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Ex Corde 1

A CONFISSÃO DE FÉ DE NEW HAMPSHIRE


NOS PRIMÓRDIOS BATISTAS NO BRASIL

Gilson Santos

“É talvez desejável que cada igreja e cada indivíduo tenham, cuidadosamente desenvolvido e
escrito, em concisa e expressiva linguagem, o que entendem que as Escrituras lhes ensinam.”
(Edward T. Hiscox, The Baptist Church Directory)

Ainda não sabemos se os batistas norte-americanos em Santa Bárbara d´Oeste, São


Paulo, quando da organização de suas igrejas, adotaram alguma Confissão de Fé.1 A primeira
informação que temos a respeito de uma Confissão de Fé entre os batistas no Brasil consta
da organização da Primeira Igreja Batista na Bahia. A ata da assembléia de instalação da
Primeira Igreja Batista em Salvador, de 15 de outubro de 1882, narra:

Depois de instalada a Igreja com os cinco membros supramencionados, adotamos


unanimemente a “Confissão de Fé”, chama-se "The New Hampshire" Confissão de
Fé, como praticada geralmente pelas Igrejas Batistas (...).2

Assim, pode-se perceber a importância que terá a aludida Confissão de Fé no início do


trabalho batista no Brasil. Por esta época, a Confissão de New Hampshire ganhara bastante
notoriedade entre os batistas norte-americanos, tornando-se amplamente conhecida e
adotada por várias igrejas e instituições no sul, particularmente no sudoeste.
Do termo de organização da Igreja Batista no Rio de Janeiro, em 1884, consta o
seguinte:

1
Betty Antunes de Oliveira é a historiadora que levantou o melhor acervo documental acerca das Igrejas de
Santa Bárbara e Estação de Santa Bárbara, tendo realizado profundo, abrangente e competente trabalho de
pesquisa historiográfica. Seu cuidadoso e metódico trabalho reuniu um número abundante de fontes primárias.
Cf. OLIVEIRA, Betty Antunes de Oliveira. Centelha em Restolho Seco; Uma contribuição para a História dos
Primórdios do Trabalho Batista no Brasil. São Paulo: Edições Vida Nova, 2005, 768 p. Questionada acerca da
Confissão de Fé adotada pelos batistas em Santa Bárbara, Betty Oliveira escreveu ao autor deste artigo em 29
de janeiro de 2005: “Respondo à sua pergunta sobre Confissão de Fé: não encontrei nada, nem mesmo em
mala velha em sótão de casa antiga, como não localizei pedaços de livros de Atas das duas igrejas de Santa
Bárbara, SP; nem no arquivo da Junta [de Richmond], nos EUA. (...) O tempo e buscas poderão ainda trazer
documentos que estão guardados em algum lugar”.
2
Cf. Livro do Centenário da Primeira Igreja Batista do Brasil (1882 – 1982). Salvador: Primeira Igreja Batista, 81
p. Itálicos nossos. Cf. ainda OLIVEIRA, op. cit., pp. 282-284.

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Ex Corde 2

Os abaixo assinados, membros da Igreja Batista em plena união, tendo se


reunido com o propósito de formarem uma Igreja Batista de Cristo organizada
pela adoção de um Pacto e Artigos de Fé, deliberaram, segundo moção
apresentada, denominar a Igreja organizada - A Primeira Igreja Batista do Rio de
Janeiro (...).3

Na seqüência, estão o Pacto, os Artigos de Fé e as assinaturas dos membros


organizadores. O Pacto adotado inicia com uma referência
à graça de Deus, tal como se pode ver: "Tendo sido, como
confiamos, trazidos pela graça divina a abraçar o Senhor
Jesus Cristo e dar-nos inteiramente a Ele, pactuamos agora
solene e alegremente uns com os outros, a andar juntos a
Ele em amor fraternal, para sua glória, como Senhor de
todos nós". Também encerra-se falando da graça:
"procuraremos em todas as condições e circunstâncias até
à morte, viver para a glória d'Aquele que nos tem chamado
das trevas à sua maravilhosa luz".4

1. RAZÕES PARA A CONFISSÃO DE FÉ

Ao registrar-se o teor de organização da igreja no Rio


de Janeiro, fez-se a apresentação dos Artigos de Fé, ali
chamados de Doutrinas Bíblicas Ensinadas pela Igreja
Batista. A introdução consiste numa tradução literal do
capítulo XVI da obra de Edward Thurston Hiscox (1814-1901), The Baptist Church Directory.5
Na ata de organização da Igreja no Rio, os membros fundadores da Igreja fizeram suas as
palavras de Hiscox. E por estas palavras, a justificativa para a adoção dos artigos de fé.

Todas as igrejas cristãs evangélicas professam receber as Escrituras Sagradas


como seu único e suficiente guia em matéria de fé e doutrina. O crer que a Bíblia
ensina a este respeito - nem mais, nem menos - é o crer direito - nem mais nem
menos.
É contrário à consciência instruída e ao juízo de cada cristão, que qualquer igreja
ou indivíduo forme um credo religioso, separado e independente da Bíblia, e
requeira de cada membro d'uma igreja assentir e subscrever aquele, não
obstante tal credo seja fundado manifestamente sobre as Escrituras, e em muitas
cousas em concordância com Elas. Se um crê o que a Bíblia ensina, e como a
Bíblia ensina, ele crê suficiente.

3
Cf. AZEVEDO Israel Belo de. “Coluna e Firmeza da Verdade”; História da Primeira Igreja Batista do Rio de
Janeiro (1884-1984). Rio de Janeiro: Primeira Igreja Batista, p. 140.
4
Idem, p. 141.
5
Edward T. Hiscox apensou a Confissão de Fé de New Hampshire em seu Standard Manual e em seu New
Directory, fazendo ampliações em cada tempo. De fato, o inteiro capítulo de Hiscox sobre as “Doutrinas” da
igreja serviu de base para o trabalho de tradução da Confissão de Fé de New Hampshire, que foi empreendido
especialmente por Zachary C. Taylor (1850-1919).

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Mas porque diferentes pessoas entendem e interpretam diferentemente a Bíblia,


e desenvolvem doutrinas contraditórias das mesmas Escrituras, é talvez desejável
que cada igreja e cada indivíduo deve ter desenvolvido e escrito cuidadosamente
em concisa e expressiva linguagem, o que eles entendem as Escrituras ensinar-
lhes. Estes artigos algumas vezes chamam-se "Confissões de Fé". Eles são os
ensinos entendidos da Bíblia, expressos talvez em outras do que as palavras da
Bíblia, para conveniência, e são importantes como um estandarte de referência e
informação, brevemente exprimindo e explanando o que se crê serem as
doutrinas fundamentais ensinadas nas Escrituras, e são também um método
conveniente de determinar, quer a fé de outros concorde com a sua, quer seja
contrária.6

Ao fazerem suas as palavras de Hiscox, os fundadores da igreja refletiram nelas alguns


princípios que viriam caracterizar o uso das Confissões de Fé entre os batistas brasileiros. O
que podemos observar no texto acima?
Primeiramente, assevera-se a supremacia e suficiência da Escritura. Diz o texto que a
Escritura é o "único e suficiente guia em matéria de fé e doutrina"; que se alguém "crê o que
a Bíblia ensina, e como a Bíblia ensina, ele crê suficiente." A este
respeito, Van Ness escreveu em seu pequeno livro: “Assiste a
qualquer batista o direito de, em qualquer tempo, apelar da
Declaração de Fé para a Bíblia, e em casos de disciplina, o direito de
apelar para as Escrituras jamais se perdeu (...). A Bíblia é nosso
recurso final”.7 Portanto, desde o início da obra missionária no Brasil,
foi enfatizada a suficiência e total liberdade da Palavra de Deus para
legislar em matéria de fé e doutrina. Afirma-se, assim, o princípio de
Sola Scriptura, tão caro ao povo de Deus, mormente depois da
Reforma.
Em segundo lugar, vê-se a intenção de deixar claramente
exposto o quão detestável é forçar a consciência do indivíduo,
impondo-lhe qualquer credo. A autoridade reside apenas na Escritura. E nem mesmo ela
pode ser imposta por elementos coercitivos. Apanágio histórico batista é a inalienável
liberdade de consciência e plena liberdade de religião a todas as pessoas. Impor um credo a
alguém seria – como disseram os irmãos que deram início ao trabalho batista no Rio de
Janeiro – "contrário à consciência instruída e ao juízo de cada cristão”. A nação norte-
americana, reagindo contra a união da Igreja com o Estado, nasceu com forte rejeição à idéia
de uma igreja nacional, em que esta, recorrendo ao braço civil, impõe o seu credo religioso
particular, ainda que “este seja fundado manifestamente sobre as Escrituras, e em muitas
cousas em concordância com Elas”.

6
Conforme fac-símile da ata fornecido ao autor deste artigo pela Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro.
Fizemos apenas a atualização ortográfica, embora mantendo a original estrutura de linguagem. O texto
consiste da tradução literal dos três primeiros parágrafos do capítulo XVI do livro de Hiscox. Cf. HISCOX, Edward
T. The Baptist Church Directory; A guide to the doctrines and practice of Baptist Churches. New York: Sheldon
and Company, 1870, pp. 152-153. Livro originalmente publicado em 1859.
7
NESS, I. J. Van. Treinamento dos Membros da Igreja. 6. ed. Trad. Almir S. Gonçalves. Rio de Janeiro: Casa
Publicadora Batista, 1959, p. 17.

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Vê-se também na atitude daqueles irmãos – bem como na organização da Igreja na


Bahia – a clara opção por adotar-se uma confissão escrita e resumida de suas doutrinas
fundamentais. Certamente que a adoção de "confissões de fé" entre os batistas era prática
bastante antiga. Na Inglaterra, as primeiras igrejas batistas no século XVII já adotavam uma
confissão escrita da sua fé. E ao longo da história dos batistas muitas Confissões de Fé têm
sido elaboradas em diferentes épocas e lugares. Todavia, houve momentos em que alguns se
opuseram à utilização de qualquer confissão de fé escrita, que não somente a Bíblia. O
reconhecimento do fato de que as confissões podem errar, combinado com a lealdade
protestante à Escritura, levou especialmente alguns grupos independentes a desprezarem
por completo as confissões. Um clamor pela aceitação desse ponto de vista, cuja
popularidade aumentou nos Estados Unidos durante o começo do século XIX, tem sido o
lema: “Nenhum credo senão a Bíblia”. Aqui no Brasil, entretanto, os pioneiros do trabalho
batista, ainda que de forma cautelosa, entenderam ser melhor utilizar uma Confissão de Fé
escrita: “É talvez desejável que cada igreja e cada indivíduo deve ter...” (itálicos nossos). Esta
é a posição que prevalecerá ao longo de toda a história batista brasileira.
Uma outra observação que podemos fazer é quanto à opção dos batistas brasileiros,
já mesmo no princípio, por uma confissão de fé mais concisa: “É talvez desejável que cada
igreja e cada indivíduo deve ter desenvolvido e escrito cuidadosamente em concisa e
expressiva linguagem... brevemente exprimindo e explanando o que se crê serem as
doutrinas fundamentais nas Escrituras” (itálicos nossos). Há, na história dos batistas,
Confissões de Fé relativamente abrangentes e mais extensas. Um exemplo delas é a
Confissão de Filadélfia, a versão norte-americana da Confissão Londrina de 1689. Aqui,
porém, preocupou-se com a concisão da confissão de fé. E buscando isso, entre outros
fatores, optaram pela Confissão de New Hampshire. Ela é breve e específica. O historiador
Torbet, dissertando sobre o princípio da supremacia das Escrituras, chega a expressar a
opinião de que a Confissão de New Hampshire "fornece a mais específica de todas as
afirmações sobre as Escrituras até aí feitas".8 Robert Bratcher, mais tarde, insistirá na
importância de uma Confissão de Fé concisa:

A Confissão de New Hampshire é curta, não curta demais, nem tão longa demais
para ser estudada e conhecida pelos batistas (...). A Confissão de Filadélfia, por
outro lado (...) é demasiadamente longa para uso conveniente entre as igrejas”.9

Porém, o texto de Hiscox transmite, ainda assim, um juízo negativo em relação a


qualquer utilização normativa de credos:
É contrário à consciência instruída e ao juízo de cada cristão, que qualquer igreja
ou indivíduo forme um credo religioso, separado e independente da Bíblia, e
requeira de cada membro d'uma igreja assentir e subscrever aquele, não
obstante tal credo seja fundado manifestamente sobre as Escrituras, e em muitas
cousas em concordância com Elas. Se um crê o que a Bíblia ensina, e como a
Bíblia ensina, ele crê suficiente (itálicos nossos).

8
Cf. FAIRCLOTH, Samuel D. Esboço da História dos Baptistas; Súmula do livro A History of the Baptists, por
Torbet. Leiria, Portugal: Edições Vida Nova, 1959, p. 220.
9
BRATCHER, Robert. “Declaração de Fé dos Batistas Brasileiros”. O JORNAL BATISTA, Rio de Janeiro,
11/dez./1952, p. 2.

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A expressão credo é latina e significa “creio”. E a palavra “confissão”, também de


origem latina, pressupõe a fides quae creditur (a fé em que se crê). Com a Confissão de Fé
estamos dizendo: "Credo, ergo confiteor" (Creio, por isso confesso). O credo não precede à
fé, mas a pressupõe. Neste sentido está correto Philip Schaff (1819-1893) quando diz que,
em certo sentido, a Igreja Cristã nunca existiu sem um credo (Ecclesia, sine symbolis nulla).10
O valor de uma confissão é permanente, e reside no fato de que um documento
confessional estimula a clareza de crença e a franqueza no debate teológico. A relação
destes documentos com a Escritura é resumida pela Fórmula de Concórdia (1580): “Não são
juízes como o é a Sagrada Escritura (...) mostram como em cada tempo a Sagrada Escritura
foi entendida e explicada na igreja de Deus”, e todos os credos, confissões e “outros escritos
dos antigos ou dos novos mestres” da igreja, “não devem ser equiparados à Escritura
Sagrada, porém todos lhe devem ser completamente subordinados”.11
Foi louvável a preocupação de Hiscox em enfatizar que um credo jamais deveria ser
imposto. Isto, em si mesmo, seria uma contradição em termos, pois a fé não pode ser
imposta pela coerção. Hiscox, tal como muitos outros, esposava uma distinção entre “credo”
e “confissão de fé”, evitando com isso a idéia de “dogma”, muitas vezes associada ao
conceito de “credo”. “Poucos grupos têm confessado sua fé tão livremente como os batistas,
mas nenhum grupo tem sido mais relutante em elevar estas confissões em símbolos
autoritativos ou credos”, diz Lumpkim.12 Entretanto, Hiscox era representante de uma
acentuada escrupulosidade a respeito do uso de Confissões de Fé. Ele, assim com outros,
não articulou adequadamente a relação entre a suficiência e autoridade das Escrituras e
textos confessionais. Está correto quando afirma (valendo-nos da tradução dos pioneiros):
“O crer que a Bíblia ensina a este respeito – nem mais, nem menos – é o crer direito – nem
mais nem menos”; e, “Se alguém crê no que a Bíblia ensina, e como a Bíblia ensina, ele crê
suficiente”. Mas seu enfático individualismo o levou a concluir, à beira do simplismo: “É
contrário à consciência instruída e ao juízo de cada cristão, que qualquer igreja (...) forme
um credo religioso (...) e requeira de cada membro d'uma igreja assentir e subscrever
aquele, não obstante tal credo seja fundado manifestamente sobre as Escrituras, e em
muitas cousas em concordância com Elas”.
Como batistas, antes de sermos batizados, precisamos confessar nossa fé. É natural
que a Igreja deseje saber em que cremos. E também é natural que quando nos tornamos
membros da Igreja, queiramos saber em que ela crê. Nas Igrejas Congregacionais e Batistas
os membros estão pactuados, e o pacto é mediado por uma Confissão de Fé corporativa.
Uma igreja batista é comumente organizada nestes termos. É interessante notar que os
membros fundadores da Igreja no Rio fizeram lavrar uma ata, registrando nela o pacto e os
artigos de fé que tinham adotado. E ao final do pacto, firmaram: “E estando todos

10
Cf. SCHAFF, P. The Creeds of Christendom, with a History and Critical notes. Volume I. Londres, 1877.
11 A Fórmula de Concórdia foi elaborada por uma equipe de teólogos luteranos em 1577, e finalmente, em 25
de junho de 1580, cinqüenta anos após o dia da leitura de Confissão de Augsburg diante de Carlos V, o Livro de
Concórdia completo, com todos os manuais e documentos, foi colocado em circulação. É aceito pelos
Luteranos como exposição correta das Sagradas Escrituras. Cf. LIVRO DE CONCÓRDIA, As Confissões da Igreja
Evangélica Luterana. 4. ed. Tradução e notas de ARNALDO SCHÜLER. São Leopoldo: SINODAL / CONCÓRDIA,
1993, 686 p.
12
LUMPKIM, William L. "Baptist Confessions of Faith". In: Encyclopedia of Southern Baptists; A comprehensive
Supplement Updating. Nashville: Broadman Press, 1958, vol. I, pp. 305-306.

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conformes com este Pacto e os Artigos de Fé transcritos e fixados neste livro passamos a
(sic) assiná-los”.13
A Confissão de Fé é a transposição para o papel das convicções bíblicas; reflete uma
honestidade e determinação em confessar e expor firmemente nossas doutrinas. A
Confissão de Fé é fruto de uma Bíblia aberta, lida e explicada! A leitura da Escritura requer
uma interpretação. Quando a lemos, naturalmente, interpretamos. Uma igreja não pode
seguir cegamente a interpretação particular de nenhum erudito (mesmo o mais preparado),
nem mesmo entregar-se à confusão individualista de múltiplas interpretações particulares,
porém conscientemente seguir o consenso. As figuras bíblicas de Igreja, tais como “corpo”,
“família” e “edifício” requerem isto.
As Confissões de Fé, naturalmente, são composições humanas e, portanto, de
autoridade limitada e relativa. Elas não se coordenam com a Escritura, mas sempre se
subordinam a ela. A Bíblia é sempre a regra infalível de fé e prática, e o “último tribunal de
recursos”. E o valor da Confissão de Fé dependerá da medida de sua concordância com as
Escrituras. No melhor dos casos, o credo humano é apenas uma aproximada e relativamente
correta exposição da verdade revelada, e pode ser proveitoso para o progressivo
conhecimento da Igreja, enquanto a Bíblia permanece perfeita e infalível. “A Bíblia é de
Deus; a Confissão é a resposta do homem à palavra de Deus”, diz Schaff.14

A Bíblia é a norma normans; a Confissão a norma normata. A Bíblia é a regra de fé


(regula fidei); a Confissão a regra de doutrina (regula doctrinæ). A Bíblia tem,
portanto, a divina e absoluta, enquanto a Confissão, uma eclesiástica e relativa
autoridade (...). Uma exagerada visão da autoridade dos símbolos não é
protestante e essencialmente Romanizante. Simbolatria é uma espécie de
idolatria, e substitui um papa vivente pela tirania de um livro impresso. Isto é
próprio para produzir a oposição extrema de rejeição a todos os credos, e
promove o racionalismo e a infidelidade.15

Finalmente, embora amparado num raciocínio não muito claro, pode-se ver que o uso
prático das Declarações de Fé entre os batistas no Brasil será mais no campo apologético.
Pensa-se na Confissão como um recurso para a expressão da identidade. Porém, uma
identidade que se firma a partir da distinção. Por que uma Confissão de Fé? A resposta:
"porque diferentes pessoas entendem e interpretam diferentemente a Bíblia, e
desenvolvem doutrinas contraditórias das mesmas Escrituras". E ainda mais: "são
importantes como um estandarte de referência e informação". E finalmente: "são também
um método conveniente de determinar, quer a fé de outros concorde com a sua, quer seja
contrária". Primariamente (embora não exclusivamente), pensa-se entre os batistas no Brasil
que a Confissão de Fé presta-se para estabelecer a nossa distinção dos demais.16
Desenvolveu-se aqui uma concepção de uso da Confissão de Fé, não tanto como um
instrumento de edificação, didático, catequético, ou um guia para a ministração pastoral,
mas um recurso para o tempo da polêmica. Uma ferramenta eventual, e não para o dia-a-

13 Cf. AZEVEDO, op. cit., p. 141.


14
SCHAFF, op.cit.
15
Ibidem. Tradução nossa
16
Mais tarde, entre alguns batistas no Brasil, a Confissão de Fé prestar-se-á quase que somente para a
salvaguarda de patrimônio imobiliário.

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dia. Raramente se atribuirá à Confissão de Fé um papel propedêutico, e pouquíssimos serão


aqueles que dela se utilizarão numa dimensão formativa.
Ironicamente, a Confissão de Fé não conduziu ao pretendido efeito de constituir-se
num “estandarte de referência e informação”. É bom nos lembrarmos que naqueles tempos
o elemento catalisador de unidade era o fator “denominacional”. A unidade entre as igrejas
dava-se mais propriamente no campo “denominacional” (derivado) do que num reflexivo
“confessional” (primário). Mais tarde, o caráter “denominacional” adquirirá também um
forte aspecto “institucional”. O tempo chegará, entretanto, em que o fator
“denominacional” ou “institucional” não mais será o principal catalisador de unidade. E não
havendo a denominação apoiado-se, de forma consciente e objetiva, numa base
confessional, o que lhe restará será uma pulverização doutrinal e prática. Lamentavelmente,
o entendimento reproduzido pelos pioneiros, conquanto cauteloso, tendeu para um prejuízo
no Brasil, principalmente em nosso tempo em que a decadente sociedade pós-moderna é
marcada por relativismo, individualismo e misticismo. A questão avançou a ponto tal que,
recentemente, um conhecido líder batista no Brasil chegou a dizer: “Não assino em baixo de
nenhuma Confissão. Teologia deve ser feita no quadro negro e escrita com giz (sic)"! Este
mesmo líder, trinta anos antes, era a quarta pessoa a subscrever (“assinar em baixo de”)
uma Declaração Doutrinária!

2. DESFAZENDO UM EQUÍVOCO

Cinco dias após a organização da Igreja no Rio, W. B. Bagby (1855-1939) escreveu uma
carta à Junta de Richmond:

Rio de Janeiro, Brazil - 29 de agosto de 1884

Prezado Dr. Tupper


Terás prazer em saber que a Primeira Igreja Batista do
Rio de Janeiro foi organizada no último dia do Senhor!
Nós nos organizamos com quatro membros (...).
Adotamos os artigos de Fé de Filadélfia. Esperamos que o
nosso pequeno grupo venha a crescer logo em número e
poder como a igreja na Bahia (...).
Não acho que a Junta venha um dia se arrepender de se
ocupar com esta grande capital, com suas dezenas e
centenas de milhares que estão sem Cristo. Certamente
Deus tem muita gente nesta vasta multidão.17
Interessante notar que Bagby, ao referir-se à Confissão de Fé adotada, menciona-a
como "Artigos de Fé de Filadélfia". Não sabemos ao certo a razão para isto.18 Mais tarde, o
17
Carta endereçada aos cuidados de Dr. Henry Allen Tupper (1828-1902), Secretário Correspondente da Junta
de Missões Estrangeiras da Convenção Batista do Sul (“Junta de Richmond”). Ele serviu de 1872-1892. Cf.
AZEVEDO, op. cit., p. 142. Itálicos nossos.
18
De fato, foi de Filadélfia que a Confissão de New Hampshire difundiu-se pelos Estados Unidos. Em 1853, o
pastor J. Newton Brown (1803-1868), Secretário Editorial da Sociedade Publicadora Batista Americana
(American Baptist Publication Society), publicou a Confissão de Fé de New Hampshire no Manual da Igreja

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Ex Corde 8

historiador A. R. Crabtree (1889-1965), utilizando-se provavelmente da carta de Bagby,


refere-se à Confissão da mesma maneira19, fato que tornar-se-á a repetir com outros
autores.
Tal referência à Confissão de Fé de New Hampshire (como
"Artigos de Fé de Filadélfia") propiciou ou conduziu a dois tipos de
equívocos. O primeiro foi que alguns passaram a confundir a
Confissão de New Hampshire com a Confissão de Filadélfia (versão
norte-americana da Confissão Londrina de 1689). E o segundo
equívoco foi a suposição de que, diferentemente da maioria das
igrejas organizadas nos primórdios, a Primeira Igreja do Rio tenha
adotado a Confissão de Filadélfia, e não aquela.
Salomão Ginsburg (1867-1927), na sua autobiografia20, diz
que foi Zachary Taylor quem fez a tradução da "Confissão de Fé de
Filadélfia", enganando-se, entretanto, nesta identificação da
Confissão. Alguns outros estudiosos e líderes batistas cometeram o
mesmo equívoco. Certa ocasião conversava com um líder batista no Brasil, conhecedor
como poucos de nossa história, e pude indagar-lhe sobre a Confissão de Fé de Filadélfia.
Disse-me ele que a Confissão de Filadélfia é a mesma (sic) Confissão de New Hampshire. De
fato, ele desconhecia totalmente o teor da primeira. Mesmo Israel Belo de Azevedo, em sua
valiosa história da Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro, não foi completamente feliz na
identificação da Confissão de Fé.21
Outros, embora sabendo fazer a distinção entre as duas Confissões de Fé, talvez por
não haverem buscado os textos originais de organização da Primeira Igreja do Rio,
cometeram o equívoco de supor que a Confissão de Fé por ela adotada foi a Confissão de
Filadélfia, de 1742. Robert G. Bratcher, professor do Seminário do Sul, escreveu em 1952 n'O
Jornal Batista:

Interessante é notar que a Primeira Igreja do Rio, fundada em 1884, adotou a


Confissão de Fé "Filadélfia" (desde então, entretanto, segundo os Estatutos de
1914, ela adotou a Confissão "New Hampshire": "Art. 2.o Esta Egreja adopta a

Batista (The Baptist Church Manual), livro largamente divulgado nos Estados Unidos. Portanto, de Filadélfia,
onde estava sediada a Sociedade Publicadora, esta Declaração de Fé foi amplamente disseminada, tornando-se
nacionalmente conhecida. Posteriormente foi publicada em várias outras obras.
19
CRABTREE, A . R. História dos Baptistas do Brasil até o ano de 1906. Vol. I. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1937, p. 75. O historiador menciona que três novos convertidos uniram-se ao rebanho no Rio,
"animando e fortalecendo a pequena igreja que adotara os artigos de fé de Filadélfia e nutria a esperança de
crescer como crescera a igreja da Bahia" (itálicos nossos).
20
Cf. GINSBURG, Salomão. Um Judeu Errante no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1970, p.
72. Obra escrita em inglês em 1921, e traduzida para o português em 1931 por Manuel Avelino de Souza
(1886-1962). Original: A Wandering Jew in Brazil: An Autobiography of Solomon L. Ginsburg. Nashville: Sunday
School Board, Southern Baptist Convention, 1922.
21
Ao referir-se a Confissão de Fé prevista nos estatutos da igreja, foram registradas informações mal
relacionadas: "Trata-se da Confissão de Fé de New Hampshire, como declarado nos mesmos Estatutos, e que
foi promulgada nos Estados Unidos, em 1832, pelas Igrejas Batistas do estado de Filadélfia (sic)." Cf. AZEVEDO,
op. cit., nota 1, capítulo 4, p. 118.

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Ex Corde 9

Confissão de Fé das Egrejas Baptistas orthodoxas, como a de New Hampshire e


não poderá ser mudada".22

Mesmo Reis Pereira, figura de raro domínio da história batista


no Brasil, durante algum tempo esteve equivocado a este respeito:

Nós os batistas temos a Bíblia como a única regra de fé e


prática. Dizem que os batistas não têm credos e
confissões. Nós batistas temos confissões. Temos, por
exemplo, a Confissão de Filadélfia (1742) (...). Temos a
Confissão de New Hampshire (1833) (...). Há uma série de
outras confissões batistas. A 1.a Igreja Batista do Rio
aceita a Confissão de Fé de Filadélfia. A Convenção Batista
Brasileira adota a de New Hampshire – Declaração de Fé
das Igrejas Batistas do Brasil. 23

Contudo, este último equívoco – supor que a Primeira Igreja Batista do Rio de Janeiro
subscrevia uma Confissão de Fé que não a mesma adotada pela Convenção – trazia
subjacente o assentimento com uma verdade: uma igreja local, ainda que cooperante com a
Convenção, poderia adotar para si mesma uma outra Confissão de Fé Batista que não
exatamente aquela subscrita pelo corpo convencional (no caso, a Confissão de New
Hampshire). Para aqueles que cometeram o equívoco supracitado, o fato de uma Igreja
cooperante com a Convenção adotar a Confissão de Filadélfia não era algo incompatível.
Bratcher, Reis Pereira e os demais que assim se equivocaram, parecem pressupor esta
legitimidade, embora soubessem dos tons fortemente calvinistas da Confissão de Filadélfia.
Conquanto considerassem tal fato "interessante", sustentaram a liberdade da Igreja local em
“aceitar” uma outra Confissão de Fé Batista. E ainda mais: isto nos sugere sua pressuposição
de que as duas Confissões (Confissão de Filadélfia e Confissão de New Hampshire) tinham
um núcleo comum básico que satisfazia à Convenção, e que uma não estaria em desacordo
essencial com a outra.

3. “DECLARAÇÃO DE FÉ DAS IGREJAS BATISTAS DO BRASIL”

Os pioneiros reconheceram, logo no princípio, a necessidade imperiosa de literatura.


Providenciavam Bíblias, traduziam folhetos e opúsculos que confrontavam os dogmas e

22
BRATCHER, op. cit., p. 1, mantida a ortografia original.
23
Reis Pereira pensou assim durante algum tempo, inclusive quando exercia a cátedra de História Eclesiástica
no Seminário Batista do Sul do Brasil. Como exemplo, estas palavras proferidas em 1963, aos alunos da 3.a
série, quando ministrava uma aula sobre a história dos batistas. O fato é que Reis Pereira persistiu nesse
equívoco, embora W. C. Taylor (1886-1971) já houvesse esclarecido anteriormente, em publicação n´O Jornal
Batista, que a Confissão de Fé da Primeira Igreja Batista do Rio era a Confissão de New Hampshire. Escreveu
Taylor: “Pedi o privilégio de ver a Confissão de Fé adotada na organização da Primeira Igreja Batista desta
cidade, de que faço parte. Está ali no primeiro livro de atas, elegantemente impressa e grudada nas páginas,
desde o princípio. É a segunda igreja organizada no Brasil e sem dúvida a primeira começou assim também, e
centenas de outras. É a forma antiga desta Confissão de Fé no Brasil...”. Cf. TAYLOR, W. C. “Nossa Confissão de
Fé”. O JORNAL BATISTA, Rio de Janeiro, 13/jan./1955.

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práticas católicas, imprimiam catecismos batistas, publicavam livros que narram a história,
expõem princípios distintivos e a eclesiologia batista. Também, sempre que possível,
escreviam artigos nos jornais da época. Zachary Taylor impressiona como o pioneiro no uso
da página impressa; usou-a com grande vantagem para o
estabelecimento das bases futuras do trabalho. Hoje talvez seja
impossível dar a lista completa de livros e folhetos que ele publicou.
Cabe a ele o ter editado o que se supõe ser o primeiro livro dos
batistas brasileiros, isto é, Origem e História dos Batistas.24 Este livro,
escrito em inglês pelo Dr. Samuel Howard Ford (1819-1905), foi
traduzido por Taylor para o português em 1886. Ford defende nesta
obra a mesma tese esposada pelo opúsculo Rastro de Sangue25, a
saber, que os batistas podem traçar historicamente a sucessão de
igrejas e doutrinas batistas até os tempos neotestamentários.
Na tradução que fez do livro de Ford, Taylor incluiu como
apêndices um resumo de Regras Parlamentares (“Ordem do Governo
das Igrejas Batistas”) e sua tradução da Confissão de New Hampshire, sob o título
"DECLARAÇÃO DE FÉ DAS IGREJAS BATISTAS NO BRASIL. E comumente adotadas pelas Igrejas
da mesma fé e ordem pelo mundo." É bom ter em mente que quando Taylor refere-se às
"Igrejas Batistas do Brasil" estas não eram mais do que meia dezena até então organizadas.
O livro de Ford foi largamente usado e difundido entre os batistas naqueles
primórdios. Foi ainda um dos instrumentos responsáveis pela divulgação da Confissão de
New Hampshire entre os batistas brasileiros. Acerca deste livro, escreveu Ginsburg:

Depois da Bíblia, este livro tem sido um esteio principal na maioria das igrejas
batistas brasileiras. A tradução não é das melhores, o argumento histórico pode
não ser o mais moderno, mas o livro tem sido um meio de edificar as jovens
igrejas na "fé que uma vez foi dada aos santos", e tem desenvolvido uma
irmandade batista que pode se orgulhar de sua história e que está ciosa de seus
privilégios e feitos.26

E o trabalho batista cresceu bastante. Em 1889, ano do advento do Regime


Republicano, havia 8 igrejas batistas com 312 membros, 7 pontos de pregação, 2 pastores
nacionais e 8 obreiros “leigos”, segundo informou Bagby à Junta de Richmond.27 A
denominação estava tomando raízes no Brasil.

24
Dr. S. H. Ford (1819-1905) escreveu este livro em 1860. Ford foi um scholar entre os Batistas do Sul,
representante de um landmarquismo posterior, um pouco mais moderado, embora ele mesmo tenha negado
que fosse landmarquista. Além do pastorado em igrejas locais, ele exerceu a função de redator do Christian
Repository por mais de 60 anos. O líder landmarquista J. R. Graves escreveu a introdução do livro. FORD, S. H.
Origem e História dos Batistas. 2. ed. revisada. Filadélfia. Para uma versão atual online, consulte:
http://www.reformedreader.org/history/ford/toc.htm [capturado em outubro/2004].
25
The Trail of Blood, título original da obra do pastor batista J. M. Carrol (1858-1931). Para uma versão atual
online: http://www.acts2.com/thebibletruth/Online%20Books/Trail-of-Blood.PDF [capturado em
outubro/2004]. Uma versão online em português pode ser obtida em: http://www.solascriptura-
tt.org/EclesiologiaEBatistas/ [capturado em novembro de 2004].
26
GINSBURG, op. cit., pp. 72-73.
27
Cf. PEREIRA, José dos Reis. História dos Batistas no Brasil (1882-1982). Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 65.

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CRONOLOGIA

1853: J. N. Brown publica a Confissão de Fé Batista de New Hampshire no The Baptist Church
Manual
1861-65: EUA – Guerra Civil
1871: Colonos norte-americanos organizam a Igreja Batista em Santa Bárbara, São Paulo
1882: Organização da Igreja Batista em Salvador
1884: Organização da Igreja Batista no Rio de Janeiro
1886: Taylor publica uma tradução em português da Confissão de Fé de New Hampshire
como apêndice do livro de Ford

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