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“O Sentimento dum Ocidental”

Circunstâncias de publicação do poema


O poema foi publicado em 1880 numa revista do Porto (“O Jornal das Viagens”) como
forma de homenagear o tricentenário da morte de Camões (10 Junho 1580). Neste
contexto, Cesário escreve uma carta a um dos diretores do jornal oferecendo colaboração.

Estrutura do Poema
O poema apresenta uma estrutura narrativa. Contém 44 quadras e está dividido em quatro
partes (11 quadras cada). O primeiro verso de cada quadra possui 10 sílabas métricas
(decassilábicos) sendo os restantes alexandrinos (12 sílabas métricas).

O poema está dividido em quatro partes, estando cada uma dessas associadas a um
período do dia.

I. Ave-Marias (seis da tarde)


II. Noite Fechada (Escuridão)
III. Ao Gás (Iluminação a Gás)
IV. Horas Mortas (Noite Profunda)

Visão global do poema


Ave-Marias: início da deambulação (exterior e interior) pela cidade de Lisboa ao entardecer.
O sujeito poético cruza-se com diversos trabalhadores ao fim de um dia de trabalho.

● O sujeito poético encontra-se nas ruas da cidade “ao anoitecer”.


● Sente melancolia, soturnidade e náusea tal que o fazem/ provocam o desejo de
“sofrer”.
● Este desejo está associado ao espaço e às sensações que este regista. O gás enjoa-o
e perturba-o, as cores dos edifícios são monótonas e londrinas sendo como gaiolas.
● Felicidade dos que partem.
● Descrição das varinas, hercúleas (fortes) e galhofeiras (alegres).

Noites Fechadas: recolha de impressões, agora já de noite.

● O sujeito poético encontra-se nas ruas da cidade num período onde a escuridão
adensa-se.
● Crítica: aprisionamento de “inocentes” e não dos merecedores de tal.
● Demonstra um mal estar perante as luzes acesas (gás que enjoa) e ao
enclausuramento que sente “muram-me as construções”.
● As igrejas lembram-lhe a inquisição (crítica) e os quartéis lembram-no conventos.
● Menção de Camões ("épico doutrora”) ao observar a sua estátua/pilar (símbolo da
epopeia épica e irrepetível.
● Cesário afirma que descreve a realidade através de uma “luneta de uma lente só”
(visão pessoal e descrição crítica).
● Descrição da “triste cidade”: soldados sombrios e espectrais, oposição entre palácio
e casebre e contraste entre as elegantes que se debruçam nas montras das que
vivem do trabalho.

Ao Gás: a digressão pela cidade prossegue, à luz de candeeiros a gás.

● O sujeito poético encontra-se nas ruas da cidade num período onde a escuridão
adensa-se e em presença dos candeeiros a gás.
● A “noite pesa, esmaga” o que acentua a enclausura e o aprisionamento (“cercam-me
as lojas, tépidas”).
● Contrase entre a descrição da impureza da cidade (espaço da doença e da
prostituição) e da honestidade do trabalho (“cheiro salutar e honesto do pão” -
hipálage).
● Intenção de fazer uma poesia de análise e crítica objetiva à sociedade e à realidade
(retrata espaços associados ao consumismo, artificialidade e à burguesia).
● Reencontro com o seu professor de latim (mendigo) transmitindo a ideia de
desprezo e desvalorização da cultura na época.

Horas Mortas: encerra o poema com a representação de espaços e das figuras que povoam
a capital de madrugada.

● O sujeito poético encontra-se nas ruas da cidade, no fim da sua deambulação, num
período onde a escuridão é total (apagam-se as luzes).
● Desejo de evasão (“enleva-me a quimera azul”).
● Alusão a um ambiente pastoril: “As notas pastoris de uma longínqua flauta”.
● Desejo de perfeição e imortalidade: “Se eu não morresse nunca [...]”.
● Continua a sonhar com um futuro à imagem do passado glorioso camoniano, no
entanto tal é impossível (“emparedado”).
● Ideia de ausência de liberdade (“onde vivem os «emparedados», «sem árvores», no
«vale das muralhas”) e da violência/decadência (“os cães [doentes] parecem lobos”).
Características

● Em 1886 a população de Lisboa (300 mil) havia dobrado.


● Os laços com o campo permaneciam fortes e a infância rural deixava saudades.
● A cidade parecia asfixiante (candeeiros a gás) com ruas escuras e fedorentas de
terra. Nos pátios e quintais dos bairros haviam galinhas, coelhos e porcos, causando
infestações de parasitas nas casas.
● No centro da cidade amontoavam-se cegos, paralíticos e crianças abandonadas.
● Os trabalhadores ganhavam salários ridículos estando sempre próximos do
desemprego. Tinham uma alimentação insuficiente, explicando assim a alta Taxa
de Mortalidade em Lisboa e no Porto devido à tuberculose e às pneumonias.
● As condições de trabalho eram péssimas (dias longos) com segurança inexistente,
verificando-se por isso imensos acidentes graves frequentes.

O objetivo do poema é o de evidenciar o “cadáver de cidade” que Lisboa se tornara, distante


dos tempos grandiosos celebrados na epopeia camoniana, e a desigualdade social entre os
ricos e os trabalhadores honestos e explorados.
O poema faz referência ao campo que aparece por oposição à “capital maldita''. É um
espaço de liberdade, fertilidade, saúde, produtividade e de vida. É um espaço sem dor,
sofrimento e sem humilhação.
Intensa descrição minuciosa e impressionista, adjetivação, estado de espírito (sentimentos)
e uso de sensações táteis, auditivas, visuais…

Personagens: aristocratas, operários, pedintes, atrizes, varinas, costureiras …

Glossário
Deambulação: constitui um momento de observação, de análise e questionamento do “eu”.

Imaginário épico: conjunto de elementos e processos que recuperam características de um


texto épico (“Os Lusíadas”).

Observador acidental: estatuto em que se coloca o sujeito poético em muitas das


composições enquanto entidade que capta instantes da realidade. Registo de momentos
significativos.

Perceção sensorial: representação das diferentes sensações e das impressões provocadas


pelo meio envolvente (à maneira impressionista).
Subversão da memória épica: embora tivesse a intenção de homenagear Camões e o
passado do país, fá-lo por meio de comparação entre a degradação atual que observa na
cidade com os tempos grandiosos e irrepetíveis. Visão antiépica da cidade.

Transfiguração poética: recriação do real na poesia, conjugando a visão objetiva do exterior


e a forma como o sujeito poético a interpreta e transforma subjetivamente.

“Num bairro Moderno”

No início do poema nós temos referência à hora do dia e uma sinestesia por meio de uma
descrição impressionista (“brancuras quentes”).
Neste poema há uma deambulação (trajeto sem destino) havendo referência a uma classe
privilegiada.
O sujeito observa uma rapariga (que carrega uma cesta com fruta) a dirigir-se a uma casa
onde um criado que se acha superior a ela, independentemente de pertencerem à mesma
classe social, lhe atira uma moeda como forma de pagamento (desrespeito). Mesmo assim a
rapariga fica feliz. O sujeito poético que se encontrava num mal estar (“apoplexia”) e infeliz
por ir trabalhar, ao deparar-se com a situação vê que não tem razão para se queixar.
Neste sentido, a vendedora é uma figura que espalha/ traz o campo (saudável, positivo)
para a cidade.
Ao observar a cesta, o seu conteúdo transforma-se numa pessoa (transfiguração poética).

Melancia —> Cabeça


Repolhos —> Seios
Azeitonas —> Tranças de cabelo
Nabos —> Ossos
Cachos d’uvas —> Olhos
Melão —> Ventre
Legumes —> Carnes
Tomate —> Coração
Ginja —> Sangue
Cenouras —> Dedos
Abóboras carneiras —> Pernas

“todo aquele peso” - contraste com o corpo pequeno da rapariga.


“Cristalizações”

Tempo: Primavera
Espaço: Rua
Neste poema é nos mostrada a classe trabalhadora (miserável e pobre) morosa e dura que
vive em ruas com poucas condições ao contrário de “Num Bairro Moderno”. É claramente
registado um contraste entre a classe rica (atrizes) e a classe pobre (peixeiras e homens). É
também evidente o Realismo na medida em que este poema retrata a realidade exatamente
como ela é.
Nota: o sujeito poético apesar de tudo, apresenta solidariedade para com os trabalhadores.

Transfiguração real do poeta: o poeta, na sua deambulação, vai descrevendo as diversas


sensações que capta entre os contrastes sociais sendo estas posteriormente alvo da sua
imaginação/interpretação sofrendo uma transfiguração. Estas ideias ficam depois como que
“cristalizadas” no poema.

Recursos expressivos frequentes:


Adjetivação
Metáfora
Sinestesia: associação de palavras ou expressões que combinam uma ou mais sensações
humanas numa só frase.
Hipálage: recurso estilístico que consiste em associar a uma palavra uma particularidade
que pertence semanticamente a outra palavra da mesma frase (exemplo: lábios devotos).
Metonímia: recurso expressivo onde uma coisa é designada pelo nome ou ideia de outra por
haver uma relação de contiguidade entre as duas.

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