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1, 2017
Resumo: Este artigo tem por objetivo discutir certos limites e consequências sociológicas
que giram em torno dos conceitos de “raça” e “miscigenação” para o estudo das relações
raciais no Brasil. O arco de estudo escolhido começa com a problematização do conceito
de “raça” e de suas implicações sociais e políticas. Em segundo lugar, procura-se
apresentar a importante contribuição de Gilberto Freyre (1900-1987) como principal
intérprete da “miscigenação” brasileira, concepção que logo se reverberou na ideia da
“democracia racial”. Em terceiro lugar, a discussão se concentra na desconstrução da
“democracia racial” e na necessidade de pensar os desafios enfrentados no combate ao
racismo.
Palavras-chave: “raça”; “miscigenação”; “democracia racial”; relações raciais.
"Race" and "miscegenation" in Brazil: the challenges and dilemmas of our race
relations
Abstract: This article aims to discuss certain limits and sociological consequences that
revolve around the concepts of "race" and "miscegenation" for the study of race relations
in Brazil. The chosen field of study begins with the problematization of the concept of
"race" and its social and political implications. Secondly, we try to present the important
contribution of Gilberto Freyre (1900-1987) as the main interpreter of Brazilian
"miscegenation", a concept that soon reverberated in the idea of "racial democracy".
Thirdly, the discussion focuses on the deconstruction of "racial democracy" and the need
to think about the challenges faced in combating racism.
Keywords: "race"; "miscegenation"; "racial democracy"; race relations.
1. Introdução
Com o presente artigo, tem-se como objetivo central discutir, sinteticamente,
1
Graduado em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre
em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco
(PPGS). Atualmente desenvolve pesquisas nas áreas de Pensamento Social Brasileiro e Sociologia da
Literatura, com ênfase específica no estudo do Modernismo.
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2 Entre os principais estudiosos deste período, destacam-se: Nina Rodrigues (1862-1906), Euclides da
Cunha (1866-1909) e Silvio Romero (1851-1914). Para maiores informações recomenda-se consultar:
SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1993. O espetáculo das raças:cientistas, instituições e questão racial no
Brasil – 1870 – 1930.São Paulo: Companhia das Letras. (Uma história de diferenças e desigualdades). Ver
também: SEYFERTH, Giralda. 2002. O beneplácito da desigualdade: breve digressão sobre o racismo. In:
Racismo no Brasil. São Paulo: Petrópolis, Abong.
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3 Outro autor cujas ideias tiveram um impacto significativo nos circuitos intelectuais brasileiros foi o
italiano Cesare Lombroso (1835-1909), conhecido principalmente por seus estudos de Antropologia
Criminal. Na sua visão, era possível identificar as causas da delinquência e do crime através do
reconhecimento de traços físicos comuns, incluindo, por exemplo, o formato do crânio, nariz, lábios e
demais características que “denotariam” a existência de grupos propensos ao crime e ao desvio.
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5 O termo “nacionalismo modernista” se refere ao conjunto de ideias sociais e políticas que permearam a
cultura brasileira nas primeiras décadas do século XX, cujo ápice oficial foi a Semana de Arte Moderna
de 1922. Tal movimento se debruçou na tentativa de (re)definir o papel das artes e da literatura, ao
oferecer outros quadros para se pensar a construção da nação, ideal que já vinha se desenvolvendo em
nossa dinâmica social desde o Romantismo no século XIX.
6 Pode-se elencar como importantes representantes desta tradição os seguintes autores: Herbert Spencer,
Lafcadio Hearn, Alfred Zimmern, Franklin H. Giddings, Carlyle, Walter Pater, Georg Gissing, Williams
B. Yeats e Francis Simkins. Para mais informações, consultar: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia.
2005. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora da Unesp.
7 Gilberto Freyre também se destacou pelo viés ensaístico da sua obra. Conforme argumenta Antonio
Candido, Gilberto Freyre se utilizava de uma linguagem “mais literária que científica na sua estrutura,
embora não no léxico, e que é nele um instrumento de interpretação pela riqueza das imagens, a sugestão
dos longos períodos em que dá vida e graça ao esqueleto da erudição e da análise” (CANDIDO, 2006,
p.284). Para maiores esclarecimentos, conferir: CANDIDO, Antonio. 2006. A sociologia no Brasil. Tempo
Social: Revista de Sociologia da USP, v. 18, n. 1, p.271-301, Junho.
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8 Parte dos estudos que negavam a existência de supostas patologias hereditárias resultantes da mistura
racial ganharam maior visibilidade após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o discurso
racialista, eugênico e antissemita começou a ser refutado por biólogos, antropólogos e sociólogos, muitos
do quais se reuniram no Brasil, em 1950, durante o projeto da UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura). Paulatinamente as concepções acerca da “raça” começaram a ser
substituídas pelo conceito de “etnia”, passando-se a explicar a diversidade das sociedades humanas por
meio de suas diferenças culturais e sociais. No Brasil atual, embora a ideia de “raça” já não possua
sustentação biológica no meio científico, ela ainda continua a existir do ponto de vista sociológico,
antropológico e político, tornando-se ainda um meio necessário para reafirmar identidades raciais,
especialmente nas situações em que se busca ocultar a existência de comportamentos racistas e
discriminatórios. A este respeito, ver: GUIMARÃES, Antonio Sérgio. 1999. Raça e os estudos das
relações raciais no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, n° 54, p.147-156, Julho.
9 A “brasilidade” pode ser caracterizada como uma construção social, política e simbólica que
compreende o sentimento e o conjunto de características imaginariamente vinculadas ao Brasil. Na
acepção de Velloso (1993, p.15), tal noção pode ser pensada como um “estado natural de espírito”, que
diz respeito à intuição de um “sentimento nacional”, visceralmente brasileiro, diferenciando-se do
“brasileirismo”, este associado a sistemas filosóficos, escolas e partidos. Porém, um dos problemas
enfrentados na busca desta “brasilidade” reside no estabelecimento de uma falsa ideia de “unidade
nacional”, levando-o muitas vezes a desprezar a existência de desigualdades e diferenças. De acordo com
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Eduardo Jardim de Moraes (1978), a busca pelo estudo da “brasilidade” por parte dos intelectuais,
particularmente daqueles ligados ao Movimento Modernista, se acentuou em 1924, momento em que a
luta contra o passadismo artístico e literário passou a dar lugar a uma preocupação por novas
interpretações do Brasil. Para mais informações recomenda-se consultar: VELLOSO, Monica Pimenta.
1993. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 6, n.11, p.89-112. Ver também: MORAES, Eduardo Jardim de. 1978. A brasilidade
modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro: Edições graal.
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10 Na verdade, a ideia de oferecer uma interpretação do Brasil baseada no encontro das “três raças” é
bem anterior ao pensamento de Gilberto Freyre. Talvez a primeira tentativa nesse sentido tenha sido
elaborada na segunda metade do século XIX por Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), que
escreveu o texto “Como se deve escrever a história do Brasil” (SOARES, 2011a). Para maiores
informações, ver: SOARES, Eliane Veras. 2011a. Literatura e estruturas de sentimento: fluxos entre Brasil
e África. Soc. Estado, Brasília, v. 26, n.2, p. 95-112, Mai/Ago.
11“Confraternização” e “sadomasoquismo” são terminologias recorrentes na argumentação de Gilberto
Freyre. Através delas ele procurou pensar a formação do Brasil por meio de um entrelaçamento entre
violência e afeto, entre o sadismo do senhor branco e o masoquismo da mulher negra e índia. Estas ideias
ainda se mostram bastante problemáticas, já que intui certa condescendência, docilidade e imobilismo do
elemento escravizado, que na maior parte das vezes simplesmente “aceitaria”, sem grandes dificuldades, a
sua condição de subalternidade e de extrema desumanização.
12 Embora negasse que no país existisse uma “democracia racial”, Darcy Ribeiro se aproximava de
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Gilberto Freyre no que diz respeito ao aspecto da formação étnica brasileira, considerando-a basicamente
mestiça. Assim sendo, “a democracia racial é possível, mas só é praticável conjuntamente com a
democracia social” (RIBEIRO, 2006, p.208). Para maiores informações recomenda-se consultar:
RIBEIRO, Darcy. 2006. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras.
13 De acordo com Cláudia Castelo (1999), já possível encontrar os primeiros elementos da doutrina
“luso-tropical” no livro “Casa-Grande e Senzala”, publicado por Gilberto Freyre em 1933, mas será
somente em 1953, com a publicação do livro “Um brasileiro em terras portuguesas”, que Gilberto Freyre
citou e buscou desenvolver pela primeira vez esta ideia. Para maiores esclarecimentos, ver: CASTELO,
Cláudia. 1999. O Modo Português de Estar no Mundo: O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Colonial
Portuguesa (1933-1961). Porto, Edições Afrontamento.
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mais como um verniz que ocultava o racismo do que como uma concepção que agisse no
sentido de integrar democraticamente o país, rompendo, por assim dizer, com o discurso
naturalizado. Esse uso inadequado, tomado por “essência” e pouco vinculado com as
condições históricas, é comumente identificado como “democracia racial”. Nas palavras
de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães:
Qualquer estudo sobre o racismo no Brasil deve começar por notar que o
racismo no Brasil é um tabu. De fato, os brasileiros se imaginam numa
democracia racial. Essa é uma fonte de orgulho nacional, e serve, no nosso
confronto e comparação com outras nações, como prova inconteste de nosso
status de povo civilizado (GUIMARÃES, 2005, p.39).
A permanência das percepções que condiziam com a ausência de racismo no Brasil
deixava os negros em um dilema: ao mesmo tempo em que sofriam com as manifestações
racistas, era difundida a noção, no meio intelectual e político, que não havia discriminação
racial no Brasil. Nesse contexto, teve-se a ampliação, ainda na década de 1930, dos
movimentos negros, que lutavam a favor da igualdade racial e da busca pelos mesmos
direitos que os brancos. Além dos trabalhos realizados por Gilberto Freyre, observou-se
uma presença maciça de outros estudiosos, alguns deles estrangeiros, que nutriam
curiosidade pelo tema, como é o caso de Donald Pierson (1900-1995). Muitos afirmavam
que no Brasil não existia preconceito de “raça” e sim de “classe”. Pierson, estudioso da
Escola de Chicago, talvez seja o principal representante dessa corrente. Ele veio dos
Estados Unidos para analisar nossa problemática racial. Defendeu a ideia de que com a
passagem do regime escravista para a sociedade de classes “a identificação social baseada
em raça não passara a definir as oportunidades de vida das pessoas, quer em termos
econômicos, quer em termos de honra social, quer em termos de poder” (GUIMARÃES,
1999, p.150).
Uma das principais consequências do estudo de Pierson foi apontar a percepção
de que no Brasil as “raças” não existiriam e de que o que importava em termos de
oportunidades de vida era a classe social. O problema desta definição, contudo, é que a
postura anti-racialista de negação da existência de “raças” “fundiu-se rapidamente com
uma política de negação do racismo como fenômeno social. Entre nós existiria apenas
“preconceito”, ou seja, percepções individuais equivocadas, que tenderiam a ser
corrigidas na continuidade das relações sociais” (GUIMARÃES, 1999, p.149). Conforme
diz Guimarães (1999, p.150-151), Pierson acreditava que o Brasil seria uma “sociedade
multirracial de classes”, não havendo barreiras ao convívio e à mobilidade social entre
brasileiros de diversas origens étnico-raciais que pudessem ser atribuídos à “raça”,
tornando mais compreensíveis os problemas decorrentes da ordem econômica e cultural.
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Este autor também utilizou a categoria nativa de “cor” como substituta do termo “raça”,
o que supostamente evidenciaria a ausência de grupos sociais que pudessem ser descritos
com precisão em termos raciais e que fizessem uso, na vida social e política, de
identidades raciais.
Anos depois, Florestan Fernandes (1920-1995), sociólogo paulista e um dos
fundadores da Sociologia Crítica no Brasil, desenvolveu, principalmente a partir da
década de 1950 e 1960, fortes argumentos contrários às ideias de Donald Pierson como
também aos estudos realizados por Gilberto Freyre referentes ao processo de
“miscigenação”14. Suas análises se direcionavam no sentido de demonstrar que a
passagem da ordem escravocrata para a sociedade de classes conservara, de certo modo,
o sentido hierárquico e a ordem racial da sociedade escravocrata, assim como o fato de
que “os negros foram integrados de um modo subordinado e tardio à sociedade de classes,
sendo o “preconceito de cor” a expressão da resistência das classes dominantes brasileiras
a se adequar à nova ordem competitiva” (GUIMARÃES, 1999, p. 152). Assim sendo, a
população negra deveria se reconhecer como “raça” e como “classe”, ou seja, o negro
precisaria se afirmar enquanto tal, criar consciência de sua condição marginal para, a
partir daí, imergir como sujeito na sociedade de classes. Consideremos o trecho abaixo:
O dilema racial brasileiro é um fenômeno estrutural e dinâmico que se
concretiza em diversos níveis das relações raciais. Ele consiste na
desqualificação do negro (preconceito) em razão de sua condição social
(desigualdade) e, ao mesmo tempo, na sua impossibilidade de superá-la por
deparar-se com barreiras diversas (discriminação) que levam à reprodução do
ciclo de desigualdades raciais. Em outras palavras, o dilema racial se exprime
dramaticamente na necessidade do negro em afirmar-se coletivamente como
raça para poder participar igualitariamente da ordem social competitiva
(SOARES, 2011b, p.35).
Em “A integração do negro na sociedade de classes” (2008), obra escrita mediante uma
análise profunda da situação do negro, Florestan Fernandes nos mostra como a estrutura
econômica e política da década de 1960 aos poucos se integrava a “ordem social
competitiva” e que determinados grupos da sociedade não estavam acompanhando o
ritmo das mudanças. Esta ordem, propriamente burguesa e aquisitiva, baseia-se numa
ética racional de competição e luta por posições no mercado e na produção, de onde
14 É necessário afirmar que para além dos estudos raciais a atuação de Florestan Fernandes “transcende a
esfera do indivíduo que se destaca e o projeta em um trabalho coletivo que visa a construção de um
padrão científico para o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil” (SOARES, 1997, p.50).Se junta
a tais fatores a importância da militância política na sua trajetória intelectual, o que veio a contribuir na
construção de um pensamento engajado e comprometido na compreensão dos grandes dilemas brasileiros.
Para maiores informações, consultar: SOARES, Eliane Veras. 1997. Florestan Fernandes: o militante
solitário. São Paulo: Cortez.
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seria desconfortável para pessoas que vivem em uma sociedade de tradição católica, como
é o caso do Brasil, afirmar seu preconceito abertamente, pois isto causaria o horror de
outras pessoas, mesmo que, paradoxalmente, estas também possuam comportamentos e
práticas preconceituosas (FERNANDES, 2007). O preconceito racial e de cor, é, portanto,
“condenado sem reservas, como se constituísse um mal em si mesmo, mais degradante
para quem o pratique do que para quem seja sua vítima” (FERNANDES, 2007, p.41).
Percebe-se que, diferente do que afirma o mito da “democracia racial”, a miscigenação
“contribuiu para aumentar a massa da população escrava e para diferenciar os estratos
dependentes intermediários que para fomentar a igualdade racial” (FERNANDES, 2007,
p.44). Nessa relação contraditória, o negro convive em uma sociedade construída
historicamente pelo branco e para o branco, surgindo daí a conhecida expressão “negro
de alma branca”, ou seja, o negro socializado pelos valores brancos.
A perspectiva defendida por Florestan Fernandes nos mostra que mesmo com o
fim da escravidão a ordem social que a pressupunha foi transferida para a sociedade atual,
imersa na sua “ordem social competitiva” e com as desigualdades geradas pelo seu
funcionamento. Portanto, “não poderá haver integração nacional, em bases de um regime
democrático, se os diferentes estoques raciais não contarem com oportunidades
equivalentes de participação das estruturas nacionais de poder” (FERNANDES, 2007,
p.51). Negar a existência do racismo e das desigualdades sociais por ele geradas foi por
si só uma atitude racista, que suscitou e ainda suscita o incômodo para a população negra.
Outras pesquisas, porém, realizadas no final dos anos 1970, mostraram que o
problema do negro no Brasil não seria, em grande medida, resolvido apenas com sua
integração na sociedade de classes. Segundo Guimarães (1999, p.154-155), estudiosos
como Nelson do Valle e Silva e Carlos Hasenbalg 15, por exemplo, recuperaram os
trabalhos de alguns autores que se dedicaram ao exame das relações entre classe e grupos
de cor nos anos 1950, entre eles Florestan Fernandes, Roger Bastide, Thales de Azevedo
e Luiz de Aguiar Costa Pinto. Para ambos, as desigualdades entre brancos e negros
apresentavam um componente racial inequívoco que não poderia ser reduzido às
diferenças de educação, renda, classe, e nem muito menos diluído num gradiente de cor.
15 Para este autor, em um mesmo estrato social o negro se depara com maiores dificuldades de ascender
socialmente e de disputar as mesmas oportunidades de emprego que o branco. Isso quer dizer que mesmo
o negro rico, quando comparado com o branco bem sucedido da mesma classe social, encontra entraves e
tratamentos diferenciados (HASENBALG, 1979). A este respeito, consultar: HASENBALG, Carlos.
1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.
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16 Foi um conceito desenvolvido pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) para se referir a formas
tradicionais de dominação pré-burocrática que contrastavam com o Estado racional-legal. Este fenômeno
é visto como o alargamento ou extensão da estrutura patriarcal de dominação, isto é, uma forma estrutural
e prototípica de autoridade baseada na tradição, resultando na sobreposição do privado em relação ao
público (WEBER, 1991). No Brasil, tal discussão perpassou as obras de nossos principais intérpretes,
muitos dos quais atribuíam ao patrimonialismo a causa original do nosso subdesenvolvimento histórico,
gestado desde o início da colonização portuguesa. Para Jessé Souza (2015), esta tese já pode ser
encontrada de forma esparsa no pensamento de Gilberto Freyre, vindo a receber dos sociólogos Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982), no livro “Raízes do Brasil” (1936) e Raymundo Faoro (1925-2003), no
livro “Os donos do poder” (1958), um tratamento conceitual mais elaborado e sistemático. Entre nós,
contudo, o principal paradoxo desta interpretação estaria em observar, consciente ou inconscientemente, a
corrupção apenas no Estado, ignorando-a ou ocultando-a no âmbito do Mercado. Como consequência, o
bem público é demonizado e torna-se refém dos interesses privados, corroborando com a manutenção dos
privilégios da “elite do dinheiro”. Para mais informações recomenda-se consultar: WEBER, Max. 1991.
Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF; Editora da Universidade
de Brasília. Ver também: SOUZA, Jessé. 2015. A Tolice da Inteligência Brasileira: como o País se deixa
manipular pela elite. São Paulo: Casa da palavra.
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problemática racial, a divisão social das classes é naturalizada por um conjunto de práticas
que ocultam a “determinação histórica ou material da exploração, da discriminação e da
dominação, e que, imaginariamente, estruturam a sociedade sob o signo da nação una e
indivisa, sobreposta como um manto protetor que recobre as divisões reais que a
constituem” (CHAUI, 2000, p.88). Além da negação ou abrandamento de práticas racistas
e discriminatórias, muitas delas erigidas pela ideia da “miscigenação” racial e cultural, a
sociedade brasileira não historiciza o seu próprio autoritarismo, camuflando seus
principais dilemas e contradições.
5. Conclusão
Os conteúdos discutidos ao longo deste artigo buscaram problematizar,
sinteticamente, os desafios, limites e possibilidades acerca dos conceitos de “raça” e
“miscigenação”, observando suas implicações sociológicas na análise das nossas relações
raciais, entre as quais se encontra a controversa noção de “democracia racial”. Procurou-
se, para tanto, entender determinados aspectos históricos e a dinâmica social do racismo
no Brasil, desde o impacto das teorias raciais do século XIX até a adoção de um ideário
“culturalista” que passava a negar a existência biológica das “raças”, mas (re)afirmava,
por outro lado, a concepção de que seríamos uma mistura harmoniosa de diferentes povos
e culturas. Gilberto Freyre foi identificado como o principal representante deste viés
“culturalista”, através do qual nossos dilemas raciais estariam inseridos no interior de um
processo de amalgamento e confraternização, constituindo-se, portanto, num sistema de
“oposições em equilíbrio”.
A desconstrução do “mito da democracia racial” só surgiu tardiamente no
ambiente acadêmico, transformando-se numa questão não resolvida e que suscita novos
debates e discussões. Nos últimos anos, conforme diz Guimarães (1999, p.153-156),
tornou-se necessário teorizar as “raças” como o que elas são, isto é, construções sociais e
formas de identidade baseadas numa concepção biológica errônea, porém socialmente
eficiente. Se as “raças” não são um fato do mundo físico, são, entretanto, plenamente
existentes no mundo social, como maneiras de classificar e de identificar as ações que
orientam os seres humanos. A inexistência biológica das raças passou a servir como um
discurso ideológico de negação do racismo, o que acabou contrariando os valores e
interesses do povo negro brasileiro, que ressuscitou o conceito de “raça” como uma forma
de resistência e de denúncia ao racismo estruturante.
Com isso, o atrito “entre um ideário anti-racista, que corretamente negava a
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existência biológica das raças, e uma ideologia nacional, que negava a existência do
racismo e da discriminação racial, acabou por se tornar insuportável para todos e
insustentável pelos fatos” (GUIMARÃES, 1999, p.153). Ainda hoje convivemos com
uma equivocada concepção de harmonia racial e de integração pacífica e ordeira entre as
diferentes classes sociais. Naturalizada pela vaga ideia de uma “identidade nacional” una
e indivisa, que oculta os interesses e as relações de poder dos setores dominantes e
privilegiados, a problemática racial brasileira segue lidando com novos dilemas e
situações. Conclui-se, portanto, com a premissa de que as noções de “raça” e
“miscigenação” devem ser estudadas com cuidado e rigor, evitando, por assim dizer, que
suas implicações possam vir a contribuir na formação de outras desigualdades.
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