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ECLESIOLOGIA PATRÍSTICA (PARTE III)

Em nossos estudos sobre as linhas gerais da eclesiologia dos Padres da Igreja, dividimos
em três excertos o conteúdo do vocábulo “Eclesiologia”, do Dicionário de Literatura
Patrística, organizado por Ângelo Di Bernardino. Na Parte I, oferecemos uma breve
introdução ao tema, enquanto que na Parte II, prosseguimos tratando da eclesiologia
patrística Pré-Nicena, ao passo que agora damos prosseguimento à última parte da série
de textos sobre eclesiologia patrística, referente ao período Pós-Niceno. Boa leitura!

A ECLESIOLOGIA NO PERÍODO PÓS-NICENO

Os teólogos dos séculos IV e V falam da Igreja em um duplo contexto, intimamente


coligado: o contexto da vida espiritual, ascética e monástica, e o contexto das questões
trinitárias, cristológicas e pneumatológicas.

1. Os Padres Gregos.

No Oriente cristão do período pós-niceno a eclesiologia conheceu escasso


desenvolvimento dogmático, e permaneceu quase nos mesmos níveis nos quais se
encontrava no século III, visto que os Padres orientais não sentiam a necessidade de
elaborar uma doutrina propriamente eclesiológica. Atanásio de Alexandria (cerca de
300-373), por exemplo, em plena continuidade com a teologia pré-nicena, estabelece
uma estreita ligação, existente já antes da criação do mundo, entre a Igreja celeste e o
Reino escatológico de Deus (Contra arianos 2, 13). Esse pensamento perdurará na
teologia patrística, e está ainda enraizado na atual teologia ortodoxa.

A Homilia catequética 18 de Cirilo de Jerusalém († 387) se dedica à explicação das


palavras “e na Igreja uma, santa, católica” do símbolo da fé batismal próprio da Igreja
hierosolimitana do século IV. Nessa homilia encontramos a quintessência da
eclesiologia da patrística oriental.
Depois do aumento das conversões ao cristianismo no século IV, os Padres gregos se
preocuparam com o perigo de certa mundanização e superficialidade da vida de muitos
neoconvertidos. Por isso, Basílio de Cesareia (cerca de 330-379), além de se esforçar
por introduzir o monaquismo na vida eclesial como elemento dinamizador do ideal de
santidade, aprofundou o ensinamento paulino da Igreja como corpo de Cristo; nele
torna-se eficaz entre os membros daquele corpo a variedade de dons e carismas do
Espírito Santo; as comunidades monásticas devem representar exemplarmente o corpo
de Cristo e o ideal da primitiva comunidade de Jerusalém (Basílio, Reg. fus. tract. 7).
Entre os Padres Gregos, a noção de carisma é às vezes aplicada exclusivamente aos
responsáveis pela Igreja institucional (Cirilo de Alexandria, cerca de 370-444) ou no
máximo limitada à graça batismal (Teodoro de Mopsuéstia, cerca de 350-428); outras
vezes torna-se extensiva também à vida monástica (Teodoreto de Ciro, cerca de 393-
460). João Crisóstomo (cerca de 350-407) será aquele que aprofundará a eficácia dos
carismas no interior do corpo de Cristo: eles não são concedidos só aos monges, mas a
todo cristão a fim de que, segundo o ensinamento paulino (1Cor 12,7), todo crente
colabore para a “construção” da Igreja em razão de uma missão fundada no batismo.

Certamente não podemos encontrar nos Padres gregos um significativo aprofundamento


da doutrina eclesiológica do apóstolo Paulo, porque ela está enquadrada em
considerações ascéticas; as metáforas redacionais tendem a individualizar e a ser
aplicadas à vida espiritual de cada crente. Por exemplo, Basílio de Cesareia, além de
considerar a Igreja como filha de Deus e rainha sentada a sua direita (In Ps. 44,9),
observa que nela nem todos são iguais; “Nesta grande casa não existe só diversidade de
vasos, de ouro e de prata, de madeira e de barro, mas também grande quantidade de
objetos” (Hom. 3, 5); por isso, ninguém está excluído de seu uso (In Ps. 48, 1).

Essas ideias de Basílio sobre a fraternidade dos membros da Igreja caíram em um


terreno fértil. Para Gregório de Nissa (cerca de 340-395), a eclesiologia pode
centralizar-se na seguinte expressão paulina: “Se as primícias são santas, também o será
toda a massa” (Rm 11, 16), da qual extrai considerações aplicáveis à vida espiritual.
Gregório vê a unidade do corpo de Cristo na orientação comum de todos os membros
para Deus (De perf. 197, 19-100, 3; In Cant. 13-14). O chefe do corpo eclesial não é o
Deus Logos, mas sim Jesus Cristo, Deus e homem, o fruto da Virgem, a primícias de
toda a massa, graças à qual o Logos assimilou nossa natureza humana (In Cant. 13). A
dinâmica do tornar-se Igreja corresponde àquela do empenho de imitar Cristo, e a
atividade litúrgico-sacramental da Igreja persegue o fim de que cada crente se torne
semelhante a Deus.

A eclesiologia de Teodoro de Mopsuéstia é fortemente marcada pelo duofisismo de sua


cristologia e pelo esquema das duas καταστασεις específico de seu modo de entender a
história da salvação. Antes de tudo, a Igreja é “a reunião dos crentes” (In Philm. 2) e
não tem limites geográficos, mas temporais: da primeira vinda de Cristo a sua segunda
vinda. Os hebreus, portanto, não pertencem à ela (Hom. 1, 10). Essa ideia de associação
dos crentes é completada pela imagem paulina de corpo de Cristo; a Igreja está
consciente da presença de Cristo, que permanecerá nela até a plenitude dos tempos
(Hom. 10, 15). O trecho mais importante da eclesiologia de Teodoreto é o escatológico-
tipológico, porque a Igreja é essencialmente typus futuri, isto é, edifica a si mesma
como corpo de Cristo através do batismo e, com sua estrutura simbólico-sacramental,
assegura a comunhão com Cristo concedendo aos crentes, mediante a eucaristia, a
participação no mundo futuro (Hom. 10, 16-17). A Igreja simboliza agora, com o
batismo e a eucaristia, as futuras realidades eclesiais (Hom. 12, 11). Em relação a esta
visão tipológica da Igreja, Teodoreto emprega a imagem de “casa de Deus” (Ibidem).
Ela é o lugar no qual os catecúmenos encontram a família divina e a garantia de
alcançar a salvação em virtude do pleno poder que lhe vem de Deus. Assim, a salvação
escatológica pode iniciar-se neste mundo só através da estrutura visível e terrena da
Igreja. Teodoro constata uma correspondência perfeita entre a Igreja terrena e a Igreja
celeste-futura, não só no plano jurídico do poder perdoar os pecados (fragmento 96 Ad
Mt. 18, 18), mas também na transmissão da tradição que garante o correto conhecimento
de Cristo (Hom. 1, 10). Como confronto e demonstração sensível do celeste no terreno
(Hom. 12, 13), a Igreja situa-se no lugar indescritível entre a morte e a vida eterna e
entre o mutável mundo terreno e o incorruptível mundo novo.

Cirilo de Alexandria, comentando Jo 17, 20-21, deduz a unidade da Igreja partindo da


unidade da essência divina. Os membros de Cristo estão unidos porque recebem um
mesmo pão eucarístico. E porque o Espírito Santo habita nos fieis, estes são
destinarários dos sacramentos e podem, assim, voltar a ser o que eram na origem (In
Ioh. 11, 11): plasmados à imagem de Deus (isto é, no Filho) e a sua semelhança (isto é,
segundo o Espírito Santo).

A teologia do Pseudo-Dionísio Areopagita, que viveu próximo do ano 500, baseia-se na


filosofia neoplatônica de Proclo. Dionísio não só estuda a tríade da Trindade divina,
mas, servindo-se do número três da noção de hierarquia, explica sistematicamente todos
os níveis da criação. A primeira hierarquia é a dos anjos, e seus nove coros são
paradigma da hierarquia terrena que Dionísio chama nossa hierarquia: “Esta ordem é
copiada da nossa hierarquia que procura imitar, pois, o quanto lhe for possível a beleza
angélica, para ser configurada com ela, como em imagem, e ser elevada à fonte
transcendente de toda ordem e de toda hierarquia” (De cael. hier. 3, 1). Nos capítulos 2-
4 do De ecclesiastica hierarchia se ocupa dos sacramentos: iluminação ou batismo,
sinapse ou eucaristia e sacramento do óleo. No capítulo 5 reflete sobre a tríade das
ordens clericais: o hierarca ou bispo, o sacerdote e o diácono. Na tríade inferior,
estudada no capítulo 6, encontram-se os catecúmenos, que se preparam para a iniciação
instruídos pelos diáconos; no mais alto encontram-se os leigos já batizados, que
recebem a iluminação dos sacerdotes; o posto mais elevado, que “possui pleno poder e
santidade completa em suas atividades” (De eccl. hier. 6, 3), é o dos monges; a ordem
monacal é confiada ao poder de aperfeiçoamento dos bispos. Muito provavelmente
devemos a Dionísio a aplicação do termo “hierarquia” aos bispos. Resumindo: “Os
santos sacramentos produzem purificação, iluminação e perfeição. Os diáconos formam
a ordem que purifica. Os sacerdotes constituem a ordem que procura a iluminação. E os
hierarcas, vivendo em conformidade com Deus, configuram a ordem que aperfeiçoa”
(De eccl. hier. 6, 5).

A eclesiologia de Máximo, o Confessor (cerca de 580-662), está disseminada em sua


obra, mas, sobretudo, na Mistagogia, comentário simbólico sobre a liturgia elaborado
segundo o modelo do Pseudo-Dionísio. A parte principal da obra começa considerando
a Igreja como imagem de Deus, “visto que realiza a mesma sua atividade por imitação e
em figura [...] A santa Igreja agirá produzindo para nós os mesmos efeitos de Deus [...]
Todos nasceram na Igreja e, por meio dela, renasceram e foram recriados no Espírito”
(Mist. 1). A Igreja é também figura e imagem do mundo inteiro, do mundo sensível, da
pessoa humana e da alma. A liturgia é a porta de entrada no mistério que abarca também
a liturgia dos anjos e dos santos; é uma participação na liturgia que perdurará por toda a
eternidade.

2. Os Padres Latinos

Os grandes teólogos ocidentais precedentes e contemporâneos a Agostinho – isto é,


Hilário de Poitiers, Ambrósio de Milão e Jerônimo – acolhem, transformam e
enriquecem as representações tradicionais da Igreja, sem chegar a modificar
substancialmente a visão eclesiológica nem fazê-la progredir notavelmente. O impulso
decisivo para uma nova concepção da natureza da Igreja nasce por motivo da
controvérsia com o donatismo da parte de Optato de Milevi e, sobretudo, de Agostinho
de Hipona.

a. Hilário, Ambrósio e Jerônimo – muito frequentemente Hilário de Poitiers († 368)


passa quase imperceptivelmente pelo tema da Igreja como casa de Deus e cidade celeste
para o tema da inabitação divina em todo crente (Tr. Ps. 126, 9). Tanto para a Igreja
quanto para cada cristão a medida da casa é o corpo de Cristo, que é, por excelência, o
lugar em que Deus habita (Tr. Ps. 64, 6). Partindo dessa casa são construídas as outras
até formar a cidade celeste (Tr. Ps. 126, 8). Aqueles que fazem parte da casa, que é
Igreja, estão já ornados com diversos dons do Espírito Santo, fonte da diversidade de
carismas e, ao mesmo tempo, da unidade da Igreja. Hilário a vê simbolizada na nave, na
qual entra Jesus com a multiplicação dos pães e dos peixes (In Mt. 15, 10); os peixes
significam a variedade de dons e carismas distribuídos entre os crentes. Tomar o corpo
de Cristo como medida e ser ornados com essas graças são duas condições necessárias
para que nos cristãos Deus habite e eles possam formar a cidade celeste que é a Igreja.
Ela é semelhante a Cristo também no fato de que “vence quando está ferida, é
reconhecida quando é atacada, conquista quando é abandonada” (De Trin. 7, 4); em
todo caso, tem-se a certeza de que só ela pode oferecer a bem-aventurança” (Ibid.).

Também para Ambrósio de Milão (cerca de 339-397), como para Hilário, a Igreja
cresce quando diminui, vence quando é perseguida e enche a terra com a luz de sua fé e
de sua devoção (Hexa. 4, 7). Pois a Sagrada Escritura é o sacramento que apresenta aos
crentes o mistério de Cristo e da Igreja mediante sinais e figuras que ilustram o desígnio
eterno de salvação. Ambrósio comenta numerosas imagens tiradas da natureza e da
Bíblia mediante uma exegese alegórico-tipológica inspirada em Orígenes: lua, mar,
vinha mística, rebanho místico, povo de Deus, reino de Cristo, Jerusalém nossa, templo
de Deus, corpo de Cristo, esposa de Cristo: “Com ele (Cristo) casou a Igreja que, cheia
da semente do Verbo e do Espírito de Deus, deu à luz o corpo de Cristo, isto é, o povo
cristão” (Exp. Luc. 3, 38). Além disso, várias mulheres do AT (Eva, Sara, Rebeca) e do
NT (a samaritana, a viúva de Naim, a pecadora na casa de Simão, o leproso) não só são
imagens da Igreja, mas também figuras alegóricas: a mulher em Lc 13,21 santifica com
seu ensinamento espiritual as três partes do homem (corpo, alma, espírito); as duas
mulheres que amassam na mesma masseira indicam que “a Igreja é escolhida (por
Deus) e a Sinagoga é abandonada, ou então que se toma o sentimento bom e se
abandona o impuro” (Cain., 30; cf. Exp. Luc. 8, 52); portanto, em continuidade com
Orígenes, Ambrósio vê intimamente correlacionadas a Igreja e a alma humana (ecclesia
vel anima: De virg. 6, 8; Hexa. 6, 49; Myst. 37). Na ótica da história da salvação,
Ambrósio apresenta a Igreja histórica como uma sombra da verdade que
contemplaremos claramente depois da segunda vinda de Cristo (In Ps. 28, 25), e isso
não lhe impede de admitir que já agora a Igreja é uma teofania da Trindade invisível,
que quis manifestar-se plenamente em todo o corpo de Cristo (Exp. Lc. 1, 24 ss.; 2, 94;
10, 1 ss.). Ambrósio, estimulado pelo zelo excessivo pela interpretação alegórica,
cometeu o pequeno erro de esquecer que Paulo (Rm 11, 26) anunciou também a
salvação de todo o Israel.

Enquanto para Ambrósio a prerrogativa da Igreja de Roma consiste só na preservação


da fé de Pedro e de todos os Apóstolos (Exces. 1, 47), Jerônimo (cerca de 347-420) fala
mais claramente do que outros Padres da Igreja sobre o primado da cátedra romana.
Escreve ao papa Dâmaso, no qual vê o sucessor do Pescador, tudo quanto segue: “Sinto-
me ligado à tua santidade, isto é, à cátedra de Pedro, em comunhão de fé. Sei que a
Igreja de Cristo está fundada sobre esta rocha” (Ep. 15, 2).

b. Controvérsia antidonatista. Optato de Milevi e Agostinho de Hipona – O donatismo


surgiu em 311 devido a uma disputa interna na Igreja de Cartago. Por ocasião da morte
do bispo Mensúrio, foi escolhido para sucedê-lo o diácono Ceciliano, que recebeu a
ordenação episcopal de três bispos, um dos quais era Félix de Aprhugni. À ordenação se
opôs Segundo, bispo de Tigisi, que declarou inválida a ordenação de Ceciliano, porque
dela tinha tomado parte Félix, um bispo que durante a perseguição de Diocleciano fora
um lapsus ou traidor. O bispo Segundo afirmava que Félix, por causa de seu pecado,
não estava habilitado a administrar os sacramentos e ordenou Magiorano para bispo de
Cartago; a ele sucedeu logo Donato, também chamado o Grande, do qual tomou o nome
o movimento. A doutrina sacramentária do donatismo baseia-se sobre os pressupostos
do bispo Cipriano de Cartago que o papa Estêvão, cerca de metade do século III, tinha
já refutado em sua controvérsia com os bispos norte-africanos. Assim, no início do
século IV, no seio da comunidade norte-africana nasceu um cisma que não pôde ser
resolvido nem com diálogo intraeclesial, facultado por numerosos sínodos episcopais,
nem pelas intervenções das autoridades políticas. Para os donatistas, a só e única Igreja
era a deles, e entendiam hereges todos os outros, compreendidos aí também os
católicos. Só os sacramentos da Igreja donatista eram válidos, não havendo outra
habitada pelo Espírito Santo; faziam depender da santidade eclesiológica do ministro a
validade dos sacramentos e, também, procuraram sustentáculos na Escritura e na
tradição, norte-africana (Tertuliano, Cipriano). Baseando-se naquela mesma tradição,
Agostinho de Hipona encontrou a solução para aquele problema eclesiológico e ao
mesmo tempo sacramental.

Antes de Agostinho, Optato de Milevi (aproximadamente na metade do século IV)


indicou a estrada para encontrar teologicamente os erros da eclesiologia donatista. A
santidade da Igreja se baseia nos sacramentos e não nas pessoas: “Ecclesia una est,
cujus sanctitas de sacramentis coligitur, non de personarum supervia poderatur” (“a
Igreja é una; sua santidade provém dos sacramentos e não se apoia sobre a soberba das
pessoas”, Sermo 2, 1); ninguém é por si mesmo realmente santo, mas existem
só imperfeitos (Sermo 2, 10). Ninguém pode antecipar o juízo de Cristo nem eliminar os
pecadores da Igreja (Sermo 7, 2-3). Os sacramentos, ao invés, são “por sua natureza”
santos (Sermo 5, 4), dom de Deus e não dos homens (Sermo 5, 47).

Agostinho de Hipona (354-430) começou a interessar-se por aquele conflito em 393 e


adotou medidas práticas de 400 em diante. Nos três livros Contra epistolam
Parmeniani (400) é afirmada a tese fundamental contra o donatismo, que na unidade da
Igreja e na comunhão dos sacramentos os maus não contaminam os bons. Nos sete
livros De baptismo (400) Agostinho faz a distinção entre a eficácia e a validade dos
sacramentos: embora o sacramento administrado ou recebido dignamente não produza,
por princípio a salvação daquele que o recebe, o batismo imprime um sinal indelével
(character), visto que é Cristo o administrador dos sacramentos através de seus
ministros.

O tratado De unitate ecclesiae (400) estabelece a distinção entre a inviolável santidade


da Igreja como corpo de Cristo, que constitui o fundamento da unidade eclesial
(Christus totus caput et corpus), e a condição pecadora de seus membros, pelo que a
Igreja é, até sua consumação final, um corpus permixtum. Agostinho afirma: “Se não
quereis sentir-vos desiludidos e desejais continuar a amar-vos uns aos outros, deveis
saber que toda forma de vida na Igreja tem hipócritas entre suas fileiras... Existem maus
cristãos, mas existem também cristãos bons. À primeira vista, vereis um grande número
de maus cristãos, que como espessa capa de palha não vos permite aproximar-vos do
bom grão de trigo. Acreditai em mim: embaixo de toda aquela palha existe ainda muito
bom trigo” (Enarr. Ps. 99, 13). Essa ecclesia mixta do momento presente deve ser
distinguida da Igreja santa do fim dos tempos (De civ. Dei 20, 9; Retr. 2, 44): a “cidade
divina” que caminha peregrina neste mundo até sua meta eterna está descrita nos livros
XI-XXII do De civitate Dei (413-426), e é determinada pela tensão entre essas duas
figuras de Igreja.

Agostinho insiste também na universalidade espacial e temporal da Igreja católica, não


limitada – como faziam os donatistas – à área norte-africana dos séculos IV e V. A
Igreja se estende ao mundo inteiro e abrange todos os justos desde Abel em diante.
Agostinho faz sua a tese de Cipriano segundo a qual “fora da Igreja não há salvação”,
mas ao mesmo tempo (De bapt. 4, 17, 24) afirma que existe salvação para Jó, para a
sibila, para o bom ladrão, para os mártires não batizados, para Cornélio, para os
catecúmenos mortos antes de receber o batismo e para os católicos que são
excomungados injustamente. Agostinho reconhece, portanto, que existe diferença e
continuidade entre a consideração do AT e aquela do NT; a diferença e consiste no fato
de que, de Pentecostes em diante, a Igreja é uma comunidade concreta e universal que o
próprio Jesus quis como caminho de salvação. Pentecostes representou uma
manifestação maior e uma mais abundante comunicação do Espírito Santo. Os sete
aspectos da atividade do Espírito mantêm unida a Igreja (Exp. Gal. 13). Por analogia
com o corpo humano físico, no qual a alma mantém vivos os muitos membros, o
Espírito Santo faz de maneira que a Igreja seja um corpo vivo. Quando um membro é
cortado e separado do corpo, conserva sua forma, mas não mantém sua vida; o mesmo
acontece às pessoas separadas da Igreja. Só quando cada membro está unido ao corpo
universal da Igreja ela está em condições de realizar suas funções vitais (Sermo 268, 2;
267, 4). O motivo pelo qual uma pessoa não pode receber o Espírito fora da unidade da
Igreja depende do fato de que aquela pessoa não quer amar (De bapt. 2, 16, 21); isso se
aplica também aos maus cristãos que estão dentro da Igreja; eles não possuem o Espírito
Santo porque não amam (Ep. Ioh. 6, 11). O exemplo de aceitação do pagão Cornélio e
de sua família antes que fossem batizados é um sinal de que o Espírito age também fora
da Igreja institucionalizada (Sermo 269, 2; De bapt. 1, 2.3; 4, 21, 28- 23,30); mas as
pessoas que conhecem a Igreja, como Cornélio e os catecúmenos, devem estar dispostas
a aceitar o sacramento da incorporação à Igreja.

Os ensinamentos agostinianos como corpus permixtum induziram muitos estudiosos (a


maior parte dos quais protestantes) a concluir que Agostinho tem duplo conceito de
Igreja e que professa duas eclesiologias: uma Igreja empírica e hierárquica e uma
comunidade espiritual de santos; a primeira seria a Igreja institucional, visível e terrena,
ao passo que a segunda seria o Reino dos céus e a cidade de Deus. Pois bem, tal
concepção dualista da Igreja não se encontra nos textos de Agostinho, o qual, mesmo
fazendo distinções, não chega a uma separação tão radical. Para entender corretamente
Agostinho, precisamos ter presente a tensão escatológica na vida da Igreja e, portanto,
não existe perfeita identidade entre a Igreja e a cidade de Deus: a Igreja é a cidade de
Deus em sua condição de Igreja. Não existe perfeita identidade entre a Igreja na terra e a
comunidade dos santos, mas os santos reinam já agora com Cristo, mesmo que de modo
imperfeito. No mesmo sentido, a Igreja é o reino de Deus, o reino celeste ou corpo de
Cristo (De civ. Dei 20, 9). Existe identidade e não identidade ao mesmo tempo; a
mesma Igreja vive, por assim dizer, duas vidas e passa por fases distintas. A Igreja
terrena na situação atual não é uma entidade fixa ou completa; encontra-se in fieri, em
movimento, na fase de crescimento através da qual passa de corpo misto a corpo
perfeito de Cristo: “A Igreja sem mancha nem rugas não deve ser vista como se já fosse
assim, mas como se estivesse se preparando para ser assim quando estiver na glória”
(Retr. 2, 18).
Agostinho salienta a predestinação divina, porque só Deus sabe quem vai pertencer à
verdadeira Igreja no fim dos tempos; a Igreja se identifica com o número dos
predestinados à salvação (De bapt. 5, 27, 38). Em sua controvérsia com os pelagianos,
Agostinho afirma: “Como aquele homem foi predestinado a ser nossa cabeça, assim
também muitos são predestinados a ser seus membros” (De praed. sanct. 15, 31). Por
último, em Agostinho, a questão da predestinação torna-se decisiva para sua
eclesiologia. Das duas cidades, “uma está predestinada a reinar eternamente com Deus,
e a outra, a sofrer um suplício eterno com o diabo” (De civ. Dei. 15, 1, 1). É verdade
que não era vontade de Deus que existissem duas cidades, mas a sociedade dos réprobos
teve sua origem no livre afastamento de Deus (Ibid. 11, 33; 12, 2). Deus permitiu os
pecados do homem porque sabe do mal tirar o bem: “Ele, com sua graça, vai recrutando
entre as gerações humanas, condenadas justa e merecidamente, um povo tão numeroso
para poder ocupar o lugar deixado vazio pelos anjos prevaricadores, de modo que esta
amada e sublime cidade não só não seja privada de seus cidadãos, mas se alegre por
acolhê-los em um número talvez maior (Ibid. 22, 1, 2). Estas são as ideias que
Agostinho repete em seu manual sobre a fé, esperança e caridade (Ench. 29, 7), onde
sustenta, diferentemente de João Crisóstomo (Hom. in. illud. “Vidi Dom.” 4, 2) que o
céu não foi feito para a Igreja, mas a Igreja, sim, foi feita para o céu.

O fato de Cristo ser a cabeça de seu corpo, da Igreja (Christus totus), não só garante
contra os donatistas a santidade radical e imutável da Igreja e a eficácia dos
sacramentos, mas também (contra os pelagianos) que ele é o mediador e o único doador
da graça. O homem recebe a graça da salvação só participando do ato redentor de
Cristo, que nos obtém todas as graças, e entra no corpo de Cristo através do batismo.
Com todos esses argumentos Agostinh coloca a teologia cristã nos antípodas da teologia
hebraica, em continuidade com toda a impostação traçada pelos ensinamentos do
apóstolo Paulo.

Porquanto instituição dotada de estruturas sociológicas e hierárquicas, a Igreja possui


uma autoridade à qual Agostinho dedica sua atenção. No século IV existiam relações
habituais entre as Igrejas do norte da África e Roma. A comunhão com Roma e o
primado daquela sede apostólica eram temas importantes que Agostinho enfrentou com
interesse. Os bispos norte-africanos recorriam frequentemente a Roma, mas no plano
disciplinar a autonomia das Igrejas locais era grande e os africanos sentiam orgulho
disso. Agostinho não apresenta sempre de maneira uniforme o papel preeminente da
sede apostólica romana na Igreja universal; se na controvérsia antipelagiana não vê
inconvenientes em manter plena consonância com Roma (a famosa frase: Roma locuta,
causa finita, se bem que não se encontre literalmente nas obras agostinianas, inspira-se
em seu Sermo 131, 9-10, no qual informa sobre a resposta romana à controvérsia
pelagiana), nos confrontos com os donatistas prefere colocar a ênfase na Igreja
universal: “Somos cristãos (christiani), não petrinos (petriani)” (Ep. 36, 9, 12),
utilizando uma linguagem próxima de uma linguagem episcopal colegial como a
empregada por Cipriano de Cartago. Com isso, não entende colocar em discussão nem a
origem nem a autoridade petrinas do bispo de Roma, mas não aceita que determinados
costumes romanos, como jejuar no sábado, sejam impostos a toda a Igreja. Para ele, o
papa é “o pai de todo o povo cristão” (Ep. 43, 5, 16). Por isso a teologia romana dos
séculos seguintes baseou-se em Agostinho para legitimar sua doutrina sobre o primado;
também reformadores medievais e renascentistas apelaram a ele para criticar o primado
e o papado. E ambas as partes o fizeram com razão, visto que tanto uns quanto outros
bebiam da plenitude agostiniana tudo o que pudesse ser útil as próprias teses. Na
realidade, Agostinho foi muito maior do que aqueles que dele se aproveitaram.

Além da instituição em seu aspecto de autoridade existe algo de ainda maior


importância: a Igreja é também uma instituição que oferece uma prática fixa de vida
litúrgica e sacramental. Pois bem, as orações, o jejum e os carismas especiais não são
decisivos para possuir Cristo (Christum habere); os crentes possuem Cristo só através
do amor (Sermo 90, 5; In Ps. 9, 23; Ep Ioh. 3, 3-5). Mas a relatividade desses aspectos
da vida terrena representa o efeito surpreendente de aumentar o amor de Agostinho pela
Igreja. Um cristão não pode desprezar a vida exterior da Igreja. Embora a Igreja perfeita
não se identifique simplesmente com a Igreja empírica, esta última coincide com a
primeira. Se uma pessoa deseja fazer parte do verdadeiro corpo de Cristo, não lhe é
consentido abandonar a unidade visível (Ep. Ioh. 1, 12). O crescimento da Igreja é o
crescimento de Cristo, e quem recusa a Igreja, recusa também Cristo (Ioh. Ev. tr. 4, 4).

c. Leão Magno e Gregório Magno – Leão Magno, bispo de Roma de 440 a 461,
apresenta a Igreja como sacratum ou corpus Christi (Sermo 4, 1; Ep. 14, 11; Ep. 53, 4)
e coloca assim em realce, sobretudo, o aspecto de unidade orgânica da Igreja. Nesse
sentido a Igreja, segundo ele, é sempre uma communio sanctorum, isto é, não obstante
acolha também pecadores e seja formada por cristãos imperfeitos, não perde nunca
sua integritas; a Igreja é como uma continuação da encarnação de Cristo (Sermo 72, 3)
e, por isso, toda a vitalidade do crente deriva da presença da cabeça (Cristo) em seu
corpo (Sermo 63). Em virtude da união dos crentes com Cristo, fundada sobre o batismo
e sobre a fé, a paixão do Senhor se prolonga até o fim do mundo (Sermo 70, 5) e se
renova no curso da história da Igreja a vitória de Cristo sobre o mundo (Sermo 39, 3). A
Igreja, mater et schola veritatis (Sermo 52, 5) é chamada, de modo especial em seus
pastores, a manter viva em seus fieis a fé e a conduzir os mais espirituais a uma
compreensão mais profunda do mistério de Cristo (Sermo 76, 1). Por isso o mesmo
Cristo, presente em sua Igreja, sustenta os pregadores do Evangelho e os ministros dos
sacramentos (Ep. 167). Se Cristo não continuasse a exercer seu sacerdócio, na Igreja
não se teria nem sacerdócio nem sacrifício (Ep 80, 2). Só em virtude de sua presença
existe o único sacramentum pontificis nos fieis, nos pastores e de modo especial no
vigário de Pedro (Sermo 4, 1-2). Cristo não cessa de intervir na obra de seus ministros;
por isso, eles podem reacolher os penitentes na communio sacramentorum (Ep 108, 2).

Leão conseguiu dar uma clara formulação dogmática ao exercício do poder pessoal
(primatus) do papa na Igreja universal. Cristo, ao edificar a Igreja sobre Pedro, confiou
a ele o ministério pastoral e a tarefa de confirmar seus irmãos na fé (Mt 16, 13-19; Lc
22,32; Jo 21, 15-19); o primado, portanto, é devido à íntima união de Pedro com Cristo
(Ep. 10, 1). A continuação do ofício petrino no papa se baseia, segundo a mentalidade
jurídica de Leão, não no fato de que o papa ocupa a mesma sede nem sobre em que o
túmulo de Pedro está em Roma, mas no fato de ser herdeiro (haeres) de Pedro. Portanto,
o primatus ou principatus papal pode ser considerado idêntico ao ministério petrino:
a sollicitudo ominum ecclesiarum diz respeito à sede romana (Ep. 14, 11). O tema do
primado, além de seu aspecto teológico, em Leão tem também repercussões políticas.
Em um tempo de desintegração do Império Romano, sob a ideia do primado sente-se a
pulsação da ideja da Roma aeterna, caput orbis terrarum, transferida para o conceito
de Urbis sancta.

A eclesiologia de Gregório Magno, bispo de Roma de 590 a 604, assume como ponto de
partida a spiritualis intelligentia na leitura e interpretação da Bíblia. Gregório contempla
em toda a Sagrada Escritura o ministério da Igreja, e desta individualiza desde o início a
presença oculta na história da salvação. Também a equiparação ecclesia vel
anima demonstra que toda espiritualidade contém essencialmente um caráter eclesial,
que consiste na interiorização da essência e da vida da Igreja na vida pessoal do crente.
A expressão de Gregório “Sancta electorum Ecclesia in antiquam statum restauranda”
(Moral. 27, 26, 49), que deve ser considerada o pensamento central de sua concepção de
Igreja, significa que o retorno da humanidade à situação originária de contemplação de
Deus em comunhão com os anjos acontece na Igreja; ela, já em sua preexistência
celeste, era chamada a ser na terra e no céu a “suprema civitas ex angelis et hominibus”
(Hom. in Ev. 2, 34, 11); porém, o plano foi transtornado pelo pecado do homem. Da
“Igreja santa dos eleitos” (Moral. 13, 46) fazem parte também muitos daqueles que
viveram antes de Cristo e se salvaram por sua fé na futura paixão de Cristo, sofrida
também por eles, como por aqueles que vêm depois dela (Hom. In Ez. 3, 16). Gregório,
baseando-se sempre em seu método exegético da spiritualis intelligentia da Bíblia,
encontra na história o sentido literal, o oculto significado espiritual, o mysterium, de
modo que a Sagrada Escritura, lida eclesialmente, torna evidente o eterno no temporal e
o invisível no visível. Gregório, porém, não nega a historicidade da Igreja, mas quer
ajudar o homem pecador e, portanto, cego para o mundo espiritual a recuperar
a spiritualis intelligentia. Vê a Igreja como uma realidade “que se levanta contra a
glória deste mundo” (Hom. in Ev. 2, 32, 6). Seu objetivo pastoral leva-o a observar que
não só os milagres realizados junto dos túmulos dos santos demonstraram o esplendor
da Igreja (In Reg. 1, 104), mas também os pregadores que “cantam os louvores de Deus
onipotente com o esplendor de sua vida” (In I Reg. 2, 59).

A posição preeminente do apóstolo Pedro e de seus sucessores romanos é salientada de


modo particular por Gregório Magno. Nesse sentido salienta-se a homilia pascal sobre a
pesca milagrosa (Jo 21,1-14) na qual são descritas a figura e a tarefa de Pedro, ao qual
Cristo confia a Igreja, para que com sua pregação a conduza para a pátria celeste entre
os tormentos que abalam o mar do mundo (Hom. in Ev. 2, 24, 2). Gregório, consciente
de ser o sucessor de Pedro diante da Igreja de seu tempo, condena o emprego do termo
“ecumênico” pelos patriarcas de Constantinopla (Ep. 5; Ep. 37; Ep. 44); a rígida posição
de Gregório pode ser compreendida melhor sob uma perspectiva mais ampla, na qual é
necessário situar a afirmação do primado da Igreja de Roma, do culto a Pedro, da defesa
da latinidade, pelo temor de uma superioridade não só religiosa, mas também cultural de
Constantinopla.

FONTE:

Literatura patrística / sob a direção de Angelo di Bernardino, Giorgio Fedalto, Manlio


Simonetti; [tradução José Joaquim Sobral]. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2010. pp.
604– 615.

Fonte: http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/estudos-
patristicos/1012-eclesiologia-patristica-parte-iii

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