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CAMPOS, Carmen Hein De. CARVALHO, Salo De. Tensões Atuais Entre A Criminologia Feminista e A Crítica.
CAMPOS, Carmen Hein De. CARVALHO, Salo De. Tensões Atuais Entre A Criminologia Feminista e A Crítica.
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Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira
1 “Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I – a violência física,
entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II – a violência psicológica,
entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe pre-
judique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância cons-
tante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir
ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – a violência sexual,
entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não
desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matri-
mônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que
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limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – a violência patrimonial, entendida como
qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria.”
2 Neste sentido, exemplar a inclusão, pela Lei Maria da Penha, do parágrafo 9º no art. 129 do Código
Penal, que trata da lesão corporal: “se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge
ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)”. Além disso as
inclusões do inciso IV no art. 313 e da alínea f no inciso II do art. 61, ambos do Código Penal.
3 Suely de Almeida utiliza a expressão em seu livro Femicídio (1997).
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(d) Exclusão dos atos de violência doméstica do rol dos crimes conside-
rados de menor potencial ofensivo. Até o advento da Lei Maria da Penha, os
crimes de lesão corporal de natureza leve e de ameaça, os mais recorrentes nos
casos de violência doméstica (como será demonstrado), por força da categori-
zação realizada pela Lei 9.099/95, eram enquadrados no conceito de infração de
menor potencial ofensivo. A Lei 9.099/95, conhecida como Lei dos Juizados Espe-
ciais, regulamentou comando constitucional (art. 98, inciso I, Constituição) que
determinava a criação de varas especiais para processamento e julgamento célere
de demandas de menor gravidade, no âmbito civil e penal. No que tange à juris-
dição criminal, seguindo a linha despenalizadora, a referida Lei criou institutos
diversificacionistas que possibilitam ao autor do fato submeter-se a determina-
das condições para não responder ao processo penal – os institutos criados são a
composição civil, a transação penal e, para delitos de ‘médio potencial ofensivo’,
a suspensão condicional do processo. Neste sentido, fato que foi muito criticado
pelo movimento feminista, o agressor poderia aceitar a transação penal – como
instituto despenalizador é voltado para o acusado, constituindo-se direito pú-
blico subjetivo – e, durante período determinado pelo juiz, cumprir determina-
das exigências como, p. ex., comunicar ausência da Comarca por mais de 30 dias,
comunicar mudança de residência, indenizar a vítima ou realizar prestações ou
serviços comunitários. Ao fim do período, se cumpridos os requisitos, é operada
a extinção da punibilidade. A Lei Maria da Penha proibiu expressamente a inci-
dência da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica4, sobretudo em face da
crítica feminista à universalização da aplicação de prestações comunitárias (con-
tribuições financeiras à entidades filantrópicas, conhecidas vulgarmente como
“penas de cestas básicas”) como resposta judicial às violências praticadas contra
mulheres. Situação que foi projetada igualmente para as modalidades de sanção
previstas na Lei5. Ademais, diferentemente do que acontecia na vigência da Lei
9.099/95, houve a limitação das possibilidade de renúncia à representação nos
crimes de lesão corporal de natureza leve6. Outrossim, a não-incidência da Lei
dos Juizados Especiais Criminais operou importante mudança nos códigos de
interpretação, pois, para além das questões simbólicas, a exclusão da adjetiva-
ção da violência doméstica como infração de menor potencial ofensivo permitiu
compreender estas formas de agressão como penalmente relevantes.
4 “Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da
pena prevista, não se aplica a Lei no. 9.099, de 26 de setembro de 1995.”
5 “Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta
básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado
de multa.”
6 “Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será
admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade,
antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”
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7 Neste sentido, sustenta Ferrajoli que o “principio de lesividad permite considerar ‘bienes’ sólo a aquellos
cuya lesión se concreta en un ataque lesivo a otras personas de carne y hueso” (FERRAJOLI, 1995: 478).
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8 “As teorias criminológicas baseadas nas teses de que o crime deriva da pobreza ou de patologias psíquicas as-
sociada à pobreza são inválidas porque, primeiro, são derivadas de amostras manifestamente tendenciosas em
relação ao nível socioeconômico; segundo, não se aplicam aos criminosos de colarinho branco; terceiro, não são
suficientes para explicar a criminalidade das classes inferiroes, pois os fatores apontados não derivam de uma
característica geral de todo o processo de criminalização” (SUTHERLAND, 1940:12, tradução livre).
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11 Em relação ao tema, verificar algumas importantes investigações atuais: Associação dos Magistrados
Brasileiros (AMB, 2006: 18-20); Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2007: 24-41); Instituto
Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (2006:
24/5); Azevedo (2005: 18-78).
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Tabela 01: Presos por 100.000 Habitantes no Brasil entre 1994 e 2010
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258,11
247,35
250 228,06
238,1
214,83
196,22
200 174,31
185,24
50
Gráfico
0 1: Presos por 100.000 Habitantes no Brasil entre 1994 e 2010
1994 1995 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
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12 “Importante ainda ressaltar que muitas pessoas demandam mais de uma vez. Em geral, contabilizamos apenas
a primeira demanda, pois quem demandou em 2004, por exemplo, ao procurar a Ouvidoria novamente, terá
seu registro de 2004, que será atualizado no mesmo relatório. Assim, os números trabalhados são referentes à
quantidade de registros e não ao número total de demandas recebidas. Por este motivo, alguns atendimentos
chegam a durar meses” (SPM, 2009: 17).
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2010 734.416
Total 1.658.294
Fonte: Ouvidoria da Secretaria de Políticas para as Mulheres
13 “Ameaça: quando alguém promete um mal futuro, injusto e grave que, para se consumar, depende da vontade
do agente. O crime admite todos os meios de execução (por escrito, oral, gestos, símbolos, etc). A ameaça pode
se voltar também contra terceira pessoa ou coisa pela qual a vítima tenha afeição (família, etc.)
Assédio Moral: são todos aqueles atos e comportamentos provindos do patrão, gerente, superior hierárquico
ou dos colegas, que traduzem uma atitude de contínua e ostensiva perseguição que possa acarretar danos rele-
vantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima.
Discriminação: toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil,
com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.
Violência Doméstica: são as lesões corporais praticadas contra 4 categorias de pessoas: 1) contra parentes
próximos (ascendentes, descendentes, irmãos); 2) contra cônjuges ou companheiros em união estável; 3) contra
quem conviva ou tenha convivido com o agente; e 4) contra pessoa que seja hóspede ou coabite com o agente.
Violência Sexual: violência sexual pode ser definida como qualquer tipo de atividade de natureza erótica ou
sexual, que desrespeita o direito de escolha de um dos envolvidos. É a penetração genital, oral ou anal, por
alguma parte do corpo do agressor ou por objeto, utilizando a força e/ou sem o consentimento da vitima.
Tráfico de Pessoas: consiste em promover, intermediar ou facilitar a entrada no país, ou a saída, de pessoa
para exercer a prostituição (internacional). O tráfico interno de pessoas visa promover, intermediar ou facilitar
o transporte, o recrutamento ou o alojamento de pessoa que venha a exercer a prostituição.
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A partir desta categorização das violências contra a mulher, dos 401.729 re-
gistros em 2009, a incidência ocorreu nas seguintes proporções:
Violência Física: é a ofensa à integridade corporal ou à saúde física ou mental do ser humano. A integridade
corporal diz respeito a alteração física do corpo (amputações, feridas, manchas, inchaços, etc). A ofensa à saúde
é a debilitação funcional do organismo (doença), seja fisiológica ou mental, podendo incluir também o agrava-
mento de doença já existente.
Cárcere Privado: é o confinamento em um cômodo isolado particular (...).
Violência Psicológica: é entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, iso-
lamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limita-
ção do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
Violação dos Direitos Humanos das Presas: violação da dignidade da pessoa humana e o acesso ao pleno
aos direitos fundamentais, tendo em vista as particularidades da mulher encarcerada.
Apologia ao Crime: é defender, louvar, elogiar publicamente crime ocorrido ou criminoso.
Perseguição: ato de perseguir pessoa de forma ostensiva e contumaz.” (SPM, 2009: 13-14)
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14 Na pesquisa realizada em 2001 o número de mulheres espancadas era de uma a cada 15 segundos
ou 8 mulheres a cada 2 minutos. Embora a incidência tenha diminuído, as taxas de violência seguem
extremamente altas.
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Juizados Especializados de
Violência Doméstica e Familiar 43
contra a Mulher
Processos em Andamento nos
328.964
Juizados
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Lesão Corporal
Ameaça
Dano
Crimes contra a Honra: Injúria e
Difamação
Crimes (ou Contravenções)
Invasão a domicílio
com Maior Incidência
Desobediência
Atentado violento ao pudor
Estupro
Contravenções Penais: Vias de Fato e
Perturbação do Sossego
Rio de Janeiro
Estados com maior quantidade
Rio Grande do Sul
de processos
Minas Gerais
Fonte: Conselho Nacional de Justiça
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15 Dados fornecidos diretamente pela Vara de Violência Doméstica, na ocasião do Fórum pelo Fim da
Violência Doméstica contra Mulheres, Porto Alegre, em 28/01/2011.
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conflitos, para além das coerências e plenitudes dos sistemas que só interessam
aos que nutrem vontade de sistema.
Assim, ao que tudo indica, ser feminista e crítica/o seria possível apenas
à medida que formos nos submetendo à complexidade e à fragmentariedade
da contemporaneidade. Instabilidades que se refletem em desconfortos teóricos
voluntariamente aceitos e, sobretudo, desejados, e que podem ser resumidos na
tensão vontade de verdade versus vontade de desconforto.
O debate proporcionado pela Lei Maria da Penha é uma ótima oportuni-
dade para o exercício dessa capacidade.
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