Você está na página 1de 5

A ORIGEM DA MÁSCARA

Desempenhando um fundamental papel histórico no entendimento sobre o que significa “ser humano”, as máscaras
permitiram a experiência da imaginação. Segundo o escritor e poeta mexicano Octavio Paz: “Enquanto estamos
vivos, não podemos escapar de máscaras e nomes. Somos inseparáveis de nossas ficções – nossas feições”.

Chhau Dancers at Murguma Lake-Durga - Pallab seth_low.jpg


Dançarinos de Chhau, dança marcial indiana (Foto: Pallab Seth)

por Anna Anjos

Ornamentadas em diversos materiais (madeiras, metais, conchas, fibras, marfim, argila, chifre, pedra, penas, couro,
peles, papel, tecido e palha de milho), as máscaras representaram, ao longo dos séculos, os seres sobrenaturais, as
divindades e os antepassados. Uma das mais antigas práticas humanas, o uso das primeiras máscaras pelo homem
primitivo teria ocorrido em 9.000 a.C.. Em fase de restauração no Museu Bible et Terre Sainte, em Paris, e no Museu
de Israel, em Jerusalém, as máscaras antropomórficas (detentoras de características humanas) teriam sido utilizadas
em diversas celebrações, cultos e rituais de povos primitivos. Elas buscariam a associação do usuário com algum tipo
de autoridade incontestável, tal como “deuses” ou alguma outra forma de creditar a reivindicação da pessoa em um
determinado papel social.

Ancient Egypt Late Period 664-535 BC A fantastic and large mummy-bead mask_.jpgMáscara do Antigo Egito, cerca
de 664-535 a.C.

Na China, as máscaras eram usadas para afastar os maus espíritos. No Egito Antigo e na Grécia, elas eram inseridas
sobre o rosto dos falecidos na crença da passagem para a vida eterna. Essas máscaras mortuárias estilizadas tinham
a função de orientar e evitar a “fuga” espiritual do corpo, seu lugar de descanso eterno. Elas eram feitas de tecido
coberto com gesso ou estuque (uma argamassa composta de gesso, água e cal, de secagem rápida) e pintadas logo
em seguida. Para personagens mais importantes, foram utilizados metais preciosos como a prata e o ouro.

Egyptian Mummy Mask (Egypt early Roman period).jpg


Máscara mortuária do faraó Tutancâmon, que data de 1350 a.C.
Foi também durante a Grécia antiga que surgiram as máscaras teatrais. O exagero de expressão era característica
principal dessas máscaras, que maximizava a natureza de cada personagem. Usadas em rituais de drama (também
adotadas nas festas dionisíacas), elas foram projetadas em um tamanho que permitisse ampliar a presença do ator e
também sua voz, através de um dispositivo embutido em uma espécie de “megafone”.

Chhau Dance - india- foto by pallab seth_low.jpg


Dançarinos de Chhau, dança marcial indiana (Foto: Pallab Seth)

Entre o final da Idade Média e ao longo do século 18, a confecção das máscaras mortuárias para a realeza da Europa
foi reavivada, tornando-se tradição entre as pessoas famosas da sociedade europeia entre o século 17 e 20. Com cera
ou gesso líquido de paris (feita de minério de cálcio e água, que tem a propriedade de não encolher e endurecer
rapidamente), o negativo do rosto humano era produzido e agia como um molde para a imagem positiva. Segundo o
historiador José Mattoso, em As Máscaras: o rosto da vida e da morte (Universidade do Porto, 1999), “(…) este ritual
tinha por si mesmo uma forte eficácia como elo de coesão para o grupo de descendentes. (…) A manutenção deste
elo garantia a prosperidade e a fecundidade do grupo, isto é, assegurava a sua perpetuação.”

800px-
Three_pictures_of_the_same_noh_'hawk_mask'_showing_how_the_expression_changes_with_a_tilting_of_the_head
.jpg
Máscara japonesa do teatro “No”

O teatro japonês No (misto de canto, pantomima, música e poesia) possui cerca de 125 variedades de máscaras, que
são classificadas em cinco tipos gerais: pessoas de idade (masculino e feminino), deuses, deusas, demônios e
duendes. Confeccionadas em madeira, revestidas de gesso, envernizadas e douradas, as máscaras são pintadas
respeitando significados de cada cor: simbolizando a violência e a brutalidade, o vilão é representado pelo preto; o
branco caracteriza um governante corrupto; o vermelho significa um homem justo.

Mahakala mask from Nepal.jpg


Máscara Mahakala (um dos nomes atribuídos a Shiva, o deus transformador hindu), Nepal
A Northwest Coast Bella Bella Heiltsuk.jpg
Máscara cerimonial da tribo indígena canadense Heiltsuk, século 19

Joe David, Haida Noble Woman with Labret Portrait Mask -.jpg
Máscara feminina da tribo Haida, do Alasca – Vancouver Art Gallery

José Mattoso analisa o papel dual da máscara: “Se repararmos para que serve, sobretudo nas sociedades ditas
‘primitivas’ e nas sociedades tradicionais, tem de se reconhecer, creio eu, que a máscara, longe de ocultar, revela; que
ela retira a expressão pessoal do rosto, mas manifesta aquilo que na vida cotidiana não se pode ver; que ela serve,
enfim, para descobrir um certo sentido do rosto que está para além das aparências: aquele sentido em que a face viva
e individual faz esquecer e só aparece com a morte.” Um exemplo disso são as máscaras criadas por povos do
Himalaia, que funcionavam, sobretudo, como mediadores de forças sobrenaturais.

Anthony Shelton, diretor do Museu de Antropologia da Universidade da Colúmbia Britânica, afirma que a mais antiga
evidência de máscaras nas Américas é um fóssil de vértebra de lhama encontrado no México, entre 12 a 10 mil anos
a.C., que teria sido esculpida para representar a cabeça de um coiote. Ele acredita que as máscaras de animais podem
ter sido utilizadas em cerimônias religiosas, iniciações e rituais de sepultamento, representando a intervenção de
entidades ancestrais. Além disso, elas poderiam ser utilizadas como uma forma de divisão política do império Inca.

Yupik dance masks.jpgMáscaras de dança da tribo Yupk, século 19


Yupik finger mask. Alaska_ 19th century.jpg
Máscara de dedo da tribo Yupk, cujo tamanho não ultrapassa 8 centímentros, século 19

Huichol Beaded Mask - Nayarit , Mexico, 2005__micanga em madeira.jpg


Máscara de miçanga em madeira do povo Huichol, Mexico, 2005

A iconografia andina inclui certos personagens e temas onipresentes, desde a era Chavín (pré-inca) ao tempo dos
Incas (de 1500 a.C. a 1532 d.C.). Muitas das primeiras máscaras representavam alguns animais, incluindo o jaguar
(onça), o puma e a raposa (alguns dos quais posteriormente assumiriam características cada vez mais antropomórficas
entre as civilizações Chimú e Moche). O cronista Felipe Guaman Poma de Ayala, que viveu no Peru, desenhou alguns
fazendeiros usando cabeças de raposas e peles sobre suas próprias cabeças. Eles incorporariam personagens
animalizados durante cerimônias dedicadas a certas entidades espirituais.

Huichol Beaded Mask - Nayarit , Mexico, 2005, Fios pressionado em cera de abelha em máscara de madeira.jpg
Máscara de cera de abelha em madeira do povo Huichol, Mexico, 2005

Durante o Bal Masqué (tradicional baile de máscaras europeu), o uso de máscaras era obrigatório – e até satisfatório,
devido a constantes conflitos políticos. Os cortesões mascarados faziam brincadeiras, confiantes no anonimato,
extravasando todos os seus impulsos reprimidos e libertando-os das normas sociais.

commediadellarte.jpg
Personagens do teatro de rua Commedia dell’arte
620b-bauta-macrame-silver.jpg
Réplica de máscara veneziana

Incerta, a origem da palavra “máscara” é interessante: alguns acreditam que poderia ser proveniente do latim (mascus
ou masca; “fantasma”) derivado do árabe (maskharah, palhaço; e do verbo sakhira, “ao ridículo”). Mas ela também
poderia ser proveniente do hebreu (masecha), cuja tradução seria algo como “ele zombou, ridicularizou”. Curiosamente,
em Veneza, as máscaras tornaram-se peças decorativas, transformando-se em principal atividade econômica para a
região. Usadas pelos “bobos da corte”, artistas do riso, as máscaras transformaram-se em Arlequim, Pulcinella, Pierrot
e Colombina, personagens da Commedia dell’arte. Realizado nas ruas e praças públicas, esse teatro popular
improvisado apresentava cenas que ironizavam a vida e os costumes da nobreza da época. Mais tarde, esses mesmos
personagens inspirariam o Carnaval veneziano, que duraria até o final do século 18, com a queda da República de
Veneza, período em que o uso e a tradição das máscaras começou gradualmente a diminuir, até desaparecer
completamente.

maca06.jpg
Máscara asteca em turquesa, cerca de 1400 a 1521 a.C.

Enquanto símbolo visual, a máscara retoma as fontes dos mitos dos antepassados, dos deuses e dos animais
totemizados. E continua presente em eventos sociais como bailes, desfile de carnaval, festas à fantasia e em diferentes
profissões: médicos e dentistas usam máscaras cirúrgicas, protegendo a si e os pacientes. O soldador protege-se das
fagulhas com uma máscara metálica; no esporte, o esgrimista, o jogador de futebol americano e o lutador de boxe não
podem entrar em combate sem sua máscara. Elas servem não apenas para proteção, como também desempenham a
construção de uma identidade, de um imaginário acerca de determinada função na sociedade (isso remete, ainda que
de forma longínqua, às antigas máscaras gregas que serviam para dar rosto aos personagens).

Segundo Mattoso, “é esse aspecto misterioso e transcendente que a máscara tenta exprimir, através da distorção ou
do grotesco, do exagero ou da estilização, da transfiguração ou da simplificação, da imitação ou da inversão. Por meio
dos recursos imprevisíveis, e todavia repetitivos, da arte, a máscara procura abrir o caminho à compreensão do que
há de mais universal no homem, e do que inexoravelmente o liga ao mistério das trocas entre a morte e a vida. Só
assim se compreende o fascínio pelas máscaras que inspiraram e inspiram tantos artistas do teatro e tantos escultores
em todas as culturas e em todas as civilizações.” As máscaras são narrativas visuais complexas, cuja função é dar voz
a um personagem. Carregadas de mistério e divindades, elas introjetam valores de culto aos rituais, possibilitando por
algum momento ser “o outro” que, com poderes ocultos e inimagináveis se harmoniza ao grupo, que o acolhe em tempo
e espaço determinados pela história cultural.

fonte: obvious

Você também pode gostar