gramaticas, didlo- {20s fazem pecas bilingties. Trata-se de um esforco integrador, néo segregador ‘Nenhuma dificuldade parece grande demais nesta integracio. » Nao importa substituir 0 delicado conceito de “comunhao dos san- tos” por “grande reparticao das boas obras dos santos” (que de resto encerra o mesmo sentido teolégico); nao importa introduzir a exética palavra Espirito Santo na oracao tupi, palavra que os indi- os tinham imensa dificuldade em pronunciat, como veremos: é tudo parte de um vasto projeto unificador. Certamente a figura de uma pomba era mais palatavel dé que uma Terceira Pessoa incorpérea. Ha aqui uma diferenca fundamental para com a catequese franciscana. Os franciscanosevitaram catequizar em espanhol, evi- taram contatos indios-colorizadores, evitaram um imbricamento maior da diversidade cultural espanhola coma diversidade cultu- ral indigena. Trata-se aqui de esforgo segregacionista. Todo o resto da “Doutrina” segue a exposicao sistematica dos principios basicos do Cristianismo. As metaforas séo abundantes e parecem evidenciar a descrenca de Anchieta na capacidade abs- trativa do indio. Sobre o efito vivificante espiritual do batismo, ‘Anchieta compara a agio purificadora da agua: “Assim como esta ® Idem. Ibidem, p. 141 € 142. 202 | Catequese © Representagio:salapio de um processo Agua lava o corpo da gente, assim essa: Deus lava a alma da gente; sem a gente ver" ‘Vimos estas obras mas resta outra questao fundamental: como era. pratica catequética? Temos varias descrigées para o Brasil eo México. Para a colénia portuguesa, ha uma descricao do jesuita Pero Rodrigues. Os meninos entoam quando encontram um padre: “Bento € louvado seja 0 Santissimo nome de Jesus”. As meninas, por seu turno, dizem: “E da Santissima Virgem Maria, Madre sua, para sempre Amém’”. No final da tarde “se toma a tanger o sino A doutrina, a que acode a gente que se acha pela aldeia, e se thes ensina a doutrina com a outra parte do Dilogo, que contém a de- claracéo dos sacramentos. Finalmente, & boca da noite saem os meninos em procissao, da porta da igreja até a cruz, cantando algu- mas oracdes e encomendando as almas do fogo do purgatério”®. » Ibidem, vol. 1, p. 201. Da mesma forma: “Como o sal daqui nio deixa apodrecer a carne, assim este: Deus nao deixa apodrecer a gente, tiran- do-Ihe todas os pecados”. Ibidem, p. 203. Revelando hébito curioso (dar agua a0s indios apés a comunhio), Anchieta também explica que nao se deve cuspir ou enfiar a mo na garganta para fazer passat a héstia. Ibidem, p. 217. Em todos os momentos as explicagbes tendem 20 concreto ou as metéforas que tenhham base concreta. Também na chamada Doutrina autégrafa (volume dois) ha esta preocupacio, si tuando, por exemplo,o Inferno eo Limbo e o Purgatorio no centro da terra (p. 45 e 46 do vol. 2). Da mesma forma, por fim, recomendando a uum penitente que acaba de confessar seus pecados, Anchieta diz.como modelo: “Como um urubu sobre coisas podres, revoluteando, e mistu- rando-se (com elas): tu sendo gaivota, com a ponta de teus cihos, ob- servando, sorrindo e espreguigando-te falsamente, vagarosa as procu- radas coisas sujas, em teu revolutear, chegas (enfim)” (vol. 2, p. 11) % RODRIGUES, Pero. In: CAXA, Quiricio & RODRIGUES, Pero. Pri- reiras biografias de José de Anchieia. Sio Paulo: Loyola, 1988, p. 126. [Nobrega explica que “Depois da escola ha doutrina geral a toda gen- tee acaba-se com Salve cantada pelos meninos e as Ave-Marias. De- pois uma hora, de noite, se tange o sino eos meninos tém cuidado de ensinarem a doutrina a Seus pais e mais velhos e velhas, os quais nio podem tantas vezes ira igreja e ¢ grande consolagao ouvir por todas as casas louvar-se Nosso Senhor e dar-se gloria 20 nome de Jesus. ‘Aos domingos e santos tém missa e pregacdo na sua lingua e de con- tinuo ha tanta gente que ndo cabe na igreja, posto que é grande; ali se toma conta dos que faltam ou dos que se ausentam e Ihes fazem sua estago: 0 meirinho, que é um seu Principal deles, prega sempre a0s CCatoquese e Representagio: wallagio de um processo | 203 Observa-se 0 uso do “Didlogo” analisado e das repetigées de formulas, bem como a fermanente énfase no carater cénico das procissdes e jaculatérias. Como jé ocorrera no México, a catequese busca primordialmente as criancas, formando a futura geracdo de cristéos. As dificuldades na conversao de adultos parecem ter in- clinado os padres aos menores". ‘A mais curiosa descrigio, plena de significados pertence a uma carta de Anchieta e ating? um caso especifico de pregagio, um in- dio chamado Piririgoa Obyg, velho e que Anchieta acreditava ter passado dos cento e trints anos. Anchieta e outros jesuitas tinham ido & aldeia de Sao Vicente e intentaram catequizar o anciao. Ape- sar de sua grande idade, o indio ouvia a exposicao dos padres com grande atencao. A disposicao do vetusto indio foi, para Anchieta, superior a qualquer outro indio que ele tenha conhecido*. Deram- Ihe a primeira ligéo, que havia um s6 Deus Todo-Poderoso e que ctiou a todas as coisas. O indio responde que “criasse os manti- ‘mentos para a sustentagdo de todos, mas que pensava que os tro- voes eram este Deus; porém, agora que sabia haver outro Deus verdadeiro sobre todas as cousas, que a ele rogaria chamando-o Deus Pai e Deus Filho; per que dos nomes da Santa Trindade estes dois somente pOde tomar; pela razdo de que se podem dizer em sua lingua; mas Espirito Santo, para o qual nunca achamos vocé: bulo proprio, nem circuniéquio, ainda que o nao saiba nomear, sa- bia- contudo crer como nos Ihe dizfamos”®. domingos e festas pelas casas de madrugada a seu modo”. NOBREGA, Manoel da. Cartas jesuitcas 1 — Cartas do Brasil, Belo Hiorizonte-Sao Paulo: ltatiaia-Edusp, 1688, p. 179. A carta é a0s padres e irméos de Portugal, em 1559. » “Logo o dia da Visitago se batizaram trinta e tantos; a0 domingo, dali a oito dias, se batizaram vinte e tantos, que sio por todos 144; todos estes eram meninos de ascola jé bem doutrinados, porque da outra gente grande se batizarao mais de vagar[..]". Carta do Padre Anténio Bires, da Bahia, de 19 de julho de 1558, in: NAVARRO, Azpilcueta e ‘outros. Cartas jesuticas 2— Cartas avulsas. Belo Horizonte-Sio Paulo: Itatiaia-Edusp, 1988, p. 227. > Joseph de Anchieta na carta de Sao Vicente de 1563, in: Cartas jesusticas ‘3 —Informagdes,fragmentas histéricas sermies. Belo Horizonte-Sto Pau lor ltatiaia-Edusp, 1988, p. 199 ess, ® Ibidem, p. 200. 204 | Catequose e Representario:alagdo de um processo Durante nova visita, 0 indio repete toda a ligéo aprendida, di- zendo que passara a noite repetindo estas coisas. Quando os jesu tas falaram de Maria, mae ¢ virgem, muito se espantou o centené- vio silvicola. Por fim, diante do complicado nome de Jesus Cristo, pedi aos netos que ouvissem para que repetissem a ele depois, evitando 0 esquecimento. Emocionou-se com a hipdtese que este Jesus voltaria e que “queimaria todas as coisas”. Levado solene- mente a um batismo, ele declarou numa cadeira no meio da Igreja que estivera toda a noite pensando na ira de Deus que vinha quei- mar o mundo e destruir todas as coisas. Disse saber que as almas dos seus antepassados estavam no inferno mas ele queria que a sua se salvasse. Entio sobreveio 0 elemento mais curioso. Depois do batismo, tendo recebido a noticia de que tinha nascido de novo, ficou parado no meio da igreja. Os padres mandavam que saisse, mas ele perguntou “— Para onde? parece que pensou que nao ha- via mais de tomar da Igreja, mas que dali subiria a0 Céu, e tendo voltado a sua casa comecou a chorar, e seus filhos e netos com ele”™. Anchieta descreve com viva emosao que o indio morreu pouco tem- po depois, com a alegria de uma crianga, como se Deus 0 tivesse segurado até este momento sublime. Pensemos inicialmente no caréter excepcional desta catequese: foi mais pessoal e mais atenta do que a catequese de uma aldeia tradicional. © proprio Anchieta também acrescenta o interesse ex- traordindrio do indio, que fazia perguntas. Logo, deduzimos que 0s outros catectimenos normalmente nao o faziam. Piririgo’ Obyg repete principios monotefstas, antes melhor, monolatricos. Nao te- mos certeza em que grau absorveu estas “verdades”. Talvez por 1ndo ter percebido, Anchieta transcreve uma fala perigosa do indio: porém agora sabia haver outro Deus verdadeiro sobre todas as coi- sas. Ora, outro implica que ainda existe um, em relacéo ao qual ha outro. Lida em seu sentido linear, a frase parece indicar que o indio incorporou um Deus supremo, o Deus cristéo, sem que tenha aber- to mao da crenga sobre a existéncia de outros. Repete assim, na agreste Séo Vicente quinhentista, a etapa monolétrica que 0 povo judeu apresentava no inicio da revelacdo: ha varios deuses, mas s6 um deve ser adorado. ® Ibidem, p.201 CCatequese ¢ Representagio: wallagdo de um processo | 205 ‘Trata-se de um aluno acima da média, como declara 0 proprio cronista-catequista. Porém, pelas dificuldades naturais, nao con- segue repetir Espirito Santo e tem medo de esquecer o nome de Jesus. Ora, sem acrescentar o Espirito Santo a Trindade, 0 indio ria uma diarquia: Pai e Filho, estranha ao Catolicismo. Imagine- mos, por exemplo, o mais banal e significative dos gestos cris- tdos:.a persignacao. O indic dizia em nome do Pai, do Filho e..? Teria sempre o indio consciéncia de que estava omitindo uma pa- lavra ou acabaria incorporando a idéia de que eram mesmo dois deuses em um? ‘A cena do batismo é a mais reveladora. Depois de passar pel doutrinagio, o indio esperava um gesto inusitado de Deus: leva-lo 0 Céut dali mesmo, Por certo, ouvira amitide durante a catequese {que os batizados que se mantivesser sem pecados, iriam ao céu. Ninguém talvez tenha dito quando, e ele, logicamente, sup6s 0 momento imediato. Ou, também é licito supor, 0 anciao tomou to- das as explicagées anchietanas no seu sentido fético, ¢ a idéia da elevagao da alma assomou-lhe como assuncio do corpo. Sendo este hhomem melhor catequizade do que a média, ficamos com a imagi- nagio solta para supor uma média mais distante ainda da doutrina oficial da Igreja Catdlica Voltemos ao México. Fre: Mendieta descreve um processo com varias semethangas. As criancas foram 0 alvo primordial, segundo co cronista da Histdria Eclesiistica Indiana”. Também na colonia es- panhola os religiosos come;avam ensinando as oracées basicas, le- vando as criangas a repeticio constante. Uma das passagens mais interessantes de toda narrativa catequética na América esta em Mendieta, sobre o ensino do Pater Noster. Diz o franciscano que os padres diziam frase a frase eos meninos repetiam. Os catectimenos iam colocando pedras ou gros de milho no cho, para poderem contar cada palavra dita pelos padres. Depois, “seftalando con el dedo, comenzaban por | piedra primera decir Pater Noster, y luego aqui es in coels 4 la segunda, y prosegufanlas hasta el cabo, y daban 206 | Carequese @ Representagio: aaliagto de um processo asi muchas vueltas hasta que se les quedase toda oracion en la Porém, 0 modo mais original de aprender nfo era este. Os pa dres procuravam palavras que tivessem um som semelhante na lin- gua indigenae pintavam, “porque ellos no tenian otra letras sino la pintura, y as{ se entendian por caracteres”®. Citando exemplos, 0 autor nos diz que Pater assemelha-se ao som de Pantli, uma espécie de bandeirinha com que contavam 0 ntimero 20. Para o Noster, empregava-se a palavra Nochtli, uma fruta que os espanhéis cha- mavam tuna (uma cactécea semelhante ao figo-da-india). Assim, a0 ensinar o Pai-Nosso, os padres pintavam a bandeirinha do nt mero 20 e apés desenhavam uma tuna. Os indios, por associagéo fonética, pronunciavam Pater Noster. O fascinante sistema mne- motécnico vai adiante. Os indios, nao confiando em sua memoria Para a confissio, desenhavam com seus caracteres os pecados co- metidos.Tanto cuidado levanh Frei Mendieta a dizer que o “cuida: do y curiosidad que se ha tenido en esta Nueva Espafaen la doctrina y ensefiamiento de los naturales indios para su cristiandad, no se ha tenido con otra gente del mundo, como 4 la verdad lo habian menester”® Porém, antes de concluir elementos sobre este método descrito por Mendieta, vejamos outra caracteristica da catequese franciscana no México: 0 uso de figuras.Descrito pelos cronistas e pelos ilustra- dores, 0 uso de figuras foi uma pratica absolutamente corrente no ‘México quinhentista. Mas a questdo das pinturas ndo se encerra na constatagao {cono-catequética. Na verdadle, as imagens néo apenas colaboraram paraa percepcao dos elementos basicos do Cristianis- mo. As imagens fizeram este Cristianismo incorrer numa determi- nada estrutura perceptiva (Os pregadores utilizaram uma outra forma de pintura além de quadros e afrescos: so 0s lencos. Pedagos de tecido eram pintados com cenas religiosas ¢ utilizados largamente nos sermées ou nas, aulas de catequese. Hé largo aporte documental para esta afirma- sfo. Mendieta diz que quando “el predicador queria predicar de ® MENDIETA, Fray Gerénimo de. Op. cit, p. 246. * » Idem. Ibidem, ® Ibidem, p. 247. Catequese e Representagio: aaliagio de um processo | 208 los mandamientos, colgabanel lienzo de los mandamientos junto a i, dun lado, de manera que con una vara de las que traen los alguaciles pudiese ir senalardo de la parte que queria”. Esta in- formasao de Mendieta é corroborada por ilustracées de Valadés (Cf. Figura 6 do Anexo) onde vemos um frade pregando com figu- ras ilustrativas, talvez lengos,talvez pequenos quadros.Acada nova explicagéo, o pregador ou um ajudante iam apontando a figura correspondente®, . . Note-se:ndose trata apenas de ilustrar um exposicio catequitica. {As imagens eram a propria mensagem catequética. Em outras pa- lavras: o pensamento indigena apreendeu o mundo cristao por meio de imagens e cenas. Incorporou-se um Cristianismo imagético & ercepcao indigena. Tamemos um exemplo: os ndios aprendiam os mandamentos pormeio dos lencos. Cada lenco, naturalmente, exprimia uma cena especifica. Podemos imaginar que para o quarto mandamento, os, \des pintassem uma familia feliz, ou um filho obediente ou até Isaac obedecendo a Abraao. Assim, para o indio, “honrar pai mae’ estava indelevelmente associado a uma cena qualquer. Da mes- ma forma, independentemente da imagem havia um elemen- to plastico concreto, e este era a idéia dos cateciimenos sobre “nao levantar falso testemunho” ou “nao pecer contra a casti- dade” ou “guardar domingos ¢ dias santificados”. Esta percep- Gio grafica, indutora de uma associacio valorativa crista, tanto ras forte deveria ser quanto mais estranho ao universo indigena fosse o conceito apresentado. Assim, voltamos a insistir: a ima~ gem nao é uma ilustragdo da f6, é a propria percepcao indigena da f6°. Para maior clareza das conclusées, associemos todos os elemen- 4 MENDIETA, Fray Gerénimo de. Historia eclesiéstica indiana, 2.* ed. México: Portia, 1980, p. 249-50. Da mesma forma, assinala o fran’ ciscano, usavam'-se lengos ara os artigos de fé. Idem. Ibidem. © Da mesma forma, na Figura3, a Criacio do Mundo (no alto, & direita) 6 transmitida através de urra figura. Também Frei Pedro de Gante en: sina através de figuras (no alto, & esquerda) © Obviamente ndo hi uma pe:cepsio “correta” ou melhor do Cristianis- ‘mo. Apenas vamos constatar que a percepcio da nova religio, da par- te das massas de indios, foi essencialmente feita por imagens. | Catequese © Represenagie:aaliagio de um processo tos. Primeiramente temos uma Igreja com problemas intemnos eonde nem todos os elementos eram reprodugées perfeitas do Serafico Sio Francisco. Apés, lembramos uma catequese sobre um grande ntimero de pessoas, numa rea vastissima e num curtissimo espa- 0 de tempo, levantando vivas suspeitas sobre a profundidade desta catequese. A estes dados acrescentamos o modelo dos catecismos, ou com questdes teolégicas exdticas aos indios, ou com esquema de perguntas e respostas voltados exclusivamente a repeticao mnemotécnica. O somatério de tudo, no caso do México, passa ain- da por uma imagética que molda uma estrutura de percepgio re- ligiosa através das referidas imagens. Assim, podemos notar que a catequese sobre 5 indios foi essencialmente cénica. Preocupa- dos com a répida conquista espiritual formal dos indios, os ca- tequista do Brasil e do México insistiram na acao soteriolégica da Igreja O que queremos dizer com énfase na aco soteriolégica? Para ‘um cat6lico do XVI todos os adultos que morressem sem o batismo estavam condenados ao Inferno, as criangas ao Limbo. O deménio era dono absoluto da América, como varios textos teatrais mexica- rose brasileitos insistem em lembrar. Batizé-los rapidamente era a solucdo mais eficiente para impedir este permanente “genocidio dealmas”. O ato de batizar, assim, foi central nesta catequese, dai a insisténcia dos cronistas em ntimeros batismais astronémicos, pois esta era a maior acdo da Igreja Ora, apés uma acio soteriolégica, dever-se-ia seguir uma agio mistagégica: um aprofundamento nos mistérios e no carter de al- teracio existencial, na postura biografica de cada indio. Porém, isto ndo ocorreu como regra para a massa de indios, ou porque nao havia condicées (falta de catequistas para esta massa, dificuldades dos indios em incorporarem estes principios, etc.), ou porque ndo era esta a intencio. Nao queremos dizer que a aco salvacionista foi exclusiva. Par- ticularmente no Brasil ou na agdo franciscana sobre elementos da + nobreza no México, havia uma efetiva preocupasao mistagégica. No México, a familia de Fernando de Alva Ixtlixochitl é um exem- plo destas excesses. A formagao de Fernando de Alva inclui todos 0s processos existenciais e mistagégicos do Cristianismo. Da mes- ma forma, no Peru, a crdnica de Filipe Guamén Poma de Ayala evidencia um membro da aristocracia indigena que dominava 0 cédigo cristo como poucos cristdos seriam capazes de fazé-lo na (Catequese e Representario: aalagio de um processo | 209 Europa", Fernando e Filipe so capazes de uma ponte lingiistica e cultural entre as diversidades que se encontravam acima da mé- dia. Criticam elementos da vivéncia crista no Perue no México com destreza, sabendo discernir entre a esséncia teologica do Cristia- nismo e diversas vivencias hst6ricas deste mesmo Cristianismo. Poma de Ayala, em particular, 6 capaz de criticar algumas ordens religigsas sem atacar a Igreja como um todo, evidéncia de quem jé distingue partes dentro de um todo. Porém, estes casos realcam o carater excepcional do qual se re vestiram, Nao era possivel colocar milhares ou milhdes em escolas com aulas constantes e de efetiva assimilagio do cédigo cristao. A catequese permanente que Sio Carlos Borromeu pregava em Mi: lio ja era de dificil execugio na peninsula itélica, imagine-se nas vastiddes americanas. A Igref,, entao, ligou-se aos aspectos exte- riores, obrigando os indios 4 missa e a recitagao de estruturas for- mais. Dai a permanéncia corstante de aspectos existenciais “pa- gos”, como a poligamia ‘Aabsoluta maioria dos indios viveu a acdo soteriol6gica, refor- sada pelas dificuldades de ordem material (inexisténcia de qua- dros humanos para uma agac diferente) e talvez condicionada até pela escatologia franciscana no caso do México: para um mundo que deveria terminar logo implicava tomar todos batizados e no formar tedlogos. Os padres reclamam com freqiiéncia, especialmente no final do século XVI, que os indiios pazecem esquecer tudo © que aprende- ram com tanto esforco. Vimcs 0 caso das ditas estatuas de "Coa- tlicue” e do dito “calendario mexicano”. Vimos a reclamagao do Padre André de Olmos: 0s indios pareciam ndo se lembrar de vinte anos de catequese. Tomemios outro exemplo: Andrés Mixcdatl, um dos “homens deuses” da histéria colonial mexicana. No seu depoimento & Inquisigo analisado por Gruzinski, ele afirma: “que es cristiano, y {que lo baptiz6 un fraile em Texcoco que no sabe su nombre, € que abra cinco afios que fué bautizado; ofa la doctrina cristiana de siete en siete dias, em Texcoco, de los religiosos de la orden de San + A-cronica de Poma de Ayala teve varias publicagbes. Tomamos como fonte a publicagio mexicane: El primer nucoa cronica y buen gobierno México: Siglo Veintiuno, 1980, 3 vo. 210 | Carequese ¢ Representacio: aaliagto de um processo Francisco, y de los discipulos suyos, muchachos que alli tienen, los cuales les predicaban y decfan que dexasen sus idolos e idolatrias y ritos y creyesen en Dios [...”®. Trata-se de um indio, como a anélise de Gruzinski demonstra em varios sentidos, acima da média. Po- rém, poucos anos depois da conversio, nic lembra o nome do presbitero que o batizou, Dealguma forma, para este indio, obatis- mondo chega a ser uma cerimdnia marcante. Seu depoimento pros- segue dizendo que ouvia (0 verbo se repete em todos os depoimen- tos) a doutrina crista. Ouvir implica elemento mais passivo do que ative e, este habito hebdomadario, é realizado preferencialmente com os discfpulos dos franciscanos, Apesar de o hébito insistir exatamente na erradicacgo da idolatria e na crenga em um tinico Deus, é este Andrés que vai, exatamente, passar-se por uma divin- dade pré-hispanica e comegar a formar um grupo que acreditava nna sua personificagao divina, Note-se que nao é fenémeno totalmente alheio ao indio seu aprendizado na catequese. Na verdade ele incorpora elementos ctistéos ao seu curioso grupo: assume um tom catequético clara- mente cristao, realiza um rito de comunhao com um elemento cha- mado “nanacatl”, realiza milagres e chegou a elaborar uma ver- séoblasfema do “credo” catélico. Andrés ouviu a catequese, sele- cionou varios elementos, mas, definitivamente, nao se tornou 0 cristao que os franciscanos desejavam. Porém, interagiu de algu- ma forma, pois reelaborou parte do que os franciscanos tinham ensinado. Gruzinski incorre numa estrutura afirmativa curiosa ao analisar caso: atribui o éxito da pregacao de Andrés a catequese “superti- so de Andrés Mixedatl transcrito por GRUZINSKI, Serge. Elpader ites — cuatro respuestas indfgenas ala dominacin espaftola. México: to Nacienal de Antropologia e Hist6ria, 1988, p. 52¢53. Andrés foi processado pela Inquisicao porque se fazia passar por varios dew- ses, entre eles Telpochtli, 0 jovem e associado a Tezcatlipoca. Pratica adivinhagio com grios de milho, toma alucindgenos e exerce ages xaminicas, Observe-se as Figuras 4 e 5 dos Anexos. Nestas ilustrages, a ago ati vaédo frade: mios retéricas, boca em destaque, pose proeminente. Os {ndios tom leitura passiva na ilustragao. Ouvem, colocam as armas no centro do circulo, aproximam-se como criangas, admiram-se. Catequese e Represenagio: nallagio de um processo | aun cial” ea falta de incursdes sisteméticas dos religiosos na serra de Puebla”. Na verdade, ndo acreditamos que nenhuma outra catequese possivel no XVI teria alterado o sucesso de Andrés com seus ouvintes indios. Pelo contrario, numa regido que cultuasse ain- da os deuses pré-hispanicos, a pregacao do homem-deus, talvez, no teria tanto sucesso. ‘Também as experiéncias de aldeamentos jesuiticos no Brasil es- tavam num processo de esgotamento no final do século XVI. A al- deia do Rio Vermelho, fundada em 1556, foi rapidamente abando- nada pelos indios. A aldeia de So Sebastiao foi abandonada em 1557, Igual destino tém as aldeizs de S40 Lourenco, Sao Paulo, Sio Jodo, Santiago, Santo Anténio Bom, Santo André de Anhembi, Itaparica, Si0 Miguel de Taperagud e varias outras®. Por toda a ‘América 0s padres reclamam da inconstancia dos indios. Corrigi- ,rfamos estas reclamagSes: ndo é que a massa indigena nao lembras | se ow estivesse atacada de estranha teima catequética; na verdade | io aprendiam. Os padres esperaram atitudes existenciais deriva- das de uma catequese formal. A submissio dos corpos nunca im- plicou uma adeséo das almas, recitaco néo implicava adesio, de- clinagdes do Decélogo raramente transformaram-se em atitudes coerentes com o Decalogo. ) Mas, no outro extremo, talvez seja esta a maior virtude da | catequese catélica na América. Ao ligar-se, conforme a expressao de Gibson, aos aspectos abertose formais do Cristianismo, permi- © GRUZINSKI, Serge. Op. cit, p.71 “ny HOORNAERT, Eduardo. (eal), Histra da Igrja no Brasil. 3.ed. Petropolis: Vozes,p. 150 0 autor analisa o ato ecoloea a proximidade dos nicleos colonials como causa deste desaparecimento. Nobrega conten inde Hoorn eclamando quer[ oom o Genoa bbém se fz pouco, porque a maior partedeles, que eram fregueses des tas duasigtejas, fagitam, a cause disto foi tomarennlhes os Crstios as terra em que tém seus mantimentos,e, por todas as maneiras que podem os langam da terra, usando de todas a manhas etranias que Podem,dizendo-lhes que os ao de matar, como vier esta gente que se Expera,e esta 6a comm prética de maus Crstios, que com eles ta- tam, ede todos os seus escravos; cuidam que salvar a alma em os deitar daqui efazerlhes mal pelo grande dio que todos Ines tem Carta para o provincial de Portugal em 1557, in: NOBREGA, Manoel da. Cartas jesiticas 1 ~ Cari: do Brasil. Belo Horizonte Sio Paulo: Itatiaia-Eausp, 1985, p. 172 212 | Catequete © Representarto:avalacio de um processo tiv a sobrevivencia dos indios e de parte da sua cultura”. Levar em conta esta perspectiva mudaria intimeros enfoques sobre a catequese na América Ibérica ‘Tome-se, por exemplo, 0 fendmeno das “santidadies” que identi- ficamos no capitulo relativo & Inquisicao. Os autores que trabalha- ram 0 fendmeno e as conclusées que arrolamos naquela parte enfocam basicamente o mesmo: reagéo ao dominio portugués, versio do catolicismo, etc. Ha outro elemento fundamental a con- siderar. As santidades nao sao apenas uma reacéo ao que estava sendo feito, mas 0 que estava deixando de ser feito: a ligagio do indio com o sagrado. As ceriménias religiosas e a catequese, nos moldes como estavam acontecendo, tinham jogado as massas indi- genas num vacuo religioso. O que significa exatamente este vacuo? As antigas ceriménias indigenas e suas crengas, especialmente as do grupo tupi-guarani, tinham muito significado para a vida dos grupos silvicolas. Estas ceriménias tinham significado confir- mado pela sua ancestralidade ‘Tudo isto fica mais claro quando consideramos as priticas indige- nas em relacao ao tratamento de doengas. Os feiticeiros procediam a sopros rituais, fumigamentos e sugavam a moléstia. Havia ainda escarificagées e tabus alimentares®, Obviamente que nem esta "tera- pia” indigena, nem qualquer terapia européia do século XVI, tinham muita eficécia, Porém, os fndios tinham uma quantidade bem menor de doencas antes da chegada dos brancos. A chegada dos brancos e da catequese trouxe doencas novas e epidémicas como a variola. A ve “© “In general, the Indians did not abanclon their polytheistic views The standards of Christian behavior whether communicated by teaching, encouraged by precept, or enforced by compulsion ~~ failed #0 make undertable the basic Christian abstraction of virtue end sin. The community of saints was received by Indian not as an intermediary between God and man, but a8 a pantheon of anthopomorfic deities, The syimbol ofthe crucifixion was accepted, but with an exaggerated concern for the details ofan act of sacrifice. The Christian Cod was admitted, but not as an exclusive or omnipotent deity. Heaven and hell were recognized, but with emphasis on concrete properties and with obtrusive pagan attributes” GIBSON, Charles The Astecs Under Spantst Rule, California: Stanford University Press, 196, p. 100 Tudo conforme METRAUX, Alfred. A religito dos tupinamibis. 2° ed, ‘io Paulo: Companhia Editora Nacional-Edusp, 1973, p. 80 e ss, ‘Catequese e Representa: avaagio de um processo | 213 prética de batizar um moribundo acrescentava a esta coincidéncia a idéia, explorada pelas cantidades, de que o batismo trazia a morte, coeuninente quando dae draméticas epidemias da decada cde 1500" (ra, os padres no curavam de fato ¢, ainda por cima, seus ritos propiciavam a morte. Acompreenssio das questbes teol6gicas do ca fecismo era baixa ou nula. Em outras palavras: a Igreja conseguira diminisir ou eliminar a influércia dos pajés eas crencas passadas, ‘mas nao colocara, efetivamen‘e, uma pritica eficiente no lugar da combatida. A ruptura epistemol6gica provocada pela presenca eu- ropéia no Brasil 6 também a producéo de um vazio, (Os indios no podiam mais comer care humana nas suas ceri- ‘ménias, os pajés foram banidos®, o cauim combatido, a poligamia punida e as praticas médicas substituidas em grande parte. No lu- gar de tudo isto, missas em latim, padres que batizam com pala- ‘ras estranhas pessoas que morrem logo em seguida Tsto ajuda & compreende: a énfase no mundo pueril que a catequese teve em toda a América Tbérica. As criancas estavam menos ligadas as tradigées culturais, sentiam a ruptura de forma mais branda, assimilavam com mais facilidade as orag6es, sentiam menos fala das “chupages" do poe as interprelagesonias, dos ritos de cauim e antropofagia. As criancas eram muito mais a Sfanen banc, prince gee init Nobreg inks aed tado valido a todos 0s indios no dealbar da catequese Hs, como vimos na parte teatral, um vivo esforgo de compreen- so e Conquista afetiva mesmo do indio. Porém, nem de longe este mundo de Representagdes tirha condicao de substituir, altura, 0 ificado das crengas tupi-guaranis de antanho ‘De muitas formas entao, poderiamos dizer que o resultado da catequese crista também foi um paradoxo: introduzir uma verda- © Conforme VAINFAS, Ronaldo (org). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahir, 1992p. 187". 0 ingresso na Santidade is- plicava um batismo as avesses, coma substituigdo do nome cristéo po Sutro escolhido pelo caraiba, Nao é de surpreender,aliés, que a Santi- dace desse paca ritualzasse a inversto do batismo catclico corres: pondéncia jesutica esta repleta de alusdes & conviccao que muitos i ios possuiam de que o batismo dos padres matava © Nio é destituido de significato o lato de que surgiram com as santida- des 0s “carafbas”, uma espécie de arquipajés. Esta valorizasio do pajé 6,realmente, uma reacio a0 esvaziamento provocado pela catequese. TIA | Catequese e Representario:naliacto de um processo deira idolatria entre os indios. Por idolatria entendemos aqui a adoracio de idolos inertes, ou seja, oculto cristao a estétuas e figu- ras de santos, que nada diziam ao indio, rompeu a cadeia de signi- ficantes que a religido antiga tinha. Podemos suport também, em cardter puramente especulativo, que a cadeia de significantes cria da pela introdiucio do Cristianismo era alheia ao proprio Cristia- nismo; produziu efeitos e ilagdes que dificilmente compreenderia- ‘mos, Fica sempre sem resposta a questao: o que via um indio quan- do contemplava uma estatua de S40 Miguel vestido de centuriao romano a subjugar com espada flamejante um Dite rebelado? ‘Tomando como referéncia de Catolicismo a santidade, testada ‘canonicamente por longos processos de investigacio juridica, ne- nhum indio tornou-se santono século XVI. No Brasil nada que nem sequer ao longe se aproximasse da possibilidade de um “servo de Deus”, de um “beato” ou de um santo canonizado. No México, nem o visiondrio Juan Diego da Virgem de Guadalupe néo teve a mesma sorte de Margarida Maria Alacoque no XVII; Bernadete no, século XIX ou de Jacinto no XX. Todos estes visionérios elevados 0s altares nao tinham nenhum conhecimento teolégico, suas vi- s6es incluem questées estranhas e tinham origem em grupos so- ciais de baixa extragao. Por que os indios nao tiveram este privilé- gio no XVI? A.questdo fica ainda mais curiosa quando nos lembramos que 08 periodos iniciais de catequese e conquista sempre foram uubérrimos em martires e santos. Assim, Francisco Xavier na Chi- na, assim Roque Gonzélez no Rio Grande do Sul, assim Cecilia no Império Romano. Os meninos cristdos mortos em Tlaxcala pelos Pais idélatras nao constituem 0 tipico caso de santo “confessor e mirtir”? Sem dtivida que sim, mas a Igreja “levou mais de 450 anos refletindo a ortodoxia do caso”. Nao é tao estranho este fend- meno se considerarmos que houve restrigdes a prépria ordenacao ) de indios, resirigées por fim consagrada na legislacao. A Igreja | que tanto esforcou-se pela conversio do indio desconfiava de sua capacidade clerical, pois nunca rebelou-se significativamente con- tra estas medidas. Ora, se o indio nao serve para rezar a missa no altar, como servird para estar acima dele na figura de um santo? © Hi excesdes que mereceriam andlise. Juan Diego, o visionario de Catequese « Representaie: alate de um processo | 218 Accatequese laboriosa e constante, cénica por natureza, conviveu com este aparente paradoxo ; : Porém, aprofundando a questao histérica que nunca é tho linear, os paradoxos aumentam. A longo prazo, a catequese favoreceu a manutencdo do mundo indigena. As geracdes que Anchieta e Martin de Valencia educaram viveram tma ruptura maior. Porém, 0 pré- prio carater superficial da catequese © a manutengao do acervo lingiiistico indigena colaborariam para esta manutencio. Neste sentido, temos ce observar outro fendmeno sobre a catequese. Os indios foram obrigados a integrar uma nova ordem, a ordem crista e ibérica, em que seriam explorados, mas seriam elementos integrantes da nova ordem. Existe nisto uma diferenca enorme em relagao a postura anglo-saxénica na América, onde os {indios iam afastando-se da onda colonizadora, jé que tal onda era excludente da presenga indigena. «por seh eavesamert clr provecado pla catequese, (08 missionétios catdlicos na América acabaram, por vezes, refor sando caracteristicas da sociedade indigena, como a vida comunal As festas, os cultos, a construcdo de igrejas, as irmandades; varios, elementos trazidos pelos missionérios reforgavam o cardter comunal dos indios* 246 | Cataquese ¢ Represenasio:saligio de um processo nclusao implica concordar com Oswald de Andrade no século XX, que nos seus manifestos afirmava “Nunca fomos catequizados”? E delicada a conclusao a este respeito, Fomos catequizados, aAmérica tornou-se crista de varias formas, Torro Se ctista em varias toponimias, em cerimOnias, em préticas magi- cas novas ou recondicionadas do passado pré-cristao, cristi em a. terjeigdes e até na cena politica. Quando Andrade faz sua afirma, so bombéstica na provinciana S4o Paulo, ele esta trabalhancio com uum elemento estranho ao mundo pré-hispanico: a necessidade de inovar e negar o que veio antes. As afirmacées de Andrade reve, lam substrate cristio de seu pensamento,ndo hénada de “tupi or not tupi” no nosso literato moderista seduzido por Parise pelas vanguardas. Porém, tem razao Oswald sobre nao ter sido efetiva, mente transformada a América num espaco cristo. O que seria este espaco cristo? Os jesuitas do Brasil como vimos, responderi- am que um espaco vivido a imagem e sémelhanca dos jesuitas. Os franciscanos, talvez respondessem tendo como modelo o Serafice Pai Francisco ou o préprio Cristo. Onde ocorreu esta transformacio radical? Onde as populagdes aderiram a0 Cristianismo, vivendo na integra os preceitos evangé- licos ou 0 decalogo? Obviamente em lugar nenhurn, nem na Fuso. pa, nem na América. Esta conclusio seria simplesmente Gbvin se nao tivéssemos tido a preocupagio de responder como a América conseguiu ser cristianizada sem terse tomado crista. Este processo nio é idéntico a0 europeu, nem seus resultados sA0 os mesinos Ambos usaram a Representacao, mas ela atuou sobre culturas com ee ailerengas socais a hierarquiapotica ejurdia eftivas,o cero pro fissional ea vida urbana, dente dezenas de outros elonearen ace 8 capacidade indigena de imbricarse coma Cullens en ic complexa. A estes fendmenos culturais somantse as vidlescae nin es (Comuns a Brasil e México) eas violéncas mlcrobisnee (aren Brasil e México). curiosolembrar, sem transforma em rare sea | que as culturas mais préximas a0 padrio urbano-estatal eee as Yale cdo México e de regibes do Peru resistiram proporsaln es menos a penetragdo européia do que as que estavant suis arn deste pac, como a cultura aimoré ou os indios saecene aoe Teorov associa velocdade da conqusta questo da escats, ont are uma perspectiva interessante para esta een, ainda que stoginn 480 escope deste trabalho Carequese ¢ Represencasio: valagho de um processo | 217 estruturas diferentes da européias, produziu reacoes diferentes, realizou histérias diferentes. Acatequese da América tem oseu ser calcado no que ela nao foi Porém, nao sendo, permitiu que ontologias avoengas continuas- se tindo, sob o amplo manto plastico e retérico da Represen- tagdo. Nao é tao amplo que ndo produza interacdes e reacdes, mas nfo ressignifica tudo. A virtude maior da forma histérica que o Catolicismo assumiu. no Ocidente foi Ter-se revestido de um universalismo que escasse- ava em outras linguagens. A multiplicagao de simbolos, imagens, teatros, Representagdes concebiam uma polissemia tdo ampla que possibilitava a convivencia de inimeros significantes de tradigoes lingiiisticas distintas em seu seio. Podia o indio ir a missa sem ter sido catequizado, pois, a rigor, ¢ espanhol e o portugués também nfo o foram. ‘A Contra-Reforma é um momento de diminuigéo da tolerancia da Igreja. Nao havia mais os carnavais de loucos encabesados p alegres clérigos da Idade Média. Mas nao esquecamos que ela tam- bbém excluiut do seu ventre todos os rigoristas que, como cétaros ¢ jansenistas, pretendiam uma Igreia purificada de elementos quendo estivessem em radical consonancia com o Evangelho. Este modelo purista nunca foi seguido pela ortodoxia catética. O discurso e alguimas praticas exemplares seriam puristas, mas a Igteja desistiu do intento de converter-se em nau exigua de esco- Ihidos como queriam os valdenses, mas preferiu ser imensa arca de Noé, conduzindo dentro de si o imagindrio variegado de uma via gem para a terra prometida. ‘Acatequese seria, nao exclusivamente na América mas com pi ticular forga aqui, um elemento de conquista de Representacdo: as nas igrejas, procissdes suntuosas, candidates catélicos aos cargos, discursos probos e teatros pios. Esta prética apenas garantida nas areas onde o dominio politico existiu com 0 avanco religioso, Sem o amparo politico, nem esta cena coletiva teria sido possivel*. Pensa no caso da fndia, da China e do Japio. Na primeira, os esforco de catequese sé funcionavam nas cidades dominadas pelos portugue-| Ses. Mesmo assim, quando Goa retorriou a0 dominio hindu, menos de DIB] Catequese e Representa: niiagio de um procesto No século XD%e no XX a Igreja, comanizada por unt clero mais atento e cartesiano, ficaria estarrecida ao perceber oestado dee "a mas” na América, e iniciavia praticas como as vocifecantes missoes capuchinhas ou a difusio dos Exerciciosinacianos pars leigos, © eslorgo de incendiar os coragdes com a fé “verdadeita’ 2 remane teria 0 mesmo resultado do XVI: pequena parte das elites tocades elas labaredas e massas esquélidas vagamente iluminadas por tuma chama bruxuleante. O latitudinarismo da Igreja nto ¢ ape- has uma cosmovisao, é estratégia de sobrevivéncia ee ez por cento da Sopulagio era catélica numa cid, igre) emis de cngenta convents, portuguesa! Na Chine a cateque: produziu interesse dos chineses culo rip serceao gute ceulon sb apenas No México, cem por cento dos indios tornaram-se catélicos. A cstrelig telagdo entre Estado e lg & cada por totes ot : O tebatho anata sinds ess por fates Psausndores, mas Cutequese ¢ Representacio: aalagfo de um processo | 219

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