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FORMAÇÃO E CUIDADO

EM PSICOLOGIA
RELATOS DE EXPERIÊNCIAS DE ESTÁGIOS
Conselho Editorial Internacional
Presidente: Prof. Dr. Rodrigo Horochovski (UFPR – Brasil)
Profª. Dra. Anita Leocadia Prestes (ILCP – Brasil)
Profª. Dra. Claudia Maria Elisa Romero Vivas (UN – Colômbia)
Profª. Dra. Fabiana Queiroz (Ufla – Brasil)
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Prof. Dr. José Eduardo Souza de Miranda (UniMB – Brasil)
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Prof. Dr. Milton Luiz Horn Vieira (Ufsc – Brasil)
Prof. Dr. Ruben Sílvio Varela Santos Martins (UÉ – Portugal)

Comitê Científico da área Ciências Humanas


Presidente: Prof. Dr. Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia)
Prof. Dr. Nilo Ribeiro Júnior (Faje – Filosofia)
Prof. Dr. Renee Volpato Viaro (PUC/PR – Psicologia)
Prof. Dr. Daniel Delgado Queissada (Ages – Serviço Social)
Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (Ufba – Sociologia)
Profª. Dra. Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia)
Profª. Dra. Luciana Ferreira (UFPR – Geografia)
Profª. Dra. Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação)
Prof. Dr. Cezar Honorato (UFF – História)
Prof. Dr. Clóvis Ecco (PUC/GO – Ciências da Religião)
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Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia)
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Prof. Dr. Luiz Fernando Saraiva (UFF – História)
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Prof. Dr. Francisco José Figueiredo Coelho (UFRJ – Ensino de Biociências e Saúde)
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Profª. Dra. Elisângela Maura Catarino (Unifimes – Educação/Religião)
Profª. Dra. Sandra Célia Coelho G. da Silva (Uneb – Sociologia, Gênero, Religião, Saúde, Família e
Internacionalização)
Carolina de Campos Borges
Conrado Neves Sathler
Luciana Leonetti Correia
(Organizadores)

Formação e Cuidado em Psicologia:


relatos de experiências de estágios
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Editor-Coordenador: Lislaini Teleginski
Editor Comercial: Diego Ferreira
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Arte da Capa: Willian Opolz
Revisão de Texto: Erich Zimmermann

DOI: 10.31012/ 978-65-257-0150-9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626

Formação e cuidado em psicologia: relatos de


E24 experiências de estágios / organização de
Carolina de Campos Borges, Conrado Neves Sathler,
Luciana Leonetti Correia – 1.ed. - Curitiba: Brazil Pu
blishing, 2022.
340p.: il.; 23cm

Vários colaboradores
ISBN 978-65-257-0150-9

1. Psicologia – Estágio supervisionado. 2. Psicologia –


Relatos de experiência. I. Borges, Carolina de Campos
(org.). II. Sathler, Conrado Neves (org.). III. Correia, Luciana
Leonetti (org.).

CDD 150.7 (22.ed)


CDU 159.9

[1ª edição – Ano 2022]


www.aeditora.com.br
AGRADECIMENTOS

Às várias pessoas e instituições que nos apoiaram na realização


deste livro.
À Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) que viabilizou
o custeio da edição do livro por meio do Programa de Apoio à Pesquisa,
à Faculdade de Ciências Humanas e à Pró-Reitoria de Pós-Graduação e
Pesquisa da UFGD pelo apoio administrativo.
À Coordenadoria do Curso de Graduação em Psicologia e ao Progra-
ma de Pós-Graduação em Psicologia da UFGD.
À Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, à Universida-
de Federal de Santa Catarina – UFSC, à Faculdade Anhanguera de Dourados e
à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, pelo tempo
concedido às professoras de seus quadros que participaram deste trabalho.
Aos formadores que acolhem nossos estagiários em estabelecimen-
tos públicos e privados: hospitais, escolas, conselhos municipais, abrigos tem-
porários de crianças, centros de atenção psicossocial, tribunal de justiça e, em
especial, ao LabSPA – Laboratório Serviço de Psicologia Aplicada da UFGD.
Às pessoas que estão entre os autores deste livro, as quais contri-
buíram empenhadamente com esta obra, compartilhando gentilmente suas
reflexões sobre as práticas realizadas em estágio supervisionado: docentes
e ex-docentes da UFGD, discentes e egressos do curso de Psicologia da
UFGD, além de colaboradores externos do curso e da instituição.
APRESENTAÇÃO

Em Formação e Cuidado em Psicologia: relatos de experiências de


estágios encontram-se reunidos trabalhos que expõem experiências advin-
das de uma variedade de atividades acadêmicas centradas em cuidados
em saúde, realizadas no âmbito de estágios supervisionados do curso de
Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e estabe-
lecidas como parte do processo de formação em Psicologia. O panorama
apresentado tem como objetivo refletir a articulação entre saberes e práticas
neste momento em que o ensino coincide com a possibilidade de intervir
concretamente na produção de saúde junto à comunidade.
Alguns questionamentos foram pontos de partida para as argu-
mentações tecidas pelos autores, tais como: Como se ensina a prática do
cuidado em saúde no curso de Psicologia? Como se articulam os campos de
estágio constituídos a partir de diretrizes indicadas no Projeto Pedagógico e
a experiência propriamente dita produzida durante o curso de formação em
Psicologia? Que resultados foram obtidos por meio das intervenções reali-
zadas? Como o processo de ensino da prática profissional foi modificado no
período da pandemia da Covid-19?
O livro é um fruto do diálogo permanentemente estabelecido entre
os docentes da UFGD que atuam nos cursos de Graduação e de Pós-Gradu-
ação em Psicologia. Entre os autores deste livro, além dos docentes, estão
ex-docentes, discentes, egressos desses cursos e, também, colaboradores
vinculados a outros cursos da UFGD e a outras instituições. Entre os autores,
estão pesquisadores da linha de pesquisa “Processos Psicossociais” do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFGD: os docentes Carolina
de Campos Borges, Catia Paranhos Martins, Conrado Neves Sathler, Esmael
Alves de Oliveira, Gabriela Rieveres Borges de Andrade, Jaqueline Batista
de Oliveira Costa, Maria Salete Junqueira Lucas, Pamela Staliano e Sanyo
Drummond Pires; e, da linha de pesquisa “Processos Comportamentais e
Cognitivos”, as docentes Denise Mesquita de Melo Almeida, Regina Basso
Zanon e Veronica Aparecida Pereira. Além desses, entre ex-docentes do
curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
UFGD estão as autoras Lígia Rocha Cavalcante Feitosa, Luciana Leonetti
Correia e Sandra Fogaça Rosa Ribeiro.
Destacamos que as áreas de pesquisa dos professores autores dos
capítulos se relacionam com suas áreas de atuação no curso de graduação
e com os projetos de extensão que realizam ou já realizaram. Portanto, as
propostas de estágio supervisionado constituídas e realizadas junto aos
alunos de graduação se inscrevem também no campo de estudo das
pesquisas que desenvolvem no âmbito da Pós-Graduação. Assim, o apa-
nhado de narrativas sobre experiências de estágio que compõe esta obra
exprime claramente o espírito de indissociabilidade do ensino, da pesquisa
e da extensão que norteia o trabalho na Universidade. Considerando todas
as contribuições que este tripé pode proporcionar em termos da formação
de alunos, desenvolvimento social regional e geração de conhecimentos,
afirmamos que esta articulação tem um papel fundamental na promoção de
uma interação transformadora entre Universidade e Sociedade.
As atividades de estágio têm um lugar de destaque no desenvolvi-
mento social proporcionado pela aplicação do conhecimento produzido no
âmbito acadêmico. Dentre os ganhos trazidos pelos estágios, ressalta-se o
impacto das práticas desenvolvidas na comunidade local, uma vez que a
mesma se beneficia diretamente com os serviços prestados por meio das
atividades exercidas. Acrescentam-se a isso os ganhos acadêmicos advin-
dos dessas experiências: conhecimentos da realidade local e avaliações
diretas de nossas práticas. Uma vez em curso, isso nos permite perceber
tanto os nossos pontos mais fortes quanto os mais frágeis, promovendo
reelaboração e readequação de saberes e intervenções.
Os estágios curriculares realizados ao longo do curso de graduação em
Psicologia da UFGD são classificados em três modalidades: Estágio do Núcleo
Comum — que inclui também o Estágio de Avaliação Psicológica em Diferentes
Contextos —, Estágios Específicos das ênfases Processos Clínicos e Processos
Psicossociais e Estágio de Licenciatura. Descreveremos aqui, brevemente, os
objetivos e características que se destacam em cada um deles.
Conforme o Projeto Político-Pedagógico do Curso de Psicologia da
UFGD, o Estágio do Núcleo Comum, também chamado Estágio Básico, é
realizado nos 5º e 6º semestres — momento em que as disciplinas básicas,
iniciadas nos primeiros semestres, são concluídas. Chamamos de disciplinas
básicas os componentes curriculares encarregados pelas habilidades e
competências presentes nas atividades profissionais mais frequentemente
empregadas ou universais da profissão, independentemente de suas es-
pecificidades. No rol desses componentes curriculares, podemos citar: as
bases da formação científica e da escrita técnica; os saberes ligados ao de-
senvolvimento infantil, à psicologia social, à aprendizagem, à personalidade,
à psicopatologia, à avaliação psicológica e às políticas públicas. Assim, seja
qual for o projeto do estágio oferecido como Estágio do Núcleo Comum, as
habilidades e competências básicas são integradoras dos conhecimentos
básicos e promovem o reconhecimento do campo profissional de alguns
segmentos sociais e de práticas profissionais como observação, entrevista,
análise, avaliação e escrita de relatórios. O Estágio de Avaliação Psicológica
em Diferentes Contextos acontece no 7º semestre, é obrigatório a todos os
estudantes e nele exercitam-se atividades desde acolhimento de demandas
e escolha de métodos e instrumentos de avaliação até a escrita de relatórios
e encaminhamentos.
Considerando a formação profissional um processo complexo, o es-
tágio do núcleo comum destaca-se como o primeiro momento de contato
dos estudantes com o campo de atuação do psicólogo, quando são apre-
sentadas algumas possibilidades de exercício profissional e, sobretudo, os
compromissos profissionais assumidos pela categoria. Assim, como afirma
o Código de Ética Profissional em seus princípios fundamentais — princípios
que representam valores presentes em qualquer atividade profissional —, a
observância dos Direitos Humanos, a análise crítica das realidades histórica,
política, econômica e social e o combate às discriminações, à violência, à
exploração, à crueldade e à opressão devem ser devidamente realçados.
Os Estágios Específicos têm como objetivo assegurar, de forma pru-
dente e monitorada, experiências profissionais antecipatórias. Essas vivências
profissionais funcionam efetivamente como exercício profissional, tendo a
vantagem de serem discutidas, acompanhadas e avaliadas, em nosso caso,
por um grupo de colegas em formação e por um supervisor de estágio. Não
se trata, portanto, de uma simulação ou de uma experiência treino, já que o
treinamento faz parte do processo quando os procedimentos ocorrem no
ambiente da supervisão. Entretanto, logo após o treino preparatório, ocorre
a atividade profissional que será avaliada para aperfeiçoamento da técnica
e do próprio formando.
Esses Estágios, seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Formação em Psicologia, são divididos em ênfases. As ênfases não são
especializações antecipadas, ao contrário, são inserções em campos des-
tacados de trabalho no território onde se dá a formação. Com isso, faz-se
uma distinção: o Estágio Básico se volta à formação das bases da profissão
conforme disposição nacional e os Estágios Específicos se ligam às emer-
gências locais. Na UFGD há opção de oferta de Estágio Específico em duas
ênfases: Processos Clínicos e Processos Psicossociais.
Os Estágios Específicos na ênfase Processos Clínicos são oferecidos
em diversas abordagens teóricas e formam profissionais para atendimentos
individuais e grupais de segmentos populacionais distintos. A atenção aos
processos de mudança de comportamento, de avaliação psicológica e
também de suporte ao desenvolvimento (típico e atípico) é ofertada com
regularidade. Nas atividades clínicas consideramos as operações subje-
tivas singulares sem deixar de lado os atravessamentos socioeconômicos
e culturais que as constituem e, portanto, abarcam os conceitos de saúde
como processos complexos que superam a noção de ausência de doença,
colocando a saúde como direito e condição de realização das potências
individuais e grupais.
Os Estágios Específicos da ênfase Processos Psicossociais, por sua
vez, concentram esforços formativos de ensino, pesquisa e extensão em
diferentes abordagens teóricas e metodológicas voltadas às intervenções
coletivas e territorializadas. Essas intervenções possuem caráter institu-
cional, cultural e político e se voltam às condições de produção de saúde,
educação, assistência social e proteção às populações vulneráveis, bem
como à defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
De acordo com o Projeto Político-Pedagógico do curso de Psicologia,
os Estágios em Licenciatura funcionam distribuídos em três componentes
curriculares situados idealmente no 5º, 6º e 7º semestres. Contemplam, em
suas ementas, o estudo da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Na-
cional, das Diretrizes Curriculares vigentes para licenciatura em Psicologia,
do conhecimento psicológico e das referências curriculares para o ensino
fundamental, ensino médio, curso técnico profissionalizante e a prática de
ensino na formação inicial de professores de Psicologia nessas três esferas.
A formação em Psicologia da UFGD valoriza a licenciatura por com-
preender que o fato de o psicólogo estar presente nas escolas contribui em
muito mais do que tão somente para a formação de professores. O envolvi-
mento de psicólogos com a educação compõe uma formação profissional
mais próxima da realidade social local e enriquece os saberes acadêmicos
centrados nos aspectos sociológicos e políticos do nosso presente.
É importante considerar que a educação brasileira no nível funda-
mental se organiza na oferta de disciplinas, mas, em todos os níveis edu-
cacionais, do básico ao universitário, há temas transversais que concernem
bem à formação em Psicologia. São eles: o multiculturalismo e as diferenças
raciais, étnicas, religiosas, sexuais, linguísticas e de origem; as relações de
gênero e de classe; o projeto de vida e a orientação profissional; a educação
financeira e a educação para o trabalho; a saúde e as relações familiares e,
por fim, os direitos das crianças e adolescentes. Esses temas são constantes
nas intervenções realizadas nos estágios de formação de licenciados em
Psicologia e, por isso, são objetos de alguns de nossos estágios.
Salientamos que os estágios de licenciatura ocupam espaços peculia-
res no curso de Psicologia, já que nele o estudante não é preparado, exclu-
sivamente, para ser professor de psicologia no ensino básico, mas, também,
para realizar intervenções em temas transversais, integrando a comunidade
escolar. Essas intervenções escolares constituem habilidades que extrapolam
o papel docente e são desejáveis ao profissional psicólogo, tais como: liderar e
coordenar trabalhos grupais, expressar-se em público, articular teoria e prática,
desenvolver estratégias de vinculação com diferentes segmentos profissionais
e usuários dos serviços escolares e efetuar estratégias avaliativas.
O campo de trabalho específico do Psicólogo como professor de
Psicologia é, atualmente, restrito, mas a formação em licenciatura represen-
ta, para além da formação docente, outras possibilidades privilegiadas de
discussão, sobretudo a respeito da educação e sua função na organização
da sociedade. Inclusive, compreender como as escolas se organizaram para
enfrentar a pandemia permite conhecer o valor que os governos de turno,
em todos os níveis, atribuem à educação e à organização das políticas públi-
cas de educação que informam, em última análise, o lugar que a sociedade
projeta aos seus cidadãos e o investimento que faz em seu futuro.
Os capítulos que compõem este livro estão dispostos conforme a ordem
cronológica de realização dos estágios prevista no Projeto Político-Pedagógico
do Curso de Psicologia da UFGD. Alguns deles consistem em relatos de práti-
cas realizadas anteriormente ao ano 2020, ou seja, quando as atividades eram
presenciais, enquanto outros debatem a experiência dos estágios realizados em
contexto pandêmico, no ano de 2021, destacando especialmente o processo de
adaptação das atividades do estágio ao sistema remoto, não presencial.
Primeiramente serão apresentados seis capítulos referentes a
práticas do Estágio do Núcleo Comum. São relatos que resultam da expe-
riência inicial de imersão dos estudantes no campo profissional de alguns
segmentos sociais e de práticas profissionais proporcionada por diferentes
propostas empreendidas. No primeiro capítulo, “Desenvolvimento de habi-
lidade sociais em crianças e familiares: uma possibilidade de abordagem
inclusiva da queixa escolar”, Regina Celia Alves Barreira, Ana Flávia Batista
Sousa, Diana Rasteli Santos, Natália Marcela Pain Oliveira e Waldety Stéffany
Ferreira Flores discutem uma experiência de intervenção escolar voltada
para o enriquecimento do repertório de habilidades comportamentais por
crianças que foram encaminhadas para a psicoterapia. Em “Humor como
forma de defesa no trabalho no contexto de uma ala psiquiátrica de um
hospital geral”, de Sanyo Drummond Pires, Caroline Matos C. da Silva e
Giovanna Ferraz, os autores refletem sobre o uso do humor como estratégia
de interação frequentemente usada entre profissionais de uma instituição
psiquiátrica, sendo esta uma constatação resultante da observação realiza-
da por estagiárias no cotidiano institucional. O terceiro capítulo, “O estágio
básico em psicologia no contexto da pandemia por Covid-19”, de Veronica
Aparecida Pereira, Fernanda Pinto e Ada Oliveira da Silva, descreve as adap-
tações realizadas em um programa de acompanhamento do bebê durante
o primeiro ano de vida no contexto da pandemia. O capítulo que vem em
seguida, “Rotina familiar e estimulação cognitiva em contexto de pandemia:
construção de cartilhas psicoeducativas para crianças e seus cuidadores”,
de autoria de Adriana Yuri Kaneko, Alisson Junior Bueno Nascimento Alves
e Regina Basso Zanon, resulta de uma intervenção realizada com o obje-
tivo de construir duas cartilhas psicoeducativas, uma destinada aos pais/
cuidadores e outra às crianças, para a promoção da saúde e a construção
de novas rotinas, considerando o contexto da pandemia. Em seguida, em “O
Conselho Municipal de Direitos das Mulheres da cidade de Dourados: relato
de experiência de estágio do núcleo comum”, Gabriela Rieveres Borges
de Andrade, Letícia Silva Pereira e Michelli Palmeira relatam algumas das
atividades desenvolvidas ao longo de 2018 neste estágio que teve como ob-
jetivo propiciar reflexões sobre a constituição dos espaços participativos de
gestão de políticas públicas e de direitos existentes na cidade de Dourados,
conhecendo como a sociedade civil participa nesses espaços e contribuem
com o acesso a direitos. O sexto capítulo, o último referente ao Estágio do
Núcleo Comum, “O relatório de estágio em políticas públicas: pesquisa,
análise e ensino de escrita”, de Conrado Neves Sathler e Thissiane Fioreto,
versa sobre o desenvolvimento das habilidades de pesquisa, análise e es-
crita envolvidas no estágio em políticas públicas, destacadamente àquelas
envolvidas na redação do relatório.
Em seguida aos capítulos referentes aos Estágios do Núcleo Co-
mum estarão três trabalhos que se basearam em experiências compreen-
didas no Estágio de Licenciatura, os quais nos remetem a intervenções em
temas transversais realizadas nas escolas com o objetivo de proporcionar
cuidados pessoais e sociais ligados às relações comunitárias, às relações
de trabalho e ao desenvolvimento vocacional de estudantes. Sendo assim,
o sétimo capítulo, ““Isso dá dinheiro?” Reflexões sobre juventudes e orien-
tação profissional”, de Dardielle Santos-Dias, Aldenora Oliveira Coutinho
Libraiz, Daniela dos Santos Sales, Mayara Vieira Santos, Rebeca Brandão
Maia, Verônica Ayumi Oshiro, Jaqueline Batista de Oliveira Costa, discute o
complexo processo de escolha profissional e as possíveis contribuições da
Psicologia para a construção das trajetórias profissionais das juventudes a
partir de intervenções realizadas em uma escola pública de ensino integral
em formato de oficinas. No oitavo capítulo, “Venturas e desventuras na for-
mação de professoras(es) de Psicologia na pandemia de Covid-19”, Gabriela
Manzoni Leite, Bárbara Yumi Brandão Sakane e Denise Mesquita de Melo
Almeida problematizam as condições de realização do estágio remoto nas
escolas e, por meio de reflexões coletivas, apontam como a Psicologia se
faz presente nos entremeios das relações pedagógicas e como atua na po-
tencialização do desenvolvimento humano em tempos de crise. E no nono
capítulo, o último sobre o Estágio de Licenciatura, intitulado “Saúde mental
em tempos de pandemia: relato de uma oficina on-line de Psicologia com
estudantes do ensino médio técnico”, as autoras Ianara de Lima Mendonça,
Allana Isabella Souza e Jaqueline Batista de Oliveira Costa refletem sobre
a prática de estágio de formação de professores em Psicologia realizada
junto a estudantes do ensino médio e técnico em contexto de pandemia,
considerando as demandas que emergem em relação à saúde mental dos
estudantes e às mudanças e adaptações realizadas no processo de ensino,
a partir de oficinas realizadas com o tema “saúde mental”.
Na sequência, estarão dez capítulos referentes aos Estágios Específi-
cos, sendo os cinco primeiros da ênfase Processos Clínicos e os cinco últimos
da ênfase Processos Psicossociais. Os relatos referentes ao Estágio Específico
da ênfase Processos Clínicos resultam de intervenções realizadas no Labo-
ratório Serviço de Psicologia Aplicada — LabSPA/UFGD. No primeiro deles,
o décimo capítulo, “Conceitualização cognitiva no transtorno obsessivo com-
pulsivo: relato de uma prática clínica supervisionada”, de Isabela Degani de
Oliveira, Thais Michelle Kohler Barbosa e Regina Basso Zanon, apresentam-se
as especificidades da Terapia Cognitiva (TC) no tratamento de pacientes com
Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) a partir do relato de uma prática
clínica. O décimo primeiro capítulo, “Do útero de pedra ao (re)nascimento
na psicoterapia”, de Giovanna Loubet Ávila e Rosalice Lopes, consiste em
um relato clínico do acompanhamento psicológico (incluindo sessões de
ludoterapia) de uma criança realizado a partir de um enfoque psicanalítico.
No décimo segundo capítulo, “Um olhar para o contexto: especificidade do
cuidado em Terapia Familiar Sistêmica”, Carolina de Campos Borges, Daiany
Penzo e Tamiris Imai examinam as contribuições do olhar contextual, o qual
subsidia as intervenções familiares, para a produção do cuidado em psico-
logia clínica, ilustrando com um caso clínico. Em seguida, no décimo terceiro
capítulo, “A supervisão na clínica psicanalítica como sustentação para o devir
do. psicólogo clínico”, a autora Maria Salete Junqueira Lucas reflete, a partir
de sua experiência como supervisora de estágio em Psicoterapia Psicanalítica,
sobre a supervisão na clínica psicanalítica inserida na clínica-escola, levando
em conta o conceito de inconsciente e a clínica como lugar de produção do
método psicanalítico. No décimo quarto capítulo, “Plantão Psicológico em
uma clínica-escola: atravessamentos da pandemia da Covid-19”, Gabriela
Manzoni Leite, Adrielly Louise Alves Leal, Endy Willians de Assis Gomes e Pa-
mela Staliano relatam a experiência de transposição de um serviço de Plantão
Psicológico desenvolvido na modalidade presencial no curso de Psicologia
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) para o formato remoto
emergencial, devido à pandemia da Covid-19.
Por último, estarão os capítulos do livro que se referem ao Estágio Es-
pecífico da Ênfase Psicossocial, cujas atividades práticas, de caráter institucional,
voltam-se a intervenções coletivas e territorializadas. O décimo quinto capítulo,
“Contribuições da Psicologia para a saúde materno-infantil: experiências de um
estágio supervisionado”, de Luciana Leonetti Correia, Ana Beatriz Bento Gonçalves
Lemes e Alexandra Naomi Hiraide Degaki, teve por objetivo abordar o trabalho do
psicólogo hospitalar, mais especificamente na saúde materno-infantil, a partir da
descrição da estruturação de um campo de estágio. No décimo sexto capítulo,
“Economia Solidária: uma intervenção de estágio em lavanderias comunitárias”, as
autoras Sandra Fogaça Rosa Ribeiro e Sonia Tsai Huang compartilham a experiên-
cia de intervenção no âmbito da economia solidária realizada em duas lavanderias
comunitárias do município de Dourados/MS. Em seguida, no décimo sétimo capí-
tulo, “Programa de Orientação Profissional na Educação Profissional e Tecnológica:
Reflexões acerca do estágio em Psicologia Escolar”, Lígia Rocha Cavalcante Feitosa
discute a concepção de um programa de orientação profissional no contexto da
educação profissional e tecnológica a partir do relato de supervisão de estagiários
em psicologia escolar e reflete sobre a importância da intervenção ampliada e
institucional evidenciada pelo trabalho do psicólogo escolar na educação profis-
sional e tecnológica. O décimo oitavo artigo, “O cotidiano do SUS como espaço de
(trans)formação”, de Catia Paranhos Martins, Esmael Alves de Oliveira, Bruno Passos
Pizzi, Elenita Sureke Abílio e Letícia da Silva Pereira, apresenta experimentações,
questionamentos e desafios da Psicologia Social e Saúde Coletiva compreendidos
em práticas realizadas no âmbito de estágios em Unidades Básicas de Saúde, nas
Estratégias de Saúde da Família e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS-II e
CAPS-ad). Por fim, o último capítulo do livro, “Desafios do acompanhamento familiar
no período pós-adoção: experiências do estágio supervisionado em Psicologia
Jurídica”, de Verônica Aparecida Pereira, Bruno Carvalho dos Santos, Diana Rasteli
Santos, Endy Willians de Assis Gomes, Letícia Yurica Koizumi Mendes, reflete sobre
a necessidade de apoio e acompanhamento da constituição parental pela via da
adoção a partir do relato de experiência de um estágio constituído com o intuito
de desenvolver um programa de acompanhamento de famílias que se encontram
em estágio de convivência: o grupo de pós-adoção na Comarca de Dourados-MS.
Para finalizar, gostaríamos de ressaltar que o processo de produção
desta obra propiciou o estreitamento do diálogo entre os autores sobre a
experiência de realização dos estágios supervisionados, o que resultou no
fortalecimento do vínculo entre os docentes do curso de Psicologia da UFGD.
Estimamos que as reflexões aqui contidas sejam frutíferas para aprofundar
a reflexão sobre princípios comuns que permeiam as diferentes práticas e
abordagens empreendidas no âmbito da formação em Psicologia.

Carolina de Campos Borges


Conrado Neves Sathler
Luciana Leonetti Correia
(Organizadores do livro)
PREFÁCIO

Inúmeras são as razões para escrever um livro sobre estágios. Para-


benizo os professores que o idealizaram e a universidade porque acreditou
na iniciativa, possibilitando que se tornasse realidade. Antes de falar sobre
essas razões, falarei sobre a importância do convite para escrever o prefácio
desse livro. Como docente e, principalmente, como supervisora de estágio, já
há algum tempo — um bom tempo, aliás —, foi com muito carinho que acei-
tei o convite de prefaciar este livro. Aprende-se de diversas maneiras: lendo
textos, participando de aulas teóricas, discutindo com amigos na elaboração
de seminários, preparando a apresentação de um tema, em discussões em
grupos de estudo, desenvolvendo uma pesquisa... Aprende-se nas muitas
oportunidades que a graduação nos oferece. Mas uma das aprendizagens
mais ricas com certeza acontece nos estágios e nos projetos de extensão
à comunidade. Participar de projetos de extensão tem sido escolha dos
alunos, mas o estágio é uma prática obrigatória.
O estágio é o embate com a prática, não direcionada como o
desenvolvimento de um projeto de pesquisa ou a reflexão em um grupo
de estudo, ou, muitas vezes, passiva como assistir uma aula expositiva. O
estágio, por acontecer em contextos naturais, oferece a oportunidade de
enfrentar problemas reais para os quais é preciso, muitas vezes, avaliar,
planejar e executar ações rapidamente, a fim de solucioná-los. Mesmo em
situações mais planejadas, como o caso de Orientação Profissional, em que
pode haver previamente uma programação, a adaptação às expectativas
de cada grupo é um desafio que pode acontecer a cada sessão.
Inicialmente, o estágio em Psicologia era oferecido no último ano do
curso, em atividades quase que exclusivamente clínicas. As possibilidades
de trabalho em Psicologia foram ampliadas para as áreas escolar, organiza-
cional, social e, mais recentemente, hospitalar e jurídica, dentre muitas outras.
Todavia, a busca por estágios era de inciativa do próprio aluno, interessado
em outras aprendizagens. Isso resultou em diretrizes para os cursos com
a valorização de aprendizagens práticas em anos iniciais do curso. Alguns
têm início já no segundo ano. Quanto mais cedo a prática, maiores e mais
acertadas têm chance de ser as escolhas profissionais mais tarde.
Todavia, para os docentes, o rol de disciplinas práticas aumentando
ao longo do curso exigiu o desenvolvimento de outras estratégias de ensino,
pautadas em desenvolvimento de projetos adequados às competências
dos alunos de cada ano da graduação. Os desafios foram sendo vencidos.
O que temos neste livro são relatos de experiências dos vários níveis que
demonstram a crescente complexidade dos trabalhos desenvolvidos.
Um outro ponto importante de aprendizagem é o exercício de re-
latar o estágio feito. Como descrever, em um texto com número reduzido
de páginas, as ações desenvolvidas em bimestre, semestre ou ano? Como
definir o recorte? Tanta coisa para contar... Mas a redação cuidadosa feita
nos capítulos deste livro mostra que isso é possível, e com qualidade! Louvo
o esforço para, com o relato, validar publicamente a experiência do estágio
além dos seus contextos naturais.
Uma outra razão para escrever um livro sobre estágios é a sociali-
zação da experiência. Observa-se, em alguns dos capítulos, sugestões de
aprimoramento, de continuidade. Futuros estagiários poderão dar continuida-
de, replicar experiências ou, ainda, propor coisas bem diferentes do que já
foi feito. A última razão que quero discutir aqui é a divulgação de atividades
desenvolvidas por alunos que cursam uma universidade pública. Pode sig-
nificar devolver à comunidade um pouco do conhecimento produzido e das
possibilidades de atuação da Psicologia em contextos onde isso só é possível
via estagiários, por não disporem dos profissionais atuando rotineiramente.
Este livro é o primeiro dos livros de estágios dos muitos que ainda virão,
elaborados pelos docentes e alunos deste curso de Psicologia. Servirá como
exemplo de que é possível e necessário descrever as ações da Psicologia apli-
cada em contextos reais para a população do entorno da universidade. Ganham
todos: a Psicologia, a comunidade e os futuros alunos deste curso de graduação!

Prof.ª Dr.ª Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues


SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 - DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES SOCIAIS EM CRIANÇAS E


FAMILIARES: uma possibilidade de abordagem inclusiva da queixa escolar . . . . . . . 22
Regina Célia Alves Barreira; Ana Flávia Batista Sousa; Diana Rasteli Santos; Natália Marcela Pain
Oliveira; Waldety Stéffany Ferreira Flores

CAPÍTULO 2 - O HUMOR COMO FORMA DE DEFESA NO TRABALHO NO CONTEXTO


DE UMA ALA PSIQUIÁTRICA DE UM HOSPITAL GERAL. . . . . . . . . . 42
Sanyo Drummond Pires; Caroline Matos Chaves da Silva; Giovanna Lemos Ferraz

CAPÍTULO 3 - O ESTÁGIO BÁSICO EM PSICOLOGIA NO CONTEXTO DA PANDEMIA


POR COVID-19. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Veronica Aparecida Pereira; Fernanda Pinto; Ada Oliveira da Silva

CAPÍTULO 4 - ROTINA FAMILIAR E ESTIMULAÇÃO COGNITIVA EM CONTEXTO DE


PANDEMIA: construção de cartilhas psicoeducativas para crianças e seus cuidadores . . . 75
Adriana Yuri Kaneko; Alisson Júnior Bueno Nascimento Alves; Regina Basso Zanon

CAPÍTULO 5 - O CONSELHO MUNICIPAL DE DIREITOS DAS MULHERES DA CIDADE DE


DOURADOS-MS: relato de experiência de Estágio de Núcleo Comum . . . . . . . 92
Gabriela Rieveres Borges de Andrade; Letícia Silva Pereira; Michelli Palmeira

CAPÍTULO 6 - O RELATÓRIO DE ESTÁGIO EM POLÍTICAS PÚBLICAS: pesquisa, análise e


ensino de escrita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Conrado Neves Sathler; Thissiane Fioreto

CAPÍTULO 7 - “ISSO DÁ DINHEIRO?” REFLEXÕES SOBRE JUVENTUDES E ORIENTAÇÃO


PROFISSIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
Dardielle Santos-Dias; Aldenora Oliveira Coutinho Libraiz; Daniela dos Santos Sales; Mayara
Vieira Santos; Rebeca Brandão Maia; Verônica Ayumi Oshiro; Jaqueline Batista de Oliveira Costa.
CAPÍTULO 8 - VENTURAS E DESVENTURAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORAS(ES) DE
PSICOLOGIA NA PANDEMIA DE COVID-19. . . . . . . . . . . . . . 128
Gabriela Manzoni Leite; Bárbara Yumi Brandão Sakane; Denise Mesquita de Melo Almeida

CAPÍTULO 9 - SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE PANDEMIA: relato de uma oficina on-line


de psicologia com estudantes do ensino médio técnico . . . . . . . . . . . . 145
Ianara de Lima Mendonça; Allana Isabella Souza; Jaqueline Batista de Oliveira Costa

CAPÍTULO 10 - CONCEITUALIZAÇÃO COGNITIVA NO TRANSTORNO OBSESSIVO


COMPULSIVO: relato de uma prática clínica supervisionada. . . . . . . . . . 159
Isabela Degani de Oliveira; Thais Michelle Kohler Barbosa; Regina Basso Zanon

CAPÍTULO 11 - DO ÚTERO DE PEDRA AO (RE)NASCIMENTO NA


PSICOTERAPIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172
Giovanna Loubet Ávila; Rosalice Lopes

CAPÍTULO 12 - UM OLHAR PARA O CONTEXTO: especificidade do cuidado em Terapia


Familiar Sistêmica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189
Carolina de Campos Borges; Daiany Penzo; Tamiris Imai

CAPÍTULO 13 - A SUPERVISÃO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COMO SUSTENTAÇÃO


PARA O DEVIR DO PSICÓLOGO CLÍNICO . . . . . . . . . . . . . . 203
Maria Salete Junqueira Lucas

CAPÍTULO 14 - PLANTÃO PSICOLÓGICO EM UMA CLÍNICA-ESCOLA: atravessamentos da


pandemia da Covid-19. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217
Gabriela Manzoni Leite; Adrielly Louise Alves Leal; Endy Willians de Assis Gomes; Pamela Staliano

CAPÍTULO 15 - CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA PARA A SAÚDE MATERNO-


INFANTIL: experiências de um estágio supervisionado . . . . . . . . . . . 233
Luciana Leonetti Correia; Ana Beatriz Bento Gonçalves Lemes; Alexandra Naomi Hiraide Degaki.

CAPÍTULO 16 - ECONOMIA SOLIDÁRIA: uma intervenção de estágio em lavanderias


comunitárias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
Sandra Fogaça Rosa Ribeiro; Sonia Tsai Huang

CAPÍTULO 17 - PROGRAMA DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL NA EDUCAÇÃO


PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA: reflexões acerca do estágio em Psicologia Escolar . . 262
Lígia Rocha Cavalcante Feitosa
CAPÍTULO 18 - O COTIDIANO DO SUS COMO ESPAÇO DE (TRANS)FORMAÇÃO. . 273
Catia Paranhos Martins; Esmael Alves de Oliveira; Bruno Passos Pizzi; Elenita Sureke Abílio;
Letícia da Silva Pereira

CAPÍTULO 19 - DESAFIOS DO ACOMPANHAMENTO FAMILIAR NO PERÍODO PÓS-


ADOÇÃO: experiências do estágio supervisionado em Psicologia Jurídica. . . . . . 290
Veronica Aparecida Pereira; Bruno Carvalho dos Santos; Diana Rasteli Santos; Endy Willians de
Assis Gomes; Letícia Yurica Koizumi Mendes

SOBRE OS AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307


formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 1
DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES
SOCIAIS EM CRIANÇAS E FAMILIARES:
uma possibilidade de abordagem inclusiva da
queixa escolar

Regina Célia Alves Barreira


Ana Flávia Batista Sousa
Diana Rasteli Santos
Natália Marcela Pain Oliveira
Waldety Stéffany Ferreira Flores

A demanda por atendimento psicoterápico para crianças e adoles-


centes nos aparatos públicos de saúde muitas vezes apresenta morosidade
para o início do atendimento, gerando longas filas de espera. Além do for-
mato de atendimento clínico individual, constituído por várias sessões, em
geral mais longas quando comparadas aos atendimentos médicos, também
contribui para a lentidão para o atendimento a significativa procura oriunda
de encaminhamentos de escolas, como indicam estudos sobre estas de-
mandas em diferentes instituições e estados brasileiros (MARÇAL; SILVA,
2006; BORDINI et al., 2012; BELTRAME; BOARINI, 2013).
As características das queixas escolares que levam ao encaminha-
mento das crianças para serviços de Psicologia muitas vezes têm origem
na falta de compreensão do processo de desenvolvimento infantil, na
idealização das crianças, no interesse pela homogeneização dos processos
de escolarização e da expectativa de imediata adaptação das crianças ao
ambiente escolar, como revela Proença (2002). Considerando o perfil desta
demanda, o processo psicoterápico individual pode não ser uma interven-

22
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

ção mais adequada. Além disso, corre-se o risco de reforçar o processo de


medicalização, patologização e exclusão nas escolas e a estigmatização das
relações escolares da criança ao corroborar com a atribuição do fracasso
escolar a aspectos individuais e desviantes da normalidade.
Uma estratégia possível para lidar com a demanda das escolas é
levar maior conhecimento e compreensão sobre o desenvolvimento infantil
e a saúde mental das crianças para as escolas. Porém, uma mudança con-
sistente, ampla e duradoura que vença o domínio da medicalização nas
escolas deve levar muito tempo, mesmo com esforços vastos e contínuos.
Enquanto isso, o sistema de saúde continua sobrecarregado com a demanda
por tratamento psicológico de crianças e ainda permanece dando respaldo
ao processo de medicalização e estigmatização das crianças nas escolas.
Portanto, faz-se necessário elaborar estratégias para atender a
grande demanda de crianças encaminhadas pelas escolas para atendi-
mento psicológico, de forma a permitir maior celeridade no atendimento
de crianças que realmente carecem de um trabalho psicoterápico. Parte
desta demanda por atendimento psicológico seria beneficiada por trabalhos
com foco mais específico em habilidades comportamentais, dado que as
queixas apresentadas muitas vezes são apenas desta natureza. Além disso,
deve-se romper com o processo de exclusão e estigmatização sofrido por
estas crianças por meio de um trabalho que seja inclusivo, trazendo maior
autonomia para seu processo de escolarização e para seu funcionamento
no mundo, em geral.
O formato de trabalho em grupos é muito favorável para este público,
principalmente com formações heterogêneas, possibilitando a troca e rom-
pendo com estigmas que podem surgir ao optar pela formação de grupos
por características específicas. Favoráveis às intervenções em grupo com
crianças, Caballo (1999), Silvares (2000) e Del Prette e Del Prette (1999) apon-
tam que estas favorecem a socialização da criança, o que facilita a emersão
dos comportamentos rotineiros, como com os irmãos e os colegas da escola.
Além disso, a troca de experiências que o grupo proporciona, tanto entre
pais quanto entre as crianças, favorece o comportamento de resolução de
problemas, de modo que os participantes, com o auxílio de moderadores/

23
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

psicólogos, chegam juntos a soluções. Dessa forma, o grupo se torna parte


interventora da mudança de comportamento de seus membros. A possibili-
dade de um trabalho complementar e paralelo, envolvendo um familiar da
criança, acrescenta a criação de um ambiente que permita a manutenção do
repertório adquirido e sua generalização para outros contextos.
Quanto às habilidades sociais — entendidas como o conjunto de ha-
bilidades que um indivíduo possui para articular seus sentimentos e desejos
de forma saudável, respeitando a si mesmo e ao outro — compreende-se
que a criança, desde a tenra idade, ao possuir um vasto repertório tende
a lidar melhor com conflitos e a ter uma maior capacidade de resolução
de problemas. Segundo Dias et al. (2011), habilidades sociais desenvolvem e
previnem possíveis problemas do comportamento, assim como possibilitam
que as crianças interajam mais assertivamente com os colegas/amigos,
familiares e professores.
Sendo assim, observa-se que o treino de habilidades sociais é favo-
rável ao processo de aprendizagem quando as habilidades adquiridas não
foram suficientemente desenvolvidas, visando seu aperfeiçoamento. Além
disso, segundo Caballo (2010), o Treinamento de Habilidades Sociais en-
contra-se entre as técnicas mais potentes e mais frequentemente utilizadas
para o tratamento de problemas psicológicos, para a melhoria da efetividade
interpessoal e da qualidade de vida.
Ademais, crianças com dificuldades socioemocionais, sendo passi-
vas ou agressivas em suas relações, podem não apresentar comportamentos
necessários ao processo ensino-aprendizagem. Por isso, diante do fracasso
escolar, as escolas, inúmeras vezes, recorrem ao encaminhamento para os
serviços de saúde, ocasionando a sobrecarga destes e contribuindo para a
estigmatização das crianças e medicalização do processo de escolarização.

24
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Um novo rumo para a demanda por atendimento psicológico


de crianças

Este capítulo descreve um trabalho realizado que visou contribuir


com o enriquecimento do repertório de habilidades comportamentais de
crianças encaminhadas para tratamento psicoterápico. Além de constituir uma
estratégia para assistir ao contingente de crianças que buscam atendimento
em diferentes instituições, permitindo a priorização de casos que careçam
de atendimento individual, este trabalho intencionou favorecer a inclusão de
crianças que apresentem queixas direcionadas a comportamentos compre-
endidos como pouco adaptados, principalmente no ambiente escolar.
Os objetivos principais que guiaram o planejamento de ações voltadas
para este público foram: o desenvolvimento e aprimoramento de habilidades
de reconhecimento e expressão de emoções de forma assertiva; o fortale-
cimento da autoestima em conjunto com a psicoeducação sobre aceitação
e exclusão entre seus pares; o aprimoramento de habilidades sociais de co-
municação; e o estabelecimento ou reconhecimento de uma rede de apoio e
confiança. A escolha de cada objetivo teve como base a compreensão de que,
ao desenvolver tais habilidades comportamentais, as crianças estariam mais
preparadas para lidar com as adversidades que enfrentam em seu cotidiano,
sem a necessidade de atendimento psicoterápico individual.
Em relação aos familiares das crianças que compõem o púbico alvo,
o objetivo principal foi a obtenção de melhores resultados da intervenção,
criando um ambiente que favoreça a manutenção e generalização dos reper-
tórios adquiridos pelas crianças, por meio do aprimoramento dos repertórios
de: ouvir as crianças e conversar de maneira assertiva com elas; identificar
as suas próprias características como pessoa, assim como as características
de seus filhos; trabalhar a sua autoestima e dar suporte ao fortalecimento
da autoestima dos filhos; reconhecer suas próprias emoções e as emoções
das crianças, assim como identificar e atender as necessidades das crianças.

25
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Linhas-guia

Um dos fios condutores do trabalho proposto foi a Psicologia Escolar


Crítica. Antunes (2008) situa a origem desta perspectiva na crítica radical de
práticas reducionistas da Psicologia na Educação que reforçavam estigmas
e preconceitos, culpabilizando os alunos por seus “problemas” e descon-
siderando a múltipla determinação do processo educativo. Assim, esta
perspectiva crítica da Psicologia Escolar e Educacional se opõe às práticas
tradicionais de medicalização e patologização do processo de escolarização
que estigmatizam e excluem. A Psicologia Escolar Crítica, ao explicitar a
construção complexa da queixa escolar, pode orientar nas formas de abor-
dá-la em sua complexidade.
Outro fio condutor do trabalho refere-se à Análise do Comporta-
mento. Os princípios da Análise do Comportamento, conforme proposta
por Skinner (1994), permearam a concepção do desenho das atividades
propostas, enquanto estímulos apresentados aos participantes, e a análise
dos comportamentos individuais observados.
A perspectiva de uma Educação Libertadora proposta por Paulo Frei-
re também está presente no trabalho, em uma intervenção psicoeducativa
que contribui para a autonomia da criança e, em especial, para o trabalho
junto aos familiares, permitindo uma educação em que esteja presente o
diálogo e em que se valorizem os saberes da criança. Para isso, houve signi-
ficativa contribuição do trabalho realizado por Szymanski (2000), que aborda
especificamente a possibilidade de realizar intervenções psicoeducativas
com a família sob a ótica de Paulo Freire.

Definindo o campo de estágio

O trabalho fez parte das atividades de Estágio Supervisionado


de Núcleo Comum do curso de Psicologia da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD) no ano de 2018 e contou com duas docentes
supervisoras, oito (e posteriormente dez) estagiárias e um ano para seu
desenvolvimento e execução.

26
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A proposta inicial foi atender a Policlínica de Atendimento Infantil


(PAI) da cidade de Dourados-MS. A instituição recebe crianças que buscam
o Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade e fornece atendimento médico,
odontológico, fonoaudiológico e psicológico. Com apenas duas profissio-
nais disponíveis para atendimento psicológico, os gestores da PAI contam
com uma longa fila de crianças à espera deste serviço e concordaram em
receber estagiários para a realização de triagem das crianças nas Unida-
des Básicas de Saúde e condução dos grupos em espaço disposto pela
própria PAI em sua sede.
O cronograma de trabalho previa a condução de estudos teóricos e
triagem no primeiro semestre letivo e o desenvolvimento de um protocolo
para trabalho em grupos psicoeducativos de crianças e seus familiares. Con-
tudo, entraves burocráticos impossibilitaram que o trabalho fosse realizado
junto à PAI. Sendo assim, o primeiro semestre letivo acabou sendo dedicado
exclusivamente aos estudos e o segundo semestre se iniciou ainda sem a
realização da triagem.
Buscando um novo caminho para o estágio, a supervisora e as esta-
giárias identificaram uma demanda com características muito semelhantes
às da PAI dentro da própria UFGD: a própria clínica-escola do curso de
Psicologia da UFGD, ou seja, no Laboratório Serviço de Psicologia Aplicada
(LabSPA). O LabSPA recebe inscrições de pessoas da comunidade em busca
de atendimento psicológico. O público adulto é acolhido pelos estagiários do
Plantão Psicológico, que também realizam uma triagem para o atendimento
pelos grupos de estágio supervisionado em Psicologia Clínica. Já as crianças
não passam por tal triagem, havendo apenas a anotação dos contatos dos
responsáveis e informações básicas sobre a criança pela técnica do LabSPA
no momento da procura pelo laboratório. Foi relatado pela técnica uma
grande frequência de encaminhamentos de escolas entre as crianças que
buscam atendimento no LabSPA. Tal tendência é confirmada por estudos
que caracterizam a clientela de clínicas-escola de Psicologia (PROENÇA,
2002; ROMARO; CAPITÃO, 2003; CAMPEZATTO; NUNES, 2007; MARAVIESKI;
SERRALTA, 2011). Sendo assim, tinha-se no LabSPA, além de um perfil de
demanda muito semelhante ao da PAI, um problema muito parecido em

27
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

relação à morosidade do atendimento, visto que poucos estágios acolhiam


crianças. Desse modo, o trabalho planejado para a PAI foi transferido para o
LabSPA, mantendo nossos objetivos pois ainda havia salas para trabalho em
grupo que poderiam ser utilizadas pelas estagiárias.

A triagem

Após a autorização da coordenação do LabSPA para a realização


das atividades do estágio, iniciamos o processo de triagem em duas eta-
pas. Primeiro, analisamos o caderno com os contatos dos responsáveis das
crianças cadastradas para atendimento psicológico. Nele constavam a data
em que o responsável esteve no LabSPA e o seu nome, além do nome da
criança e o contato telefônico. Na maioria dos casos, havia uma indicação do
motivo da procura pelo LabSPA. Alguns registros haviam sido feitos há mais
de um ano; outros tinham uma anotação indicando que foram acolhidos para
atendimento clínico, e muitos mencionavam o encaminhamento pela escola
da criança. Contudo, a maioria apresentava como queixa alguma dificuldade
em relação ao comportamento da criança.
Buscamos contato com todos os responsáveis, exceto com aqueles
que a criança já havia recebido atendimento ou tinha indicação por alguma
queixa que exigisse mais que uma intervenção psicoeducativa e carecessem
de atendimento individual, como em casos de relato de comportamentos
autolesivos. Em decorrência do longo tempo transcorrido entre a procura do
LabSPA e a nossa tentativa de contato, muitos números telefônicos já não
pertenciam ao responsável. Muitos responsáveis também não atenderam
ou não retornaram as mensagens enviadas.
Os responsáveis que responderam ao contato realizado foram infor-
mados sobre a possibilidade de atendimento em grupos e convidados para
uma entrevista de triagem, para que pudessem dar mais informações sobre
o motivo da procura do LabSPA e para que pudéssemos saber quais crianças
tinham perfil para o trabalho que estávamos desenvolvendo. Assim, identifica-
mos que todas as queixas relatadas se enquadravam nos critérios estabeleci-

28
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dos para os grupos e, logo, que se tratavam de repertórios comportamentais


de crianças que não tinham condição patológica ou de vulnerabilidade e que
geravam queixa nos seus ambientes sociais, principalmente escolar.
Os familiares foram convidados a participar dos grupos, que ocorre-
riam em dois horários distintos, sendo um à tarde e outro no início da noite.
Ao final das confirmações de participação nos grupos, de acordo com a dis-
ponibilidade das crianças e familiares, foram formados quatro grupos com
três participantes cada: dois grupos compostos por crianças e outro dois
pelas suas respectivas mães. Essas atividades foram realizadas por duas
equipes de cinco estagiárias, cada equipe atendendo em um dos horários
um grupo de crianças e outro composto pelas respectivas mães.
Todas as crianças que participaram dos grupos tinham 6 ou 7 anos
de idade, o que dispensou qualquer segmentação dos grupos por idade.
Já o grupo de mães foi composto pelas genitoras das crianças, por estas
terem se apresentado como o familiar disponível para o trabalho e de forte
vínculo com a criança, que foram os critérios para a seleção do familiar que
participaria do grupo, tendo sido aberto para qualquer outro familiar que
atendesse estes critérios.

Plano de trabalho, aplicação e resultados principais

Relataremos aqui as atividades desenvolvidas para cada encontro


dos grupos de crianças e de mães. Na sequência do relato das atividades,
serão descritos os principais resultados obtidos nos encontros, como temá-
ticas que emergiram mais frequentemente, relatos comuns e mudanças
comportamentais identificadas.
Foi selecionado para este relato um dos grupos de crianças e o
grupo de suas respectivas mães, cujos encontros aconteceram no período
vespertino. Estes grupos contavam com três participantes cada, havendo
uma frequência nas sessões que variou de um a três participantes.
O programa teve cinco encontros com frequência semanal, nos
quais o grupo de mães e o grupo de crianças ocorreram simultaneamente. A

29
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

intervenção com as mães consistiu em promover a aprendizagem de práti-


cas educativas parentais assertivas, com base nos princípios analítico-com-
portamentais, buscando o fortalecimento das relações parento-filiais por
meio do desenvolvimento de habilidades de comunicação, que favorecem
a manutenção do repertório de habilidades comportamentais desenvolvido
diretamente com as crianças. O trabalho com as crianças foi elaborado com
foco no fortalecimento do repertório de habilidades sociais, abordando
temas relativos a autoestima, comunicação assertiva e expressão e reco-
nhecimento de emoções. As atividades do programa foram planejadas
semanalmente, por meio de discussão e cooperação entre a supervisora e
as estagiárias. Nas reuniões de estágio, os resultados das atividades anterio-
res eram analisados, além de desenvolvidas as estratégias e os recursos a
serem utilizados em cada sessão.

Grupo de crianças

A sessão inicial com as crianças teve por objetivo o acolhimento e a


criação de vínculo entre os participantes. Além de esclarecer às crianças os
objetivos do trabalho e sua natureza lúdica, foram realizadas três atividades.
A primeira atividade proposta foi “Batata quente com Lego”, na qual todos se
sentam em círculo e é posto no centro um modelo montado com peças de
Lego. Os participantes devem fazer uma montagem igual ao modelo usando
outras peças e, então, desmontá-las e passar para a pessoa ao lado antes
que a música pare. Quem estiver com as peças quando a música parar deve
responder uma pergunta sobre si. A segunda atividade foi uma adaptação
da brincadeira de “Corre cotia”, na qual há a formação de uma roda de crian-
ças sentadas no chão e uma outra criança corre pelo lado de fora da roda
com um objeto na mão e larga esse objeto atrás de uma das crianças que
se encontrava na roda. Esta criança escolhida tem, então, que se levantar
e correr até alcançar a criança que deixou o objeto, ficando o perdedor de
fora da roda e o ganhador no lugar da criança escolhida para deixar o objeto.
Nessa adaptação, quem ficar em pé fora da roda responde a uma pergunta

30
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

da atividade anterior sobre a pessoa que tomou o seu lugar na roda. A última
atividade do encontro consistiu em confeccionar uma peteca a partir de
materiais simples, com base em um modelo em exposição.
O segundo encontro do grupo infantil foi composto por duas ativida-
des que tiveram como objetivo realizar modelagem e modelação de com-
portamentos assertivos em situações-problema, ressaltando a importância
de saber comunicar seus sentimentos e pensamentos de forma assertiva,
além de identificar a necessidade de pedir ajuda em alguns momentos. Uma
das atividades era apresentar e narrar de forma lúdica algumas ilustrações
com situações problemáticas que fazem parte do cotidiano das crianças,
como um estranho oferecendo um presente, uma criança olhando uma
vidraça quebrada, uma mulher brigando com uma criança e uma criança le-
vantando outra pela mochila, e perguntar o que a criança faria e para quem
contaria se estivesse naquela situação. A segunda proposta foi solicitar que
as crianças desenhassem as pessoas nas quais elas confiavam e apresen-
tassem ao grupo o desenho.
O terceiro encontro foi planejado com três atividades, visando
esclarecer e explorar os conceitos de autoestima, exclusão e aceitação. A
primeira atividade foi o desenho de como a criança se vê e a apresentação
para o grupo das características que cada um destacou. Na sequência, ela-
borou-se uma dinâmica que consistia em rasgar ou danificar um coração
de cartolina, enquanto comentavam algo que os incomoda ou entristece,
como se as vivências mencionadas tivessem “lhe partido o coração”. Em
seguida, o coração era reconstruído, colando suas partes em uma cartolina
nova e enfeitando-o e, a cada ação de reconstrução do coração, os par-
ticipantes falavam coisas boas que ouviram sobre eles mesmos. A última
atividade para esse encontro foi a exposição e reflexão acerca de vídeos
infantis que abordavam temas como bullying, provocações, autoestima,
aceitação e exclusão.
A quarta sessão foi dedicada às principais emoções (raiva, tristeza,
medo e alegria), onde o foco era o reconhecimento, a expressão e a apren-
dizagem de formas eficientes de lidar com elas. Na atividade inicial, foram
apresentados quatro potes que representavam emoções: um pote com

31
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

pedras para simbolizar a raiva, um com brinquedos para a felicidade, outro


com um rato de brinquedo para o medo e, por fim, um pote vazio e escuro
para a tristeza. Foi proposto às crianças que adivinhassem o que cada pote
representava e que, ao descobrirem a emoção representada pelo pote, a
relacionassem com alguma vivência sua. Na atividade seguinte, a propos-
ta era que a criança pintasse, em sua própria silhueta desenhada em um
papel grande, onde sente cada emoção, usando cores predefinidas corres-
pondentes às emoções. Ao final do encontro, foram ensinadas técnicas de
relaxamento para controle do estresse e ansiedade.
O último encontro com as crianças teve como objetivo fornecer
uma devolutiva aos participantes e retomar os principais temas abordados
em cada sessão, além de reforçar as habilidades aprendidas e motivar as
crianças a continuar praticando. Foi elaborado um jogo em que pequenas
mensagens eram escondidas, uma de cada vez, embaixo de copos virados,
que eram misturados (fazendo com que a mensagem se movesse com eles).
A criança deveria descobrir onde estava a mensagem e lê-la em voz alta e,
em seguida, discorrer sobre o que compreendeu. Cada mensagem continha
frases positivas sobre as crianças e de reflexão sobre os temas. A atividade
de encerramento foi elaborada para ser uma lembrança do processo do
grupo, na qual as crianças escreveram cartas para elas mesmas no futuro,
destacando o que aprenderam durante as sessões e fazendo lembretes
sobre suas habilidades e principais características positivas. As cartas foram
fechadas em envelopes enfeitados pelas crianças e foi proposto que as
abrissem, no mínimo, um ano depois.
Durante os encontros com as crianças, eram promovidos diálogos
com as estagiárias suscitados pelas atividades. As estagiárias discutiam o
que foi produzido direcionando para a modelagem dos comportamentos
alvo por meio de exemplos, questionamentos e problematizações. Outros
temas que surgiram nestas conversas foram as relações com os amigos e
colegas, a família, a escola, as atividades favoritas e as perdas. Destacam-se,
dentre estes temas, as agressões físicas e verbais recorrentes por parte
dos colegas da escola e aparente omissão das instituições. Em relação às
perdas mencionadas, encontram-se a morte de entes queridos e animais

32
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de estimação, a separação dos pais e acidentes com sequelas das crian-


ças e das mães. Estes temas foram conduzidos pelas estagiárias de forma
a contribuir com os objetivos definidos para os encontros, visto que eram
relevantes para os participantes.
Além das conversas sobre as atividades, também eram realizadas
brincadeiras mais espontâneas, principalmente no início da sessão enquanto
aguardavam a chegada os demais participantes, como brincar de bambolê.
As crianças se mostravam descontraídas, riam com as brincadeiras e de-
monstravam que gostariam de continuar as atividades ao término da sessão.
Também chegavam muito animadas ao LabSPA. Nas ocasiões em que uma
criança que não esteve presente no primeiro encontro passou a compor o
grupo, foi realizada novamente a atividade “corre cotia” para sua integração.
Os participantes mudaram seu padrão de respostas diante das
intervenções das estagiárias. Soluções como agredir, mentir e ameaçar,
apresentadas pelas crianças diante de situações-problema, deram espa-
ço a alternativas mais assertivas após a problematização. Ainda souberam
descrever o que aprenderam de diferente do que já sabiam sem a ajuda
das estagiárias.

Grupo de mães

No grupo de mães, a primeira sessão teve por objetivo realizar a


apresentação do grupo e introduzir alguns temas que seriam trabalhados
posteriormente. Para isso, foi realizada uma breve apresentação das mães
e, posteriormente, foi aplicada a dinâmica da caixa. Para essa dinâmica, é
necessária uma caixa contendo frases sobre alguns pensamentos e compor-
tamentos envolvendo habilidades sociais. As mães deveriam retirar uma frase,
lê-la e dizer se concordavam ou não com a mensagem, explicando o motivo.
O segundo encontro focou na assertividade das mães e nas formas
como elas se comunicam com seus filhos. Nesse encontro, contamos com
a dinâmica “Até que ponto sou assertivo”, em que os participantes deveriam

33
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

identificar e relatar situações em que se comportavam de três formas distin-


tas: não assertiva (passiva), agressiva e assertiva.
O terceiro encontro foi dedicado ao trabalho sobre autoestima. Uti-
lizaram-se vídeos animados sobre autoestima, bullying e temas afins, além
de materiais como folhas sulfite e lápis de cor. Após a apresentação dos
vídeos, foi realizado um debate sobre o conteúdo de cada um deles. Então,
as mães desenharam seus filhos da forma que os veem e escreveram quais
características positivas os filhos possuíam, explicando o que o desenho
significava e o porquê daquelas características. Depois, foi pedido às mães
que desenhassem seus filhos como elas imaginam que eles serão quando
crescerem e quais características eles terão. Por fim, foi solicitado que elas
desenhassem a si próprias e como elas se veem.
A quarta sessão foi voltada para o reconhecimento das emoções.
As mães foram auxiliadas a reconhecer suas próprias emoções e como elas
afetam suas relações, além de trabalhar o reconhecimento das emoções de
seus filhos. Ainda foram orientadas a escrever uma lista de sentimentos e
emoções que eles possuem e dar um significado para cada um. Em seguida,
foi orientado que fizessem o mesmo exercício, dessa vez listando as emo-
ções que reconheciam nos filhos. Ao final, foi entregue às mães uma folha
impressa com a descrição de dinâmicas envolvendo o reconhecimento de
emoções para que elas pudessem realizá-las, em casa, com seus filhos,
quando achassem necessário, a fim de ajudá-las a entender os sentimentos
das crianças.
No quinto e último encontro, foi proposta uma recapitulação com as
mães sobre o que havia sido trabalhado nas sessões anteriores por meio de
uma conversa. Depois, as mães foram convidadas a escrever um feedback
sobre o grupo, abordando pontos positivos e negativos e qual melhora cada
um teve, caso tivesse melhorado. Ao final, foi entregue a elas um certificado
de participação no grupo.
Os encontros começavam com uma conversa sobre as questões fa-
miliares em geral e sobre como foi a semana, privilegiando a conversa entre
elas para favorecer a identificação e troca. Os temas trazidos pelas mães
coincidiram com aqueles relatados anteriormente como emergidos das

34
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

conversas com as crianças. No caso das mães, muitas vezes estas atribuíram
as dificuldades dos filhos, inclusive as queixas escolares, às perdas sofridas.
Ao relatarem passividade em algumas situações e agressividade
em outras, o fizeram assumindo que suas posturas deveriam ser diferentes.
Porém, algumas vezes as mães respondiam de forma evasiva e superficial,
havendo um aprofundamento maior nas questões quando ocorria de apenas
uma mãe estar presente.
Destaca-se que, em ambos os grupos, os encontros terminavam com
sugestões para os participantes exercitarem o que foi trabalhado durante a
semana. No caso das mães, envolvendo a interação com os filhos e, no caso
das crianças, com atividades lúdicas como desenhos.

Percepções e compreensões sobre o trabalho desenvolvido

O principal tema trabalhado nos grupos com as mães foi a comuni-


cação entre elas e seus filhos, visando a assertividade no educar. Algo im-
portante a se destacar, que muitas vezes pôde ser observado nas sessões, é
a forma como as mães construíam uma identidade negativa dos seus filhos,
pautado no que elas não gostariam que eles fossem, conforme salienta
Szymanski (1999 apud SZYMANSKI, 2000). Ou seja, na intenção de que os
filhos não fossem pessoas más, as mães reforçaram sempre os comporta-
mentos que eles não deviam ter, aumentando a possibilidade de incidência
desses comportamentos.
A partir dessa percepção, a conversa com as mães se voltou para
o treino do “educar para ser” combinado ao de habilidades sociais, com o
intuito de que, além de serem modelos de comportamentos assertivos, as
mães reforçassem comportamentos incompatíveis com os comportamen-
tos problemáticos de seus filhos. Neste sentido, foi elaborada a atividade
em que as mães deveriam elencar qualidades dos filhos e projetar como
elas gostariam que eles fossem no futuro, para que ficassem sob controle
de estímulos que indicassem o comportamento que elas gostariam que os

35
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

seus filhos tivessem, reforçando-os, para a construção de um repertório o


mais próximo possível das melhores expectativas das mães.
Quanto à intensa presença de temas relacionados às perdas em
ambos os grupos, duas possibilidades, não excludentes entre si, merecem
ser ressaltadas. A primeira se trata da necessidade de abordagens que
favoreçam a elaboração da perda pela criança, seja pela família, escola ou
psicóloga(o), de modo que o desenvolvimento global da criança não seja
prejudicado. O tabu a respeito deste tema, principalmente quando aborda-
do com crianças, revelou-se nos encontros pelo relato de uma criança que
disse ter comentado com sua mãe que se sente triste pela morte de uma tia,
mas que a mãe apenas o orientou a não pensar nisso.
A segunda possibilidade diz respeito às explicações para o fracasso
escolar que tiram a responsabilidade da escola e atribuem a causa aos fa-
tores individuais. Assim, tal como a causa do fracasso escolar é comumente
atribuída a fatores biológicos, para os quais se buscam possíveis eventos
como causa, neste caso, pôde-se atribuir aos problemas emocionais, cau-
sados pela perda como origem do mau desempenho, encobrindo as reais
causas do fracasso escolar.
Esperava-se que as interações entre os participantes fornecessem
estímulos importantes para as mudanças em direção aos objetivos estabe-
lecidos. Isso porque as intervenções psicológicas grupais geralmente geram
troca de experiência e aprendizado para ambos os lados, como enfatizam
Vinogradov e Ialom (1992):

[...] Na terapia de grupo, [...] tanto as interações paciente-paciente


quanto as interações terapeuta-paciente são usadas, à medida
em que ocorrem no setting do grupo, para efetuar mudanças
no comportamento mal-adaptado de cada um dos membros
do grupo. Em outras palavras, o próprio grupo, bem como a
aplicação de técnicas e intervenções específicas pelo terapeuta
treinado, serve como instrumento de mudança (VINOGRADOV;
IALOM, 1992, p. 3).

Porém, não verificamos esse tipo de influência no grupo de mães,


conforme esperávamos. Apesar de as mães relatarem que estavam lidando

36
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

com seus filhos de forma diferente, principalmente em relação a dar mais ou


menos autonomia a eles, e que esta diferença fazia com que considerassem
a reformulação das regras estabelecidas para seus filhos, também foi possível
observar que elas ainda se sentiam constrangidas em relatar suas expe-
riências nas atividades na frente das demais, recorrendo a falas evasivas e
superficiais. Assim, percebemos uma repercussão maior nas interações entre
as estagiárias e as participantes do que nas interações entre as participantes.
Avaliamos que um número maior de encontros e uma maior frequência das
participantes potencializaria o efeito das interações entre elas.
Quanto ao grupo de crianças, a expressividade nas atividades foi
uma constante em todos os encontros e com todos os participantes. Elas
foram capazes de exprimir os aspectos subjetivos a serem trabalhados, de
forma a permitir intervenções das estagiárias focadas nos objetivos compor-
tamentais estabelecidos. Por exemplo, ao ser solicitado a colorir partes de
um corpo humano, com a cor e locais em que sentia raiva, um participante
pintou a mão direita e os pés de vermelho, explicando que ele sentia raiva
quando era agredido pelos colegas na escola e tinha vontade de socá-los
e chutá-los. Nesse caso, as estagiárias direcionaram a dinâmica para que o
participante pudesse lidar com a sua experiência de raiva, a fim de generali-
zar o comportamento aprendido nas situações de seu cotidiano.
Consideramos a possibilidade de o comportamento pouco assertivo
dos participantes do grupo de crianças que relataram como solução dos
problemas propostos pelas estagiárias como mentir, agredir e enganar pode
ter em sua determinação a contribuição dos adultos que elas tomam como
autoridade. Em várias ocasiões nos foram relatadas omissões dos adultos
em relação às crianças além de uma escuta punitiva, quando não ausente,
nos casos em que as crianças buscaram ajuda. Tomamos como exemplo os
relatos das crianças sobre gestores escolares que ignoravam as agressões
sofridas nas escolas e que, por vezes, até os culpavam, e mães que evitavam
escutar os sofrimentos dos filhos pelas perdas que os acometeram. Assim,
na ausência de adultos para ajudá-los e protegê-los, um repertório assertivo
não se mostraria funcional. Neste sentido, foi de grande valia o treino das
mães para estabelecerem uma escuta mais acolhedora dos filhos. Este as-

37
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

pecto mostrou que o trabalho paralelo com familiares parece fundamental


para garantir o ambiente para generalização dos comportamentos ensinados
nos encontros e para que não fossem fornecidas falsas regras, reforçando a
relevância da inclusão de familiares neste tipo de proposta de intervenção.

Perspectivas para os grupos psicoeducativos para crianças com


queixas relacionadas ao repertório de habilidades sociais

Os grupos psicoeducativos, como os citados neste capítulo, de-


monstraram uma forma profícua de atender uma demanda crescente de
encaminhamentos, provenientes das escolas, para atendimento psicoterá-
pico individual de crianças, as quais eram estigmatizadas ou patologizadas
por não dominarem formas eficientes de resposta para algumas situações
aversivas. Ao desenvolver um repertório de habilidades sociais assertivas,
alguns dos benefícios destes grupos para as crianças são: o fortalecimento
da autoconfiança e da autoestima, o desenvolvimento de habilidades empá-
ticas, entre outras habilidades comportamentais. Tais mudanças no repertó-
rio comportamental colaboram para a melhora do desempenho acadêmico
e das relações interpessoais, favorecendo a qualidade de vida da criança
(BOLSONI-SILVA; MARTURANO, 2002).
Além disso, Silva et al. (2000) apontam que as intervenções precisam
envolver também os cuidadores da criança, pois compreende-se que eles
representam variáveis importantes no comportamento de seus filhos, devido
ao papel de modelo que exercem para eles e à influência na manutenção
dos comportamentos aprendidos em outros contextos, uma vez que é
necessário que o ambiente em que a criança se encontra forneça reforça-
dores aos comportamentos considerados adequados, a fim de mantê-los a
longo prazo. Tal apontamento fortalece a relevância do presente trabalho
realizado com as mães, sendo corroborado pelo feedback positivo fornecido
por este grupo, que expressou satisfação pela participação e desejo de que
houvesse mais encontros, uma vez que as habilidades desenvolvidas nos
encontros surtiram melhora na relação com os filhos.

38
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Durante as sessões surgiram novas queixas, além das trazidas


durante as entrevistas de triagem, especialmente aos problemas relacio-
nados às agressões sistemáticas por parte de colegas da escola, que foi
constantemente relatado pelas crianças participantes. Os relatos frequentes
de agressões físicas e verbais, além da exclusão dos grupos sociais no con-
texto da escola, destacaram-se por não receberem a devida atenção dos
membros da comunidade escolar, especialmente dos professores, que, por
vezes, presenciaram tais violências e não interferiram devidamente.
Considerando a relevância de se discutir e agir sobre as questões
relacionadas à violência nas escolas, em conjunto às queixas previamente
discutidas, observou-se a necessidade da expansão da proposta do estágio
para um trabalho com os professores, além das crianças e seus cuidadores.
Nesse contexto, os grupos com esses profissionais poderiam realizar treina-
mentos de habilidades sociais da comunicação deles com as crianças e uma
maior sensibilização para as dificuldades que as crianças vivenciam no con-
texto escolar, ou seja, para além das questões que concernem diretamente o
processo de ensino e aprendizagem. Ainda, seriam de grande valia propostas
de trabalho que envolvessem outros membros da comunidade escolar com o
objetivo de sensibilizá-los na busca por meios de dirimir tais problemas.
A identificação da necessidade de desenvolver a autoestima dos
participantes foi reforçada pela constatação de que estes sofriam agressões
por parte dos colegas nas escolas. Porém, compreendemos como funda-
mental o desenvolvimento da autoestima no trabalho em qualquer grupo
com a demanda de baixa funcionalidade de seu repertório de habilidades
sociais e que sejam encaminhados por escolas para atendimento clínico
psicológico. Consideramos que a construção de uma queixa neste sentido
revela que a criança em questão já sofre alguma estigmatização e exclusão
nos ambientes sociais dos quais faz parte.
Tal perspectiva demonstrou como este tipo de trabalho pode ter um
cunho de inclusão e de desenvolvimento de autonomia, ao invés da mera
adequação a um ambiente que pode ser, este mesmo, disfuncional e exclu-
dente. Isto é possível mantendo claro este objetivo durante todo o processo,
além de ampliar o trabalho para a família e para a escola.

39
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Os resultados obtidos, considerando o número reduzido de partici-


pantes e encontros, sinalizam o quanto este trabalho pode ser ainda mais
frutífero se for amplificado. Por isso, há a perspectiva de continuidade da
proposta no LabSPA e de sua retomada junto à PAI. Ademais, esperamos
que seja possível inspirar novas iniciativas neste sentido em outras institui-
ções e localidades.

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41
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 2
O HUMOR COMO FORMA DE DEFESA
NO TRABALHO NO CONTEXTO DE
UMA ALA PSIQUIÁTRICA DE UM
HOSPITAL GERAL

Sanyo Drummond Pires


Caroline Matos Chaves da Silva
Giovanna Lemos Ferraz

Introdução

As situações de trabalho na contemporaneidade colocam diferentes


desafios tanto para o trabalhador quanto para as análises sobre as novas
configurações do trabalho. As mudanças tecnológicas e as novas formas
de organização e disciplinamento do trabalho remetem o sujeito a uma
constante demanda por mudança e flexibilidade, tanto nas competências
necessárias para a realização do trabalho, quanto nos vínculos do trabalha-
dor com as instituições.
Esse contexto de constantes mudanças e flexibilização dos laços
do sujeito com o seu trabalho exerce impacto no trabalhador em diferentes
níveis. Aspectos sociais, biológicos e psíquicos são afetados, criando novas
formas de sofrimento e adoecimento laboral, mas também estabelecendo
novas formas de resistência à organização do trabalho que, embora já exis-

42
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tissem há muito tempo, ganham agora um lugar mais central dentro das
estratégias defensivas.
Podemos destacar como uma dessas formas de resistência que
ganha espaço no contexto atual do trabalho a presença do humor, cuja
emergência pode ser compreendida pela sua adequação aos contextos
produtivos atuais. A ação do humor torna possível uma forma de crítica e de
expressão dentro de uma organização produtiva que tolera pouco tais críti-
cas e expressões, possibilitando ações criativas, ao mesmo tempo em que
se mantém, superficialmente, dentro dos limites da opinião individual e do
não questionamento formal das relações conflitivas inerentes à organização
do trabalho.
No entanto, a manifestação do humor como forma defensiva pode
passar despercebida, só como uma brincadeira aqui, ou uma piada acolá,
ou como um ambiente descontraído e amigável de trabalho. Os conflitos e
sofrimentos que o geram ficam então submersos nesse ambiente aparen-
temente agradável, mas mantendo seus efeitos no psiquismo e em outros
aspectos da vida do trabalhador.
O presente capítulo apresenta algumas reflexões advindas de uma
experiência de Estágio Supervisionado do Núcleo Comum realizado no
ano de 2019, por acadêmicas do 3º ano do curso de Psicologia da UFGD,
junto a uma parte da equipe de trabalhadores do Setor de Psiquiatria de um
Hospital Universitário. Nele, discute-se como manifestações de humor se
apresentaram na interação entre os trabalhadores da equipe em questão,
compreendendo-as como uma forma de resistência no contexto do trabalho.
A percepção de riso constante pelos profissionais do setor pode ser enten-
dida como uma forma que eles têm de lidar com os conflitos internos entre
os membros da equipe. Em nossa discussão, lançamos mão do conceito
de humor da psicanálise, bem como da perspectiva da psicossociologia e
da psicodinâmica do trabalho, como categoria explicativa para analisar o
sentido que o humor tem no processo de interação dos trabalhadores.

43
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O conceito de humor

O humor é um tema abarcado pela filosofia há muito tempo. Porém,


sua articulação com a psicologia é algo mais recente. Em uma compilação
dos conhecimentos da psicologia à época, Freud (1996a) indica que o humor
é um meio de obtenção de prazer diante de afetações dolorosas prove-
nientes do meio, atuando de forma a substituir os efeitos de tais afetos e
possibilitando uma descarga da pressão que eles estabelecem em relação
ao psiquismo. O humor é, então, pensado pelo autor como uma Teoria do
Alívio, onde, criando uma forma nova de interpretação da realidade que apa-
rentemente não se referisse a algo proibido e que por sua vez enganaria a
censura, a energia psíquica recalcada poderia, então, ser abrangida por meio
do riso, gerando uma descarga dessa energia e seu consequente alívio.
Essa nova intepretação da realidade permite que os afetos reprimi-
dos possam passar pelos novos caminhos dados pela nova interpretação,
para os quais os processos repressivos ainda não estavam preparados. O riso,
bem como outras manifestações físicas e sociais decorrentes do humor, traz
uma forma de alívio da energia que se acumulava no psiquismo, decorrente
dos elementos conflitivos entre a organização psíquica e a realidade.
Mais adiante, Freud (1996b) afirma que a produção do prazer gerado
pelo humor, diferente de outras formas semelhantes, como o chiste e o
cômico, surge de uma economia de gasto relacionado ao afeto, na qual uma
parcela é redirecionada ao Eu:

[...] Como os chistes e o cômico, o humor tem algo deliberador a


seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e
elevação, que falta às outras duas maneiras de obter prazer da
atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo
do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu.
O eu se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a
permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode
ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na
verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões
para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento
inteiramente essencial do humor (FREUD, 1996b, p. 190).

44
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

No entanto, para além dos elementos narcísicos individuais, a conse-


quência da recusa frente às provocações da realidade se expressa também
em relação à realidade social. O laço social no qual o sujeito está inserido,
estabelecido a partir das regras e tabus sociais que instauram processos
repressivos no sujeito podem ser então revistos, ou, pelo menos, existe a
possibilidade de um reposicionamento do sujeito (e do grupo) frente aos
mesmos. Os processos psíquicos relacionados ao humor podem ser enten-
didos, então, como marcadamente transgressores do ponto de vista social
(KUPERMANN, 2003).

Humor e a organização do trabalho

As regras que regem os laços sociais, embora possam ser conside-


radas de forma autônoma, podem ser também compreendidas dentro de
uma perspectiva na qual expressam relações de produção. As formas orga-
nizadas de acesso aos meios de produção, bem como suas consequentes
formas de organização do trabalho, vão influenciar a forma como os laços
sociais, e também as formações defensivas do psiquismo, se estruturam. As
relações de trabalho podem então ser consideradas como formas de laços
sociais que agenciam processos psíquicos diversos (ENRIQUEZ, 1997).
Nesse sentido, da mesma forma que o humor se apresenta no co-
tidiano como forma de questionar as regras e laços sociais gerais, também
se apresenta na organização do trabalho de forma intimamente ligada ao
questionamento de processos de trabalho rotineiros e repetitivos, servindo
tanto de transgressão quanto de apoio ao funcionamento do trabalho.
Transgressão, na medida em que coloca em suspenso as regras que funda-
mentam a relação entre o sujeito com o trabalho ou com a organização, mas,
também, apoio, na medida em que cria formas de relativização de conflitos
que se mostram insuperáveis, permitindo a convivência com o mesmo (BER-
GSON, 2007).
Um espaço laboral onde o humor possa se manifestar possibilita
que, ao mesmo tempo, os conflitos relacionados à organização do trabalho

45
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

sejam abordados para serem resolvidos, mas também não se expressem


de maneira muito intensa a ponto de criar reações por parte da organização
do trabalho para coibir esse espaço de elaboração. A utilização do humor
como forma de amenizar a tensão causada pelas situações de conflito e
de estresse visa criar um ambiente onde essas tensões, embora existentes,
tenham seus efeitos atenuados, podendo assim ser abordadas.
Contudo, mais do que uma forma de atenuação ou alívio de tensões,
os atos humorísticos também criam a abertura para a construção de espaços
criativos que permitam processos de sublimação de conteúdos conflitivos
no psiquismo, que por sua vez instauram a possibilidade de reconfiguração
dos laços sociais. Esses processos permitem que o sujeito possa se deslocar
de modos de alívio das tensões preestabelecidos (e que muitas vezes não
funcionam bem) ou estabelecidos pelos ideais reguladores da vida social,
ou da organização do trabalho, para novas formas, por meio do trabalho de
desidealização, ou seja, de desinvestimento psíquico desses ideais regula-
dores e seu questionamento pelos atos humorísticos (KUPERMANN, 2017).
Para observarmos a construção desses espaços de sublimação
possibilitados pelo humor dentro do contexto do trabalho, podemos então
considerar as formas de regulação estabelecidas na organização do trabalho
em analogia aos ideais sociais. A dinâmica conflitiva entre o trabalho prescri-
to (preestabelecido, heterônomo e normatizador da relação do sujeito com a
organização formal do trabalho) e o trabalho real (decorrente dos atos esta-
belecidos pelo trabalhador frente ao trabalho que incorporam suas defesas
e construções de sentido em relação à organização do trabalho) pode ser,
então, considerada como a dinâmica fundamental na qual a construção de
espaços de subversão da organização do trabalho se manifesta.
O trabalho real, por sempre incorporar essa mobilização subjetiva
em relação ao trabalho, vai sempre se expressar a partir de processos de
sublimação. Essa mobilização é fundamental para que as demandas reais
do processo de trabalho, que incluem tanto as da organização do trabalho
quanto as do trabalhador e que estão para além de qualquer prescrição,
possam ser consideradas. Assim, o real do trabalho nunca se apresenta
como o que foi preconcebido no trabalho prescrito, mas a partir do ato

46
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

criativo/transgressivo do trabalhador estabelecido por meio do processo de


sublimação (DEJOURS, 2013).
O humor, como forma privilegiada de superação das idealizações e
criadora de espaços de sublimação, pode ser percebido dentro da organi-
zação do trabalho como um processo instaurador de espaços de questio-
namentos do trabalho prescritos e de um rearranjo no mesmo, não só como
transgressão ou defesa individual, mas como uma forma de buscar um novo
laço dos trabalhadores entre si e em relação ao trabalho. Assim, quando
incorporado pelo conjunto dos trabalhadores, o humor permite que estes se
mobilizem subjetivamente de forma cooperativa para criar novas estratégias
para lidar com as demandas do trabalho e com as próprias demandas dos
trabalhadores em relação ao trabalho, demandas essas tanto materiais e
sociais quanto psíquicas (DEJOURS, 2012).

Constituição do campo de estágio e definição das atividades

O presente texto se baseia em atividades realizadas no âmbito de


uma proposta de estágio que propiciou a inserção de duas estagiárias do
curso de Psicologia no campo de atuação profissional da ala psiquiátrica de
um hospital geral. A partir desta imersão no meio de trabalho, elas realizaram
a observação da interação da equipe e algumas entrevistas com alguns
trabalhadores, deparando-se com frequentes expressões de humor entre a
equipe, o que foi posteriormente entendido como uma forma de resistência
frente a dificuldades específicas presentes no contexto do trabalho. Esses
dados foram posteriormente sistematizados com a finalidade de apresenta-
ção deste capítulo.
A estruturação do campo de estágio se deu pela atuação das alunas
que apresentaram a proposta de observação do impacto da organização
laboral nos processos psíquicos dos trabalhadores do setor de psiquiatria à
psicóloga responsável pelos estágios no Hospital Universitário da UFGD e,
posteriormente, ao responsável pelo setor de psiquiatria do hospital. A Ala
Psiquiátrica em questão foi instalada como estrutura física no ano de 2015

47
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e conta com uma estrutura de nove leitos, divididos em três masculinos,


três femininos e os outros três que tendem a ser ocupados conforme a
demanda, além de possuir uma sala para os profissionais multidisciplinares
e um solário onde os pacientes podem transitar e receber visitas durante o
período de internação.
No momento em que o estágio foi realizado, a equipe profissional
era composta por 15 pessoas: três médicos, um enfermeiro responsável,
uma terapeuta ocupacional, um psicólogo e três técnicos de enfermagem
por turno, somando, ao todo, nove técnicos, que se dividiam em 3 turnos.
Além disso, existe a equipe acadêmica, tanto de medicina quanto de psico-
logia, integrada por estudantes e residentes que prestam serviços eventuais
ou desenvolvem projetos no local como parte da dinâmica de um hospital
universitário. Contudo, para os fins da discussão que aqui se apresenta,
foram considerados apenas 10 profissionais da saúde: cinco técnicos de
enfermagem do sexo masculino e uma do sexo feminino, um enfermeiro
responsável, um psicólogo, uma terapeuta ocupacional e uma assistente
social que presta serviços para todo o hospital, mas manifestou interesse
em contribuir para a coleta de dados.
As atividades de observação do campo envolvidas no estágio visa-
ram identificar inicialmente tanto as dinâmicas formais (por meio da aná-
lise de documentos, organograma, fluxograma, e prescrições do trabalho)
quanto as dinâmicas espontâneas no cotidiano do trabalho. Nessas últimas,
buscava-se principalmente identificar as formas prevalentes de defesa
frente à organização do trabalho e as demandas e conflitos frente aos quais
essas defesas se estruturavam.
Em conjunto com a observação de campo, também foram realizadas
três formas de entrevistas. As primeiras, mais articuladas com a observação
de campo, procuraram principalmente identificar as construções de sentido
que os trabalhadores realizavam para o seu trabalho, durante o próprio ato
de realizá-lo, de acordo com o proposto por Carvalho (1996) como “conversa
ao pé da máquina”.
As segundas entrevistas, realizadas como complemento das primei-
ras, ocorreram dentro do ambiente de trabalho, em momentos de pausas

48
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

ou horários de descanso. Com essas entrevistas buscava-se identificar, para


além da compreensão do trabalho em si no qual o sujeito estava localizado
no momento, também elementos de sua vida cotidiana e de sua história
de vida no trabalho, para que esses pudessem trazer luz para os sentidos
produzidos e descritos durante a realização do ato de trabalho.
O terceiro tipo foi uma entrevista semiestruturada, na qual foram
feitas perguntas comuns aos entrevistados de forma a identificar dados
comparativos, seguindo um roteiro anteriormente elaborado, composto
por perguntas como: 1) Comente acerca da sua função dentro da Ala Psi-
quiátrica; 2) Quais sentimentos emergem ao trabalhar neste ambiente? 3)
Qual o sentido de trabalhar na psiquiatria? 4) Como poderia descrever a sua
relação com os seus colegas de trabalho? 5) Algo motivaria uma mudança
de emprego ou setor?
Os dois últimos tipos de entrevistas foram realizados individualmen-
te ou, em alguns casos, em dupla, na sala da equipe multidisciplinar, que
também foi um espaço de observação e análise dos processos psíquicos
emergentes do ambiente laboral. A sala da equipe era um ponto de encon-
tro de todos os servidores do setor, onde sempre havia interações e trocas,
além de momentos de pausas e intervalos, o que motivou a escolha do local
para realização das entrevistas. A observação de campo também ocorreu no
solário e em outras dependências da ala.
As visitas das estagiárias ao local do estágio ocorreram periodicamen-
te, duas vezes por semana, com duração média de duas horas, intercaladas
entre os períodos da manhã e da tarde. Desta forma, foi possível entrevistar
trabalhadores de ambos os turnos e também estabelecer uma pausa maior
entre uma observação e outra, evitar que a presença das estagiárias pudesse
gerar distrações e vir a atrapalhar o desempenho da equipe plantonista.
Os dados obtidos por meio das observações e das entrevistas
realizadas foram analisados durante a supervisão do estágio, a partir das
perspectivas tanto da clínica do trabalho quanto da psicossociologia, como
indicado anteriormente. Nelas, procurava-se identificar, conforme indicado
por Enriquez (1997), tanto a manifestação dos mecanismos defensivos em
relação ao trabalho quanto a forma que este intermediava e norteava os flu-

49
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

xos de investimento e gasto pulsional dos trabalhadores. Essa análise partia


da escuta das repetições nas formas de se posicionar frente à organização
do trabalho, principalmente quando relacionadas a conteúdos conflitivos,
bem como das construções de sentido que os trabalhadores realizavam
sobre seu trabalho.
0Os referenciais adotados para a realização do estudo buscaram
estruturar um campo eminentemente clínico, utilizando-se de elementos da
Clínica do Trabalho e da Psicossociologia, conforme descrito por Macedo
e Fleury (2015) e por Soldera (2016). A partir dessa perspectiva teórica al-
guns elementos foram destacados no processo de observação, sendo eles,
principalmente, a análise da demanda, seguida pela constituição do espaço
da fala e escuta dos trabalhadores. Constituído esse espaço, os conteúdos
apresentados nas falas dos trabalhadores iam sendo registrados e analisa-
dos, também dentro da perspectiva dessas duas vertentes.
Levando em conta tais indicações teórico-metodológicas que norte-
aram o estágio, procurou-se, inicialmente, ressaltar as repetições, conscien-
tes ou não, emergentes nas falas de cada profissional, de forma a identificar
os mecanismos defensivos que os trabalhadores utilizavam em relação ao
ambiente de trabalho. Em função da percepção da grande utilização do
humor como forma defensiva dentro do contexto do trabalho, procuramos
enfocar essa forma de defesa em detrimento de outras que ocorriam com
menor frequência.

Imersão no campo de estágio e identificação do humor nas


relações de trabalho

A primeira ação realizada foi identificar aspectos formais do trabalho


e verificar como estes estabeleciam demandas naturais para os trabalha-
dores. A análise dessas demandas passou pela compreensão dos aspectos
formais da organização do trabalho, bem como da forma como esses eram
percebidos pelos trabalhadores. Optou-se por entender, a priori, o orga-
nograma e o fluxograma da ala psiquiátrica, possibilitando compreender a

50
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

interação e integração da equipe e os aspectos gerais da organização formal


do trabalho.
A partir da análise desses elementos verificou-se que, embora
o ambiente apresentasse elementos estressores para os trabalhadores,
predominava um ambiente aparentemente tranquilo, principalmente no
que diz respeito à relação entre os membros da equipe de trabalho. Essa
tranquilidade era obtida por ações sistemáticas de diluição de conflitos, por
negociações constantes entre os membros da equipe e de uma significativa
autonomia tanto para a realização do trabalho quanto para o estabelecimen-
to dessas negociações.
Além disso, identificou-se o grande grau de vinculação desses tra-
balhadores com os princípios norteadores do atendimento humanizado em
saúde mental, ainda que frente a situações conflitivas ou estressantes. Essas
situações emergiam constantemente nas falas dos técnicos em relação às
formas de trabalho ali realizadas, destacando-se o constante estado de
alerta em que precisavam estar. Por se tratar de um ambiente hospitalar e,
mais ainda, de um serviço de psiquiatria, existia a percepção de estarem
sujeitos a situações imprevisíveis e de riscos, tanto para a equipe quanto
para os pacientes.
Esse último dado nos pareceu ser a principal demanda que a orga-
nização do trabalho estabelecia para os trabalhadores. Essa demanda se
mostrava, por sua vez, associada também à adesão a um tratamento huma-
nizado, que evitava medidas de contenção invasivas, realizando interven-
ções mediante aprovação do paciente. Embora, com isso, objetive-se uma
relação respeitosa e atenta aos pacientes, promovendo seu bem-estar, cria-
-se uma situação em que se minimizam os riscos que poderiam ocorrer por
contenções mais sistemáticas e invasivas. Optou-se, então, por incorporar os
riscos no processo de trabalho para garantir a autonomia e participação do
paciente no seu tratamento.
Desse modo, os trabalhadores precisam atentar-se aos elementos
dispersos no ambiente que podem colocar em riscos eles mesmos e tam-
bém os demais pacientes. Assim, a possibilidade de uma mudança brusca
no ambiente, com baixa previsibilidade de ocorrências, marca o trabalho,

51
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

estabelecendo, ao mesmo tempo, a demanda de vinculação afetiva ne-


cessária para uma atenção humanizada, voltada para a busca da melhoria
dos pacientes, e o receio frente aos riscos imprevistos que podem ocorrer a
qualquer momento.
Identificada esta situação de dupla demanda aos trabalhadores,
procurou-se identificar os posicionamentos dos trabalhadores frente a essa
situação. Para isso, nas entrevistas os trabalhadores abordaram o tema de
forma livre, articulando essa experiência com outras de sua trajetória laboral
e também com sua vida fora do trabalho, criando assim um espaço de escu-
ta no qual os sentidos sobre o trabalho e as formas de se posicionar frente a
ele pudessem ser discutidos e elaborados pelos trabalhadores.
Nas falas dos trabalhadores realizadas durante as entrevistas, o que
emergiu inicialmente foram as dificuldades do dia a dia e a necessidade de
um bom preparo físico e emocional para dar conta de situações em que,
muitas vezes, o medo se manifesta. Existia a percepção de estarem vulne-
ráveis aos riscos inerentes à condução das intercorrências que acontecem
dentro de um contexto psiquiátrico, fato este que pode colocar em perigo a
equipe e os pacientes em questão.
No entanto, o medo não se configurava apenas como algo decor-
rente dos perigos físicos que ameaçam os trabalhadores. Nas entrevistas,
foi explicitada a necessidade de eles prestarem atenção a demandas múl-
tiplas. Essas demandas advêm da complexidade do trabalho prestado, do
próprio ambiente de trabalho e das exigências provenientes da prestação
de cuidado ao próximo que se encontra hospitalizado e em condições de
vulnerabilidade. Assim, o medo foi percebido como algo que não se res-
tringe apenas aos perigos voltados para a integridade dos trabalhadores,
mas que se refere também ao risco de eles executarem equivocadamente
algum procedimento junto aos pacientes.
Diante dessa exposição, verificou-se a presença de fatores tais
como a sobrecarga e o estresse, ocasionados pela necessidade de es-
tarem em estado de alerta durante toda sua jornada de trabalho e pela
necessidade de atendimento a demandas em alguns momentos perce-
bidas como contraditórias.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Mesmo tal fato se configurando como um quadro geral, percebe-se


que o efeito dessas demandas se manifesta de forma diferente para as
pessoas que ocupam diferentes funções dentro da equipe. No relato dos
técnicos, encontramos falas como: “nossa função é administrar medicação,
banho e todo manejo físico, além da parte assistencial e de conversa com
pacientes”. Um dos técnicos citou que são como “Bombril, mil e uma utilida-
des”. Já os profissionais como psicólogo e terapeuta ocupacional disseram
que suas funções são mais “pontuais e individuais”. Entretanto, foi observado
que, em situações de urgência, todos os profissionais se mobilizavam e
agiam prontamente com a equipe dos técnicos.
Apesar dessas diferenças, a imprevisibilidade mostrou-se como algo
comum às diferentes funções. Em consequência dessa imprevisibilidade há
ampla flexibilidade para que os trabalhadores organizem suas rotinas de
trabalho. Quando abordamos o tema, um dos técnicos de enfermagem nos
chamou a atenção sobre a “imprevisibilidade que paira no setor” e sobre o
fato de que alguns desdobramentos podem mudar o ritmo e os fluxos das
operações estabelecidas.
Essa forma de abordar a organização do trabalho parece influenciar
outros aspectos que vão além do atendimento aos pacientes. Em repetidas
falas, manifestou-se a existência de autonomia no trabalho e sua percepção
como uma forma de bem-estar ocupacional. Essa autonomia se expressa na
flexibilização da carga horária de trabalho, dos plantões e das férias, definidos
por meio de deliberação consensual, fazendo com que o fluxograma não se
torne tão exaustivo. Na fala de um dos técnicos: “Existe um respeito pela
hierarquia, mas costumamos conversar e nos ajudar em relação ao quesito
folgas e férias”, sendo que o enfermeiro responsável age no “gerenciamento
de conflito” quando tais acordos se mostram conflitivos.
Essa questão foi levantada também por outros técnicos de enfer-
magem que ressaltaram que os procedimentos e as decisões diárias são
realizados de maneira conjunta, buscando diminuir atritos ou disputas dentro
do contexto do trabalho. Essas ações foram percebidas também durante as
observações de campo. O mais interessante nesse caso foi que tais ativi-
dades e negociações eram conduzidas geralmente de forma tranquila e,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

quando não, as situações de tensão eram aliviadas através do humor, como


músicas, piadas, entre outros.
O que se destacava no caso do uso do humor é que, mesmo diante
de fatores estressores, sobressaíam sentimentos positivos em relação ao
ambiente e ao fluxo de trabalho, fazendo com que os conflitos fossem relati-
vizados, construindo uma percepção mais positiva do ambiente de trabalho
e uma maior identidade dos trabalhadores com o setor. Pode-se citar como
exemplos disso falas da terapeuta ocupacional que percebia essa vincula-
ção como “missão de vida”, ou do psicólogo, que disse “sentir-se vivo” dentro
do contexto de exercício da função. Os poucos profissionais que tocaram
no assunto da exoneração afirmaram que só sairiam do setor em caso de
demissão ou por outras oportunidades de melhor remuneração.
As brincadeiras e risadas entre os profissionais faziam parte do am-
biente laboral, seja em comentários mais pessoais, seja em virtude de alguma
atividade a ser executada. Os momentos de pausa para o café eram um mo-
mento fundamental nesse sentido, estabelecendo rodas de conversa sobre
inúmeras situações e criando espaços de distração e de relaxamento, com
piadas e brincadeiras entre os membros da equipe. O mesmo ocorria nos mo-
mentos de espera pelo lanche dos pacientes, onde as ações de comicidade
mobilizavam técnicos e pacientes, como a cotidiana tentativa de adivinhar o
que seria o recheio do pão e se o café era do dia ou da noite anterior.
Mas tais ações também ocorriam no cotidiano do trabalho. Em uma
das visitas, durante uma conversa com um dos técnicos, notou-se a inquie-
tação de outro profissional devido à demanda de trabalho. Essa situação foi
propulsora de conflito entre os colegas pelo fato de que um deles estava
sentado enquanto o outro realizava o trabalho. Porém, o técnico que tra-
balhava logo contornou a situação de forma bem humorada, dizendo que
não haveria problema em tal situação e que todos deveriam “relaxar”, pois o
trabalho de fato não demandava dois profissionais. É interessante notar aqui
que, durante a observação, as próprias estagiárias foram inseridas na solu-
ção do mesmo por meio da comicidade, apesar de terem sido as entrevistas
causadoras do conflito atribuído ao sentido de momento de relaxamento.

54
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A mesma estratégia foi observada em relação a conflitos relaciona-


dos ao estabelecimento de plantões, onde as negociações não chegavam
a um bom termo às partes. Ao surgir alguma divergência de opinião, um
dos membros apresentava alguma piada ou brincadeira, a fim de evitar
desentendimentos, criando novas formas de entender a situação. Mesmo
havendo um mediador para essas questões, a definição final do plantão não
era resolvida como um ato de autoridade, mas sim por meio desse tipo de
comicização que, boa parte das vezes, partia de uma das partes em conflito.
Diante dos pacientes, repetia-se o comportamento de administrar
com músicas, piadas e brincadeiras, situações que, no momento, poderiam
ser entendidas como estressoras. Demonstravam, também, sensibilidade
em entender a situação em que os pacientes se encontravam. A fim de
exemplificar isso, cita-se uma cena de resistência de uma paciente frente
à realização dos protocolos de higiene, impondo os braços na direção de
um dos profissionais, o qual imediatamente estendeu os braços também e
conduziu a situação como se fosse uma dança, cantando e girando pelo
espaço, fazendo, assim, todos gargalharem, incluindo a própria paciente.
Ações semelhantes foram presenciadas em outros momentos em
que se utilizava do humor em situações tensas ou conflitivas como forma
de ressignificação, nas quais um novo sentido minimizava tais conflitos e
tensões. Outro exemplo disso foi um caso em que houve um enamoramen-
to entre dois pacientes, o que era fortemente repreendido pelas regras do
setor. Apesar da proibição, e do término da relação entre os enamorados,
não houve uma repreensão severa dos técnicos. Segundo os técnicos de
plantão, mesmo diante da situação de hospitalização, pacientes “ainda des-
pertavam interesse e cativavam corações”. Com isso, o término da relação
teve seu sentido modificado de uma situação invasiva e repressiva para
uma repreensão moral leve em relação a um conquistador, onde existia um
ganho narcísico evidente para o paciente.
Destaca-se ainda o manejo realizado pelo médico responsável pelo
setor, que também apresentava um discurso sutilmente cômico ao falar com
os profissionais e pacientes. Ele também costumava incentivar algumas co-
memorações simples para descontrair e proporcionar uma interação entre

55
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

os membros da equipe e os pacientes hospitalizados. Um exemplo nesse


sentido foi o de um paciente que teve seu o tempo de internação estendido
para além do previsto. O fato, que vai contra as propostas de desinstitucio-
nalização que regem o sistema de saúde mental, pelas quais os membros
da equipe demonstravam apreço, deveria se configurar como algo negativo
ou como falha. No entanto, para lidar com a ansiedade decorrente dessas
contradições entre as demandas ideais do sistema e as situações concretas
da realidade, organizou-se a comemoração do aniversário da internação,
com uma festa organizada pelos trabalhadores do setor. Essa comemoração
ocorreu como surpresa, em uma sala fora da ala psiquiátrica enfeitada com
balões coloridos e com refrigerantes, brigadeiros, bolo e salgadinhos.
Enfim, em todos esses exemplos, o que se pôde perceber foi o
constante enfrentamento de situações conflitivas por meio de suas ressig-
nificações, a partir da comicidade. Essas ressignificações permitiam que as
atividades de trabalho pudessem continuar ocorrendo e não fossem parali-
sadas, seja pelos conflitos, seja pela emergência de situações inesperadas
que demandavam ressignificar, por meio das brincadeiras, não só o sentido
das experiências, mas também as estratégias e práticas laborais.

A função do humor nas relações de trabalho

A partir dos elementos observados, constatou-se que a dinâmica


laboral da ala psiquiátrica é marcada por um conjunto de fatores causado-
res de estresse e de ansiedade decorrente do contato com os pacientes,
que são percebidos como um risco em potencial para os trabalhadores. No
entanto, paralelamente a esse fato, também existe a necessidade, inerente
ao próprio trabalho, de se perceber os pacientes como sujeitos que de-
mandam cuidados e investimento afetivo, colocando os trabalhadores em
uma situação de dubiedade, tanto com os pacientes quanto com o próprio
ambiente de trabalho. Frente a tal situação, o humor aparece como uma
estratégia para lidar com essa dubiedade, criando não só estratégias de

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

defesa em relação ao trabalho em si, mas também na solução de conflitos


entre a própria equipe.
Identificaram-se duas situações principais onde o humor aparecia
como forma de solucionar os conflitos decorrentes da dubiedade imposta
pelo trabalho. A primeira dessas situações é o fato de a equipe se encontrar
em um ambiente de grande imprevisibilidade e de risco quanto aos proces-
sos de trabalho, onde o desgaste gerado pelo “estado de alerta” constante
submete os trabalhadores a uma condição altamente estressante.
A própria natureza do trabalho dos profissionais inseridos dentro da
ala psiquiátrica requer múltiplas demandas de atenção. Essas demandas ad-
vêm da complexidade do trabalho prestado e das exigências provenientes
da prestação de cuidado a alguém que está hospitalizado e em condições
vulneráveis. Isso exige da equipe um tipo de atenção que demanda, além de
uma percepção da situação na qual se está inserido, uma atenção crítica à
dimensão conflitiva do trabalho, incluindo o trabalho dos colegas.
Essas dificuldades diárias apresentam uma necessidade de supe-
ração das indisposições entre os membros da equipe e de cooperação de
todos para manter um ambiente saudável para os trabalhadores, para que
possam propiciar um tratamento humanizado. Em decorrência dos riscos do
ambiente imprevisível, a descontração e o humor são utilizados como um
elemento tanto de alívio do medo, conforme indicado por Bergson (2007),
quanto de desidealização dessas situações e das construções de sentido
dos pacientes como fonte de perigo.
Essa desidealização, conforme Dejours (2013), vem sempre acompa-
nhada de sublimação, que se expressa como um ato criativo no real do traba-
lho, transgredindo procedimentos de trabalho previamente estabelecidos.
Esse processo nos remete, então, a uma segunda forma de manifestação
do humor, ou seja, sua forma subversiva/criativa das concepções previstas
no trabalho prescrito e das executadas no trabalho real. Um exemplo nesse
caso é o da paciente que estende os braços para conter o técnico que ia lhe
levar para uma necessária higienização. Uma rotina de trabalho preestabe-
lecida é revista, de forma criativa, a partir de um ato de transformar o sentido

57
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de uma ação de recusa a um procedimento (se opor fisicamente ao técnico)


em uma ação humorística (dançar com o técnico).
O importante a destacar aqui é que, embora seja uma ação criativa
individual de um técnico com um paciente, é o riso do coletivo de pessoas
na ala, ao redor da cena, que vai autorizar essa mudança de interpretação
da situação de um conflito para uma brincadeira, como nos mostra Freud
(1996a). As ações de subversão possibilitadas pelo humor só são possíveis
(ou mais efetivas) se o ambiente laboral como um todo adota essa postura
como uma postura de subversão das rotinas de trabalho.
Nesse sentido, as dinâmicas de humor internas à própria equipe de
trabalho nas suas relações e na resolução dos conflitos internos entre os
membros da equipe também são fundamentais para que o humor possa
funcionar como solução para outras situações que se expressam. A presen-
ça do humor na solução de problemas como, por exemplo, a distribuição de
trabalho, plantões e folgas, bem como a construção de espaços onde essa
comicidade pudesse se expressar para além do trabalho (como na hora do
café), são observações que vêm ao encontro dessa interpretação. O humor
vai, portanto, se expressar de fato sempre como uma reestruturação do laço
social no trabalho.

Considerações finais

Ao analisarmos o ambiente laboral e como os trabalhadores se po-


sicionam frente a ele, pudemos destacar a grande importância que o humor
exerce, tanto na estruturação de mecanismos de defesa frente à ansiedade
causada pela imprevisibilidade das situações no trabalho, quanto como
forma de solucionar conflitos que emergem entre os membros da equipe e
desses com os pacientes, por meio da ressignificação das situações confliti-
vas. Além disso, foi interessante notar como o humor permite que ambas as
situações, de ansiedade e de conflito, sejam também abordadas a partir de
uma única perspectiva, criando um espaço de elaboração onde os diversos
elementos do ambiente de trabalho possam ser interligados.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A experiência de trabalho na ala psiquiátrica nos remete a reflexões


acerca da necessidade de se olhar para os trabalhadores da saúde, suas
demandas e sofrimentos. O humor propicia um melhor enfrentamento da
rotina profissional, funcionando como apoio na dinâmica laboral, gerando
descontração no ambiente e minimizando o efeito dos possíveis conflitos
entre os envolvidos. O impacto causado pelo comportamento humorístico
dos trabalhadores reflete nos sentidos atribuídos por eles ao trabalho e em
todo o funcionamento da ala, desde as relações multiprofissionais até a
concepção de cuidado frente às demandas psiquiátricas.
Embora desse estudo surjam muitos questionamentos, principal-
mente em relação à contribuição do humor para a superação ou para o mas-
caramento dos conflitos internos na organização do trabalho, concluiu-se
que sua presença dentro do contexto laboral funciona como mecanismo de
proteção da saúde do trabalhador perante a vivência das ameaças presen-
tes no contexto da atenção em saúde mental, além de promover um espaço
para soluções criativas em relação a situações imprevistas ou nas quais a
humanização do atendimento psiquiátrico fosse colocada em jogo.

Referências

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pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. XXI, p. 189-194.

59
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

KUPERMANN, D. Humor, desidealização e sublimação na psicanálise. In: KUPERMANN, D.


Estilos do cuidado: A psicanálise e o traumático. São Paulo: Zagodoni, 2017. p. 72-86.

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Trabalho e da Psicossociologia. Cadernos de psicologia social e do trabalho, v. 19, n. 2, p.
243-253, 2016. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1516-37172016000200009. Acesso em: 20 set. 2021.

60
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 3
O ESTÁGIO BÁSICO EM PSICOLOGIA NO
CONTEXTO DA PANDEMIA POR COVID-19

Veronica Aparecida Pereira


Fernanda Pinto
Ada Oliveira da Silva

Na graduação em psicologia, os estágios de formação são com-


ponentes curriculares obrigatórios e essenciais, pois representam um im-
portante papel, já que promovem a inserção dos estudantes em contextos
práticos de atuação. Durante o estágio, os estudantes têm a oportunidade
de vivenciar situações práticas, sob supervisão de um professor responsável.
Cumpre ao supervisor, além do acompanhamento das demandas, promover
reflexões teórico-práticas sobre as experiências vivenciadas pelos estudan-
tes (SILVA NETO; OLIVEIRA; GUZZO, 2017).
A formação em psicologia tem sido objeto de debates sobre a ma-
nutenção da qualidade do ensino prestado e a garantia de uma formação
profissional, tanto ética como técnica. Tradicionalmente, o curso de Psicologia
é oferecido no formato presencial, mesmo após o aumento e difusão da Edu-
cação a Distância (EaD). Entretanto, em 2018, o Conselho Federal de Psicolo-
gia (CFP) declarou uma série de ações políticas, orientações e publicações
para demarcar o que nomeou de Ano da Formação em Psicologia. Dentre os
aspectos da formação tratados, os estágios apresentaram uma complexidade
peculiar, pois evidenciam a interseção entre a vivência estudantil e a prática
profissional (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2018).

61
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Na condição de pandemia por Covid-19 houve a necessidade de ado-


ção de medidas para isolamento físico, o que levou as instituições de ensino
superior a repensar as práticas executadas na formação. O grande desafio
esteve relacionado ao desenvolvimento de práticas educativas que pudes-
sem assegurar o processo de ensino-aprendizagem e viabilizar a segurança
da comunidade acadêmica. É nesse contexto que o presente capítulo visa
descrever as adaptações realizadas em uma das propostas do estágio básico
em Psicologia, nomeado na UFGD como Estágio do Núcleo Comum.
Em relação às diretrizes para formação em Psicologia, o parecer
CNE/CES nº 1071/2019, de 4 de dezembro de 2019, em seu Artigo 6º, pará-
grafo único, prevê que:

As competências esperadas para a formação em Psicologia


devem ser entendidas como a capacidade de mobilizar saberes,
habilidades, atitudes, bem como lidar com os fatores contex-
tuais, transformando-os em ação efetiva diante dos desafios
profissionais que lhe serão apresentados (MEC, 2019).


Sem dúvida, o fator contextual de uma pandemia determinou
transformações de saberes e fazeres que necessariamente não estavam
descritos nas estruturas curriculares. Sobretudo, o uso de tecnologias e
desenvolvimento de novas habilidades e competências se fez necessário.
O Estágio do Núcleo Comum no curso de Psicologia da UFGD é ofe-
recido por diferentes docentes, com enfoques e temáticas diversas. Origi-
nalmente, na proposta discutida neste capítulo, a formação estava centrada
no tema Saúde Materno-Infantil, viabilizando a realização de práticas de
intervenção precoce junto às famílias com filhos de até um ano, nascidos no
Hospital Universitário da UFGD. Para essa atuação estavam previstas visitas
às mães logo após o parto, registro dos dados censitários das condições de
nascimento e divulgação do Programa de Intervenção Precoce (PIP) ofereci-
do durante o estágio. Após um mês de vida do bebê, as mães eram convidas
a participar do PIP, com avaliações mensais do desenvolvimento infantil,
análise da interação mãe-bebê e avaliação da saúde emocional materna.
Com a impossibilidade de contato físico, as atividades do estágio foram
adaptadas para ações que possibilitassem às(aos) estagiárias(os) o desen-

62
volvimento de habilidades e competências que viabilizem a oferta futura do
PIP em sua prática profissional. Cumpre lembrar que o estágio em psicologia,
mesmo em relação às competências básicas, deve prever o encontro singular
entre estagiários, profissionais e usuários do serviço (REIS; FERREIRA, 2021).
Desse modo, nas seções seguintes são descritas as adaptações realizadas.

Desenvolvimento de habilidades e competências para oferta


do PIP

No ano de 2020, antes do início de isolamento físico, houve cinco


encontros presenciais para supervisão de estágio. Nesses encontros, foram
discutidos os pressupostos da Intervenção Precoce e a importância de uma
avaliação centrada na família. Todo PIP precisa ser realizado para reconhecer
as necessidades e potencialidades de cada família, de modo a identificar o
suporte necessário (FERREIRA et al., 2019; ROSI, 2018). Por isso, no programa
oferecido durante o estágio, busca-se uma avaliação global, que tem o início
no acolhimento da mãe e do seu bebê durante a visita, uma entrevista inicial,
no primeiro atendimento, com escuta atenta sobre o histórico da chegada
do novo membro da família e as transformações ocorridas. Posteriormente,
realizam-se mensalmente as avaliações do desenvolvimento infantil e das
condições de saúde emocional materna. Nesse contexto, durante as super-
visões iniciais, que ainda visavam uma ação presencial, o foco de atenção
na formação esteve direcionado à habilidade de escuta e acolhimento. A
sensibilidade durante as visitas é essencial. Nesse momento, considerando
a singularidade do parto, é comum a ocorrência de sentimentos e emoções
ambivalentes, frente à alegria e às preocupações relacionadas à chegada
do novo membro da família. Nesse encontro, as(os) estagiárias(os) têm o
papel de apresentar-se como uma rede de apoio disponível para acompa-
nhá-las em seus desafios na maternagem, apoiando-se na concepção de
que o nascimento de um filho traz também o nascimento de pais que pre-
cisam tornar-se responsivos às suas necessidades (ALVARENGA; PICCININI,
2007). Antes do isolamento físico foi possível realizar as primeiras visitas às
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

puérperas na Maternidade do Hospital Universitário e agendar os primei-


ros atendimentos às famílias, os quais precisaram ser cancelados frente
às medidas de biossegurança. Para a oferta do PIP, além das habilidades
relacionadas à condução da entrevista inicial e apresentação das condições
éticas de condução das atividades, buscou-se conhecer acerca dos instru-
mentos para avaliação infantil, em especial os utilizados durante o programa,
assim como os recursos para avaliação da saúde emocional materna, das
condições sociodemográficas da família e suas implicações. A seguir, apre-
sentamos como foram adaptadas as propostas de formação de habilidades
para a avaliação do desenvolvimento infantil, análise da interação mãe-bebê
e avaliação da saúde emocional materna.

Para avaliação do desenvolvimento infantil

No curso de Psicologia da UFGD os estágios permaneceram sus-


pensos durante todo o ano de 2020. Antes da suspensão das supervisões
presenciais, a formação foi direcionada para aplicação e interpretação da
Bayley III (BAYLEY, 2006). A Bayley é uma escala de desenvolvimento, consi-
derada internacionalmente como padrão ouro para avaliação do desenvolvi-
mento. Durante os encontros presenciais foi possível estudar os protocolos,
manusear os materiais, assistir a vídeos de aplicação e parear os resultados
de observação aos dados de casos previamente corrigidos.
Em 2021, com o retorno das atividades, foi necessário adaptar os
objetivos propostos a partir de atividades oferecidas à distância. Inicialmen-
te, foram realizados estudos sobre diferentes possibilidades de avaliação
infantil, com apresentação em duplas e análise dos instrumentos (FOR-
MIGA; VIEIRA; LINHARES, 2015; NOGUEIRA; RODRIGUES; ALTAFIM, 2013;
RODRIGUES; BOLSONI-SILVA, 2011; VIEIRA et al., 2011). A partir de então,
não sendo possível realizar a avaliação das crianças no modelo presencial,
buscou-se na educação infantil estabelecer uma relação de mediação para
a avaliação e intervenção.

64
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Com destaque para a utilização do Inventário Portage Operacio-


nalizado (IPO) (WILLIANS; AIELLO, 2018) como instrumento de avaliação
e intervenção junto às crianças, foi possível oferecer uma formação junto
à Educação Infantil. Participaram da ação 15 professoras de um Centro de
Educação Infantil de Dourados. A formação ocorreu em dois encontros
em período noturno. Durante os encontros as docentes relataram as difi-
culdades de avaliação sistematizada junto ao público da educação infantil,
dada a ausência de um instrumento específico para esse fim. A partir da
apresentação das áreas do IPO, que se encontram organizadas a partir de
comportamentos simples aos mais complexos, as docentes visualizaram a
possibilidade de sua utilização para o planejamento de práticas individu-
alizadas e coletivas, pautadas no que a criança já faz e aquilo que precisa
desenvolver. Desse modo, um novo período de formação ficou acordado,
para o segundo semestre, com foco em planejamento.

No PIP a ênfase esteve nas potencialidades e necessidades das
famílias. Com a intervenção junto à Educação Infantil, buscou-se promover a
discussão, a partir da prática orientada desses profissionais, que se viram pela
primeira vez planejando atividades de ensino remoto para crianças pequenas.
O desafio consistiu em sensibilizar o profissional para um planejamento que não
se restringisse a uma lista de tarefas para os pais, mas que se afirmasse como a
proposição de um diálogo junto às famílias em que seriam considerados o mo-
mento de desenvolvimento das crianças, suas necessidades e as possibilidades
de seu contexto. Por se tratar de uma comunidade com poucos recursos finan-
ceiros, a adaptação de materiais em torno dos objetivos propostos, utilização de
brincadeiras, músicas e materiais existentes no ambiente familiar viabilizaram a
avaliação e intervenção em contexto natural (SZYMANSKI, 2004).

Para avaliação da interação mãe-bebê

A análise da interação mãe-bebê, no contexto do estágio básico,


possibilita o desenvolvimento de habilidades de observação e planejamento
de intervenções. A observação pode ocorrer em contextos naturais, de forma

65
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

naturalística, ou sistematizadamente, com uso de protocolos orientados para


ações e condições especificas. No contexto desse estágio, dois protocolos
foram estudados.
O primeiro instrumento refere-se ao protocolo estruturado a partir do
paradigma experimental Face-to-Face Still Face (FFSF) (TRONICK et al., 1978),
pelo qual é possível identificar os comportamentos do bebê orientados para
o autoconforto. Fuertes (2004), com base nos estudos de que utilizaram esse
paradigma, propôs um protocolo para avaliação dos comportamentos do bebê,
categorizados como orientação social positiva (OSP — sorrir, manter contato
visual, verbalizar, tentar tocar ou alcançar o adulto) e negativa (OSN — resmun-
gar, protestar, apresentar expressão social negativa e/ou chorar) ou orientados
para o Autoconforto (AUT — olhar para o lado, fechar os olhos, esfregar mãos
e pés, tocar-se e/ou levar a mão à boca). Para isso, os bebês e suas mães são
filmados face a face, durante o período de até nove minutos, distribuídos em
três episódios (1 — interativo, 2 — não interativo e 3 — retorno da interação).
Após a filmagem, os vídeos são analisados em episódios de cinco segundos,
registrando a ocorrência dos comportamentos categóricos tanto do bebê (OSP,
OSN e AUT) como da mãe (OSP e OSN) (VARÃO, 2012). A análise dos vídeos
permite identificar a qualidade da interação, identificando como os bebês
reagem frente à ausência da interação direta, identificando as habilidades de
autoconforto. Possibilitam também identificar o quanto as mães identificam os
comportamentos verbais e não verbais de seus filhos, e se elas se mostram
responsivas às suas necessidades (CHIODELLI et al., 2020).
O segundo instrumento é o Interadíade (RODRIGUES; CHIODELLI;
PEREIRA, 2020). Trata-se de um protocolo desenvolvido no contexto brasilei-
ro, tendo como base os comportamentos descritos no FFSF. Diferentemente
de uma análise topográfica dos comportamentos diádicos, visa identificar a
função dos comportamentos durante a interação. Desse modo, os compor-
tamentos de interação positiva, negativa ou não interativos são classificados
em função da resposta apresentada pelo par diádico. Nessa análise, falar
com o bebê, por exemplo, só pode ser considerado um comportamento
positivo se a resposta imediata do bebê apresenta também um comporta-
mento positivo, como sorrir, manter contato visual, verbalizar positivamente

66
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

ou de forma neutra, ou apresentar um comportamento de aproximação. A


responsividade materna, reconhecida pela prontidão e assertividade em
atender as demandas do bebê e ausência de intrusividade, observadas
principalmente pelo comportamento de esperar o bebê responder às fontes
de estimulação e interpretação correta de suas expressões, são elementos
importantes para a avaliação de uma boa interação e sincronia diádica (AL-
VARENGA; PICCININI, 2007; CHIODELLI et al., 2020). Para a utilização desse
protocolo, recomenda-se a filmagem de até cinco minutos de interação
livre, em uma sala em que permaneçam apenas a mãe e o bebê, com alguns
brinquedos disponíveis e espaço para exploração. A análise do protocolo
também é realizada em episódios de cinco segundos.
Na proposta inicial do estágio a previsão era de que as mães que
participassem do programa de acompanhamento do bebê durante o pri-
meiro ano de vida também pudessem participar da análise da interação.
Aquelas que concordassem, realizariam a filmagem da interação livre e em
condição estruturada (FFSF) aos três, seis e nove meses de vida do bebê.
Durante a supervisão, ainda em 2020, houve capacitação para a
realização da filmagem, tanto para a situação experimental do FFSF como
para interação livre. Porém, não foi possível o atendimento de novos ca-
sos. Dessa forma, com o retorno das atividades em 2021, optou-se pela
utilização do banco de dados do projeto, com análise de vídeos de casos
atendidos desde o ano de 2016. Nessa proposta, embora os(as) estagiá-
rios(as) não pudessem vivenciar a aplicação dos protocolos, foi possível
conduzir a análise e discutir sobre a necessidade de orientação parental
para a melhora da interação. Além disso, eles(as) vivenciaram o processo
de análise de concordância entre juízes.
Para verificação da concordância entre juízes, os vídeos foram dis-
tribuídos em duplas. Inicialmente, durante a supervisão on-line, realizamos
a análise coletiva de um dos vídeos, descrevendo os comportamentos dos
protocolos, registrando os comportamentos em suas respectivas categorias
e conversando sobre dúvidas e impressões. Nessa oportunidade, o vídeo
era revisto sempre com duplo enfoque: comportamentos maternos e do
bebê. Posteriormente, foram formadas duplas para análise de um mesmo

67
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

vídeo disponibilizado para diferentes duplas. Na supervisão seguinte, os


protocolos foram comparados, inicialmente, buscando-se o critério mínimo
de concordância entre juízes, acordado no grupo para 0,8. Segundo Souza
et al. (2017), níveis de concordância 0,8 são aceitáveis, excelentes quando se
encontram acima de 0,9.
Quando esse índice foi menor que 0,8, os protocolos foram compa-
rados para identificação dos pontos divergentes. Nessa condição, o vídeo
era reapresentado no trecho de discordância e os(as) observadores(as)
comparavam suas classificações de modo a chegar a um consenso. Esse
processo possibilitou um olhar acurado sobre os comportamentos maternos
e dos bebês. Aprender a identificar as especificidades da interação diádica
possibilita ao(à) estagiário(a) planejar devolutivas junto às famílias de modo
a promover a formação de vínculos saudáveis, contribuindo para um melhor
desenvolvimento infantil e práticas educativas efetivas e afetivas (ZARSKE;
PEREIRA; RODRIGUES, 2021).

Para avaliação e acompanhamento da saúde materna

Outra atividade prevista nesse estágio refere-se à avaliação da saúde


emocional materna. Um dos fatores que podem afetar a saúde emocional de
gestantes são inseguranças relacionadas a eventos catastróficos ou desas-
tres naturais (SALEHI; RAHIMZADEH; MOLAEI et al., 2020). Nesse contexto, a
pandemia, que no Brasil trouxe a condição de elevação de mortes maternas
durante a gestação, pode ser tão séria como catástrofes ou eventos naturais.
Houve incertezas sobre a possibilidade de transmissão de mãe para filho; o
efeito da Covid-19 para o feto; aumento do risco de contrair a doença ou apre-
sentar complicações graves; e sobre a eficácia dos tratamentos disponíveis e
segurança de vacinas (MORTAZAVI; MEHRABAD; KIAEETABAR, 2021).
Diante de todas essas questões, a saúde emocional materna du-
rante a gestação e puerpério requer ainda mais atenção. Alguns estudos
realizados com o intuito de avaliar a saúde emocional materna indicam uma
forte associação entre a presença de indicadores emocionais maternos

68
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

(ansiedade, estresse e depressão) e prejuízos no desenvolvimento infantil


(ALVES; RODRIGUES; CARDOSO, 2018; FERNANDES et al., 2013; NARDI et al.,
2015; PEREIRA et al., 2014).
Nesse cenário estão presentes os potenciais efeitos negativos da
pandemia, principalmente acerca das incertezas sobre a condições de
saúde e economia. Por isso, é fundamental a realização de avaliações que
permitam identificar precocemente os sinais de adoecimento emocional,
para que possam ser oferecidos suporte e acompanhamento (LEBEL, MA-
CKINNON, BAGSHAWE et al., 2020).
Diante da impossibilidade de aplicação dos instrumentos de avalia-
ção da saúde emocional materna, nosso grupo de estágio voltou-se ao estu-
do de artigos que realizaram as avaliações, visando compreender os limites
e possibilidades dessa prática. Foram selecionados estudos com a Escala
de Depressão Pós-Parto de Edinburgh (BROEKMAN et al., 2014; CAMPOS;
RODRIGUES, 2015), Inventário de Beck (ARRAIS; MOURÃO; FRAGALLE, 2014;
SCHMIDT; ARGIMON, 2009), Inventário de Ansiedade Traço e Estado (ALVES;
RODRIGUES; CARDOSO, 2018; BIAGGIO; NATALICIO; SPIELBERGER, 1979) e
Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse (DASS-21) (SOUSA et al., 2017).

Considerando a importância da avaliação da saúde emocional e
frente às limitações do isolamento físico, o grupo se pautou nas experiências
positivas descritas sobre o Pré-Natal Psicológico (PNP) (ARRAIS; MOURÃO;
FRAGALLE, 2014) para apresentação de uma proposta de PNP On-line. A pro-
posta foi encaminhada ao comitê de ética da UFGD, aprovado pelo parecer
de número 4.903.179, em 12 de agosto de 2021. O PNP On-line foi planejado
em seis encontros, voltado às gestantes a partir de 28 semanas de gestação
e seu acompanhante (parceiro(a) ou familiar). Serão debatidos temas voltados
à saúde emocional (com avaliação individualizada, on-line, dos indicadores
de estresse, ansiedade e depressão), amamentação, parto humanizado, rede
de apoio, atenção e cuidados no puerpério, desenvolvimento fetal e saúde
da criança. Dessa forma, assim como vivenciado na formação de professoras
da Educação Infantil, ainda que na modalidade on-line, os(as) estagiários(as)
terão um contato mais próximo com a população à qual o estágio se destina.

69
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Avanços, dificuldades e limitações da proposta

Ao relatar a trajetória percorrida é preciso reconhecer uma série de


receios presentes na fase inicial da proposta. Primeiramente, destaca-se a frus-
tração dos(as) estagiários(as) em não realizar o estágio no ano proposto, conse-
quentemente, aumentando o tempo previsto para conclusão do curso. Depois,
a insegurança sobre o momento do retorno e a incerteza sobre a possibilidade
de desenvolvimento das habilidades propostas no formato de ensino remoto.
Por fim, a possibilidade de se vacinarem ampliou o horizonte de expectativas de
retorno às atividades presenciais, essenciais na formação do(a) psicólogo(a).
Para a supervisora do estágio, algumas dificuldades também estavam
postas, principalmente no processo de construção de vínculo com a turma
no formato remoto. Durante as supervisões, a princípio foi difícil estabelecer
uma condição para que permanecessem com a câmera ligada, o que trazia
uma sensação de distanciamento e solidão. Gradualmente, especialmente
nos momentos em que os(as) estagiários(as) eram responsáveis pela apre-
sentação de conteúdos, as imagens estiveram mais presentes, quebrando
a sensação de ‘estar conversando com um computador’. A dificuldade em
manter a câmera ligada passava também pelos desafios da qualidade de
conexão à internet e tipo de equipamento utilizado.
Durante a formação das professoras e apresentação das análises de
vídeo houve maior participação dos(as) estagiários(as), possivelmente pelo
fato de elas reconhecerem nessas atividades parte da proposta inicial do
estágio em relação à qual tinham grandes expectativas. De igual modo, a
espera pela oferta do PNP On-line parece ter motivado a equipe de estágio,
por viabilizar um encontro, ainda que virtual, com a comunidade.
De modo a minimizar a limitação da prática de estágio oferecida nes-
se ano de 2021 exclusivamente no formato remoto, pretende-se, a partir de
2022, com a possibilidade de retorno presencial das atividades, disponibilizar
projetos de pesquisa e extensão que viabilizem o contato presencial com a
comunidade. A flexibilização das atividades, embora atenda os indicativos
da necessidade de adaptação ao contexto, limita-se a ações emergenciais,

70
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

não substituindo, em outros contextos, a necessidade de contato singular


com os usuários (REIS; FERREIRA, 2021).

Considerações finais

No âmbito do alcance do presente estágio, não foi possível realizar


a avaliação do desenvolvimento infantil. Por mais que as mães ou profes-
soras possam relatar e até registrar algumas atividades, há procedimentos
específicos em relação à avaliação que requerem o contato com a criança, o
que foi inviabilizado nesse período. Do mesmo modo, as visitas hospitalares
às puérperas, com fins de orientação e acolhimento, foram interrompidas
em 2020 e o retorno foi inviabilizado, dificultando o desenvolvimento da
habilidade de escuta e acolhimento.
Desse modo, consideramos que o período de isolamento físico em ra-
zão da pandemia de Covid-19 exigiu uma série de adaptações e flexibilizações
nos mais diversos setores. No âmbito da educação, houve necessidade do de-
senvolvimento de recursos e domínio de tecnologias que pudessem favorecer
a comunicação e a continuidade das atividades em longo período. Em relação
à prática psicológica, houve avanço no atendimento à distância, viabilizando
condições para acesso a serviços a usuários que não seriam atendidos de
outra forma. Contudo, esses recursos devem ser considerados remediativos e
emergenciais, não substituindo a necessidade de atividades presenciais.

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74
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 4
ROTINA FAMILIAR E ESTIMULAÇÃO
COGNITIVA EM CONTEXTO DE PANDEMIA:
construção de cartilhas psicoeducativas para crianças
e seus cuidadores

Adriana Yuri Kaneko


Alisson Júnior Bueno Nascimento Alves
Regina Basso Zanon

As medidas de saúde e de segurança, como o distanciamento


social e o isolamento de pessoas infectadas, são estratégias eficazes de
contenção do número de novos casos de Covid-19 (MASSARANI, 2021).
Ao mesmo tempo que tais medidas são cruciais para o controle de uma
pandemia, reconhece-se que elas têm impactado de diferentes maneiras a
qualidade de vida da população, realçando também as assimetrias e desi-
gualdades sociais. Em todas as faixas etárias, há evidências de um aumento
da inatividade física, aumento no nível de ansiedade, estresse, depressão e
outras formas de sofrimento psicológico (MOTA, 2021). Especificamente no
contexto da infância, existem estratégias que podem minimizar o impacto
negativo dos estressores causados pela pandemia na saúde mental das
crianças, envolvendo, por exemplo, espaços de expressão e validação
das emoções e preocupações infantis e rotinas saudáveis de atividades e
brincadeiras que promovam o bem-estar físico, cognitivo e emocional em
casa (SANSEVERINO et al., 2021). Neste contexto, materiais psicoeducativos
desenvolvidos com base em evidências científicas são estratégias impor-

75
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tantes para fornecer apoio aos pais/cuidadores neste período tão peculiar,
zelando pela saúde das crianças e de suas famílias.
O presente capítulo visa apresentar uma proposta de intervenção
realizada no contexto do Estágio Básico do Núcleo Comum I do curso de
Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). O estágio
está sendo realizado de forma remota, no ano de 2021, período em que a
Universidade, acompanhando as orientações da Organização Mundial de
Saúde, tem adotado diversas medidas para conter a propagação do vírus. O
objetivo principal da intervenção desenvolvida durante o estágio foi construir
duas cartilhas psicoeducativas que possam contribuir para a promoção da
saúde e a construção de novas rotinas em casa, considerando o contexto
instável de uma pandemia, sendo uma destinada aos pais/cuidadores e
outra às crianças. O material das crianças consiste em uma caderneta de
atividades, composta por sugestões de brincadeiras e atividades, que será
acompanhado de um kit lúdico com materiais criativos.
O capítulo está organizado em cinco momentos, os quais retratam
os caminhos percorridos pelos dois primeiros autores do texto durante a
realização do estágio básico, com supervisão da última autora. São eles: 1)
Apresentação dos fundamentos teóricos e estabelecimento dos objetivos
das cartilhas; 2) Definição dos caminhos metodológicos para a construção
das cartilhas; 3) Resultados preliminares; 4) Desdobramentos futuros; 5)
Considerações finais.

Fundamentos teóricos para a elaboração da intervenção

Na primeira infância, a qualidade do cuidado nos seus aspectos físi-


cos, afetivos e sociais atrela-se a condições estáveis de vida, tanto socioe-
conômicas quanto psicossociais (ZAMBERLAN; BIASOLLI, 1996). Os vínculos
e as interações da criança com adultos de referência e com outras crianças
são elementos importantes nessa fase para que se tenha um ambiente
seguro e com adequada estimulação, o que geralmente acontece nos con-
textos da família e da escola. Os processos proximais caracterizam-se pelo

76
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

estabelecimento de interações reciprocas entre o organismo humano e as


pessoas/objetos no ambiente imediato, onde ambas as partes se estimulam
mutuamente. Estes mecanismos constituintes da interação contribuem para
que a criança desenvolva sua percepção, dirija e controle seu comporta-
mento, além de permitir que ela adquira conhecimentos e habilidades,
estabelecendo relações e construindo seu próprio ambiente físico e social
(BRONFENDRENNER; CECI, 1994).
Estudos demonstram que, durante os primeiros seis anos de vida, as
crianças aprendem habilidades linguísticas e cognitivas que são os pilares
necessários para o sucesso escolar, tratando-se de um período ótimo para
o desenvolvimento devido à neuroplasticidade cerebral (FERREIRA-VAS-
QUES; LAMÔNICA, 2018). É nesse período que a arquitetura cerebral da
criança se transforma a partir da interação dos genes (aparato biológico)
com os processos que resultam das suas experiências e relacionamentos
nos ambientes em que vive. Como exemplo, citamos o desenvolvimento
da linguagem, cujo processo a nível cerebral atrela-se à complexidade dos
estímulos linguísticos que as crianças recebem em seu contexto/ambiente
(SARGIANI; MALUF, 2018; KUHL, 2011). Tais aspectos deixam claro o quanto
o neurodesenvolvimento infantil é maleável e suscetível às influencias am-
bientais, sendo a família e a escola ambientes importantes neste processo.
Outrossim, as diferenças desenvolvimentais entre as crianças na
educação infantil podem persistir e se intensificar nos anos posteriores de
escolarização, limitando ou ampliando o sucesso na aprendizagem escolar
a depender das suas experiências (BURGER, 2010; ZAUCHE, et al., 2016). A
literatura aponta que crianças em condições de vulnerabilidade social en-
contram-se em situações desprivilegiadas por uma série se fatores, como a
falta de acesso às condições básicas de higiene, segurança e alimentação,
mas também pela dificuldade de acesso aos bens culturais que incluem, por
exemplo, a experiência com livros e revistas (TURNMER, 2013; TURNMER;
CHAPMAN; PROCHNOW, 2006). Além disso, as crianças em condições de
vulnerabilidade social frequentemente apresentam defasagem em seu
desenvolvimento linguístico e reduzida amplitude do vocabulário oral que,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

se não for superada na educação infantil, dificultará o seu processo de esco-


larização (KUHL, 2011; MALUF, 2015; ZAUCHE et al., 2016).
Durante a pandemia, as crianças foram afastadas da escola por mais
de um ano e, com isso, muitas perderam a oportunidade de circular em um
contexto protetivo e propício ao desenvolvimento, fonte de vínculos e de
estímulos adequados. Os impactos da restrição de vivências e aprendizagens
que o ensino remoto ocasionou na rotina escolar/domiciliar, sobretudo para
as crianças da rede pública de ensino que se encontram em situações des-
privilegiadas, ainda não foram devidamente mensurados na literatura. Porém,
percebe-se que a pandemia ampliou as desigualdades sociais e, diante disto,
buscamos possibilidades interventivas que pudessem amenizar os impactos
negativos no desenvolvimento sociocognitivo de crianças que ficaram afasta-
das dos cuidados e das atividades escolares durante a pandemia.
Nesse cenário, apresentamos as técnicas de psicoeducação, que
são utilizadas pela Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) com o intuito
de orientar as pessoas em diversos aspectos de sua vida, seja a respeito
das consequências de um comportamento, de crenças, valores, sentimen-
tos e como estes repercutem na sua vida e na dos outros (NOGUEIRA et
al., 2017).  Sendo assim, a psicoeducação busca contribuir, a partir da dis-
ponibilização de informações relevantes e cientificamente validadas, para
o desenvolvimento social, emocional e comportamental do sujeito. Cabe
mencionar também que a intervenção psicoeducacional é imprescindível
para dar suporte e apoio ao cuidador, que também merece um olhar de
acolhimento (LEMES; ONDERE NETO, 2017).
Na psicoterapia infantil, a técnica da psicoeducação costuma ser
feita tanto com os pais quanto com a própria criança, mas a forma como
será feita deverá respeitar a idade e o grau de desenvolvimento em que o
paciente se encontra. No caso de crianças menores, pode ser realizada a
psicoeducação indireta, ou seja, a partir da utilização de histórias e metáfo-
ras com personagens que permitam que a criança identifique emoções e
situações, por exemplo (PUREZA et al., 2014). Diante do exposto, durante o
estágio básico, buscou-se desenvolver cartilhas psicoeducativas para pais/
cuidadores e para crianças, que auxiliem na organização da rotina domiciliar,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

no gerenciamento dos fatores estressores do contexto da pandemia e no


desenvolvimento de habilidades sociocognitivas, através da estimulação,
por meio de atividades lúdicas e dinâmicas familiares, que corroborem para
o pleno desenvolvimento infantil.

Método

Para atender o objetivo proposto, realizou-se uma pesquisa desen-


volvida a partir de quatro etapas, sendo que cada uma delas apresentou
procedimentos metodológicos próprios: 1. Levantamento bibliográfico;
2. Pesquisa exploratória e descritiva realizada através de um questionário
on-line no Google Forms; 3. Elaboração do material psicoeducativo; 4. Vali-
dação do material por especialistas no assunto; e 5. Aplicação e avaliação
do material pelo público alvo. Tendo em vista que o estágio e a pesquisa
encontram-se em andamento, para fins deste capítulo não serão apresenta-
dos os resultados das etapas 4 e 5, apenas.
Em linhas gerais, na etapa 1 realizou-se a revisão bibliográfica de
materiais publicados em periódicos científicos. As publicações dentro da
temática passaram por leitura reflexiva a fim de se extrair o máximo de
informações relevantes para delimitar, construir e fundamentar os tópicos
a serem contemplados nas cartilhas. Assim, realizou-se busca por publica-
ções que tratassem sobre cartilhas, estimulação cognitiva, terapia cognitiva
comportamental para crianças e psicoeducação, sendo analisadas algumas
publicações já existentes (KUHL, 2011; ENUMO et al., 2020; PUREZA et al.,
2014; SANSEVERINO et al., 2021; SANTOS; GARCIA; 2020).
Na etapa 2, foi realizada uma pesquisa de natureza exploratória e
descritiva, com coleta de dados através de um questionário on-line elaborado
especificamente para o presente estudo que foi aplicado a 33 pais/cuidado-
res a partir da plataforma Google Forms. O questionário foi formado por três
perguntas de múltipla-escolha, uma mista e três questões abertas, e teve
como finalidade investigar as necessidades e demandas das famílias duran-
te a pandemia. Já na etapa 3 foi realizada a elaboração dos dois materiais

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

psicoeducativos, sendo uma cartilha para pais/cuidadores e um caderno de


atividades para as crianças acompanhado de um kit lúdico de materiais.

Resultados preliminares

Os dados coletados dos 33 cuidadores/pais que responderam ao


questionário on-line (Etapa 2) foram analisados a partir da estatística descri-
tiva, com base em frequência e porcentagem (DANCEY; REIDY, 2018). Dos
participantes, 54,5% (n=18) informaram que possuíam apenas uma criança
em casa, enquanto que 45,5% (n=15) possuíam mais de uma criança em casa.
Em relação à faixa etária, das 53 (cinquenta e três) crianças, 56,6% (n=30)
tinham entre 5 e 10 anos. No que diz respeito ao grau de parentesco dos
participantes com as crianças, 51,5% (n=17) eram pais, 27,3% (n=9) irmãos e
21,2% (n=7) cuidadores com outros tipos de vínculos.
Quando perguntado sobre as possíveis dificuldades em manter ou
criar uma rotina com as crianças em casa diante da pandemia de Covid-19,
78,8% (n=26) responderam que foi muito desafiador, 9% (n=3) afirmaram
gerenciar sem dificuldades e 12,1% (n=4) apontaram que atualmente conse-
guem lidar melhor com os desafios. Portanto, observa-se que a maioria dos
participantes apresentou dificuldades para lidar com o contexto pandêmico,
enquanto aqueles que estão conseguindo lidar melhor atualmente também
passaram por dificuldades antes de se adaptarem.
A investigação sobre a natureza das dificuldades encontradas se deu
a partir de questões abertas que foram analisadas a partir da análise temática,
que se trata de um método para identificar, analisar e relatar padrões (temas)
dentro dos dados (BRAUN; CLARK, 2006). Após uma leitura minuciosa dos
relatos dos participantes, as demandas que mais apareceram nas falas foram
elencadas, sendo elas: dificuldades de concentração das crianças para a rea-
lização das tarefas on-line; falta de contato externo com os colegas; ausência
de atividades ao ar livre como um potencializador de angústia e impaciência
por parte das crianças; uso excessivo de aparelhos eletrônicos; consequên-
cias emocionais decorrentes da má alimentação; dificuldade na organização

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e planejamento de uma rotina escolar e falta de tempo dos pais para dar
atenção às crianças, por trabalharem fora o dia inteiro.
A partir dessas queixas, observou-se a necessidade de atentar-se
para a busca de materiais educativos infantis que trouxessem atividades
lúdicas e dinâmicas que não fossem restritas a desenhos e pinturas de
gravuras, já que essas lições costumam ser frequentemente encaminhadas
pela escola, conforme relatado por uma das participantes. Atentos a esta
questão, os autores realizaram uma revisão bibliográfica em periódicos
científicos sobre a importância da psicoeducação e do desenvolvimento de
habilidades sociocognitivas na infância (PUREZA et al., 2014). A partir deste
estudo, foi feita a pré-seleção de atividades que envolvessem o estímulo da
coordenação motora, memória, criatividade, fabricação de brinquedos e di-
nâmicas de interação social com os pais, que fossem acessíveis e pudessem
ser desenvolvidas dentro do ambiente domiciliar.
Diante da apropriação teórica e do levantamento das demandas
do público-alvo, decidiu-se construir materiais acessíveis para a psicoedu-
cação de pais/cuidadores sobre as necessidades infantis e a importância
do desenvolvimento sociocognitivo das crianças em casa. A definição do
público-alvo visou contemplar principalmente as crianças de escolas pú-
blicas, que foram as maiores prejudicadas pelo distanciamento social, cujos
pais preencheram o questionário. Decidiu-se também que o formato das
cartilhas será impresso e que o kit lúdico envolverá materiais de baixo custo.

Construção das cartilhas

A partir da revisão teórica e da pesquisa exploratória e descritiva


com representantes do público-alvo, foram estabelecidos os temas a serem
contemplados e iniciou-se o processo de construção das cartilhas. Após a
definição do conteúdo em cada um dos materiais, realizou-se a elabora-
ção textual, seguido da confecção de ilustrações que foram organizadas e
formuladas através do site Canva, e finalizou-se com a diagramação. Bus-
cou-se aliar um conteúdo rico de informações relevantes, de forma objetiva,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

atrativa e prática, visto que materiais extensos e com textos longos tornam-
-se cansativos. As cartilhas foram elaboradas em tamanho 20 cm x 25 cm,
constituído em sua versão pré-validação com 25 páginas (cartilha para pais e
cuidadores) e 40 páginas (cartilha psicoeducativa para as crianças). A cartilha
destinada aos pais/cuidadores foi desenvolvida primeiro, e foi organizada
em domínios (Figura 1).

Figura 1 — Sumário da cartilha destinada para pais e cuidadores

Fonte: Os autores.

Para fins de ilustração, a seguir serão apresentadas seis partes (pá-


ginas) da cartilha destinada aos pais/cuidadores. As figuras de número 2
e 3 tratam de um trecho da cartilha (p. 10-11) destinada à organização da
rotina domiciliar, já que esta foi uma queixa recorrente dos pais/cuidadores,
identificada na “etapa número 2”. O conteúdo elenca práticas que podem
auxiliar na organização das tarefas, no estabelecimento de regras, limites,
resiliência e planejamento para toda a família, de modo que essa união
entre os integrantes do lar evite a sobrecarga em apenas um dos membros
e dificulte o gerenciamento das atividades diárias.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Figura 2 — Ilustração da página 10 da cartilha Figura 3 — Ilustração da página 11 da


dos pais/cuidadores cartilha dos pais/cuidadores

As figuras 4 e 5 apresentam informações aos cuidadores sobre o


Sistema de Economia de Fichas (p. 12-14). Trata-se de uma técnica com-
portamental útil para ajudar as crianças a aumentarem os comportamentos
adequados, através de reforços positivos dos pais. A técnica apresenta um
sistema de pontos e recompensas. Primeiramente, selecionam-se os com-
portamentos desejados, devendo-se iniciar com poucos comportamentos
(de um a três), dependendo da idade da criança. Por exemplo: realizar
atividade escolar; arrumar o quarto; dormir cedo. Então se estabelece um
número de pontos para cada comportamento, e cada vez que a criança emi-
tir o comportamento desejado, ela recebe fichas com os pontos relativos. Ela
deve juntar semanalmente um número determinado de pontos, que poderá
ser trocado pelas recompensas preestabelecidas. É válido ressaltar que as
recompensas não precisam ser bens materiais (presentes ou dinheiro), o ide-
al é que sejam atividades de lazer e de preferência junto à família (PUREZA
et al., 2014).

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Figura 4 — Ilustração da página 12 da Figura 5 — Ilustração da página 14 da


cartilha dos pais/cuidadores cartilha dos pais/cuidadores

Fonte: Os autores Fonte: Os autores ‘

A figura 6 apresenta uma parte da cartilha que contempla uma


série de estratégias de autocuidado que podem auxiliar pais/cuidadores a
manterem o bem-estar e o equilíbrio. Entre elas, estão o exercício físico; boa
alimentação; sono de qualidade; fortalecimento da rede de apoio; redução
do uso excessivo das redes sociais; e respeito aos limites pessoais e descan-
so. Tais aspectos foram contemplados a partir de dicas práticas na Cartilha
para pais e/ou cuidadores (p. 18-21).

Figura 6 — Ilustração da página 18 da cartilha dos pais/cuidadores

Fonte: Os autores

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A caderneta de atividades das crianças foi desenvolvida a partir dos


seguintes temas: Acolhimento inicial e contextualização da pandemia (p.
2-5); Habilidades sociocognitivas (p. 6-7); Emoções (p. 8-12); Pensamentos e
sentimentos (p. 13); Semáforo dos sentimentos (p. 14-20); História do vulcão
(p. 21); Como me sinto? (p. 22); Baralho das emoções (p. 23-32); Brincando
em casa (p. 33-36); Vamos nos alongar? (p. 37); Técnica de respiração (p. 38);
e Fechamento da cartilha (p. 39-40). Para fins de ilustração, a seguir serão
apresentadas seis partes internas (páginas) da cartilha destinada às crianças.
A figura 7 apresenta breves definições de algumas das emoções
básicas que são trabalhadas durante as atividades da cartilha das crianças,
envolvendo sentimentos como amor, alegria e tristeza, os quais fazem parte
do processo de psicoeducação na perspectiva da TCC. Já a figura 8 consiste
em uma atividade para fixação dos conceitos apresentados na figura anterior,
na qual a criança é instruída a ligar o sentimento à expressão correspondente.

Figura 7 — Ilustração da página 10 da Figura 8 — Ilustração da página 11 da


cartilha para as crianças cartilha para as crianças

Fonte: Os autores Fonte: Os autores

Nas figuras 9 e 10 são apresentados exemplos de dinâmicas de psico-


educação sobre a diferenciação entre pensamentos e sentimentos, que costu-
mam ser trabalhadas na perspectiva da TCC. São intervenções que enfocam o
papel adaptativo das emoções e possibilitam uma ampliação e aprimoramento
das mesmas com as crianças e adolescentes (PUREZA et al., 2014)

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Figura 9 — Ilustração da página 13 da Figura 10 — Ilustração da página 14 da


cartilha para as crianças cartilha para as crianças

Fonte: Os autores Fonte: Os autores

Fonte: Os autores Fonte: Os autores

Já a figura 11 contempla o item “Brincando em casa”, que contém su-


gestões de brincadeiras e técnicas que buscam estimular algumas funções
e habilidades socioemocionais, incentivar o uso da criatividade e reforçar
a vinculação entre criança e cuidador. O ato de brincar é para a criança a
janela de acesso ao mundo real, fazendo parte do seu desenvolvimento
saudável e construção de suas representações internas (SANTOS; GARCIA,
2020). Adiante, a figura 12 apresenta o tópico “Vamos nos alongar?”, que visa
incentivar as crianças à prática de exercícios físicos no ambiente domiciliar.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Figura 11 — Ilustração da página 33 da Figura 12 — Ilustração da página 37 da


cartilha para as crianças cartilha para as crianças

Fonte: Os autores Fonte: Os autores

O kit lúdico de materiais, que acompanha a cartilha das crianças, foi


proposto com a finalidade de instrumentalizar a realização das atividades
sem que os pais/cuidadores tenham nenhum custo financeiro para desen-
volver as atividades da cartilha juntamente com os seus filhos. Os materiais
escolhidos até o momento são: lápis de cor, giz de cera, papel, tinta guache,
pratinhos descartáveis, balões, bolinhas de sabão, palitinhos, gibis, palitinho
de picolé, folha sulfite e copinhos descartáveis. Esses materiais serão se-
lecionados definitivamente após a finalização das cartilhas e realização do
orçamento dos respectivos itens.

Desdobramentos futuros

Após concluir a diagramação, os pesquisadores enviaram a versão


da cartilha para apreciação de dois juízes especialistas na área e com ex-
periência no trabalho com crianças, que avaliaram de forma independente
os materiais, a partir de questionário próprio, no que se refere aos seguintes
pontos: conteúdo, acessibilidade, atratividade, relevância e extensão. Para
tanto, foi encaminhado ao e-mail dos juízes um pôster informativo contendo
de forma sucinta o tema, os objetivos, os materiais e métodos e os resul-
tados parciais da pesquisa, bem como as duas cartilhas e um questionário

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

contendo 6 (seis) questões, 3 (três) delas com escala de 0 a 10, para avaliar
a relevância, a atratividade visual, a linguagem e a clareza do conteúdo da
proposta. As outras 3 (três) perguntas foram abertas para receber sugestões
dos juízes, com o intuito de aprimorar o material em elaboração.
O processo de adaptação do material psicoeducativo às sugestões
dos juízes é imprescindível para tornar maior o rigor científico e a eficácia do
material. Essa etapa é referida por outros estudos como de grande relevân-
cia para o aperfeiçoamento do material a ser validado. Foram sugeridos a
reformulação e exclusão de informações, substituição de termos, além da
reformulação das ilustrações (WALTZ; BAUSELL, 1981; POLIT; BECK, 2011). A
partir da elaboração de materiais psicoeducativos de qualidade, viabiliza-se
a relação de intervenções pautadas em saberes estruturados e informações
direcionadas ao público-alvo.
Posteriormente, está prevista a entrega das cartilhas impressas para
10 (dez) crianças e pais/cuidadores, considerando o grau de proximidade
com os acadêmicos responsáveis pela proposta, para viabilizar o acompa-
nhamento dos alcances e contribuições desse material (validade social).
Mediante validação e feedback do público-alvo, futuramente pretende-se
disponibilizá-las gratuitamente na versão on-line, e em mídias sociais (exem-
plos: Instagram e página do Facebook).

Considerações finais

Com o surgimento da pandemia, novas formas adaptativas ao con-


texto do estágio básico em psicologia foram mapeadas. As intervenções que
antes seriam desenvolvidas presencialmente e em grupos passaram a ocorrer
na modalidade remota, a partir de atividades síncronas e assíncronas. Durante
o percurso inicial de estágio, alguns questionamentos e reflexões emergiram:
Como viabilizar práticas e ações relevantes durante uma pandemia respei-
tando as demandas atuais e as medidas de segurança e de saúde adotadas
na Universidade? Como proceder para que as ações e os materiais criados
durante o estágio chegassem até os pais/cuidadores e às crianças?

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Nesse cenário, definiu-se a proposta com foco na psicoeducação e


na proposição de atividades e dinâmicas que corroborem na organização da
rotina domiciliar dessas crianças e no desenvolvimento sociocognitivo delas.
Outrossim, formulou-se um material informativo para pais e cuidadores, com
um olhar de validação e acolhimento que também reconheça os desgastes
psíquicos dos mesmos inerente a este período, estabelecendo um cuidado
a quem cuida, que também merece atenção.
Espera-se que as atividades e informações das cartilhas possam
auxiliar pais/cuidadores e crianças, sobretudo aquelas em situações
desprivilegiadas. Entende-se que os materiais desenvolvidos durante
o estágio podem ajudar as famílias na organização da rotina domiciliar,
no gerenciamento de fatores estressores do contexto da pandemia e no
desenvolvimento de habilidades sociocognitivas, através da estimulação
cognitiva com atividades lúdicas e dinâmicas familiares, que corroborem
para o desenvolvimento infantil, que pode ter sido impactado significativa-
mente em decorrência na restrição das vivências das crianças no contexto
escolar. Por fim, cabe mencionar que  relato da prática de estágio básico
supervisionado, realizado durante um contexto de pandemia, aponta para
caminhos possíveis para intervenções com propósitos psicoeducativos, ao
mesmo tempo em que mostra o estágio supervisionado como um contexto
importante de aprendizagem e de intervenções junto à comunidade externa
à Universidade.

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91
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 5
O CONSELHO MUNICIPAL DE DIREITOS DAS
MULHERES DA CIDADE DE DOURADOS-MS:
relato de experiência de Estágio de Núcleo Comum

Gabriela Rieveres Borges de Andrade


Letícia Silva Pereira
Michelli Palmeira

Introdução

A experiência que relatamos aqui se deu ao longo de 2018, no Está-


gio Supervisionado do Núcleo Comum. A proposta do estágio foi propiciar
experiências e reflexões sobre os espaços participativos de gestão de políti-
cas públicas e de direitos existentes na cidade de Dourados, conhecer como
a sociedade civil participa nesses espaços e refletir sobre como contribuem
com o acesso a direitos. Relatamos algumas das atividades desenvolvidas
ao longo de 2018, com maior foco nas experiências no Conselho Municipal
de Direito das Mulheres.
Dourados conta, desde 2002, com um espaço físico chamado Casa
dos Conselhos localizado em região central da cidade, onde atuam, entre
outros serviços, oito conselhos ligados à Secretaria Municipal de Assistência
Social. Entre os oito conselhos, cinco são de direitos. São estes: Conselho
Municipal dos Direitos da Mulher (CMDM), Conselho Municipal dos Direitos
da Pessoa com Deficiência (CMDPD), Conselho Municipal dos Direitos da

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Pessoa Idosa (CMDPI), Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Ado-


lescente (CMDCA) e o Conselho Municipal de Defesa e Desenvolvimento
dos Direitos dos Afro-Brasileiros (COMAFRO). Outros três conselhos são:
Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMAD), Conselho Municipal
da Juventude (CMJ) e Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS).
Um dos desafios encontrados ao longo do estágio foi diferenciar
conselhos gestores de políticas sociais e conselhos de direitos. Falaremos
sobre esta diferenciação e sobre o histórico dos Conselhos de Defesa dos
Direitos das Mulheres no Brasil e, em seguida, relatamos as quatro reuniões
do CMDM que observamos no segundo semestre de 2018, apontando alguns
desafios e desdobramentos da atuação do conselho no período observado.

Os Conselhos municipais de políticas sociais e de direitos

A institucionalização da participação da sociedade civil na gestão das


políticas públicas foi garantida pela Constituição de 1988 através dos Conse-
lhos e Conferências setoriais, implementados nos três níveis da federação:
união, estados e municípios. O estabelecimento dos conselhos gestores de
políticas setoriais e das conferências no nível municipal é uma das inovações
da chamada “constituição cidadã” (CARVALHO, 1995; ANDRADE; VAITSMAN,
2013; LABRA; FIGUEIREDO, 2002).
Rocha (2008) ressalta que cada setor,

em razão das dinâmicas próprias, estruturou seus conselhos


de forma particular [...]. Da mesma forma, apesar de partilharem
desafios comuns, cada um desses espaços guarda singularida-
des que só podem ser analisadas em seu próprio contexto de
histórico de atuação (p. 138).

O setor Saúde foi pioneiro na implementação dos conselhos muni-


cipais a partir da Lei 8.142 (BRASIL, 1990), que dispõe sobre a participação
da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS). Na política de
Assistência Social, a gestão participativa e descentralizada é prevista na Lei
8.742, Lei Orgânica da Assistência Social (BRASIL, 1993).

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Os conselhos gestores de políticas públicas têm composição pro-


porcional entre os diferentes segmentos. Os Conselhos de Assistência Social,
por exemplo, devem ser compostos por 50% de representantes do governo
e 50% de representantes da sociedade civil. O segmento sociedade civil é
composto por membros de organizações não governamentais, de usuários
e de trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social, portanto, a vaga
no conselho é da organização ou entidade. A participação nos conselhos é
voluntária, as reuniões acontecem uma vez por mês e são abertas para qual-
quer cidadã(o) interessada(o) que pode participar como ouvinte, podendo
opinar sem direito a voto.
Tanto as conferências quanto os conselhos têm abrangência mu-
nicipal, estadual e federal, sendo que as conferências, diferentemente dos
conselhos, que têm reuniões mensais, acontecem de quatro em quatro
anos. Em uma Conferência Municipal de Saúde, por exemplo, reúnem-se
profissionais da saúde, prestadores de serviço, parlamentares, usuários
e cidadãos em geral para discutir e deliberar sobre as políticas de saúde
municipais. Nesse momento, são escolhidas(os) as(os) delegadas(os) que
representarão o município na Conferência Estadual e, nela, os que represen-
tarão o estado na Conferência Nacional. Este sistema possibilita um amplo
debate e o reforço de pautas comuns, influindo nos rumos das políticas dos
próximos anos, de forma participativa. Sobre as conferências, Rocha (2008)
afirma que são “espaços mais amplos de participação, onde representantes
do poder público e da sociedade discutem e apresentam propostas para o
fortalecimento e a adequação de políticas públicas específicas” (p. 137).
Os conselhos de direitos, assim como os de gestão de políticas, são
instâncias representativas da sociedade civil e do governo que discutem
ações e políticas públicas com foco na garantia dos direitos de populações
específicas (idosos, criança e adolescentes, portadores de deficiências, mu-
lheres), nos três níveis da federação. Os conselhos voltados para os idosos e
para as crianças e adolescentes estão pautados no Estatuto do Idoso (BRA-
SIL, 2003) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e têm
fundo orçamentário específico, cuja execução deve ser acompanhada pelos
conselhos. Outros pautam-se em políticas nacionais (de combate à violência

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contra as mulheres, para a integração da pessoa portadora de deficiência)
para fomentar políticas específicas.
O Conselho de Defesa dos Direitos das Mulheres é fruto da luta do
movimento de mulheres pela busca de direitos e da criação e implementação
de programas que vêm se consolidando como meios de enfrentamento à
violência e às diferentes formas de discriminação. A democratização marcou
a abertura de espaços para a presença das mulheres na constituição das
agendas estaduais e locais e na implementação de políticas e programas
com recorte de gênero. Mas a história da luta das mulheres por direitos não
é nova e remonta ao final do século XIX (DE JESUS; ALMEIDA, 2016).
No Brasil, as pautas dos movimentos feministas ganharam expressão
a partir da década de 1970 com o processo de abertura democrática. En-
quanto participavam ativamente nos movimentos sociais que denunciavam
as desigualdades de classe, as mulheres pautavam temas específicos à sua
condição, tais como direito à creche, saúde da mulher, sexualidade e violên-
cia contra a mulher (FARAH, 2004). Na década de 1980, foi criado o primeiro
Conselho Estadual da Condição Feminina, em 1983, e a primeira Delegacia
de Polícia de Defesa da Mulher, em 1985, ambos no Estado de São Paulo.
Essas instituições se disseminaram por todo o país. Ainda em 1985, foi criado
o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão do Ministério da Justiça
(FARAH, 2004).
A mobilização das mulheres ao longo da década de 1980 teve refle-
xos na Constituição de 1988. Organizadas em torno da bandeira “Constituinte
pra valer tem que ter palavra de mulher”, as mulheres estruturaram propos-
tas apresentadas ao Congresso Constituinte sob o título “Carta das Mulheres
Brasileiras”. Propostas relativas às temáticas como saúde, família, trabalho,
violência e discriminação, entre outras, foram incorporadas à Constituição.
Podemos assinalar avanços em relação aos direitos das mulheres,
como a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Sancionada em 2006, a lei é fruto
de uma reivindicação histórica dos movimentos feministas para a imple-
mentação de um dispositivo legal que assegurasse direitos e a defesa de
vítimas de violência doméstica e familiar. Outra importante conquista para as
mulheres foi a Lei nº 13.104/2015, que enquadra o feminicídio como homicí-
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dio qualificado. Na Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as


mulheres (BRASIL, 2011), são citados os elementos que constituem a rede de
enfrentamento a violência contra a mulher, como as delegacias especializa-
das, os núcleos de atendimento à mulher em situação de violência e casas
abrigo, entre outros.

O Conselho Municipal de Direitos das Mulheres como espaço


de articulação de redes

O estágio aqui relatado teve a proposta de construir coletivamente


conhecimentos e reflexões acerca das conferências e conselhos gestores
de políticas e de direitos. Ao longo do ano de 2018, o grupo conheceu al-
guns dos diferentes conselhos e conferências da cidade. Essas experiências
foram relatadas e analisadas em supervisões semanais no Laboratório do
Serviço de Psicologia Aplicada (LabSPA), com o apoio de referenciais teóri-
cos pertinentes ao tema.
O grupo conheceu a Casa dos Conselhos; participou da XI Conferên-
cia Municipal da Criança e do Adolescente e do II Seminário de Sensibiliza-
ção da Sociedade com relação ao Uso Abusivo de Álcool e outras Drogas,
organizado pelo Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMAD);
conheceu o Conselho Municipal de Saúde de Dourados; e participou do
Conselho Municipal de Direitos das Mulheres (CMDM). O relato que será
feito a seguir é sobre esta última experiência, da participação do grupo em
quatro reuniões do CMDM, no período de junho a novembro de 2018.
Na primeira reunião que participamos do CMDM, ainda no primeiro
semestre, os pontos de pauta foram as ações do mês de julho e o planejamento
de atividades para o mês Agosto Lilás, que tem como temática o protagonismo
feminino. As conselheiras dialogaram, trocaram experiências e fizeram propos-
tas. Foi destacada na reunião a importância de se pensar e agir frente à violência
doméstica e à violência contra a mulher e foi discutido como o conselho vem
se articulando com a Secretaria de Assistência Social. Foi avaliado que, apesar

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dos inúmeros desafios, tem havido avanços dentre os quais pode se citar a
implementação da Sala Lilás vinculada ao Projeto Acalento.
O Projeto Acalento consiste em um programa de atendimento às víti-
mas de violência sexual, localizado no Hospital Universitário, que visa acolher
e facilitar o atendimento às vítimas, auxiliando, inclusive, com o Boletim de
Ocorrência e com a perícia que antes demandavam deslocamentos. Estas
dificuldades foram amenizadas ao concentrar os serviços em um único local.
Outra ação em fase de implementação é a criação de um vale transporte para
facilitar a locomoção entre os locais com maior fluxo de atendimento, como
delegacias, hospitais e Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).
Destacaram-se, ainda, propostas como a criação de um protocolo
para regular o atendimento às mulheres de modo a promover diálogo entre
as profissionais envolvidas, favorecendo o encaminhamento correto das
demandas quando, por exemplo, uma agente comunitária de saúde identi-
fica que as questões trazidas poderiam ser melhor resolvidas na delegacia.
Neste sentido, é muito importante a integração das profissionais envolvidas
nessa rede de atendimento. Outra proposta foi no sentido de uma maior
intersetorialidade entre os diferentes serviços. Os problemas decorrentes
do uso abusivo de álcool e outras drogas, por exemplo, demandam atenção
intersetorial, visto que em muitas denúncias está presente o uso dessas
substâncias como uma das causas da violência.
De modo geral, foi notável que o conselho possui capacidade de
articular pensamentos, ideias e experiências a fim de cumprir seu objetivo de
fortalecimento de direitos. Entretanto, como destacado por uma conselheira,
as ações são estruturalmente orientadas às mulheres e é necessário e po-
sitivo quando também os homens tomam consciência do tema, pois é fato
que a violência tem raízes no patriarcado de uma sociedade que durante
muito tempo restringiu as mulheres à condição de subalternidade.
Na segunda reunião do CMDM que participamos, o objetivo foi dis-
cutir questões relativas ao assédio moral e sexual no trabalho, tendo em vista
que vinham sendo divulgados dados de afastamentos em decorrência de
tal prática. A temática foi considerada urgente pelas conselheiras presentes.
Entretanto, para que as propostas fossem efetivadas, seria necessário que a

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

reunião tivesse quórum e isso foi um empecilho neste dia. Assim, optou-se
por realizar uma reunião extraordinária na semana seguinte, a fim de serem
decididos os encaminhamentos.
Na supervisão que se seguiu à reunião, discutimos as diferenças
entre os conselhos de promoção e defesa de direitos e os conselhos de
políticas públicas. Observamos que a reunião do CMDM tinha uma par-
ticipação mais equilibrada em termos de distribuição de poder entre as
conselheiras do que na reunião que presenciamos do Conselho de Saúde,
onde as diferentes posições dos conselheiros os colocavam em posição de
desigualdades em relação ao acesso às informações e ao poder decisório.
Na terceira reunião do CMDM que observamos, estavam em pauta
ações para o mês de novembro, no contexto dos “16 Dias de Ativismo”. Fo-
ram pensadas as atividades e as responsabilidades foram divididas entre
as conselheiras. Deliberou-se por uma ação em praça pública envolvendo
todos os setores, aproveitando o dia 1º de dezembro, Dia Mundial de Luta
Contra o HIV/Aids, para articular diferentes setores. Foi sugerida a nossa
participação nas atividades e levamos esta demanda para a supervisão.
Os 16 Dias de Ativismo têm início em 16 de novembro e vai até o dia
1º de dezembro. A campanha dos 16 dias de ativismo tem sua origem no ano
de 1991, como um movimento de mulheres de diferentes países que, reu-
nidas pelo Centro de Liderança Global de Mulheres (CWGL), começa uma
campanha com o objetivo de promover o debate e a denúncia das diversas
formas de violência contra as mulheres no mundo. No Brasil, a campanha
acontece desde 2003 e visa conscientizar a população sobre a necessidade
da erradicação da violência contra a mulher. Tem também o objetivo de
divulgar os mecanismos para coibir a violência de gênero e promover uma
reflexão sobre os avanços e retrocessos nas políticas públicas. Além disso,
são realizadas ações de enfrentamento à violência.
Uma conselheira sugeriu a realização de ações com as mulheres
encarceradas. Outra conselheira mencionou as ações relacionadas à beleza
(maquiagem, corte de cabelo etc.), realizadas junto às mulheres indígenas e
sua avaliação foi de que as mulheres gostaram muito, pois contribuiu para
estimular a autoestima e a valorização das mulheres. Outra questão é que

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

o COMAFRO foi reativado e o desafio discutido foi o de como pensar em


ações em conjunto e não concorrentes.
Foram discutidas as ações de saúde realizadas durante o Outubro
Rosa. O Centro de Atendimento à Mulher (CAM) fez plantões para atender
mulheres nos CRAS. Foi feita uma reclamação sobre o atendimento em
Saúde na reserva indígena. Outra ação prevista foi a Audiência Pública para
debater assédio no ambiente de trabalho.
Na quarta reunião observada, foram discutidas pautas para a finali-
zação do ano, sendo elas os 16 Dias de Ativismo, dando continuidade às dis-
cussões e planejamentos das ações locais, e a questão do assédio moral no
ambiente de trabalho. Foi discutida a iniciativa de levar para a prefeitura mais
palestras e ações acerca do assédio moral e sexual. Acerca da primeira pauta,
foi planejada uma “ação social” na praça com diversas atividades e serviços
— promoção da saúde, orientação jurídica, testes para HIV, apresentações
culturais, estética (manicure, maquiagem), como também oportunizadas falas
em microfone aberto sobre a temática da violência contra a mulher.
Diversas instituições seriam envolvidas nessas ações, tais como o
SENAI e o SENAC, com serviços de manicure e pedicure, e a Delegacia
da Mulher, com o serviço de aconselhamento jurídico, orientando com as
questões legais de proteção a mulher. As atrações culturais pensadas teriam
o sentido de propiciar o diálogo de forma mais acessível.
Próximo ao final da reunião, a presidente do conselho abriu um espaço
para falarmos de nossa participação no conselho e também nos convidou para
pensarmos ações no dia da ação na praça. Fez um convite para participarmos
da reunião no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) que aconteceria
logo após a reunião do conselho a fim de acertar detalhes da ação de sábado.
Estiveram na reunião a supervisora e uma estagiária e, a partir desta reunião,
foi articulada uma conversa com a psicóloga do CTA com graduandas/os do
curso de Psicologia. Esta ação vinculou-se ao projeto de extensão “Saúde na
Praça”, coordenado pela docente supervisora do estágio, a fim de produzir re-
flexões sobre as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e pensar ações
para o Dia Mundial de Luta Contra o HIV/Aids.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Discussão

O Regimento Interno do CMDM de Dourados foi aprovado em de-


creto municipal (Decreto nº 2537) em 2004. No primeiro artigo do regimento
consta que o CMDM é um:

[...] órgão colegiado de deliberação coletiva, vinculado à Se-


cretaria Municipal de Governo, [...] tem por finalidade orientar,
implementar e contribuir com as políticas públicas relativas aos
direitos da Mulher, objetivando assegurar à população feminina
o pleno exercício de sua cidadania (BRASIL, 2004).

Entre os objetivos, o Decreto define que ao CMDM compete “formu-


lar diretrizes e promover atividades que objetivem a defesa dos direitos da
mulher [...]”, “acompanhar a elaboração e execução de programas municipais
de governo em questões relativas à mulher”; “fiscalizar e exigir o cumpri-
mento de leis federais, estaduais e municipais, que atendam aos interesses
das mulheres e assegurem os seus direitos”, entre outros. Nesse sentido, o
CMDM não está ligado a um setor de políticas específico, mas trabalha com
as políticas setoriais naquilo que compete aos direitos das mulheres.
Nas quatro reuniões do CMDM percebeu-se uma agenda de ativi-
dades integrando diferentes setores (Saúde, Assistência Social, Educação)
a partir do tema Direito das Mulheres e de Gênero. Temáticas relativas aos
interesses das mulheres foram pautadas em decorrência de datas emble-
máticas como os 16 Dias de Ativismo, o Agosto Lilás (contra a violência), o
Outubro Rosa (saúde) e o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de no-
vembro). Os atores e instituições governamentais e não governamentais de
diferentes setores de políticas (Secretaria das Mulheres, Saúde, Assistência
Social, Educação) e da Sociedade Civil (Aldeias, Mulheres Negras) se
mobilizam em torno dessas ações e o CMDM é um espaço importante de
articulação desta rede.
As conselheiras que participavam do CMDM mostraram-se atentas
à realidade e aos problemas locais. Mulheres com atuações em diferentes
espaços (Assistência Social, Delegacia da Mulher, Universidade, Saúde,
Educação, Associação Comercial), trouxeram diferentes pontos de vista que

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

enriquecem a discussão e dão visibilidade às diferentes demandas. A coor-


denação no conselho teve o papel de organizar as pautas e as discussões
e propiciar uma participação igualitária. Observamos que as conselheiras
pareciam confortáveis em pedir a palavra.
Foram percebidos, também, desafios semelhantes aos encontrados
em artigos sobre conselhos lidos ao longo do estágio, entre eles, o de manter
a participação ativa e constante. Existe um custo na participação e os benefí-
cios nem sempre são imediatos (LABRA, 2002; RAICHELIS, 2007). Em alguns
momentos, transpareceu o desânimo e uma inconstância na participação,
como na reunião ordinária do CMDM que foi suspensa por falta de quórum.
De modo geral, há pouca divulgação dos conselhos para a sociedade em
geral, ficando restrito o número de pessoas que tomam parte das reuniões.
Para as(os) psicólogas(os) que atuam nas políticas públicas, e cuja
presença não observamos no CMDM, conhecer e participar desses espaços
pode ser um caminho para potencializar a atuação com compromisso social
com as diferentes comunidades. Consideramos que são espaços que pos-
sibilitam expressar demandas, articular temas pertinentes às comunidades,
compor com as redes, realizar ações intersetoriais e pautar temas importan-
tes. Cada vez mais, as políticas públicas exigem o trabalho em rede articulada
territorialmente. Para a(o) psicóloga(o) que trabalha com as políticas sociais
(Saúde, Assistência Social, Educação), é vital essa articulação (PIMENTA;
VALENCIO; LEMOS, 2017). O olhar da(o) psicóloga(o) pode contribuir nesses
espaços com as questões pautadas nos conselhos tais como assédio sexual
e moral, suicídio, violência, prevenção e promoção à saúde, entre outros.
Por fim, conhecemos o CMDM em um período de mobilização do
conselho em organizar ações que fossem ao encontro de datas emblemáti-
cas e de demandas percebidas das comunidades. O CMDM teve o papel de
reunir e mobilizar uma rede de atores e organizações governamentais e não
governamentais, promovendo a articulação intersetorial. Compreendemos
que o Conselho Municipal de Direitos das Mulheres tem o desafio de pautar,
de forma contínua, democrática e participativa, questões pertinentes às mu-
lheres em uma região onde a violência contra a mulher é uma das maiores
do Brasil.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Considerações finais

A experiência de estágio possibilitou uma aproximação das estagiá-


rias com este tipo de participação sobre a qual tinham pouco conhecimento.
Compreendeu-se a importância de fomentar esses espaços e o quanto eles
podem servir para o exercício da cidadania e aprofundamento da democra-
cia, para além do comparecimento periódico às urnas eleitorais. Também
se compreendeu o potencial desses espaços e para uma atuação da(o)
psicóloga(o) em rede, com compromisso social.
Os Conselhos de Direitos, diferente dos Conselhos Gestores de
Políticas Sociais, têm caráter mais intersetorial, pois diferentes setores estão
envolvidos com o atendimento às mulheres, crianças, idosos, portadores de
deficiências. Do mesmo modo que o funcionamento dos conselhos gestores
resultam das trajetórias de cada setor de políticas, os Conselhos de Direitos
também resultam da trajetória dos direitos do público alvo para o qual se volta.
A tarefa dos Conselhos de Direitos requer o conhecimento de diversas políti-
cas setoriais e a articulação com os conselhos que controlam essas políticas.
Neste sentido, as políticas sociais demandam ações e espaços que
possibilitem a participação das(os) cidadãs(ãos) nas decisões que afetam
diretamente suas vidas. Portanto, reitera-se que tal participação é uma
prerrogativa da nossa atual Constituição Federal e demanda um aprofun-
damento do que entendemos como democracia, e, para além de restringir
a democracia à participação do eleitor em momentos periódicos, como nas
eleições, pressupõe cidadãos organizados e atuantes nos vários movimen-
tos e espaços que compõem a cidade.

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102
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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103
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 6
O RELATÓRIO DE ESTÁGIO EM
POLÍTICAS PÚBLICAS:
pesquisa, análise e ensino de escrita

Conrado Neves Sathler


Thissiane Fioreto

Introdução

O Estágio Supervisionado do Núcleo Comum, juntamente com


o Estágio em Psicodiagnóstico, compõe os Estágios Básicos do curso de
Psicologia. Esses Estágios Básicos buscam integrar habilidades e compe-
tências trabalhadas com as(os) estudantes dos primeiros anos da formação.
Entendemos que os Componentes Curriculares dos anos iniciais se ocupam
dos saberes e técnicas empregadas pelos profissionais da Psicologia em
qualquer atividade que venham a exercer. Os Estágios Específicos são
referentes às atividades profissionais introdutórias das(os) estudantes no
período final de formação, são formas de exercício profissional protegido
e supervisionado dentro de ênfases na formação. A(o) estudante opta pela
matrícula em estágios com o objetivo de obtenção de experiência em áreas
específicas nas quais pretende atuar e, preliminarmente, integralizar seu
currículo e finalizar sua formação profissional universitária.

104
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O Estágio Supervisionado no Núcleo Comum na Instituição do Ensi-


no Superior (IES) na qual atuamos é desenvolvido em grupos entre cinco e
dez estudantes sob orientação de um supervisor. Cada supervisor apresenta
um projeto de Estágio e as(os) estudantes fazem opções e passam a integrar
um grupo após seleção. A ementa desses estágios assim os delineia: Desen-
volvimento das competências básicas — observação, análise e avaliação,
articuladas às propostas de ensino, pesquisa e/ou extensão.
O Estágio em Políticas Públicas proporciona a participação em
atividades da administração dos segmentos de Saúde, Educação, Assis-
tência Social e Segurança, acompanhando as agendas mais oportunas e os
interesses do grupo presente. Essa experiência vem sendo desenvolvida há
mais de 15 anos e há dez anos na IES atual, priorizando os Órgãos de Con-
trole Social como meio de entrada nos diversos campos. Alguns exemplos
do funcionamento deste estágio podem ser vistos em O projeto de Estágio
em Políticas Públicas: biopolítica, micropolíticas e linhas de fuga (SATHLER;
OLIVEIRA, 2021) e em Controle Social e Ensino em Saúde: por uma práxis
psicológica decolonial (SATHLER; OLIVEIRA, [no prelo]).
Vamos apresentar o desenvolvimento de habilidades de pesquisa,
análise e escrita desenvolvidas no Estágio. Para delimitar mais objetivamen-
te a proposta aqui desenvolvida, ressaltamos que o organizador pedagó-
gico central do Estágio é a leitura. Isso não quer dizer que nos voltemos
à interpretação de textos acadêmicos, filiados à Análise do Discurso. Com-
preendemos a leitura como exercício de interpretação dos textos (orais ou
escritos) que compõem as subjetividades e as instituições que constituem
nossa realidade.
Nos subitens construídos — Pesquisa, Análises e Escrita do Relatório
– detalharemos como colocamos em marcha a leitura e, especialmente, a
construção do Relatório e como articulamos o exercício da escrita como
compromisso com o leitor que sobrepõe aos aspectos formais e normativos
da língua na busca de uma pragmática que auxilie o desenvolvimento da ha-
bilidade de escrita profissional em abordagem distinta das propostas atuais
que se caracterizam, prevalentemente, como instrumentais ou estruturais.

105
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Pesquisa e leitura

O curso de Psicologia é, preponderantemente, baseado em leitura.


A formação profissional passa pela leitura de clássicos até de manuais de
procedimentos técnicos. Porém há modalidades de leitura para as quais
nos atentamos. Há algumas categorizações de modalidades, gostaríamos,
neste texto, de trabalhar em categorias apoiadas no pensamento discursivo
e, consequentemente, na formação de subjetividades.
A leitura, como propõe Paulo Freire (1991), se aprende desde a infân-
cia. Lemos o mundo e aprendemos seus sentidos e lugares que ocupamos.
Antes de lermos as palavras, lemos o mundo circundante. A família, as
relações mais próximas e o ambiente são interpretados e ampliamos nossas
leituras à medida que ampliamos nossas relações sociais. Com o desenvolvi-
mento, aprendemos a ler também as palavras. A leitura das palavras escritas
nos insere nas relações sociais da sociedade letrada. A alfabetização é um
ato inclusivo, é abrir-se para um universo de significações.
O contexto no qual a leitura se insere em uma subjetividade é
composto por práticas discursivas e não discursivas. Muitas crianças são
alocadas em escolas precárias: sem iluminação, sem sanitários, sem água
potável, com acesso desprotegido e mobiliário sucateado. Além disso, há
atravessamentos das condições humanas de trabalho: ausência de equipa-
mentos pedagógicos, profissionais mal remuneradas(os), ambiente violento
e práticas pedagógicas sem eficiência, como mostram as avaliações nacio-
nais e internacionais.
As relações entre sujeitos discentes, entre discentes e docentes e
entre comunidade escolar e direção administrativa local e regional repetem
os mesmos mecanismos sociais estruturais da sociedade: racismo, machis-
mo, misoginia, homofobia... Ao compor este cenário de horrores, a criança
logo percebe seu valor perante o Estado, seu destino e passa a ter atitudes
de defesa. A escola passa a ser o espaço que compõe o sujeito e o ensino
do lugar destinado a cada elemento na sociedade.
O poder está presente nas ações educacionais, moldando as subjeti-
vidades para docilizá-las e, ao mesmo tempo, apresentando outros universos

106
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e sonhos possíveis pela leitura. Dessa forma, paradoxalmente, o lugar que


doma é o mesmo que estimula a resistência. O sujeito está posto entre as
forças opostas: se por um lado educar é disciplinar, por outro, educar é resistir.
Há uma superação no ato de ler. Aprendemos a gostar de ler, a criar
opiniões sobre o que lemos, a identificar estilos e os contextos das escritas.
Para Freire (1991), precisamos escapar das relações mecânicas entre as
palavras para produzir uma relação entre realidade e texto.
O que chamamos de pesquisa em nosso Estágio Supervisionado é
uma busca orientada de dados relativos aos nossos próprios territórios de
origem e conectá-los com informações, conceitos e lógicas próprias dos
campos da Saúde e da Educação já trabalhados em disciplinas como Psico-
logia da Saúde e Psicologia Social.
Deslocamos o sentido de fazer pesquisa, geralmente tomado como
prática de um tipo de produção disciplinar, meticulosamente planejada em
um projeto, para aproximá-lo da prática profissional de reconhecer sentidos
que podem dirigir intervenções ou, simplesmente, auxiliar a leitura do con-
texto. Pesquisar, então, é ler.
Não há oposição entre as categorias de pesquisa acadêmica e
profissional. Nossa proposta, no entanto, se inscreve como discursiva. Ao
ler, estamos reescrevendo textos para nós mesmos. A Análise do Discurso
não se presta à (re)produção de verdades ou à construção de um discurso
verdadeiro. Procura constituir cenários, construir efeitos de sentido e ajudar
na percepção de como os dados são construções intencionais feitas para
conduzir visões, provocar posições.
Somos movidos pelo desejo de conhecimento das relações entre
Estado e Sociedade Civil, por isso trabalhamos com Políticas Públicas.
Temos dado prioridade à participação em Órgãos do Controle Social e os
Conselhos Municipais de Saúde, de Direitos das Crianças e Adolescentes e
de Assistência Social. Para uma aproximação do funcionamento regular das
políticas de cada segmento, trabalhamos com o orçamento municipal do
lugar de origem de cada estudante e os associamos aos índices de Saúde e
Educação da localidade.

107
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Novamente, como nos ensina Freire (1999), o contato com a rea-


lidade dinamiza o mundo, o humaniza e torna o sujeito fazedor, transfor-
mado e lhe permitindo certo domínio de seu mundo. No estágio surgem
identificações e áreas preferenciais de atuação. A leitura se intensifica na
medida em que o encontrado nas Políticas Públicas faz parte das cons-
truções realizadas na universidade e nas disciplinas cursadas como bases
para as atuações profissionais.
Nesta altura, alguns conflitos referentes às diferenças entre as
disciplinas e a realidade das(os) estagiárias(os) emergem. Temas presentes
na realidade estudantil como racismo, sexismo, machismo, misoginia e ho-
mofobia são temas estudados em disciplinas comuns a todos os cursos da
Universidade e são observados nas reuniões dos Órgãos de Controle Social.
Para elucidar os conflitos, vamos expor uma parte singular do fun-
cionamento de nossa Universidade. As Diretrizes Curriculares Nacionais
determinam que os temas Ciência e Tecnologia; Direitos da Criança e do
Adolescente; Diversidade Cultural; Educação Alimentar e Nutricional; Educa-
ção Ambiental; Educação para valorização do multiculturalismo nas matrizes
históricas e culturais brasileiras; Educação em Direitos Humanos; Educação
Financeira; Educação Fiscal; Educação para o Consumo; Educação para
o Trânsito; Processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso;
Saúde; Trabalho e Vida Familiar e Social (BRASIL, 2019) sejam inseridos nos
currículos. A Universidade Federal da Grande Dourados optou por ofertar
15 componentes curriculares cujas ementas contemplam os temas e os
alunos devem se matricular, dependendo do curso que fazem, em dois ou
três deles. Além disso, há núcleos de Extensão, Pesquisa e Ensino ligados
aos temas. São eles: Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), Núcleo de
Estudos de Diversidade de Gênero e Sexual (NEDGS), Núcleo Multidiscipli-
nar para a Inclusão e Acessibilidade (NuMIAc) e Núcleo de Assuntos Indí-
genas (NAIN). Esses núcleos mantêm as pautas em marcha e desenvolvem
intervenções permanentes. Esta concepção de transversalidade supera a
interdisciplinaridade e promove ações afirmativas.
No entanto, a presença de estudantes das classes mais populares
vem mostrando uma seletividade universitária, indicando o afastamento

108
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de realidades sociais periféricas e empobrecidas. Assim, percebemos que


algumas formas de expressão e de elaboração das relações de poder vi-
venciadas pelas(os) estudantes são excluídas ou passam por tentativas de
apagamento no currículo escolar. Em nossa vivência recente, o rap tem se
apresentado como uma dessas experiências excluídas da academia, porém
é potente na construção da leitura crítica estudantil (OLIVEIRA; SATHLER;
LOPES, 2020). Outros textos mostram as resistências e o distanciamento da
Universidade dos Movimentos Sociais, das artes populares – incluindo os ar-
tistas de rua – e das manifestações esportivas e culturais negras, indígenas
e dos imigrantes presentes em nosso território (CASTRO SILVA; VASCONCE-
LOS; FLORENCIO, 2020; MAYORGA; PATRÍCIO; CRUZ; ALVES, 2008).
A leitura e a escrita estão presentes na constituição do sujeito e na
conectividade com as realidades excluídas. Observamos (SATHLER; ALVES,
2021), em Reuniões dos Órgãos de Controle Social, o enunciado “aqui só tra-
balhamos com o que é científico...” dirigido a uma Agente Indígena de Saúde
que, imediatamente, causou estranhamento às(aos) estagiárias(os). A leitura
do preconceito permitiu identificar, em ato, o funcionamento interseccional
das políticas identitárias, com a pressuposição de que ser indígena é ser
também não científico, logo excluído da Atenção Primária à Saúde da cidade
para deslocá-la a uma assistência diferenciada por ser inferior.
Nessa mesma reunião circulou o enunciado “não podemos ser a
ovelha negra do estado”. O cenário de emergência dessa fala era a defesa
da postura de adesão à terceirização de um serviço em andamento em
outros municípios. Como se tratava de um serviço ligado à atividade fim do
campo em debate, havia a interpretação da possibilidade da ilegalidade
da contratação de empresa terceirizada. O argumento apresentado, além
do efeito de sentido racista, traz a perspectiva política de que a oposição é
indesejável, é um estorvo ao desenvolvimento harmônico da sociedade.
Evidentemente, há uma construção teórica realizada por meio da in-
terpretação de cada um desses enunciados. Em nossa prática, isso significa
que a pesquisa de campo, a leitura, o enquadre conceitual — com a leitura
de textos para fundamentação teórica — e a escrita de um novo texto são
construções cognitivas interligadas.

109
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Análise e leitura

A análise que realizamos no Estágio Básico de Políticas Públicas é


realizada por meio de múltiplas operações que, na medida em que aumen-
tam os cenários vivenciados, ganham em complexidade. Há um suporte teó-
rico adicional para o estágio, o componente curricular Análise Institucional é
ofertado simultaneamente e a abordagem teórica na qual nos apoiamos é a
Análise Institucional do Discurso, conforme apresentada por Guirado (2010).
No entanto, os exercícios de análise realizados no âmbito da sala
de aula são distintos, pois o contato em grupo de estágio permite um
grau de exposição individual que não é possível na sala de aula — em
nosso caso, frequentemente, com 60 alunos —, e a supervisão de estágio
em pequenos grupos oportuniza um exercício desconstrutivo da própria
subjetividade. Com mais tempo, atmosfera de respeito mútuo e sigilo,
componentes da forma como nos tratamos em supervisão, as análises
podem ganhar em profundidade.
O primeiro exercício de análise, com frequência, se inicia com
as comparações dos índices de Saúde e Educação retirados dos dados
públicos. Os exercícios dessa análise partem da postura de estrangeiro re-
comendada em outras experiências em análises linguísticas e psicológicas.
Evidentemente, a diversidade de lugares de origem de cada estagiária(o) do
grupo auxilia nessa análise, pois a cada narrativa o estranhamento potencia-
liza a percepção das diferenças.
Consequentemente, esse primeiro passo analítico se desdobra na
compreensão das Políticas Públicas dos diversos territórios, expressos pela
relação entre os orçamentos municipais e seus índices de Saúde e Edu-
cação, com seus reflexos como elementos formadores das subjetividades
nelas produzidas. Há, então, a análise de como Políticas Públicas atravessam
subjetividades e essa desconstrução subjetiva promove a elaboração de um
olhar antropológico: o sujeito como produto da sociedade, e também a auto-
análise recomendada por Foucault (1995): “Talvez o objetivo hoje em dia não
seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos” (p. 239), devemos
recusar o que nos tornamos, o que implica, em nosso caso, compreender

110
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

como resistimos aos atravessamentos e também o que nos capturou e


como nossa própria subjetividade pode ser desmontada.
Na medida em que as leituras avançam, as diferenças de facilidade
ao acesso aos dados das gestões, que por lei deveriam ser abertos ao pú-
blico, a qualidade das informações e os componentes políticos desse trato à
coisa pública produzem sentidos para cada estagiária(o). Dessa forma, a aná-
lise da territorialidade se revigora, e a evolução das relações entre território,
subjetividades e Políticas Públicas ganham contornos antes imperceptíveis.
Outros atravessamentos passam a ser observados: a produção de
políticas é carregada pelos marcadores sociais de gênero, classe, raça e
orientação política, por exemplo. Sendo os Órgãos de Controle Social, em
especial os Conselhos Municipais, espaços de debates e disputas políticas,
a observação dos elementos que digladiam e constituem os textos políticos
pode tocar preconceitos, estigmas, poderes administrativos, orientações
políticas e interesses particulares que desejam se tornar alvos de investi-
mentos públicos.
A forma como somos capturados pelos discursos, como aderimos
ou resistimos a enunciados, a intensidade com a qual nos identificamos com
discursos ou lugares ocupados por seus enunciadores, a relação com as(os)
demais estagiárias(os) e com nossa própria comunidade nos impele a outros
estranhamentos. A análise torna-se, nesse exercício, uma expropriação.
Entretanto, ao mesmo tempo em que somos todas(os) expropria-
das(os), tomamos posse do entendimento de que nossas posições de
adesão, manutenção, resistências, oposição, valorização e desqualificação
de enunciados, enunciadores ou medidas administrativas nos tornam pro-
dutores de Políticas Públicas.

A escrita do Relatório de Estágio

O processo de escrita do Relatório de Estágio configura-se como


uma escrita peculiar na vida acadêmica da(o) estudante. Até então, durante
as disciplinas cursadas, a rotina era a leitura, a interpretação, a análise e a

111
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

consequente produção de textos considerados objetivos e impessoais. Na


escrita do Relatório, a(o) estudante estabelece uma nova relação com a
linguagem, decidindo “o que” e “como” deve escrever, assumindo o lugar de
sujeito da sua escrita.
Nos textos que circulam na Universidade, produzidos em sua maio-
ria a partir de um discurso científico concebido como neutro e impessoal,
há uma preocupação com a objetividade e com o apagamento das marcas
da autoria. O Relatório de Estágio, porém, é construído sob uma outra pers-
pectiva. Após várias experiências e leituras do cotidiano e de reuniões de
supervisão, com intensos debates e embates com o grupo de estagiárias(os)
e com o supervisor de estágio, essa escrita é um momento de reflexão e de
ação, em que teoria e prática são articuladas e passam a compor um texto
em que a referência é o próprio autor, sua voz, sua percepção dos fatos e
suas formas de significação frente aos compromissos que se quer assumir.
Sabendo que os sujeitos são situados historicamente e atuam, de
forma consciente e inconsciente, por meio da língua e da linguagem, tome-
mos as palavras de Possenti (2002) para compreender um pouco mais sobre
o sujeito e sua escrita.

Pessoalmente, não ficarei em nenhum dos extremos, sem que


isso implique em ficar no meio. Para o que aqui importa, significa
que não acredito em sujeitos livres nem em sujeitos assujeita-
dos. Sujeitos livres decidiriam a seu bel-prazer o que dizer em
uma situação de interação. Sujeitos assujeitados seriam apenas
pontos pelos quais passariam discursos prévios. Acredito em
sujeitos ativos, e que sua ação se dá no interior de semi-sistemas
em processo. Nada é estanque, nem totalmente estruturado
(POSSENTI, 2002, p. 91).

O sujeito que escreve o Relatório de Estágio é o sujeito ativo a que se


refere Possenti. Não se trata de um sujeito livre, que escreve a partir de um
discurso descompromissado com o saber científico e historicamente cons-
truído, nem se trata de um sujeito assujeitado, que se fixa a uma estrutura
rígida de escrita ou reproduz de forma intencional o verdadeiro do discurso
no qual está inserido. O sujeito da escrita em questão é aquele que, após
perceber e questionar a articulação entre o saber e o viver, e compreender

112
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

os sentidos e intenções implícitos nessa tensão, constrói um texto com uma


posição subjetiva marcada. É o sujeito que produz um texto que traduz sua
atividade analítica e reflexiva frente à sociedade e suas demandas.
A escrita do relatório de estágio acontece sob essa perspectiva.
As(os) estudantes, que muito frequentemente escrevem com redobrada
atenção às convenções de escrita e atendimento à norma linguística padrão,
neste momento são provocadas(os) a participar do processo de escrita de
forma ativa e sem preocupações iniciais com as regras rígidas e endereça-
mento predefinido; e devem, no entanto, estar comprometidas(os) com a
construção coletiva de um relatório de estágio. Essa escrita deve apresentar
o saber construído pelo grupo ao longo do estágio sem o apagamento das
marcas de cada sujeito, envolvendo os aspectos discursivos.
O saber construído e os discursos assumidos pelo grupo são
contextuais e mudam de acordo com o perfil de cada grupo que é guiado
pelos interesses das(os) próprias(os) estagiárias(os) ao longo do desen-
volvimento do componente curricular. Isso significa, na prática, que há
grupos que irão se interessar pelas políticas de saúde e pela atuação do
psicólogo na área de saúde mental, por exemplo, enquanto outros irão
buscar compreender as Políticas Públicas na assistência social e o papel
do psicólogo nesse contexto.
Sendo assim, após os processos de pesquisa e de leitura descritos,
a escrita propriamente dita se inicia com a divisão de tarefas. O grupo de
estagiárias(os) decide como o relatório irá se organizar, sob as orientações
do supervisor, e cada membro desse grupo se responsabiliza inicialmente
pela escrita de um tópico do relatório. Num segundo momento, esses tópi-
cos são reunidos e, em aula, cada tópico é lido, discutido e, se necessário,
reescrito pelo grupo. É neste momento de reescrita e trocas feitas entre os
sujeitos do grupo que o aprendizado de determinados aspectos linguísticos
acontece, um aprendizado contextualizado e significativo que parte de uma
situação real de comunicação e uso da língua. Porém, não se trata de uma
simples reescrita sintática e pautada na correção dos aspectos formais e
normativos da língua, trata-se de uma ampliação das capacidades reflexivas

113
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e discursivas de cada estudante, que se inicia individualmente antes do mo-


mento da produção e se amplia de forma coletiva no momento da reescrita.

A escrita com compromisso social

Além dessa escrita construída coletivamente, cada estudante


também faz seu texto individualmente, pois escreve, ainda, dois pequenos
textos. Em um deles, a(o) estudante avalia a sua própria experiência com o
estágio e diz das suas expectativas confirmadas ou frustradas, sendo livre
para ser sujeito da sua escrita e expressar os atravessamentos que experi-
mentou durante o período de estágio. No outro, ela(e) irá avaliar seu próprio
desempenho, seu engajamento no processo e o quanto sua formação foi
enriquecida (ou não) com esse componente curricular.
A escrita do relatório de estágio cumpre, então, dupla finalidade.
Neste momento a(o) estudante tem a oportunidade de fazer uma leitura
de seu próprio desempenho, de sua realidade e de sua formação até este
momento no Curso de Psicologia; e percebe-se enquanto sujeito leitor de si.
Justamente pela possibilidade de se perceber, ela(e) também faz a leitura
de si dentro do grupo de estágio e, por consequência, compreende sua
posição subjetiva dentro desse grupo.
A leitura de si, a percepção de si mesmo no grupo e o compromisso
social com os segmentos populacionais objetos das Políticas Públicas trans-
formam a escrita em inscrição. A escrita é uma política e o Estado pode em-
pregar esse gesto como dispositivo de inclusão, de exclusão ou de restrição
administrativa. A escrita das leis e das normas administrativas, por um lado,
são produções seletivas na medida em que a linguagem se dirige a classes
sociais específicas, com interesses traçados, benesses e subalternizações.
A escrita dos Projetos de Políticas Públicas, por outro, compõe textos que
tendem à sedução ou à ciência do governo, dando a impressão de que o
Estado responde às necessidades de todas e todos para o bom andamen-
to social. Este jogo de linguagem, no entanto, é o maior responsável pelo
engajamento ideológico e manutenção dos lugares sociais das populações

114
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

na estrutura governamental (FOUCAULT, 1978). Escrever cumpre a função


social de engajamento político. Escrever é inscrever-se socialmente.
Desta forma, é também ocasião para fazer uma leitura do grupo de
estagiários. Quais os debates, embates e por quês? Quais os interesses?
Quais os atravessamentos, as resistências e as posições assumidas pelo
grupo? Quais os avanços desde o início do estágio? A(o) estudante torna-se
também sujeito leitor do grupo.
Após a pesquisa, leitura e análise, que implicam debates, atraves-
samentos e ampliação discursiva dos sujeitos nesse processo, a escrita do
relatório de estágio extrapola uma escrita descritiva, preocupada e centrada
com os aspectos formais da língua padrão e (re)produtora do verdadeiro
do discurso. Trata-se de uma escrita que busca um compromisso social.
Portanto, ela assume tons de denúncia, revela questões identitárias, entre
outros aspectos, e torna-se um texto que responde aos sujeitos ouvidos e às
situações vividas durante o período de estágio.

Supervisão e experiência on-line

A experiência de (re)escrita do relatório de estágio, com a pande-


mia de Covid-19, também ganhou novos contornos a partir de 2020. Com a
suspensão das atividades presenciais na Universidade e o desenvolvimento
das atividades de ensino de forma remota, as atividades de estágio e as
supervisões passaram a acontecer totalmente on-line.
Isso significa que a experiência de anos desenvolvida neste estágio
básico, com um relatório que era projetado para o grupo, com reescrita feita
a partir da discussão presencial e do envolvimento coletivo, foi substituída
por uma atividade mediada por tecnologia que tenta manter as mesmas
características, mas que esbarra em situações muito específicas. Os limites
agora são outros e a ausência de controle, que se traduz em câmeras e mi-
crofones abertos, faz com que o processo seja efetivado de outra maneira,
ou seja, o engajamento e a atenção dos sujeitos envolvidos não são mais
restritos a essa atividade, mas dividem-se com os afazeres domésticos, o

115
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

trabalho em home office, as(os) doentes e mortas(os) pela Covid-19, as notí-


cias que abundam nas redes etc.
O ambiente virtual é, portanto, suporte para o trabalho e, além das
dificuldades descritas, há também as características que esse texto ganha
por, neste momento, ser produzido em rede. Antes, o relatório era confeccio-
nado de forma mais lenta, única e focada. Agora a experiência virtual ganha
em agilidade e traz para dentro do relatório de estágio a informatividade e a
discursividade próprias da conexão em rede
Com essa suposta liberdade e reconhecida agilidade que a cone-
xão à rede proporciona, as(os) estagiárias(os) que, antes, na experiência de
escrita presencial, viviam uma relação restrita ao grupo de estágio e, con-
sequentemente, marcavam suas intervenções e sua escrita por tons mais
emocionais, nessa nova vivência de escrita, constituída pela experiência
remota e multifacetada, se imprime um tom mais intelectual. Esse processo
também envolve o que podemos chamar de “grupos paralelos”, que em sua
maioria operam via WhatsApp e que viabilizam uma prática de seletividade,
exclusão e interdição de vozes que deixam marcas na escrita do relatório.

Considerações finais

O Estágio Básico em Políticas Públicas nos permite observar, em


espaços de ensino e de participação social, subjetividades com suas cons-
truções discursivas e atravessamentos políticos e territoriais. As leituras, em
modalidades presenciais e on-line, em textos orais e escritos, têm sido a base
de nossa prática pedagógica, e a escrita do relatório, um exercício de (re)
leitura individual e coletiva das subjetividades e expropriação e apropriação
de atravessamentos da formação de cada estagiária(o).
Essa escrita se desdobra em analíticas dos gestos de apropriar-se
discursivamente ou expropriar-se de atravessamentos subjetivos no proces-
so produtivo de posições negociadas coletivamente. A escrita coletiva é, em
si mesma, uma política com valorização da autoria como forma de apro-
priação de discursos éticos e afiliação a movimentos sociais em pauta nas

116
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

comunidades. A escrita coletiva se torna um exercício de desenvolvimento


de compromissos sociais.
Por meio da participação em reuniões em Órgãos do Controle Social
e de entrevistas com profissionais de distintos campos das Políticas Públicas,
identificamos nas populações locais e em nós mesmos os atravessamentos
discursivos e práticas que constituem posições ético-políticas em cada um
de nós. Essa experiência nos permite desenvolver as habilidades analíticas
próprias das atividades da Psicologia praticada nos campos sociais e tam-
bém construir subjetividades cidadãs mais articuladas perante o Estado,
reafirmando resistências e potencializando a compreensão de que somos
sujeitos produzidos e produtores por/de Políticas Públicas.
A escrita dos relatórios de estágio se constitui em produção de
posturas ético-profissionais centradas no compromisso social com os
segmentos que atendemos por meio das Políticas Públicas. Desta forma,
a escrita, a reescrita e revisão dos textos se fazem coletivamente na busca
da formação de um compromisso com os sujeitos desses segmentos. A
abordagem discursiva aponta, em nosso contexto, uma prática inovadora
de ensino da escrita e na prática da Análise Institucional Discursiva como
dispositivo de produção de textos ou produção têxtil que reúne, (re)organiza
fios e compõe um tecido que, além de nos identificar, nos inscreve como
atores sociais participantes e produtores de Políticas Públicas.

Referências

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históricos e pressupostos pedagógicos. Brasília, DF: MEC, 2019. Disponível em: http://basena-
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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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político no coletivo Hip Hop Chama: um papo reto sobre participação política e relações entre
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118
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 7
“ISSO DÁ DINHEIRO?” REFLEXÕES SOBRE
JUVENTUDES E ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL

Dardielle Santos-Dias
Aldenora Oliveira Coutinho Libraiz
Daniela dos Santos Sales
Mayara Vieira Santos
Rebeca Brandão Maia
Verônica Ayumi Oshiro
Jaqueline Batista de Oliveira Costa

“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.


Caminhando e semeando no fim terás o que colher.”
(Cora Coralina)

Introdução

A Orientação Profissional (O.P.) é um processo que objetiva o desen-


volvimento acadêmico e profissional do jovem a partir de reflexões sobre
trajetórias de vida e formação para o mundo do trabalho. Esse é um assunto
muito discutido em várias áreas do saber, tais como Administração, Sociolo-
gia e Psicologia. Observa-se que a maior parte dos estudos sobre a temática
situa-se no campo educacional e é voltada para os jovens no início da traje-
tória profissional. Uma das questões mais discutidas em O.P. é a importância
da maturidade frente à escolha profissional, visto que as juventudes são
marcadas por intensas transformações fisiológicas, psicológicas e sociais, o

119
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

que torna o momento de escolha um processo complexo. Em linhas gerais,


a maturidade para escolha profissional é definida como um conjunto de
comportamentos e atitudes que o jovem empreende frente ao momento de
escolha, que faz referência ao conhecimento de si, do mundo profissional e
das realidades socioeconômica e familiar, possibilitando o desenvolvimento
da autonomia frente às possibilidades de futuro profissional.
O presente capítulo se trata de um relato de experiência em Orien-
tação Profissional realizado durante o Estágio de Formação de Professores
de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados — UFGD no ano
de 2019. O objetivo deste texto consiste em refletir acerca da maturidade
para a escolha profissional, a partir da experiência citada, bem como discutir
as possíveis contribuições da Psicologia para a construção das trajetórias
profissionais das juventudes. As atividades de estágio foram realizadas ao
longo de nove oficinas em uma escola pública de ensino integral do Mato
Grosso do Sul, com a participação de doze alunos com idades entre 14 e 18
anos. Foi utilizada a Escala de Maturidade para Escolha Profissional (EMEP)
em pré e pós teste. Os dados obtidos e as discussões aqui realizadas foram
divididas em duas seções, a saber: 1) “Juventudes e maturidade frente à
escolha profissional: algumas considerações teórico-práticas”, em que são
apresentadas algumas observações acerca dos conceitos de juventudes e
maturidade em O.P. e é realizada a apresentação e discussão dos resultados
no pré e pós-teste dos alunos; e 2) “Juventudes e trajetórias profissionais:
contribuições da Psicologia”, na qual é discorrido sobre como a Psicologia
pode comparecer na formação das trajetórias profissionais das juventudes.

Juventudes e maturidade frente à escolha profissional: algumas


considerações teórico-práticas

O termo Orientação Profissional (O.P.) quase sempre nos remete


à adolescência. Assim, antes de adentrar às especificidades atreladas à
maturidade para a escolha profissional, é imperativo que sejam ressaltadas
algumas questões teóricas ligadas a esse conceito. Dentre os principais

120
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

teóricos da adolescência, ressalta-se E. Erikson (1976), psicanalista que


enfatizou os fatores sociais e culturais presentes nesse período evolutivo,
definindo-o como moratória social, ou seja, o tempo que a sociedade for-
nece aos jovens para que eles possam se preparar para entrar no mundo
adulto. Segundo o teórico, a adolescência é um período fundamental para
o desenvolvimento do eu, já que as transformações desta época levam os
indivíduos a vivenciarem uma crise de identidade que, uma vez resolvida,
consolida a personalidade adulta (FRANZI; ARAÚJO, 2017; ROSSI; MARCOLI-
NO; SPERANZA, 2019).
Em contrapartida, na perspectiva sociológica, tendo Robert Ha-
vighurst (1953) como um dos principais representantes, a adolescência
é demarcada pelas necessidades dos jovens frente às demandas sociais
(SOUZA; SILVA, 2019). De acordo com essa perspectiva, a raiz dos conflitos
típicos da adolescência está no contexto social e nos eventos externos, pois
nesse período ocorre uma drástica mudança nos papéis sociais e os adoles-
centes devem atender às diversas demandas que, algumas vezes, chegam
a ser contraditórias, gerando muito estresse ao jovem. Além da perspectiva
sociológica, tem-se o ponto de vista da antropologia cultural, aqui repre-
sentada pela antropóloga Margaret Mead (1973), que, baseando-se em suas
observações feitas em Samoa (Oceania), chegou à conclusão de que os
adolescentes daquela localidade passavam da infância à maturidade com
muita tranquilidade, ou seja, sem tensões e conflitos. Por este enfoque,
pode-se visualizar a inferência cultural e histórica sobre a adolescência,
podendo ser considerada tanto uma experiência social como um elemento
cultural (BECKER, 2017).
Numa perspectiva similar, Coimbra, Bocco e Nascimento (2005) ci-
tam as ideias de Foucault em Filosofia da Diferença, ressaltando que “os su-
jeitos não possuem identidades fixas e impermeáveis, mas são atravessados
por uma multiplicidade de forças que os subjetivam incessantemente” (p.
7). Nesse sentido, concebe-se a adolescência como uma construção e não
como um conceito, modelo ou norma, ou seja, entende-se a adolescência
como uma forma de desenvolvimento que propicia o surgimento de novas
formas de vida, o que, segundo os autores citados, legitima a importância de

121
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

se falar em juventude, subvertendo, portanto, a noção de adolescência. Nas


palavras dos autores tem-se:

Sabemos que a simples troca de palavras de adolescência para


juventude não nos garante a quebra de naturalizações, uma
vez que, sendo o conceito de juventude uma construção social,
pode também ser instituído e capturado. No entanto, a aposta
nas multiplicidades e diferenças para questionar o conceito de
adolescência pode funcionar como uma estratégia contra as
capturas e produções impostas por saberes que se apoiam em
uma realidade normatizada, que eliminam a possibilidade do
acaso e que se pretendem neutros. Quando definimos alguém
como adolescente, podemos estar colocando em suspenso suas
multiplicidades de existência e construindo uma definição que
impede que os desenhos de novos fluxos e de vida ganhem força
de expansão (COIMBRA; BOCCO; NASCIMENTO, 2005, p. 8).

As considerações teóricas supracitadas são de suma importância


para o entendimento das juventudes como uma forma de expressão psicos-
social, e não somente como um período evolutivo, como propõe o conceito
de adolescência. Nessa direção, Dátilo (2016) acrescenta que a preparação
para o mundo do trabalho é uma questão complexa que atravessa a vida dos
jovens porque envolve fatores emocionais, econômicos, culturais e sociais,
determinantes que implicam em oportunidades desiguais para a juventude.
No entanto, Terruggi, Cardoso e Camargo (2019) ressaltam que não é só o
jovem que é afetado no processo de escolha profissional, mas também a
família, visto que deposita nele expectativas em relação ao futuro profissio-
nal e, através disso, alguns pais acabam por tentar realizar-se por meio dos
filhos. É nesse sentido que se ressalta a importância da maturidade para a
escolha profissional no processo de O.P., visto que este elemento possibilita
o desenvolvimento da autonomia dos jovens frente à demanda da família.
O termo maturidade é empregado para dizer de diversos construtos,
tais como o intelectual, social, emocional e fisiológico, e pode ser entendido
como um estado de desenvolvimento a ser alcançado através da passagem
por etapas evolutivas. No entanto, no contexto da O.P., a maturidade faz
referência a um conjunto de comportamentos e atitudes que o jovem em-
preende na sua escolha profissional (NEIVA, 2003). O primeiro instrumento

122
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de medida para a maturidade profissional foi o C.M.I. (Inventário de Maturi-


dade Profissional), criado por Crites (1978), cujas ideias foram desenvolvidas
por Neiva (1999) e que culminou na criação do EMEP (Escala de Maturidade
para a Escolha Profissional). O EMEP é composto por 45 itens, dispostos
numa escala do tipo Likert com 5 possibilidades de respostas que medem
os seguintes elementos: Determinação, Responsabilidade, Independência,
Autoconhecimento, Conhecimento da Realidade Educativa e Socioprofissional
e Maturidade Total. Esse instrumento é muito utilizado pelos orientadores
profissionais no Brasil, principalmente na modalidade de pré e pós-teste,
com vistas a ressaltar os ganhos obtidos no processo de O. P.
Melo-Silva, Oliveira e Coelho (2002) realizaram um estudo com 63
adolescentes, de 15 a 19 anos, de ambos os sexos, estudantes do ensino
médio de escolas públicas e particulares, atendidos no serviço de Psicologia
de uma clínica-escola do estado de São Paulo. Utilizando-se do EMEP em
pré e pós-teste, os resultados apontaram diferença significativa nas dimen-
sões: Determinação, Responsabilidade, Independência, Autoconhecimento,
Conhecimento da Realidade Educativa e Socioprofissional e no Total das su-
bescalas, indicando avanço na maturidade para a escolha da profissão. Em
um estudo similar, Neiva (2003) realizou uma análise comparativa com 506
alunos do ensino médio de uma escola particular da cidade de São Paulo
e constatou, através do EMEP, que a maturidade para a escolha profissional
tende a aumentar progressivamente do primeiro ao terceiro ano do ensino
médio. No entanto, a autora ressalta a necessidade de processos de O.P. nas
escolas, visto que as discussões sobre a juventude e o mundo do trabalho
podem incidir positivamente no nível de maturidade dos alunos e auxiliar os
jovens na construção de sua trajetória de vida.
O presente trabalho resultou da experiência de Estágio de Forma-
ção de Professores do curso de Psicologia e objetivou refletir acerca da
maturidade para a escolha profissional, a partir da experiência citada, bem
como discutir as possíveis contribuições da Psicologia para a construção das
trajetórias profissionais de jovens, com idades entre 14 e 18 anos, estudantes
do ensino fundamental e médio de uma escola de ensino integral do estado
do Mato Grosso do Sul. A atividade de estágio foi realizada através de nove

123
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

oficinas temáticas em que foram discutidos assuntos referentes à realida-


de dos jovens e os atravessamentos ligados à escolha profissional. Como
conteúdo programático das oficinas, inseriu-se a discussão de temáticas
como autoconhecimento, identificação de valores e características pessoais
voltadas para algumas profissões e carreiras.
Foi utilizada a Escala de Maturidade para Escolha Profissional (EMEP)
como pré e pós-teste com o intervalo de cinco oficinas entre as duas aplica-
ções. O pré-teste possibilitou realizar um diagnóstico inicial, avaliar os níveis
de maturidade profissional e identificar os aspectos mais e menos desenvol-
vidos nos adolescentes, bem como direcionar as intervenções propostas no
processo de O.P. O pós-teste objetivou analisar as possíveis mudanças nos
participantes e avaliar os resultados alcançados ao longo do processo.
A análise dos dados do pré e pós EMEP foram divididos em seis
categorias de análises de acordo com as dimensões de avaliação do
próprio teste, a saber: Determinação, Responsabilidade, Independência, Au-
toconhecimento, Conhecimento da Realidade Educativa e Socioprofissional e
Maturidade Total. Os dados foram analisados a partir da comparação das
médias dos percentis dos jovens no pré e pós teste, realizada numa planilha
Excel. A média geral da pontuação dos alunos apresentou aumento de 35%
no pós-teste. A categoria Conhecimento da Realidade apresentou maior au-
mento no pós-teste (55%), seguido da categoria de Responsabilidade (35%),
Determinação (30%) e Autoconhecimento (20%). Verificou-se diminuição na
média geral da categoria Independência (-10%) no pós-teste.
Diante dos dados, pode-se observar que houve maior evolução nas
categorias que fizeram referência às questões práticas da escolha profis-
sional, que é o caso da subescala do Conhecimento da Realidade e Auto-
conhecimento, em que foram trabalhadas questões referentes ao mercado
de trabalho, às características das profissões e às características pessoais
frente à escolha profissional, respectivamente. Em contrapartida, foi possível
observar que as categorias Independência e Determinação apresentaram
menor evolução, questão que pode ser hipotetizada pelo fato de haver mui-
tas variáveis externas influenciando os adolescentes, tais como as incertezas
vivenciadas no cenário político, educacional e na economia brasileira.

124
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Juventudes e trajetórias profissionais: contribuições da


Psicologia

Considerar as juventudes como impressões culturais e históricas


incide na dimensão trabalho ao refletir sobre as construções das trajetórias
profissionais dos jovens na atualidade (FRANZI; ARAÚJO, 2017; TERRUGGI;
CARDOSO; CAMARGO, 2019; SANTOS-DIAS; FEITOSA, 2021). Verifica-se um
discurso predominante da escolha profissional como um resultado único e
permanente, que visa sobretudo a aquisição financeira. “Essa profissão dá
dinheiro?” e “Como eu faço para chegar lá?” são questionamentos recorren-
tes nos discursos dos jovens. Nesse sentido, como a Orientação Profissional
pode trabalhar com as juventudes sem reforçar os estereótipos sobre
algumas profissões e sobre o mercado de trabalho? E, considerando as
perspectivas social, histórica e cultural dos jovens, quais as contribuições da
Psicologia para o desenvolvimento da maturidade profissional? As respostas
a esses questionamentos são complexas. No entanto, podemos fazer algu-
mas considerações. Em primeiro lugar, é de suma importância compreender
o percurso profissional como construção de trajetórias de vida que ultra-
passam o campo do trabalho (SANTOS-DIAS; FEITOSA; HOSTENSKY, 2021).
Nesse sentido, a noção de profissão está para além da aquisição financeira e
é formada a partir das escolhas feitas pelo indivíduo ao longo da vida.
Os resultados mais significativos no pós-teste dos alunos foram ob-
servados nos quesitos o Conhecimento da Realidade e o Autoconhecimento,
elementos que foram contemplados por atividades reflexivas sobre o con-
texto socioeconômico e educacional dos jovens, bem como as perspectivas
em relação ao futuro. Como bem nos diz o poeta espanhol Antônio Machado
(1912), “[...] o caminho se faz ao caminhar”. Nesse sentido, conhecer os cami-
nhos e as variáveis que influenciam a trajetória dos jovens ampliam as pos-
sibilidades de escolha e tornam a caminhada mais consciente e autônoma.

125
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Considerações finais

O objetivo deste texto foi refletir acerca da maturidade para a esco-


lha profissional, a partir de uma experiência de estágio, bem como discutir as
possíveis contribuições da psicologia para a construção das trajetórias pro-
fissionais das juventudes. Foi possível observar aumentos significativos na
maturidade para a escolha profissional dos jovens, além de aprendizagens
e trocas de experiências relevantes para a formação das estagiárias envol-
vidas. Acredita-se que as construções de trajetórias de vida das juventudes
superam o campo profissional e a escolha propriamente dita. Ressalta-se a
relevância dos contextos histórico e cultural nos quais o jovem se encontra
inserido, questões que podem ampliar ou minimizar as possibilidades de
escolha e perspectiva de futuro. Por fim, evidencia-se a importância de pro-
jetos voltados à Orientação Profissional nas escolas, visto que se comportam
como instrumentos importantes para o desenvolvimento da consciência
crítica e da autonomia das juventudes.

Referências

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COIMBRA, Cecília; BOCCO, Fernanda; DO NASCIMENTO, Maria Livia. Subvertendo o conceito


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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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127
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 8
VENTURAS E DESVENTURAS NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORAS(ES) DE PSICOLOGIA NA
PANDEMIA DE COVID-19

Gabriela Manzoni Leite


Bárbara Yumi Brandão Sakane
Denise Mesquita de Melo Almeida

“A educação é tão inadmissível fora da vida quanto a combustão


sem oxigênio ou a respiração no vácuo.” (VIGOTSKI, 2018)

Introdução

A vida irrompeu e se impôs com força suprema a todas as instituições


sociais de forma singular, nesses anos de 2020 e 2021, expondo suas contra-
dições e fragilidades. Em grande parte do mundo observamos o avanço do
pensamento político conservador, assistimos com desolação a devastação
ambiental em nosso país e, enquanto isso, a pandemia do Coronavírus
ceifava vidas e assolava a condição de existência dos sobreviventes. Como
outras instituições, os sistemas de ensino — em todos os lugares, níveis e
modalidades — foram impactados e desafiados a avaliar e reorganizar seu
funcionamento e finalidades.
Há quase um século, Vigotski (2018) destacou que “no fim das contas
só a vida educa, e quanto mais amplamente ela irromper na escola, mais

128
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dinâmico e rico será o processo educativo” (p. 455). Para o autor, o “maior
erro da escola” consistiria em cercar-se “com uma cerca alta”, pois o traba-
lho educativo “deve estar vinculado ao seu trabalho criador, social e vital”
(VIGOTSKI, 2018, p. 455). Os imperativos conjunturais do período atual não
permitiram que qualquer cerca se mantivesse levantada. Todo êxito e toda
mazela produzidos historicamente nas escolas e nas relações pedagógicas
de nosso país foram revelados e expostos. Sobretudo, as mazelas.
Com o distanciamento físico exigido pela pandemia, o cotidiano
escolar presencial foi substituído pelo ensino remoto e/ou híbrido e
conteúdos e estratégias de ensino foram provisoriamente remodelados.
Professoras(es), profissionais da Educação, estudantes e famílias preci-
saram produzir outras formas de se relacionar com a vida acadêmica,
com atividades e relações pedagógicas. Nesse contexto se desenvolveu
a ação formativa sobre a qual refletimos neste trabalho. Trata-se de uma
experiência de formação de professoras(es) de Psicologia inteiramente
desenvolvida quando tanto a instituição formadora quanto as escolas de
Educação Básica que abrigaram os estágios operavam em regime remo-
to — um estágio supervisionado de formação docente, circunscrito no
âmbito de um curso de Licenciatura em Psicologia de uma universidade
pública no estado de Mato Grosso do Sul, no Brasil.
Freitas e Rosa (2015) definem a docência “como práxis, ação humana
transformadora, prática eivada e nutrida de teoria”. Como tal, a docência é
“capaz de superar os primeiros estágios do pensamento — constatação e
compreensão da realidade — para constituir um pensamento novo, que ao
ser colocado em prática, pode ser transformador da realidade” (FREITAS;
ROSA, 2015, p. 615). Inspirada nesta concepção, esta ação formativa objetivou
permitir às(aos) licenciandas(os) compreender a Licenciatura em Psicologia
como área de atuação e produção de conhecimento sobre a escola, a juven-
tude e seu desenvolvimento, a docência e a formação de professoras(es).
Almejou também promover o conhecimento das bases legais que regula-
mentam os objetivos, as finalidades, a organização e a dinâmica do Ensino
Fundamental na Educação Básica. Enfim, aspirou possibilitar a vivência de

129
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

uma práxis pedagógica em Psicologia na Educação Básica em modo remo-


to, por meio de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
Aqui refletimos sobre venturas e desventuras vivenciadas nesse
processo pedagógico específico. Cuidamos para não romantizar a experi-
ência, nem produzir uma análise ingênua sobre o processo de formação de
professoras(es) em modo remoto, sobre práticas de estágio realizadas em
ambientes on-line, e nem sobre processos educativos à distância. Optamos
por abordar a vivência sob uma perspectiva histórica. Retomamos estudos
sobre o processo de formação de professoras(es) de Psicologia no Brasil,
destacamos desafios e perspectivas ainda presentes no horizonte desta ciên-
cia e profissão, e buscamos analisar o sentido da escola e da relação entre a
Psicologia e a Educação ao novo (ou agravado) contexto de desenvolvimento
social e econômico engendrado pela pandemia nessa região do país.

Formação de professoras(es) de psicologia no Brasil: uma


perspectiva histórica

Machado e Vitória (2018) e Silva, Silva e Almeida (2021) apontaram


que a Psicologia sofreu um movimento de perda de espaço como com-
ponente curricular que afeta sua configuração até a atualidade, quando se
verifica que sua presença já não é obrigatória na Educação Básica, tendo
sido mantida como componente curricular apenas em cursos técnicos
profissionalizantes e em algumas escolas no Ensino Médio propedêutico.
No entanto, os conhecimentos psicológicos foram mantidos de forma trans-
versal a outros saberes disciplinares nas matrizes curriculares da Educação
Básica. Ainda, esses autores destacam que não há a exigência de que tais
conhecimentos sejam ministrados, exclusivamente, por um profissional da
área da Psicologia. Notadamente, esse fato incidiu sobre a própria formação
de professoras(es) de Psicologia.
Dessa forma, em 2011, a partir da Resolução CNE/CES nº 5, a
formação em Psicologia passou a não implicar, necessariamente, a licen-
ciatura, que passou a ser ofertada como projeto complementar à formação

130
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de psicólogas(os), articulando os conhecimentos da área com conteúdos


didáticos e metodológicos, devendo ser obrigatoriamente oferecida pelos
cursos e eletivamente para a(o) estudante. Essa resolução está intimamente
associada à diminuição do campo da Educação na formação em Psicologia,
pois resultou em duas consequências: a drástica redução da oferta e pro-
cura pela formação em Licenciatura em Psicologia e a diminuição da oferta
de disciplinas voltadas à área da Educação. Nesse contexto, de acordo com
Silva, Silva e Almeida (2021), observa-se um grande desconhecimento com
relação à importância da Psicologia como saber acadêmico e como conhe-
cimento sobre o próprio processo de desenvolvimento humano das pessoas
em escolarização. Há ainda o desconhecimento sobre as possibilidades de
atuação de licenciadas(os) em Psicologia, o que resulta da negligência dos
cursos de Psicologia para com suas Licenciaturas. Atrelado a isso, Machado
(2016) aponta a confusão entre o papel da(o) psicóloga(o) escolar e a(o) pro-
fessora(r) de Psicologia, tanto por profissionais da área quanto para os demais
profissionais da escola. Maior ainda é a confusão da atuação psicológica na
escola sob uma perspectiva de teor clínico, que faz prevalecer no imaginário
a ideia da(o) psicóloga(o) como salvador(a) que vai resolver a criança que
tem problemas, que não aprende e/ou apresenta agressividade.
A Psicologia escolar e educacional se debruça sobre “[...] questões
relacionadas aos problemas de aprendizagem, aconselhamento psicológico
e vocacional, modificação de comportamentos em sala de aula e treinamen-
to de professores” (MACHADO, 2016, p. 104), ou seja, ela realiza a intervenção
psicológica propriamente dita. A Licenciatura em Psicologia, por sua vez,
envolve um espaço de formação que trabalha conhecimentos psicológicos
e produz ação reflexiva sobre a subjetividade humana, tendo como objetos
de análise temas do cotidiano do aluno, afirmando, portanto, seu caráter
educativo e social.
Partindo do exposto, se faz necessário situar os desafios que a edu-
cação, estando implicada a formação docente, tem enfrentado atualmente.
De acordo com Saviani, desde o final da ditadura a política educacional
brasileira pode ser expressa pela perversa equação “[...] Filantropia + protela-
ção + fragmentação + improvisação = precarização geral do ensino no país”

131
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

(SAVIANI, 2020, p. 5). Nesse sentido, desde o final da década de 1970, os


profissionais da educação têm lutado para superar esses limites, com ações
que culminaram, dentre outras coisas, na elaboração do Plano Nacional
de Educação (PNE) e em um maior protagonismo das(os) educadoras(es).
Todavia, sobreveio o golpe de 2016 e o país tem enfrentando um retrocesso
não só na educação, mas em diversas áreas.
As novas diretrizes normatizadas e regulamentadas na Base Na-
cional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2018, firmaram que os
currículos deveriam considerar a formação integral do estudante adotando
um trabalho voltado para a construção de um projeto de vida e para os
aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais. As mudanças trazidas pela
reforma apresentaram o Projeto de Vida como a sexta competência geral
desenvolvida na Educação Básica.
Dentre os aspectos negativos das mudanças, Santos e Gontijo (2020)
apontam a falta de formação e valorização das(os) professoras(es) para tra-
balhar os conteúdos relacionados ao Projeto de Vida. As autoras afirmam,
ainda, que o Projeto de Vida tem potencial transversal e sua articulação com
outras áreas do desenvolvimento demonstram a relevância dessa temática
para a formação do sujeito, tendo em vista que responde às demandas da
sociedade contemporânea e se aproxima da realidade do estudante. Toda-
via, acrescenta:

Na prática, a implantação do projeto de vida na escola en-


frentará grandes desafios. [...] Portanto, é necessário pensar a
formação do professor para saber lidar com essa multiplicidade,
portanto, cursos específicos de formação continuada, oficinas
pedagógicas, cursos à distância são meios de desenvolver habi-
lidades docentes para o trabalho com Projeto de Vida (SANTOS;
GONTIJO, 2020, p. 30).

Nessa perspectiva, para pensar a política de formação docente


no século XXI, Pereira e Evangelista (2019) afirmam que o movimento
que resultou na BNCC “[...] radicalizou o processo de expropriação do
conhecimento da(o) professora(r) e investiu no aprofundamento das
formas de gerenciamento da formação e do trabalho docente” (p. 82).

132
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Nesse sentido, elas introduzem a ideia de “professor gerenciado”, que


resulta de um processo no qual a(o) professora(r) internalizou um lugar
de executora(r) eficaz de tarefas pensantes cujo objetivo é, justamente,
dificultar uma organização política da categoria profissional para inviabi-
lizar a emergência de uma consciência de classe e para conter a classe
trabalhadora, dificultando o acesso ao conhecimento científico.
Diante disso, cabe retomar outro retrocesso versado por Saviani
(2020), que é o projeto “Escola Sem Partido”, sobre o qual ele aponta a con-
dição da Educação como um ato político, tendo em vista que isentá-la da
influência seria justamente colocá-la a serviço dos interesses dominantes.
De acordo com Saviani (2020) o projeto “fere o bom senso, pois retira dos
professores o papel a eles inerente de formar as novas gerações para se
inserir ativamente na sociedade, o que implica trabalhar os conhecimentos
[...] sem qualquer tipo de restrição” (p. 15-16).
É possível observar um movimento de desvalorização das(os) pro-
fissionais da Educação, que têm sido relegados a um papel de executores
de tarefas, destituídos de autonomia, bem como da precarização e empo-
brecimento dos processos formativos. Nesse cenário, mesmo com assuntos
que se aproximam de conhecimentos psicológicos previstos na BNCC,
como o desenvolvimento do Projeto de Vida, as(os) professoras(es) de
Psicologia continuam sem espaço na Educação Básica e, em contrapartida,
as(os) professoras(es) que precisam desenvolver este trabalho não possuem
formação adequada. Nota-se, mais uma vez, as disciplinas das ciências hu-
manas, que contribuem para o desenvolvimento crítico e para a emergência
de consciência de classe, sendo suprimidas e inviabilizadas.
Como fora apresentado, a Psicologia na Educação Básica tem pas-
sado por diversos desafios e, atualmente, como fruto de movimentos de
resistência, nesse contexto marcado por retrocessos, conquistou a aprovação
da Lei 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e
de Serviço Social nas redes públicas de Educação Básica. Isso pode contribuir
para fortalecer a luta por uma Educação de qualidade voltada para a dimen-
são humana, o pensamento crítico e a emancipação, bem como a construção
de políticas que priorizem e valorizem as(os) profissionais da Educação.

133
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A Licenciatura em Psicologia tem muito a contribuir neste contexto,


pois, ao problematizar temas do cotidiano dos alunos através das teorias
psicológicas, permite a desnaturalização das relações de poder estabeleci-
das, do desenvolvimento do pensamento crítico e autônomo (SILVA; SILVA;
ALMEIDA, 2021). Nota-se, assim, a potência política do trabalho realizado por
professoras(es) de Psicologia para o enfrentamento das relações hegemô-
nicas. E, como afirma Barros (2007), “Para uma educação apenas adaptativa,
talvez a psicologia seja realmente dispensável. Mas se tomamos como meta
uma educação contra a barbárie, a psicologia se torna necessária e cabe
então questionar qual tipo de educação é desejável” (p. 38).

A escola e a psicologia em tempos pandêmicos

O distanciamento físico imposto para a contenção da pandemia


do Coronavírus impactou a rotina de estudantes, familiares e profissionais
da Educação. Sabe-se que todas as crianças se encontram suscetíveis às
repercussões de ordem psicossocial durante a pandemia (FUNDAÇÃO
OSWALDO CRUZ, 2020). Os fatores de sofrimento agravam-se quando se
consideram recortes como classe, raça, gênero, dentre outros marcadores.
Nesse sentido, torna-se relevante discutir os desafios enfrentados pelas
escolas públicas de Educação Básica durante o período pandêmico, visto
que ela integra, de modo único, as diversidades presentes na sociedade.
Como apontado por Guzzo et al. (2021), no Brasil, “a escola pública
é uma instituição que desvela desigualdades e escancara as limitações
que muitos estudantes têm para se desenvolverem integralmente” (p. 671).
A discussão da discrepância social vivenciada pelas(os) alunas(os) de tais
instituições mostra-se mais pertinente no contexto do ensino remoto, visto
que o transporte do meio de ensino presencial para o virtual aprofunda a
precariedade histórica das condições de ensino estabelecidas no país (BA-
VARESCO; SOUZA; AMARAL, 2021).
Ao discorrer sobre o falacioso discurso da adesão ao ensino remoto
como resultado da falta de alternativas, Saviani e Galvão (2021) situam que

134
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

certas condições primárias precisariam ser cumpridas para que o modelo a


distância fosse implementado, a saber: acesso à internet de qualidade, fami-
liarização de todos com as tecnologias e preparação de docentes para o uso
pedagógico das ferramentas. Os autores apontam, também, que o processo
educacional emergencial mediado pelas tecnologias é caracterizado pelo
esvaziamento dos conteúdos, empobrecimento da forma, exclusão dos
destinatários e, por vezes, por alunas(os) que permanecem em um estado
de ludibriação sobre sua aprendizagem.
Logo, a mera transposição do modelo presencial para o remoto
mostra-se insuficiente. Tal qual indicado por Facci, Anache e Ferreira (2021), as
relações estabelecidas dentro da comunidade escolar são fundamentais para
a efetivação da aprendizagem. Ao reiterar este entendimento, Guzzo et al. (2021)
discorrem que o processo de aprendizagem ocorre mediado pelo vínculo e
afeto mobilizado entre professoras(es) e crianças. Desta maneira, os conteúdos
são apreendidos pela presença do interesse, motivação e acompanhamento
do desenvolvimento de cada sujeito, que é dotado de singularidade.
Assim, o ambiente virtual é marcado pela presença de faltas. O
discurso de autonomia que é propagado para os alunos e seus familiares é
composto pela aplicação de muitas tarefas e atividades escolares, todavia,
se dá “pouco ensino, pouca aprendizagem, pouco conteúdo, pouca carga
horária, pouco diálogo” (SAVIANI; GALVÃO, 2021, p. 42). Ademais, observa-se
em muitas instituições a produção de um ensino vazio de sentido e significa-
do para os discentes, com ausência de reflexão sobre as vivências durante
a pandemia, o que desconsidera o papel crítico das crianças (BAVARESCO;
SOUZA; AMARAL, 2021), sendo que essas podem tecer alternativas e gerar
modificações benéficas no seu dia a dia e no interior da comunidade.
Para além disso, neste contexto de adaptação, é possível observar as
dificuldades enfrentadas pelos cuidadores e docentes. No que tange à intera-
ção familiar, observa-se que o distanciamento social intensificou tal convívio.
Este fator se expressa de forma positiva, visto que viabiliza a criação e reforço
de vínculos, mas também de modo negativo (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ,
2020). Tal qual sinalizado por Bavaresco, Souza e Amaral (2021), a dinâmica
familiar, neste período, foi significativamente alterada: fez-se necessária a

135
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

conciliação espacial entre trabalho remoto, atividades domésticas e ensino


remoto. Os familiares passaram a ter então uma sobrecarga no cotidiano,
acrescida ao papel de mediador do desenvolvimento da criança (GUZZO et
al., 2021), mesmo sem ter a qualificação pedagógica para tal.
Em contrapartida, mesmo antes da pandemia da Covid-19, as(os) do-
centes já vivenciavam uma série de instabilidades e ataques. Como exposto
por Facci, Anache e Ferreira (2021, p. 629), as problemáticas experienciadas
por esses profissionais se materializam nos “baixos salários, espaços acadê-
micos sucateados e erguidos sem o mínimo de condições de salubridade
para o seu funcionamento adequado”. Atualmente, as(os) professoras(es) se
depararam com altos custos e prejuízos na saúde mental e física, dada a
precarização e intensificação do trabalho (SAVIANI; GALVÃO, 2021).
Este trágico panorama pode ser beneficiado com a atuação conjunta
de equipes multidisciplinares. Ao debater os questionamentos que emer-
gem neste momento de pandemia, Prado e Silveira (2021) pontuam que a
ampliação do cuidado em saúde mental deve ser compreendida como um
compromisso de todos os indivíduos que compõem a instituição, ou seja,
não é um cargo direcionado a apenas um ator da escola, uma vez que “os
demais atores da escola também se responsabilizam pelo sofrimento pro-
duzido no sistema escolar” (PRADO; SILVEIRA, 2021, p. 895).
Assim sendo, diante de tal conjuntura, as(os) psicólogas(os) têm o
papel de promover a saúde e também a qualidade de vida dos sujeitos e co-
letividades. Cabe ressaltar que a base teórica e prática dessas(es) profissio-
nais é construída a serviço da eliminação de negligências, discriminações e
crueldades (CFP, 2005) que se estendem para os diversos espaços públicos,
dentre eles a escola. Portanto, a prática da Psicologia atrelada às instituições
de ensino atua na tentativa de não propiciar a captura da Educação enquan-
to produto mercadológico.
Nessa perspectiva, na experiência que discutiremos a seguir, buscou-
-se a promoção da construção do pensamento crítico dos indivíduos envolvi-
dos no processo de aprendizagem com vistas a possibilitar sua emancipação.

136
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Venturas e desventuras no estágio de licenciatura na pandemia

Esse estágio foi desenvolvido com a participação de 49 acadêmi-


cas(os) matriculadas(os) no curso de Licenciatura em Psicologia, 1 docente
responsável pelo estágio e 2 monitoras voluntárias. Contou, ainda, com a
participação de 11 professoras(es) da Educação Básica e 4 profissionais da
Educação — sendo 1 coordenadora pedagógica e 3 psicólogas(os) escola-
res, que atuaram como preceptoras(es) e tiveram fundamental importância
como articuladoras(es) entre os grupos durante todo o processo. As(os)
acadêmicas(os) foram divididas(os) em 4 escolas públicas de Ensino Fun-
damental, sendo 2 da rede municipal e 2 da rede estadual de Educação. Ao
todo, as atividades do estágio foram desenvolvidas em 18 turmas abran-
gendo desde o 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, além de 4 turmas de
projetos pedagógicos voltados a estudantes de 15 a 17 anos. Em média, as
reflexões propostas pelas ações pedagógicas do estágio envolveram 102
estudantes da Educação Básica.
Ao apontar a docência como práxis, Freitas e Rosa (2015) defendem que

Ensinar é proporcionar ao aluno formas de apropriar-se dos


conteúdos culturais e científicos produzidos historicamente pela
humanidade, apropriando-se também de habilidades cognitivas
correlatas a estes conteúdos, tais como capacidade de estabe-
lecer relações conceituais, de elaborar análises e sínteses, de
pensar teoricamente os objetos de conhecimento, de refletir
criticamente sobre a realidade e de utilizar os conhecimentos
para orientar-se e agir nesta realidade (p. 615).

Esse estágio em docência foi organizado nessa perspectiva. Consi-


derando seu contexto, os procedimentos desempenhados para desenvolvê-
-lo envolveram aulas síncronas semanais, videoaulas, oficinas reflexivas com
atividades exploratórias e regências. Nas aulas síncronas, sob perspectiva
crítica, foram analisados temas relacionados à regulamentação do ensino na
Licenciatura em Psicologia e na Educação Básica, à relação entre a Psicolo-
gia e a Educação — sobretudo no que tange às demandas da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) — e ao ensino na pandemia em contexto remoto.
Estes estudos subsidiaram a realização de oficinas reflexivas semanais vol-

137
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tadas à compreensão da docência em Psicologia, dos temas que viriam a


constituir as regências e do contexto no qual seriam ministradas.
A eleição da temática abordada nas regências — “Habilidades so-
ciais e competências socioemocionais na aprendizagem escolar” — atendeu
à solicitação das unidades escolares que acolheram o estágio. O critério de
escolha relacionou-se à sua articulação com reflexões sobre o Projeto de
Vida previstas na BNCC e às possíveis contribuições do tema à comunidade
escolar enquanto instrumento para enfrentar situações críticas decorrentes
da pandemia.
As noções de habilidades sociais e competências socioemocionais
foram tomadas tal como descritas por Abed (2016). Portanto, entendidas
como características não cognitivas da personalidade, que envolvem as
capacidades individuais necessárias para o bom relacionamento com o
outro e consigo mesmo, bem como para enfrentar situações adversas e
construir uma vida produtiva e em bem-estar na sociedade. Conforme a
autora, tais aspectos, ao serem inseridos na Educação, podem contribuir
para melhoria no processo de ensino e aprendizagem e para a promoção
do desenvolvimento integral do sujeito, favorecendo a formação do jovem
em todas as dimensões. A abordagem ao tema foi criteriosa e, visando não
promover o uso instrumental e ingênuo de conteúdos da Psicologia para
promoção da alienação na Educação Básica, considerou as análises críticas
já mencionadas elaboradas por Santos e Gontijo (2020), Pereira e Evangelista
(2019) e Silva, Silva e Almeida (2021), entre outros.
Conforme dissemos, a atuação se deu em grupos distribuídos por
escolas, turmas e faixas etárias diferentes, onde cada qual preparou e mi-
nistrou três aulas ao longo de quatro a cinco semanas. Ressaltamos que a
experiência foi inteiramente realizada em modo remoto, por meio do uso de
TICs, sobretudo pelo Google Meet, o que impôs uma dinâmica e ocasionou
circunstâncias de aprendizagem difíceis de serem previstas e controladas
em razão da diversidade de fatores que atravessaram o processo, tal como
observaram em situações semelhantes Guzzo et al. (2021), Bavaresco, Souza
e Amaral (2021) e Facci, Anache e Ferreira (2021).

138
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

As discussões ocorridas no estágio, desde o planejamento, orien-


tações, análise das vivências, até os relatos de experiência, remeteram a
escritos de Vigotski de meados da década de 1920. Nesses estudos, Vigotski
(2018) apontou “a complexidade a cada dia crescente das tarefas que se
colocam perante o professor”. O autor refletia sobre o valor da instrução, a
relação entre ensino e aprendizagem e a formação de professoras(es). Na-
quele contexto ele já observava que “o número de procedimentos exigidos
tornou-se tão infinitamente diversificado e complicado que, se o professor
quiser ser um pedagogo cientificamente instruído, deve ter um embasa-
mento cultural muito vasto” (VIGOTSKI, 2018, p. 455). O mesmo poderia ser
considerado sobre a docência no cenário que vivenciamos atualmente, sob
a égide da pandemia do Coronavírus.
O contexto atual não é paradigmático como aquele experimentado
pelo autor. Mas impôs e revelou muitas contradições e desafios à formação
de professoras(es) propostos ao engajamento político e científico com sua
profissão, alguns dos quais puderam ser observados ao longo da realização
deste estágio. Entre eles, mencionamos a dificuldade em alcançar as(os)
alunas(os) das escolas envolvidas, sobretudo dos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Em muitos casos, as crianças mais novas, na ausência de
tecnologias da informação e comunicação próprias, usaram os aparelhos de
seus responsáveis, que nem sempre podiam disponibilizá-los ou se fazerem
presentes para mediar o uso. Cabe observar, conforme alertaram Saviani e
Galvão (2021) e Guzzo et al. (2021), que muitas famílias sequer dispunham da
tecnologia ou de planos de internet economicamente capazes de proporcio-
nar acesso às transmissões em vídeo síncronas.
Assim, por orientação das secretarias de educação, as escolas priori-
zaram o uso de redes sociais como o WhatsApp e as comunicações impressas
retiradas e devolvidas semanal ou quinzenalmente nas unidades escolares
como meios de interlocução para a realização das ações pedagógicas. Por
essa razão, os encontros virtuais síncronos promovidos pelas atividades do
estágio — com baixíssima adesão pelas(os) estudantes de Educação Básica
— configuraram os primeiros encontros realizados em muitas das turmas
que participaram da ação formativa. Esses arranjos podem ser identificados

139
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

com as claras manifestações da precarização das condições de trabalho e


das relações de aprendizagem ocorridas na pandemia, como as discutidas
por Facci, Anache e Ferreira (2021).
Também em semelhança à reflexão sobre a fragilização das condi-
ções de vida expressas no ambiente escolar, descritas por Guzzo et al. (2021)
e Saviani e Galvão (2021), verificou-se, ao longo da realização desse estágio,
o duplo papel que adolescentes em condição de vulnerabilidade desempe-
nharam durante o período de distanciamento físico. O papel de estudante
aliou-se ao de trabalhador, uma vez que a pandemia de Covid-19 afetou
questões de ordem sanitária, social e econômica, dentre outras, e acirrou
as desigualdades preexistentes entre as classes sociais de nosso país. Com
o duplo papel, fizeram-se presentes no processo de aprendizagem das(os)
alunas(os) de Educação Básica o cansaço diante das diversas demandas e o
desinteresse por temáticas aparentemente distantes de sua realidade.
A dificuldade de as escolas manterem o vínculo com seu alunado
no modelo de ensino remoto foi reiterada e se tornou evidente pela baixa
adesão, tanto às atividades propostas por suas(seus) professoras(es) quanto
às regências realizadas pelas(os) estagiárias(os) — mesmo com os convites
e compartilhamento de cartilhas informativas nos meios de comunicação de
familiares e alunos.
De outro lado, alguns tiveram acesso e puderam aderir às atividades
propostas no estágio — 102 estudantes, aproximadamente. Freitas e Rosa
(2015, p. 615) argumentaram que “o ensino consiste na atuação do professor
na relação do aluno com o objeto de estudo, ajudando-o a formar e de-
senvolver capacidades intelectuais (conceitos) por meio dos conteúdos”. E,
na aprendizagem desta atuação, as(os) estagiárias(os) entraram em contato
com alguns dos percalços da atividade docente em modalidade remota
na Educação Básica. Dentre eles, o desafio de educar criticamente — e ao
mesmo tempo em formato flexibilizado, acessível e com qualidade — neste
contexto único e inusitado. Fez-se necessário aprender sobre as tecnologias,
utilizar diferentes tipos de recursos, linguagem acessível e condizente com a
realidade e a condição de desenvolvimento das(os) estudantes — o que foi
difícil de perceber e avaliar.

140
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Realizou-se um esforço significativo no entrecruzamento dessas


diferentes operações para promover a interação das(os) alunas(os) com os
conteúdos propostos, auxiliá-las(os) a produzir sentidos e transformá-los
em capacidades intelectuais. Também foi necessário produzir tolerância às
frustrações promovidas pelas dificuldades impostas pelas intermitências
da internet e por todo o cenário que escancarou os desgastes emocionais
vivenciados pelas(os) professoras(es) que convivem com uma sobrecarga
de trabalho, falta de vínculo físico e desinteresse dos alunos.
Contudo, mesmo diante de tantas adversidades, não é possível fina-
lizar sem mencionar as reações das(os) participantes, docentes e estudantes
da Educação Básica, que revelaram uma satisfação importante quanto às
ações realizadas pelo estágio na escola e as aprendizagens promovidas. Foi
possível observar uma resposta positiva dos envolvidos por terem tomado
parte do processo, tendo a oportunidade de encontrar e/ou reencontrar
colegas e professoras(es) em situação de sala de aula, o que contribuiu para
dirimir as saudades e promover o prazer do convívio, ainda que mediado
pelas TICs. Além disso, para nossa satisfação, as(os) participantes ressalta-
ram que os temas abordados ofereceram a oportunidade de elaborar sobre
as dificuldades que estão vivenciando em seus lares em decorrência da
pandemia, suas perdas e aprendizagens.

Considerações finais

Finalizamos esse relato ponderando que, entre venturas e des-


venturas experimentadas na realização deste estágio, aprendemos que
no horizonte da relação entre a Psicologia e a Educação e da formação de
professoras(es) de Psicologia ainda restam muitos desafios. Mas o contexto
pandêmico permitiu que a sociedade percebesse, com mais transparência,
a relevância da Psicologia como conjunto de saberes e como práxis pro-
fissional importante para adensar e fortalecer as relações pedagógicas,
sobretudo, como instrumento para a produção de subsídios necessários ao
enfrentamento de situações de crise.

141
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A Licenciatura em Psicologia, como projeto complementar, pode


ser um recurso importante às(aos) psicólogas(os) escolares. Um lugar para
aprendizagem sobre a dinâmica e o funcionamento da escola e dos proces-
sos pedagógicos, além de ser útil para a reflexão sobre temas pertinentes
à promoção do desenvolvimento humano com qualidade na Educação
Básica. A vivência deste estágio indicou às(aos) participantes o valor do
papel desempenhado pela(o) licenciada(o) em Psicologia dentro do espaço
escolar. O ensino das temáticas transversais potencializou o compromisso
social da Psicologia com a sociedade e promoveu a articulação de temáticas
cotidianas com as teorias psicológicas.
O estágio possibilitou que as(os) acadêmicas(os) alcançassem a
compreensão sobre a elaboração do planejamento de ensino e enfrentas-
sem os desafios para a construção de um espaço criativo, seguro e acolhe-
dor de aprendizagem no modelo remoto. A interação na díade professo-
ra(r)-aluna(o) foi bastante salutar também no sentido de que, ao ensinar as
habilidades sociais e competências socioemocionais, as(os) acadêmicas(os)
foram auxiliadas(os) pelas(os) alunas(os) no desenvolvimento das mesmas.
Constatou-se também que a experiência agregou no reconhecimento das
subjetividades ao promover o encontro e contrastar as especificidades dos
diferentes públicos participantes do estágio e ao deslocar a experiência
acadêmica do universo teórico-abstrato para imersão na práxis docente,
aspecto importante para a formação da(o) psicóloga(o).
No entanto, uma grande preocupação que esteve presente duran-
te o processo foi relativa à qualidade da formação de professoras(es) em
modo remoto. A experiência vivida possibilitou aos acadêmicos avaliarem
suas posturas enquanto estudantes frente às aulas remotas e os impactos
da falta de participação das(os) alunas(os) no decorrer das aulas. Outro
aspecto refere-se ao questionamento sobre a influência do isolamento e
suas consequências nas relações interpessoais constitutivas do processo de
aprendizagem estabelecidas entre os atores do ambiente escolar.
Nota-se que a atuação nas escolas possibilitou aprendizagens únicas,
que não seriam passíveis de experimentação em um momento típico. Durante o
processo, as incertezas e receios quanto ao modelo remoto como recurso para

142
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

a formação docente se fizeram presentes, tendo em vista as incontáveis limita-


ções à experiência direta com o ambiente escolar. Somado a isso, ressaltam-se
os impactos na saúde mental advindos deste contexto marcado por perdas,
medos e rearranjos no modo de lidar com o trabalho, família e estudos.
Finalmente, cabe ressaltar que essa formação relatada, vivenciada
em modo remoto, indicou ter promovido as aprendizagens significativas e
relevantes, mesmo tendo sido realizada sob esse formato. No entanto, não
se aproximam nem substituem o valor daquelas que poderiam ser produzi-
das na formação docente vivenciada presencialmente.

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144
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 9
SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE PANDEMIA:
relato de uma oficina on-line de psicologia com
estudantes do ensino médio técnico

Ianara de Lima Mendonça


Allana Isabella Souza
Jaqueline Batista de Oliveira Costa

Introdução

No atual cenário de pandemia causada pela expansão do vírus


SARS-CoV-2, agente etiológico da doença Covid-19, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) recomendou, para todos os países, medidas
de distanciamento e isolamento social como estratégia de combate e
prevenção à propagação do vírus. No Brasil, no dia 20 de março de 2020,
foi declarado estado de transmissão comunitária do vírus e, atualmente,
após dezoito meses, acumulam-se mais 21.247.667 casos contaminados
e mais de 600.000 óbitos (BRASIL, 2021).
A disseminação descontrolada do vírus por todo o mundo está dire-
tamente atrelada a um aumento nos fatores de risco à saúde mental uma
vez que este fato produz uma incerteza em relação ao tempo de duração da
pandemia e aos seus desdobramentos (SCHMIDT et al., 2020 apud ZANDI-

145
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

FAR; BADRFAM, 2020). Ao interferir diretamente no cotidiano da sociedade,


esse novo contexto não restringe só o direito de ir e vir dos indivíduos, mas
coloca em questão também o direito à vida, o que resulta em um sentimento
coletivo de insegurança socioexistencial (CURY, 2020).
Diante dos efeitos da pandemia, a saúde mental dos estudantes
emerge como uma temática de grande relevância. Sabemos que crianças e
adolescentes são grupos especialmente suscetíveis a problemas de saúde
mental frente a uma situação de crise (MANGUEIRA et al., 2020 apud STE-
VENSON et al., 2009). Sendo assim, considerando que o cenário pandêmico
atual é vivenciado concomitantemente às mudanças psicobiológicas ocor-
ridas na adolescência, o que por si só já favorece a instabilidade emocional
dos indivíduos (SENNA; DESSEN, 2015), fica evidente a importância de se
direcionar um olhar mais atento para as consequências da pandemia para
este grupo etário. Nessa fase de amadurecimento, o suporte pessoal e am-
biental recebido pelas crianças e adolescentes são tão importantes para o
seu desenvolvimento quanto a passagem do tempo (PINTO, 2006).
Considerando as diversas implicações da pandemia no cotidiano e
na saúde das pessoas no mundo todo, uma atual “pandemia de medo e es-
tresse” pode ser vista como um de seus importantes desdobramentos. Esta
onda de medo que se disseminou está relacionada ao aumento dos níveis
de ansiedade e estresse em indivíduos saudáveis e ao agravamento de sin-
tomas psicopatológicos em pessoas que já tinham histórico de transtornos
psiquiátricos. Além de todas essas questões relacionadas à disseminação
do medo da morte, a pandemia tem repercussões econômicas e sociais em
larga escala que contribuem para instalar um sentimento de insegurança e
de desamparo entre as pessoas (ORNELL et al., 2020).
Neste cenário, foi necessário realizar adaptações no âmbito da vida
social que tiveram impacto em diversos serviços de atividades coletivas, em
especial nas atividades de ensino-aprendizagem (SOUZA et al., 2021). Novas
estratégias foram adotadas nas instituições de ensino visando a continuação
das atividades de ensino, incluindo a utilização de plataformas virtuais para
mediar as práticas pedagógicas. Entretanto, é importante refletir sobre os
desdobramentos dessa nova prática na vivência e formação dos estudantes,

146
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

já que as dinâmicas de interação social das escolas, agora impedidas por


esse sistema de ensino, constituem um aspecto importante para o desen-
volvimento humano (ALVES, 2020).
A necessidade de adaptação ao isolamento e ao fechamento das
portas da escola fizeram surgir entre pais, alunos e profissionais sentimen-
tos de dúvida, confusão e angústia (ALVES, 2020). É possível afirmar que
o modelo de ensino remoto torna evidente vários problemas: a rotina de
aprendizagem, antes separada por ambientes, agora acontece dentro das
residências, de forma que a condição de marcada desigualdade social do
Brasil pode levar ao aumento da vulnerabilidade dos diferentes alunos do
ensino público. Além disso, a dispersão dos indivíduos frente a estímulos
eletrônicos e a insuficiência da estrutura familiar para suprir todas as novas
exigências da condição escolar — o que envolve não apenas questões
cognitivas, mas o aprendizado por meio da convivência — também podem
ser considerados reflexos desta “invasão das escolas nas casas” vivenciada
durante a pandemia (CURY, 2020).
Dessa forma, torna-se necessária uma ressignificação da prática
educacional. A situação de emergência na atualidade exige do sistema
educacional a saída de sua zona de conforto, uma vez que os métodos tradi-
cionais de ensino presencial não podem ser aplicados neste momento atual.
Esse movimento de certa forma contribui para que ocorra uma expansão de
critérios aplicados à educação (MARQUES; FRAGUAS, 2020). Todavia, nesse
contexto, a tecnologia precisa ser compreendida como um instrumento
de intervenção em favor da democracia social igualitária, para além de um
elemento auxiliar ao processo de ensino, capaz de produzir pensamentos
críticos e intervenções em certos determinantes. Para isso, é necessário
considerar diversas questões sociais, econômicas e culturais envolvidas no
uso dessas tecnologias em contexto educacional (SANTOS; PESCE, 2016).
Considerando as diversas interfaces da pandemia com a educação
pública, é evidente o despreparo das escolas e seus agentes para lidar com
as questões de saúde mental emergentes. Neste panorama caracterizado
por vulnerabilidades de diversas naturezas, a presença de um profissional
qualificado para lidar com demandas emocionais dos estudantes é extrema-

147
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

mente importante. Tal profissional, que pode ser o licenciado em psicologia,


deve estar atento e sensível para desenvolver atividades que promovam
nos alunos o autoconhecimento e que se relacionem com o desempenho
acadêmico, de acordo com as demandas apresentadas por eles.
No contexto pandêmico, a Inteligência Emocional (IE) emerge como
uma importante habilidade de autoconhecimento a ser desenvolvida pelos
estudantes. Ela confere ao sujeito a capacidade de identificar e lidar com
suas emoções e sentimentos, conforme destacam Mayer e Salovey (1997):

A Inteligência Emocional envolve a capacidade de perceber


acuradamente, de avaliar e de expressar emoções; a capacida-
de de perceber e/ou gerar sentimentos quando eles facilitam
o pensamento; a capacidade de compreender a emoção e o
conhecimento emocional; e a capacidade de controlar emoções
para promover o crescimento emocional e intelectual (MAYER;
SALOVEY, 1997, p. 15).

O gerenciamento dos sentimentos e a regulação das emoções pode


ser uma habilidade interessante de ser desenvolvida, uma vez que auxilia o
sujeito a lidar com sofrimentos psíquicos. De modo semelhante, a utilização
de técnicas tais como o relaxamento, o manejo do tempo e o rastreamento
de pensamentos disfuncionais (RPD) podem auxiliar na redução de ansieda-
de (MOURA et al., 2018). Ademais, é necessário estar atento aos hábitos reco-
mendados para o cuidado com a saúde mental na pandemia, que envolvem,
entre outros aspectos, o autocuidado, a atenção voltada aos sentimentos e a
busca de ajuda profissional quando necessário (FIOCRUZ, 2020).
Vale ressaltar que o papel do profissional licenciado em psicologia
não é assumir uma psicoterapia com os alunos, mas informá-los sobre essas
e outras questões do psiquismo, como também a promoção de reflexões
sobre pandemia e seus efeitos, o pensamento crítico e criativo, a estimu-
lação do desenvolvimento de autonomia, além do incentivo à busca de
psicoterapia quando necessário.
O objetivo deste capítulo consiste em relatar e refletir sobre uma
experiência prática em estágio de formação de professores em psicologia. A
intervenção foi norteada pelo tema “saúde mental” e seus desdobramentos

148
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

vivenciados no contexto pandêmico pelos estudantes. Para tanto, discutem-


-se as principais mudanças e adaptações realizadas no processo de ensino
relatadas por estudantes de nível médio nesse período de operacionaliza-
ção do ensino remoto, bem como a importância da prática especializada em
psicologia nas instituições educacionais.

Materiais e método

Os relatos dos participantes que subsidiaram a discussão nesse


trabalho advêm da prática adaptada virtualmente no Estágio em Formação
de Professores III, do curso de Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD), realizada durante o primeiro semestre de 2021. Um grupo
formado por seis estagiários desenvolveu oficinas semanais durante um
período de três meses (março a junho de 2021) no Instituto Federal do Mato
Grosso do Sul (IFMS), com um total de quinze participantes inscritos, cursando
os três anos do ensino médio e técnico, com idades entre 14 e 17 anos.
Ocorreram dez encontros mediados pela plataforma do Google Meet,
divididos em duas etapas com temáticas distintas, porém relacionadas. Na
primeira, foram trabalhados, em cinco encontros, os conceitos de bullying e
cyberbullying, os personagens de ambos fenômenos (vítimas, perpetradores
e espectadores), as consequências dessas práticas, apresentações de rela-
tos de casos, entre outros. No decorrer da oficina, após surgir a necessidade
de explorar assuntos relacionados à saúde mental, foram desenvolvidas,
também em cinco encontros, as temáticas de inteligência emocional, ansie-
dade e criação de hábitos de autocuidado na pandemia.
As oficinas foram estruturadas no formato de roda de conversa virtu-
al, na qual semanalmente dois estagiários eram responsáveis por introduzir
o conteúdo a ser discutido e instigar os alunos a relatarem seus conheci-
mentos prévios ou partilharem suas vivências em relação ao assunto em
discussão. Para isso, foram utilizadas diversas ferramentas metodológicas,
tais como: dinâmicas, vídeos, slides de PowerPoint, aplicação de técnicas
de respiração, cartilha informativa, entre outras. Além disso, em alguns

149
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

encontros foram usados questionários no Google Forms como instrumento


de avaliação, utilizados para conhecer os discentes, seus apontamentos e
compreender como se constituiu o processo de aprendizagem quanto às
temáticas trabalhadas.
Durante as cinco oficinas sobre bullying e cyberbullying, foram envia-
dos aos alunos dois questionários referentes às temáticas, um no primeiro
encontro e outro no último. Ambos os formulários continham perguntas con-
ceituais sobre os temas trabalhados, de modo que fosse possível observar a
aprendizagem e/ou mudanças de concepções ao longo das oficinas. Além
disso, no segundo questionário foi solicitado que os alunos sugerissem
temáticas a serem trabalhadas nas oficinas seguintes, auxiliando assim no
planejamento e desenvolvimento da segunda etapa.
Nos últimos cinco encontros, nos quais foram trabalhados temas
referentes à saúde mental dos estudantes, também ocorreu a aplicação de
dois questionários que tiveram como objetivo identificar demandas dos alu-
nos. No primeiro questionário, aplicado após a oficina de inteligência emo-
cional, foi solicitado que os estudantes escrevessem uma carta digital para
o seu “eu do futuro”, na qual poderiam lhes dar conselhos ou demonstrar
seus desejos e sentimentos em relação ao futuro. Foram obtidas, no total,
oito respostas que, após analisadas, deram subsídios para a construção de
um roteiro que norteou os encontros seguintes.
O segundo questionário, diferentemente da carta digital, não foi
realizado como parte das atividades dos encontros. Foi solicitado que os
alunos o respondessem durante seu tempo livre entre as oficinas, sendo
seu objetivo principal explicitar as respectivas experiências e sentimentos
em relação a pandemia. Desta forma, neste questionário, os sete alunos
que responderam tiveram liberdade para contar sobre sua rotina atual, suas
adaptações às aulas remotas, sua visão sobre a própria saúde mental e
sobre a pandemia. Além disso, por meio do questionário, foi possível obter
um feedback do trabalho realizado nas oficinas.
Para esse capítulo, apenas a discussão referente à segunda etapa
da oficina será abordada, qual seja, sobre saúde mental na pandemia,
uma vez que este tema oportuniza discussões relevantes e emergentes

150
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

para a potencialização do trabalho da psicologia nas escolas. Os relatos,


opiniões e questões apresentados pelos alunos durante toda essa etapa
das oficinas serviram de guia para a elaboração de reflexões acerca
dessa experiência e do impacto do cenário atual no cotidiano, bem como
na saúde mental dos estudantes. Da mesma forma, as vivências e per-
cepções subjetivas dos estagiários, ao trabalharem as temáticas como
professores em formação, propiciaram também reflexões a respeito da
importância da prática realizada e, além disso, da prática especializada
em psicologia nas instituições educacionais.

Resultados e discussão

A partir das cartas digitais da atividade “eu do futuro”, foi possível


identificar alguns dos problemas enfrentados pelos alunos nesse momento,
como: preocupação excessiva com a aprovação no vestibular, autocobrança,
dificuldade de concentração e angústia acerca do futuro. Tais apreensões
são comuns na adolescência. Porém, sabe-se que o medo vivido atual-
mente, instalado em contexto pandêmico, pode ser um fator intensificador
dos sintomas ansiogênicos e estressores característicos da adolescência
(ORNELL et al., 2020).
O rendimento escolar dos jovens está diretamente influenciado pelas
condições de saúde, sendo a escola o segundo ambiente mais importante
para o desenvolvimento humano. Tal instituição tem grande responsabili-
dade na promoção de saúde e educação comportamental do seu público,
uma vez que contribui para o reconhecimento, mapeamento e vigilância dos
comportamentos de risco (SENNA; DESSEN, 2015). Nesse sentido, a escola
pode funcionar como um suporte de proteção à saúde mental dos alunos
e, para tanto, precisa atentar-se às suas questões emocionais, considerando
que a adolescência é uma etapa da vida com mudanças abruptas, tanto nos
aspectos físicos quanto emocionais e sociais, que podem impactar negati-
vamente a saúde mental.

151
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A maioria dos alunos descreveu seus sentimentos diante desse


cenário com respostas que indicam tristeza, medo, indignação e, principal-
mente, ansiedade. Ainda que a ansiedade seja considerada um sentimento
inerente ao ser humano, conforme já mencionado, no contexto atual o au-
mento do seu nível em indivíduos saudáveis pode estar diretamente ligado
ao estresse e ao medo trazidos pela pandemia (ORNELL et al., 2020). Com
isso, a discussão sobre ansiedade acompanhou todo o trabalho sobre saúde
mental, uma vez que se manteve presente nas interações com os alunos.
A ansiedade é um sentimento relacionado à antecipação de um
perigo desconhecido que vem acompanhado de sensações desagradáveis.
Quando ela ocorre de forma exacerbada, pode interferir na qualidade de
vida dos indivíduos, assim como no desempenho em tarefas diárias e no
seu conforto emocional. Além disso, o aumento da ansiedade pode estar
relacionado a dificuldade de concentração, fadiga, tensão, irritabilidade e
dificuldades com o sono (MOURA et al., 2018). Esse último ponto foi consi-
derado uma das queixas mais recorrentes nas oficinas e nos questionários.
Durante os encontros, alguns alunos apresentaram também relatos de
mudanças na rotina do sono, de preocupação com o desempenho escolar e
de incerteza sobre o futuro.
Dessa forma, para além dos sentimentos gerados pela pandemia e
o isolamento, é importante considerar outros fatores que afetam o adoles-
cente nessa fase da vida. Ao final da adolescência, os fatores socioculturais
fazem com que seja esperado desses indivíduos, entre outros aspectos,
maiores responsabilidades acadêmicas e profissionais, o estabelecimento
de sua identidade e o desenvolvimento de papéis mais adultos (SENNA;
DESSEN, 2015).
Nesse sentido, Pinto (2006) reflete que uma das importantes causas
da ansiedade nessa faixa etária é:

um desamparo que acarreta, paradoxalmente, uma exigência


exagerada perante os jovens. Eles têm que fazer escolhas e
tomar atitudes para as quais ainda não estão suficientemente
amadurecidas. Eles não têm o necessário suporte ambiental
que lhes propicie fazer escolhas com a necessária tranquilidade
dentro do necessário tempo (PINTO, 2006, p. 62).

152
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Reconhecendo as dificuldades enfrentadas no cenário atual, vincu-


ladas às preocupações próprias da adolescência relacionadas ao autoco-
nhecimento e à perspectiva de futuro, o debate sobre saúde mental buscou
propiciar espaços de partilhas das vivências, além da aprendizagem de es-
tratégias e hábitos, para um melhor gerenciamento das emoções, controle
da ansiedade e enfrentamento de adversidades da vida, especialmente no
âmbito social, assim como é recomendado por Schmidt et al. (2020): “es-
tratégias para promoção de bem-estar psicológico, a exemplo de medidas
para organização da rotina de atividades diárias sob condições seguras,
cuidado com o sono, prática de atividades físicas e técnicas de relaxamento”
(SCHMIDT et al., 2020, p. 8).
Em conformidade com as recomendações acima, os autores Man-
gueira et al. (2020) sugerem atividades úteis e não úteis para o atual momento:

Para ajudar a aliviar o estresse das crianças e adolescentes


durante estes períodos, práticas como a meditação, mindfulness,
exercício da espiritualidade, podem ser bastante úteis. Ao passo
que o uso indevido das redes sociais e do consumo de notícias
desfavoráveis podem gerar angústia. A ação dos pais de escla-
recer, explicar e confortar as crianças produz calma e alivia os
sentimentos negativos (MANGUEIRA et al., 2020, p. 6).

Por meio das discussões ao longo da oficina e das respostas ex-


pressas nos formulários, foi possível observar o interesse especial dos estu-
dantes pelas estratégias de manejo e regulação das emoções, tratando-se
tanto das suas próprias manifestações emocionais quanto das expressas
pelos amigos e/ou familiares diante das inúmeras consequências — físicas
e psíquicas — que a pandemia de Covid-19 tem causado na humanidade.
Logo, nas oficinas desenvolvidas com os alunos, foram trabalhadas as qua-
tro principais habilidades que possibilitam o processamento de informações:
a percepção de emoções, a utilização das emoções como facilitadoras
do pensamento, o conhecimento emocional e a regulação das emoções
(MAYER; SALOVEY, 1997).
Algumas técnicas associadas ao desenvolvimento de habilidade de
inteligência emocional durante as oficinas foram pautadas em técnicas da

153
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

abordagem Cognitivo-Comportamental, tal como a técnica de identificação


de pensamentos distorcidos, que estimula a identificação de pensamento
diante de determinada situação, possibilitando a descoberta e a mudança
dos significados que são atribuídos a ela. Além desta, a descatastrofização
propõe ao indivíduo uma análise sobre seus próprios pensamentos nega-
tivos ou catastróficos e sobre a real probabilidade de eles virem a ocorrer,
possibilitando ainda a criação de um plano de ação para lidar com as possí-
veis adversidades futuras (MOURA et al., 2018).
A respeito das mudanças de rotina provocadas pelo isolamento
social, as respostas no questionário sobre saúde mental destacaram o fato
de a rotina ter se tornado instável. O abandono de atividades de lazer, como
encontrar amigos ou a prática de esportes, também foi uma das principais
mudanças apontadas. Em relação à adaptação às aulas remotas, todos
eles relataram que conseguem acompanhar as aulas. Apenas dois deles
encararam esse novo método de ensino como positivo, afirmando estarem
acostumados. O restante relatou encarar o ensino como algo “difícil”.
As atividades físicas e/ou de lazer constituem-se como um meio
de integração social. Os esportes, especialmente, proporcionam aos jovens
meios de adaptação ao próprio corpo e vivência de novas sensações impor-
tantes para essa fase da vida. Em outras palavras, o desenvolvimento saudá-
vel do adolescente vai além da prevenção ou do cuidado de adversidades
orgânicas que podem vir a se apresentar, pois está relacionado também à
qualidade de vida, garantida por boas condições físicas e psíquicas, bem
como os aspectos socioambientais, permitindo ao adolescente lidar com
suas transformações (SENNA; DESSEN, 2015). Dessa forma, é essencial o
incentivo aos alunos para adaptarem suas rotinas e manterem as atividades
físicas, respeitando as medidas de isolamento social, além de criarem hábi-
tos que propiciem momentos prazerosos entre as obrigações do dia a dia.
Relacionado à diminuição das atividades de lazer, encontra-se
também o afastamento do contato com amizades. Na adolescência, o
contato com suas redes sociais faz com que os sujeitos vivam novas expe-
riências e adquiram novos valores e hábitos que refletem diretamente no
ganho de autoconfiança e independência (SENNA; DESSEN, 2015). Nesse

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

sentido, diante das limitações impostas pelo cenário de isolamento social,


que acabam por reduzir essas experiências, destaca-se como importante
estratégia de cuidado psíquico a manutenção de uma rede socioafetiva e
o estabelecimento de contatos com seus pares, mesmo que de maneira
virtual (FIOCRUZ, 2020).
Quanto à experiência de uma educação remota, é importante consi-
derar que as adaptações das metodologias utilizadas nem sempre alcançam
uma qualidade desejável para a compreensão e participação dos alunos,
podendo ser estressante, desgastante e até frustrante para todos os envol-
vidos no processo de ensino-aprendizagem (ALVES, 2020). Compreendendo
essas dificuldades, além do cuidado de uma dinâmica que incentivasse a
participação e liberdade dos alunos, no decorrer das oficinas as discussões
sobre estratégias de manejo do tempo e controle de preocupação propu-
seram alternativas para uma possível melhora na administração de suas
atividades escolares, visto que essas práticas possibilitam a sensação de
maior controle sobre seus compromissos (MOURA et al., 2018).
Por fim, os alunos avaliaram o trabalho das oficinas de forma una-
nimemente positiva. Eles elogiaram a maneira como foram abordados os
temas e disseram se sentir suficientemente confortáveis para discutir e se
distrair com o que foi exposto. Além disso, foi notável a liberdade encontrada
por eles para relatar suas experiências durante os encontros. Dessa forma,
durante o trabalho nas oficinas de psicologia, torna-se importante o estabe-
lecimento de uma interação que possa romper com os padrões hierárquicos
da relação professor-aluno, propondo momentos de fácil comunicação e
exposição de sentimentos. Vale ressaltar ainda que, para que se mantenha
a sanidade mental, a segurança e a motivação frente à grande quantidade
de informações e às novas tecnologias, os estudantes em formação devem
receber todo o suporte dos profissionais envolvidos (MARQUES, 2020).

155
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Considerações finais

Diante do exposto, pode-se afirmar que a pandemia da Covid-19


ampliou as vulnerabilidades da educação pública brasileira, além de mo-
dificar diferentes aspectos da rotina das crianças e adolescentes, o que
tem impactos na saúde psíquica dos discentes. Como já mencionado, a
adolescência por si só é uma fase de vida ansiogênica, em razão das di-
versas mudanças fisiológicas e dos aspectos da construção de identidade
nela envolvidos. Nesse contexto, a escola, como espaço de transformação e
construção de cidadania, pode assumir um papel fundamental na prevenção
em saúde mental, atuando diante das fragilidades do contexto pandêmico e
reinventando seus métodos de ensino-aprendizagem para produzir espaços
de reflexões e acolhimento emocional.
Portanto, é de extrema importância o desenvolvimento de atividades
com caráter prático e reflexivo com objetivo de minimizar os danos à saúde
mental. Contudo, é preciso considerar a realidade dos alunos e suas de-
mandas para que as intervenções sejam apropriadas e efetivas. Nessa pers-
pectiva, a promoção de um espaço de interação que trabalhe as angústias
e experiências dos estudantes pode propiciar a contribuição mútua entre
alunos e profissionais: ao mesmo tempo que os estudantes podem adquirir
novas habilidades e hábitos para suas vidas, os profissionais podem realizar
adaptações em suas práticas, levando em conta a realidade do seu público.
Partindo desse pressuposto, a atuação do professor de psicologia
nas escolas é fundamental. A escola não é somente um ambiente para o de-
senvolvimento das funções intelectuais, mas também de aspectos afetivos e
sociais envolvidos no desenvolvimento humano. Nesse sentido, a psicologia
como disciplina possibilita aos discentes o debate de temáticas pouco abor-
dadas, incentivando as capacidades de autoconhecimento, autoconfiança,
autonomia, desenvolvimento de hábitos saudáveis, entre outros.
É importante destacar, por fim, que se faz necessário o investimento
na formação de professores capacitados para prática virtual, uma vez que,
muito possivelmente, o uso de alguns recursos tecnológicos persistirá mes-

156
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

mo após o fim da pandemia e exigirá adaptações nas tradicionais práticas de


ensino presencial

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 10
CONCEITUALIZAÇÃO COGNITIVA NO
TRANSTORNO OBSESSIVO COMPULSIVO:
relato de uma prática clínica supervisionada

Isabela Degani de Oliveira


Thais Michelle Kohler Barbosa
Regina Basso Zanon

Introdução

O presente capítulo objetiva apresentar as especificidades da Te-


rapia Cognitiva (TC) em pacientes com Transtorno Obsessivo-Compulsivo
(TOC) a partir do relato de uma prática clínica realizada em contexto de está-
gio supervisionado em processos clínicos (Ênfase B), do curso de Psicologia
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). A prática foi realizada
pela primeira autora do capítulo, com supervisão da última, nas dependên-
cias do Laboratório Serviço de Psicologia Aplicada (LabSPA).
Inicialmente, será apresentada uma breve revisão da literatura so-
bre os critérios diagnósticos do TOC e as especificidades da TC. A seguir,
detalhes de um caso clínico serão expostos, bem como explicações adicio-
nais sobre algumas das técnicas empregadas. Trata-se do caso clínico de
uma paciente adulta, aqui denominada de Lia, que apresentava sintomas
relacionados à contaminação, à verificação (checagem) e características
perfeccionistas. A paciente realizou 23 sessões de TC no decorrer do ano de

159
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

2019, sendo que, a partir destes encontros e das discussões realizadas nas
supervisões (individuais e em grupo), foi possível avaliar e intervir no que se
refere aos pensamentos automáticos, as distorções cognitivas e as crenças
centrais de Lia, aspectos que serão apresentados no capítulo em termos de
conceitualização cognitiva.

Referencial teórico

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais, 5ª edição (APA, 2014), o TOC é caracterizado pela presença de
obsessões e compulsões, sendo as obsessões pensamentos repetitivos
e intrusivos, os quais causam demasiada ansiedade, e as compulsões são
comportamentos ou atos mentais que surgem para evitar tais pensamentos
e aliviar o sofrimento. As obsessões e compulsões podem não estar co-
nectadas de maneira realista com o evento temido. Além disso, o TOC tem
raízes biológicas, hereditárias e psicológicas e os sintomas são considerados
bastante heterogêneos. Entre eles, temos: perfeccionismo, colecionismo,
avaliação exagerada de responsabilidade, medo exacerbado de contamina-
ção e verificações, entre outros (APA, 2014).
Podemos ressaltar que o TOC é um transtorno psiquiátrico comum
que pode também aparecer na infância e na adolescência, sendo que muitas
vezes os seus sinais e sintomas podem não ser percebidos pelos familiares,
o que acarreta um atraso no diagnóstico e no tratamento. No Brasil, o tempo
entre a identificação do primeiro sintoma de TOC e a busca por tratamento
equivale a 10 anos (COELHO et al., 2020), um período que geralmente é
marcado por muito sofrimento. O diagnóstico adequado e as intervenções
são muito úteis nesses casos, podendo melhorar consideravelmente os
sintomas apresentados, bem como a qualidade de vida do indivíduo que
apresenta esta condição.
A TC se baseia no modelo cognitivo, o qual supõe que as emoções
e os comportamentos de um indivíduo são influenciados pelas percepções
que ele tem dos eventos. Logo, não é a situação em si que determina o que

160
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

a pessoa sente, mas como cada indivíduo interpreta uma situação. Este mo-
delo estabelece três níveis de cognição: crenças nucleares, crenças inter-
mediárias e pensamentos automáticos (PA), e pressupõe que pensamentos
disfuncionais (baseados em crenças disfuncionais mais arraigadas) influen-
ciam as emoções e os comportamentos do indivíduo. Portanto, o objetivo
central da TC é provocar mudanças no sistema de crenças e pensamentos
para, consequentemente, mudar as reações emocionais e comportamentais
de forma duradoura. Sendo assim, durante o tratamento, busca-se identifi-
car as cognições distorcidas e a modificação das mesmas, como o foco em
situações do presente e com certa estruturação.
Durante a TC, o terapeuta auxilia o paciente a identificar pensamen-
tos negativos e distorcidos, a avaliar a veracidade dos fatos e as evidências
pautadas na realidade, assim como revisar tais distorções, criando crenças
alternativas mais funcionais. Atualmente, existem diferentes evidências
científicas sobre os benefícios da TC em diferentes contextos clínicos que
contemplam avanços e ampliações teóricas (novas ondas da TC) e técni-
cas. Por exemplo, o Mindfulness tem sido utilizado e adaptado pela terapia
cognitivo-comportamental para diferentes casos como ferramenta auxiliar
(BECK; BECK, 2013). Esse recurso tem por base desenvolver a atenção plena
no momento presente, direcionando o foco da atenção para o aqui e agora.
Somado a isso, defende uma atitude amistosa para com os sentimentos,
bons ou ruins, livre de julgamentos e com compaixão. Segundo Germer,
Siegel e Fulton (2016), é quando a resistência cessa e abre espaço para a
aceitação do sofrimento que as reais mudanças podem acontecer.
Na perspectiva cognitiva, os esquemas disfuncionais e as percep-
ções errôneas fazem com que os comportamentos do TOC se estabeleçam.
Essas percepções do mundo e os sentimentos são desenvolvidos ao longo
da história do indivíduo, conforme os eventos e interações produzidos em
seu ambiente. Dessa forma, Coelho et al. (2020) ressaltam que, em casos de
TOC, a TC busca intervir nos pensamentos automáticos disfuncionais, muitas
vezes marcados de julgamentos catastróficos (distorções) que são feitos de
forma irracional pelo indivíduo.

161
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A psicoeducação é uma técnica importante durante o tratamento


de casos de TOC, permitindo que o paciente receba informações e orien-
tações acerca do seu transtorno e do tratamento mais adequado, levando
em consideração as evidências científicas e as especificidades de cada caso
(CORDIOLI; BRAGA, 2011). Quando o paciente se torna consciente a respeito
de sua doença e tratamento, ele tende a ser mais colaborativo durante o
processo terapêutico.
Dessa forma, terapeuta e paciente buscam investigar e avaliar os
pensamentos e/ou imagens que surgem (obsessões), essas sendo mante-
nedoras dos comportamentos compulsivos e do surgimento das esquivas.
Outra técnica comumente usada em casos de TOC é a Exposição e Preven-
ção de Respostas (EPR), sendo eficaz em mais de 70% dos pacientes que
aderem ao tratamento (FORMIGA; BANDEIRA 2012), tendo como objetivo
minimizar a ansiedade e prevenir rituais que geram desconforto ou medo no
paciente o impedindo de realizar tarefas do dia a dia.
Os exercícios são executados a partir de uma lista de sintomas que
o paciente apresenta de acordo com as suas dificuldades diárias, iniciando
sempre pela exposição considerada mais fácil e de forma gradual. Cabe
mencionar que os estudos no tratamento de TOC apontam resultados
positivos quando o paciente é submetido à combinação de intervenções
medicamentosas, como os Inibidores Seletivos da Receptação da Seroto-
nina (USRS), com a Terapia Cognitiva–Comportamental (TCC) (FORMIGA;
BANDEIRA, 2021). Por exemplo, em um estudo envolvendo mais de 520
pacientes foi testado a eficácia da clomipramina (medicamento utilizado
em casos de TOC) e, dos 260 testados com uso do medicamento, cerca de
60% obtiveram uma redução média nos sintomas obsessivos após o uso de
intervenções medicamentosas e TCC (MARQUES, 2001).
A seguir será apresentado o relato do caso de Lia, uma paciente que
buscou psicoterapia e que apresentava um quadro de TOC. Destaca-se que
o nome Lia é fictício e que alguns elementos da história clínica da paciente
foram omitidos ou adaptados a fim de preservar a sua identidade. Ainda,
registra-se que Lia, ao iniciar os atendimentos no LabSPA assinou o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido, estando ciente de que seu caso

162
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

estaria sendo supervisionado e que partes dele poderiam ser discutidas e


apresentadas em espaços científicos, como é caso deste capítulo. A partir
do relato do caso, alguns conceitos e técnicas da TCC serão retomados com
o intuito de destacar as especificidades da interpretação e das intervenções
na perspectiva cognitiva.

Relato do caso da Lia

Lia tem 21 anos, é estudante de medicina e procurou o serviço psi-


cológico com a queixa inicial de estar vivenciando um momento triste com
o tratamento de uma doença rara de um de seus irmãos, bem como por
sentir a necessidade de acompanhamento frente às experiências vividas.
Na primeira sessão, Lia relatou que em meados de 2017 ela começou a
perceber os primeiros sinais do TOC. Para ela, no início, os sintomas não a
atrapalhavam, porém, com o passar do tempo, ela começou a perder aulas,
ônibus e não conseguia mais se concentrar devido à ansiedade trazida pelos
sintomas (obsessões). Por exemplo, Lia checava várias vezes se as tomadas
estavam desligadas antes de sair de casa e, constantemente, voltava para
casa para checar isso novamente. Até que então, Lia elaborou a estratégia
de tirar fotos das tomadas. Por exemplo, após usar a chapinha, ela tirava
foto dela fora da tomada, e toda vez que ela começasse a pensar se tinha
mesmo desligado a chapinha da tomada, ela olhava a foto. Mas, para Lia,
chegou num ponto em que ela começou a duvidar das fotos, e foi aí que ela
contou para a sua mãe.
Os sintomas do TOC se intensificaram com a proximidade dos ves-
tibulares, quando Lia procurou ajuda de um psiquiatra, o qual prescreveu
medicamento para o transtorno (Oxalato de escitalopram, inicialmente 10
mg), e também de uma psicóloga. A paciente interrompeu o processo psi-
coterapêutico quando se mudou de cidade para cursar medicina na UFGD.
Ademais, Lia alega possuir um bom relacionamento tanto com a família
quanto com amigos, e se mostrou bastante engajada em diversos grupos,
como de jovens da igreja, DCE, música e grupo de atendimento do SAMU.

163
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Tendo em vista que umas das queixas principais de Lia consistiu na


dificuldade de lidar com os sintomas do TOC, durante as sessões iniciais
de avaliação do caso, a terapeuta utilizou o questionário Listas de Sinto-
mas do TOC para identificar os sintomas predominantes, possibilitando
um direcionamento da psicoterapia (CORDIOLI, 2014). Os pensamentos
obsessivos e ciclos de compulsão também foram avaliados e trabalha-
dos a partir do Registro de Pensamentos Disfuncionais (KNAPP; BECK,
2008) que tem como objetivo auxiliar o paciente a lembrar os eventos,
pensamentos e sentimentos que acontecem entre as sessões, ainda o
ajudando a identificar em qual momento e intensidade o comportamento
de checagem pode estar acontecendo.
Após a avaliação dos principais sintomas do TOC, que indicaram a
presença de sintomas relacionados à contaminação, à verificação (checa-
gem) e características perfeccionistas, a terapeuta iniciou a psicoeducação
com explicações, exemplos e disponibilização de materiais impressos que
Lia levou para casa. Os conceitos de pensamento automático e crenças
foram apresentados para a paciente para que a mesma compreendesse o
modelo cognitivo. Nesse processo, a terapeuta optou por utilizar também
o genograma familiar (BOECKEL; PRATI, 2016) para que pudesse ficar claro
alguns fatos do seu passado. Com essa ferramenta, pôde-se reunir informa-
ções adicionais sobre os seus familiares e os padrões de comportamento
dos mesmos, e perceber como eles solucionavam problemas e criavam
expectativas sobre ela. Com isso, a paciente pôde perceber os padrões
cognitivos existentes em seus familiares e como estes padrões a afetavam.
No início do tratamento, o foco principal foi o desenvolvimento de
técnicas para controlar os pensamentos obsessivos e comportamentos
compulsivos, que, no caso de Lia, giravam em torno do medo de perder sua
vaga na universidade, medo exacerbado de contaminação e de influenciar
negativamente alguém. Uma importante ferramenta utilizada pelo psicó-
logo para que os objetivos da TCC sejam alcançados é a conceitualização
cognitiva, que permite uma melhor compreensão do caso e da estrutura
cognitiva do paciente, assim como possibilita a organização de um foco e
hierarquização de problemas relatados (NEUFELD; CAVENAGE, 2010).

164
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Para tanto, são criadas hipóteses desde a primeira sessão, as quais são
verificadas conforme os eventos, pensamentos, comportamentos e emoções
trazidas durante a terapia, caracterizando-se, assim, como um processo contí-
nuo de mapeamento da arquitetura cognitiva do paciente. Durante o processo
terapêutico, e a partir dos relatos e evidências que a paciente trazia para as
sessões, foram elaborados dois diagramas de conceitualização cognitiva de
Lia, que estão apresentados nas Figuras 1 e 2. Cabe registrar que os diagramas
foram preenchidos com base em falas e escritas da paciente e que as frases e
expressões apresentadas neles não foram revisadas em relação aos aspectos
ortográficos e gramaticais, visando assim preservar o conteúdo e o sentido
dos pensamentos mais do que a sua forma.

Figura 1 — Diagrama de Conceitualização Cognitiva de Lia (Crença de Vulnerabilidade)

Fonte: os autores.

165
Figura 2 — Diagrama de Conceitualização Cognitiva de Lia (Crença de Incapacidade)

Fonte: os autores.

De modo geral, observa-se que Lia apresentou crenças centrais


relacionadas à vulnerabilidade e à incapacidade que emergiram de experiên-
cias ao longo da sua vida, principalmente em sua infância e na relação com
seus familiares. A partir desses dados, a terapeuta pode realizar intervenções
em seus PAs visando reestruturação cognitiva. O reconhecimento de pen-
samentos automáticos e a análise das crenças foram primordiais para uma
compreensão global de Lia sobre si mesma, em um processo de autoconhe-

166
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

cimento e, consequentemente, de melhora do quadro. Para a elaboração da


conceitualização cognitiva, o uso de técnicas de psicoeducação, verificação
factual, questionamento socrático e exposição foram adotadas, o que permi-
tiu também a realização da técnica de ERP e de práticas de Mindfulness.
A partir da conceitualização colaborativa e registro de pensamen-
tos, a paciente compreendeu o ciclo de compulsões, se conscientizando
a identificar o surgimento dos pensamentos e, a partir disso, se reorganizar
nestes momentos. Assim, após ter aprendido sobre aspectos inerentes à
conceitualização, Lia conseguiu analisar e lidar melhor com outras situa-
ções cotidianas. Por exemplo, em uma sessão, Lia contou ter derramado
acetona nos seus óculos. Diante deste evento, sua ação imediata foi lavar
diversas vezes os óculos, movida por pensamentos obsessivos como “Será
que retirei toda a acetona?; Se não o lavar abundantemente, posso machucar
meus olhos; Será que retirei todo o sabão? Se não o retirar por completo posso
machucar meus olhos também”. Nesta situação, Lia conseguiu reconhecer
uma distorção cognitiva de catastrofização, que estava relacionada à sua
crença central de vulnerabilidade que, por sua vez, relacionava-se a eventos
estressores de sua história (incêndio na casa da avó e doença do irmão).
No diagrama (Figura 2) pode-se perceber a ocorrência de PAs
ligados ao medo de Lia de perder a sua vaga na universidade, também
relacionados a uma distorção cognitiva de catastrofização (KNAPP; BECK,
2008). Tais pensamentos e distorção foram desencadeados também em
uma situação na qual Lia se envolveu com um garoto que estava passan-
do por um processo de verificação de fraude em relação ao ingresso na
universidade a partir de uma vaga de cotas. Nos pensamentos de Lia, seria
possível perder sua própria vaga por estar se relacionando com o mesmo.
Nesta situação, além de corrigir PAs foi necessária a reafirmação de con-
quistas e a avaliação de riscos.
Observou-se ainda a necessidade de trabalhar com estratégias de
enfrentamento, de testar “na prática” tais medos e ansiedades, tanto no
que diz respeito ao relacionamento com os colegas de curso e ao medo de
fazerem mal a ela, quanto ao relacionamento amoroso e à ansiedade de que
algo ruim pudesse acontecer (perder a vaga). Após este trabalho, pôde-se

167
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

perceber melhora no repertório comportamental de Lia, que conseguiu, por


exemplo, aceitar uma carona de um dos colegas (“agora vejo que ele não
seria capaz de me fazer mal”) e estabelecer um relacionamento mais íntimo
com outro garoto.
Durante o tratamento, percebeu-se que as crenças de incapacidade
e de vulnerabilidade de Lia foram perdendo sua força e a paciente pôde
observar e se reorganizar cognitivamente e, principalmente, aprender
novos padrões de comportamentos, sendo esses mais adaptativos. Neste
processo, a terapeuta teve papel de auxiliar Lia a refletir de maneira efetiva
frente aos seus comportamentos desadaptativos, distorções cognitivas e
pensamentos catastróficos.
Durante o processo terapêutico foram também trabalhadas questões
de indecisão, medo do fracasso e habilidades sociais, como expressão de
sentimentos e colocação de suas vontades de forma assertiva. Um exemplo
disto refere-se à ansiedade de Lia diante da sua participação em um grupo
musical. Nesse contexto, ficaram evidentes crenças de incapacidade e de
vulnerabilidade, aparentes em falas como “gostaria muito de tocar, mas não
sei se vou ser escolhida”, “treinei o ano todo, agora não vou poder tocar por
causa [da desorganização] deles”. Sobre esse aspecto, foram necessárias
diferentes intervenções. Essas incluíram checagem factual da “certeza” da
rejeição pelo grupo, incentivo à abertura de diálogo e de exposição assertiva
de opinião em relação à desorganização dos responsáveis e meios alternati-
vos de solução de problemas.
No que concerne aos relacionamentos interpessoais, Lia apresentava
dificuldade de se colocar nessas situações respeitando os seus sentimentos
e os das outras pessoas. Nas sessões iniciais, ela demonstrou passividade,
cedendo grande parte das vezes, mesmo acreditando estar correta, a fim
de evitar desavenças (vulnerabilidade). Tal comportamento ficou evidente na
fala “não gosto de brigar, nunca tive inimizades e agora, na faculdade, estou
aprendendo a lidar com opiniões diferentes, jeitos diferentes...”. Entretanto,
de forma adjacente, Lia passou a se impor de forma agressiva e vingativa.
Como intervenção, foi necessária a discussão sobre a melhor maneira de
reivindicar suas vontades sem ferir o próximo, de mostrar desapontamentos

168
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e sentimentos em geral, bons ou ruins. Discutiu-se também a importância


do diálogo e de se expressar de maneira mais assertiva e amistosa, sendo
trabalhadas as habilidades sociais e a técnica de exposição aos conflitos.
Durante o processo terapêutico, verificou-se a diminuição de pen-
samentos obsessivos e a escassez de ocorrências de comportamentos
compulsivos. Depois de intervenções que seguiram no sentido de uma
compreensão do ciclo de compulsão, Lia foi capaz de demarcar o início
desses pensamentos e, assim, pará-los antes de se transformarem em uma
“bola de neve”, em ansiedade e comportamentos compulsivos.
Outro avanço importante se deu no desenvolvimento do foco no
presente. Devido à personalidade ansiosa, questionamentos sobre inde-
cisão e “falta de compromisso” com as escolhas feitas eram recorrentes
em Lia. A paciente antecipava acontecimentos (nem sempre pautados na
realidade), o que gerava mais ansiedade e a deixava mais preocupada,
desnecessariamente. Com a ampliação da prática de Mindfulness, assim
como do estudo de técnicas da TCC, Lia começou a ter mais consciência
do presente, desenvolveu a capacidade de reconhecer pensamentos
ansiosos e disfuncionais e de aceitar os eventos como são. Além do conhe-
cimento de Mindfulness, foram feitas intervenções em relação à quebra de
expectativa e à tolerância à frustração.
Ao final da prática de estágio, como encaminhamento, entendeu-se
que a paciente estava apta a receber alta psicológica, ainda que apresen-
tasse problemáticas sutis relativas aos seus relacionamentos interpessoais
e algumas indecisões. No decorrer da terapia, ficou claro o progresso de
Lia, especialmente se tratando da habilidade de monitorar pensamentos
disfuncionais nocivos e autodestrutivos. Ao final do processo, o feedback de
Lia sobre o processo terapêutico foi bem positivo, e ela sinalizou sua von-
tade de encerrar o uso de medicamento para o TOC. Caso esta ideia fosse
levada adiante, Lia foi orientada a procurar novamente um serviço para um
acompanhamento do processo e prevenção de recaídas.

169
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Considerações finais

O relato da prática clínica supervisionada, realizado à luz da TCC,


aponta para caminhos possíveis na avaliação e intervenção em casos de
TOC, ao mesmo tempo em que mostra o estágio supervisionado como um
contexto importante de aprendizagem e de intervenções junto à comunidade
externa à Universidade. Diante do caso exposto, foi possível perceber grandes
mudanças entre o primeiro contato até o processo de alta da paciente.
No início do tratamento, o foco principal era o desenvolvimento de
técnicas para controlar episódios de TOC, comportamentos compulsivos
e pensamentos obsessivos, sendo estes o medo de perda de vaga, medo
exacerbado de contaminação e de influenciar negativamente alguém. Já no
segundo momento, o foco da terapia passou a ser trabalhar com questões
de indecisão e a capacidade de lidar com as consequências de suas es-
colhas, viabilizando ampliação do repertório comportamental e melhora do
quadro geral a partir da técnica de EPR.
Por fim, cabe mencionar que a conceitualização colaborativa de casos
favoreceu a compreensão dos problemas que surgiam durante o processo de
terapia, permitindo uma compreensão contextualizada das situações trazidas
pela paciente, que passou a avaliar e implementar estratégias de mudanças.
É importante ressaltar que o estabelecimento de bons vínculos entre pa-
ciente-terapeuta e entre terapeuta-supervisora, durante todo o processo, foi
fundamental para que essa e outras estratégias estivessem de acordo com
as reais necessidades de Lia, reforçando a mesma a seguir o planejamento
fora das sessões. Dessa forma, destaca-se também o papel fundamental da
supervisão, que auxiliou a terapeuta a avaliar e trabalhar de forma estratégica
e organizada, refletindo sobre as demandas do caso e formulando tarefas a
partir das metas estabelecidas para o processo terapêutico.

170
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Referências

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tornos mentais: DSM-5. Porto Alegre, RS: Artmed, 2014.

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CORDIOLI, Aristides Volpato. Toc: Manual de Terapia Cognitivo-comportamental para o


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GERMER, Christopher K.; SIEGEL, Ronald D.; FULTON, Paul R. Mindfulness e psicoterapia. 2.
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171
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 11
DO ÚTERO DE PEDRA AO (RE)NASCIMENTO NA
PSICOTERAPIA

Giovanna Loubet Ávila


Rosalice Lopes

“Do escuro eu via um infinito sem presente


Passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim”
(Frejat)

Introdução

O Estágio Supervisionado em Psicoterapia Psicanalítica I e II — Clí-


nica das Vulnerabilidades com crianças e/ou adolescentes — foi uma das
alternativas oferecidas ao longo de 2019 no Curso de Psicologia da UFGD. As
psicoterapias com crianças, de modo geral, têm no instrumental lúdico sua
principal âncora de aproximação com a realidade vivida pelos pacientes. No
entanto, divergem na perspectiva epistemológica de leitura dos fenômenos
observados, sendo que, numa psicoterapia psicanalítica, entende-se que
as falas, os jogos e as interações presentes em cada atendimento serão,
também, manifestações do mundo inconsciente do paciente que revelam
possíveis causas de suas angústias, medos, ansiedades, assim como as
dificuldades apresentadas na vida cotidiana.

172
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O presente capítulo faz registro do acompanhamento psicológico


de Carlos1, criança que à época do atendimento tinha 6 anos e envolveu a
realização inicial de entrevistas com finalidade psicodiagnóstica e, posterior-
mente, sessões de ludoterapia. Os atendimentos ocorreram no Laboratório
Serviço de Psicologia Aplicada — LabSPA —, a partir da solicitação de aten-
dimento psicológico realizada por Daniel, preocupado com os medos e os
possíveis traumas de seu filho, segundo ele, possivelmente desencadeados
pelo histórico de violência que a criança teria vivido quando residia com sua
mãe Juliana.
O processo psicoterápico compôs-se, na fase diagnóstica, de quatro
entrevistas abertas e dirigidas com Daniel (pai do paciente), uma com Mada-
lena (avó paterna), e 4 sessões com Carlos. Finalizada esta etapa, foi iniciado
o processo psicoterapêutico com a criança, com sessões semanais de 60
minutos, de abril a dezembro de 2019, orientação bimensal com pai e uma
única entrevista com a mãe.
A queixa que mobilizou a busca do atendimento psicológico rela-
cionava-se ao fato de Carlos apresentar, dos três aos cinco anos de idade
escapes fecais, ainda presentes à época do início do atendimento, exposição
a episódios de agressão verbal, humilhações e violência física por parte de
sua mãe, a qual produzia respostas violentas à capacidade limitada de con-
trole esfincteriano de Carlos. Além disso, a criança apresentava comporta-
mentos de medo de “[...] perder” o pai, em momentos que esse precisava se
ausentar por questões cotidianas, choros ao ser deixado na escola, posturas
não responsivas — caia ao chão, ficava paralisado e apático — dentre outras
manifestações que preocupavam seu genitor.

1  Todos dos nomes do texto são fictícios e todos os cuidados éticos foram tomados com relação à preserva-
ção da identidade dos participantes que assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido — TCLE — e
Termo de Assentimento — TA —, sendo que os responsáveis autorizaram a publicação dos dados, desde que
não identificados, conforme estamos procedendo.

173
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A história de Carlos contada pelos seus responsáveis e pela mãe

Juliana, com 31 anos, deu à luz a Carlos, seu segundo filho, fruto de
um casamento com Daniel, 35 anos. Embora não se tratasse de uma gesta-
ção planejada, foi um acontecimento bem acolhido2 pelo casal que, segundo
Daniel, não cogitou a hipótese de um aborto. O parto cesariano foi rápido e de
emergência em decorrência de a criança estar bradicárdica e da ausência
de contrações uterinas indicando, segundo o pai, que tava passando da hora
dele nascer.
A criança passou sua primeira semana de vida internado no HU da
UFGD com infecção urinária e quadro de sangramento fecal decorrente do
déficit de vitamina K em seu organismo, o que não favoreceu o desenvol-
vimento adequado de seu fígado e contribuiu para o decréscimo de suas
defesas imunológicas. O desmame de Carlos se deu no sexto mês de vida,
em consequência da ausência de produção de leite pela mãe, embora tives-
sem adotado a ingestão de prolactina.
Carlos continuou a ter dificuldades para evacuar nos anos seguintes.
Com um ano de idade, chegou a passar duas semanas completas sem
defecar, a barriga estufada e sem conseguir se alimentar; passou por pro-
cedimentos cirúrgicos, nos quais o material fecal era quebrado e retirado
sob o efeito de anestesia geral. Por volta de um ano e meio, apresentou
quadro anêmico em decorrência do problema intestinal e sem diagnóstico
preciso àquela época. Aos dois anos recebeu o diagnóstico de megacólon
congênito, ou doença de Hirschsprung, uma condição clínica rara que con-
siste na ausência de gânglios submucosos no intestino grosso, culminando
na obstrução do trânsito intestinal, dadas às alterações da movimentação e
do tônus muscular.
Em 2016, com três anos de idade, Carlos foi submetido a uma cirurgia
para a retirada de quinze centímetros do intestino e, a partir disso, começou
a apresentar escapes fecais e sujar as próprias roupas. Segundo relato do

2  Os conteúdos apresentados em itálico a partir deste ponto do texto serão referentes a falas dos partici-
pantes do processo de atendimento.

174
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

pai, o controle do esfíncter da criança apenas melhoraria quando ele tiver uns
nove, dez anos, segundo o médico.
O pai ressaltou, contudo, que os episódios nos quais Carlos sujava a
cueca eram seguidos de profunda irritação de Juliana, que respondia agres-
sivamente a esses eventos. O pai, durante as entrevistas diagnósticas, fez
questão de apresentar gravação audiovisual — aparentemente produzida
sem que a mãe soubesse — na qual ela dirigia humilhações à criança, que
tinha então apenas três anos, chamando-o de safado, cagão, fedido e dizen-
do que iria esfregar merda na cara dele. Além disso, mandava, aos gritos, que
ele repetisse três vezes consecutivas ‘eu não vou mais fazer cocô na calça’. À
escuta da gravação, foi possível ouvir o som estalado de tapas e o choro da
criança enquanto esforçava-se para repetir o que a mãe solicitava, enquanto
ela, em tom agressivo aos gritos, complementava que iria socá-lo na parede.
Daniel relata que permaneceu casado a fim de juntar provas contra
Juliana e solicitar judicialmente a guarda do filho e o divórcio. Feito isso,
saiu de casa, buscou o Conselho Tutelar e efetivou a separação. Após a se-
paração, embora Juliana buscasse oficialmente obter a guarda do filho, seu
comportamento era de falta de interesse e de compromisso, fato também
mencionado pela avó, expresso por atrasos ou ausências nos dias agen-
dados para suas visitas ou ainda pela aparente incapacidade de planejar
atividades com a criança. Além disso, fez referência ao fato de que Daniel
não gostava da mãe e quando aconteciam as visitas tinha dificuldade de
ficar em sua companhia, preferindo permanecer com o pai. Nessa direção,
comenta que o irmão de Carlos, com o qual não convivia, pois morava em
outra cidade com a família paterna, também teria dificuldades afetivas
com Juliana.
Daniel, ao descrever o filho, afirma que ele era carinhoso e que
se relacionava bem com outras crianças, apesar de que era competitivo
e autoritário nas brincadeiras infantis e com adultos de forma geral. O
pai produzia medidas educativas por meio do diálogo e conta que con-
versava com ele, falo que não pode, contudo, relatou que em algumas
situações ultrapassava essa opção e dava umas chineladas nele, quando
ele não quer obedecer.

175
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Para Madalena, avó paterna de Carlos, ele era um garoto doce, ca-
rinhoso, e muito carente e que, apesar de tudo que ele passou, ele é feliz e
que entre os dois existia muito apego. Entretanto, preocupava-se diante da
frequente necessidade de Carlos de expressar e receber afeto, contando
que ele diz “eu te amo” vovó cinco, seis vezes seguidas, se encolhe e pede para
ser abraçado enquanto assistiam à televisão e quando estavam na cama
antes de dormir. Para ela, a dificuldade do neto pra fazer qualquer coisa que
não seja no grito devia-se ao fato do inconsciente dele quer ouvir o grito por-
que ele foi muito exposto a isso já. Preocupava-se de forma recorrente com
a possibilidade dele ter algum trauma por tudo que passou. Com relação à
Juliana, embora tenha admitido que não sentisse ódio por ela, afirma que é
digna de desprezo.
As informações relacionadas à escolarização de Carlos também
foram obtidas junto ao pai. À época do acompanhamento psicológico, ele
estava no primeiro ano em um colégio público. Segundo Daniel, a criança
apresentava dificuldades com a escrita, atenção e organização, e foi visível
uma regressão ao longo do processo de divórcio, culminando com uma
reprovação em 2018.
Os dados obtidos em entrevista com Juliana contrastam com in-
formações anteriores, uma vez que a mãe do paciente enfatizou, de modo
contundente, que o filho nunca teve medo dela. Em suas falas, afirma que
o pai poderia ter dito ao contrário, mas que não existe isso de um filho não
querer ficar com a mãe, alegando que a criança sofria por ser proibida de
vê-la. Juliana relatou ainda que Daniel não é uma pessoa confiável porque
você sabe que ele usa droga né, ou isso ele não te falou? Ele usa crack, eu
acho. As falas da mãe de Carlos foram contundentemente críticas quanto à
conduta de Daniel que, segundo ela, fica indo lá em casa querendo conversar
e pedindo pra voltar, mesmo tendo, à época do acompanhamento, um rela-
cionamento estável com outra mulher.

176
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Dados obtidos nos atendimentos com a criança

Os atendimentos com Carlos aconteceram todos na sala de ludo-


terapia do LabSPA, espaço adequado e com recursos suficientes para o
desenvolvimento dos atendimentos. Muitos de seus equipamentos — espe-
cialmente a “casinha de bonecas” —, materiais da caixa lúdica com destaque
às espadas (2) e a caixa de guarda de materiais de apoio, na qual seu corpo
cabia integralmente, foram decisivos ao processo psicoterápico.
No primeiro atendimento com a criança, a estagiária à época não
apenas se apresentou, mas diante do desconhecimento de Carlos do por-
que estava ali explicou-lhe que o papai estava preocupado com ele e com a
relação dele com a mamãe, e também que os encontros eram um momento
para conversarem e brincarem juntos, que ele poderia dizer o que desejasse e
aquilo que eles conversassem não seria contado para ninguém, nem para o
papai se ele não quisesse. Nas primeiras sessões, manteve-se resistente na
interação com os brinquedos, com resistência a permanecer em qualquer
uma das brincadeiras propostas e demonstrando aparente ansiedade na
transição entre elas.
Ao longo das sessões, no entanto, Carlos começou a demonstrar,
aos poucos, preferências por brincadeiras específicas como a fuga de inimi-
gos ou fenômenos naturais, dos quais buscou se manter protegido na casa
de bonecas da brinquedoteca ou, de modo análogo, protegia pequenos
bonecos dentro da casinha de madeira que compunha o material lúdico
coletivo. Entrar na caixa organizadora de corpo inteiro também fez parte de
jogos frequentemente propostos pelo paciente.
O menino manteve constante contato com as espadas de sua caixa
lúdica, mas foram necessárias muitas sessões para que os investimentos
heteroagressivos surgissem em suas brincadeiras. Foi na décima sessão,
posterior às férias, que Carlos demonstrou, pela primeira vez, intensa agressi-
vidade em suas dinâmicas com a bola, a espada e movimentos relacionados
ao seu desejo de destruir brinquedos. Os jogos permitiram ainda identificar
as dificuldades da criança quanto ao cumprimento de regras nas situações

177
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

que envolvessem perda e/ou derrota, evidenciando seu baixo limiar de


tolerância diante de frustrações.

Análise do caso

Um primeiro aspecto a ser considerado na análise deste caso refere-


-se às descrições dos responsáveis, Daniel e Madalena, e Juliana sobre Car-
los. Daniel descreveu seu filho a partir de duas referências de algum modo
instigantes. A primeira descreve o filho como sendo agressivo — o que talvez
expressasse seu desejo por um filho, a partir das concepções socialmente
predominantes sobre masculinidade —, a segunda, embora não expressa
em palavras, informava sobre certa passividade do menino, ou o desejo do
filho, diante de algumas situações tal como aquela em que precisou amea-
çar Carlos dizendo que ele ia apanhar se o garoto não se defendesse de uma
criança que o agrediu fisicamente num parquinho, violência à qual o paciente
respondeu com abraços. Estas descrições nos apresentam o conflito do pai
diante do não saber sobre seu filho, ou seja, um filho inscrito em seu desejo
versus o filho real e desejante que, de modo inadequado, talvez abrace a
agressão como expressão de seu desejo inconsciente de reparar, quando
agredido, a culpa pelo dano de mobilizar na mãe suas atitudes agressivas
(KLEIN, 1991).
Já a avó paterna do paciente apresentou os contornos de uma rela-
ção de amor e apego com o neto. O emprego recorrente do termo ‘apego’
pela avó, na repetição, sugeriu a necessidade de elucidá-lo. Apego deriva do
latim picare, por sua vez, associado a pegar, agarrar, ter em si, trazer consigo.
Se a ênfase pode ser sugestiva de um excesso — ainda que não seja possí-
vel qualificá-lo — de dispêndio libidinal e, compreendendo o excesso como
uma possível (resposta) busca sintomática com a finalidade de atenuar os
derivantes do vazio instaurado pela falta ou pela ausência, tornou-se rele-
vante hipotetizar que Madalena talvez tenha buscado (alimentar e) atender
a demanda afetiva de Carlos a fim de subtrair de sua experiência psíquica

178
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

suas próprias angústias e culpas provindas de sentimentos destrutivos em


relação à criança.
Recordemos que, quando Madalena afirma não querer ficar com o
Carlos, pois o filho tem que ser criado pela mãe, contrapõe seu desejo explícito
e repetitivo na fala de querer estar sempre perto do neto. De modo comple-
mentar evidencia o mecanismo de denegação, conceituado por Freud (1925
apud FURTADO, 2011) como sendo aquele de ocultar a realidade de uma
afirmação por meio de uma negativa, quando afirma que não é que a gente
não ame o Carlos e não queira ficar com ele para explicar e justificar seus
afetos e intenções, pouco conscientes e elaborados na relação com seu
neto. Estes seus afetos paradoxais também surgiram de modo interessante
ao longo do processo terapêutico, no qual as faltas registradas por Carlos
nos atendimentos deram-se nas vezes em que a avó teria que levá-lo, su-
gerindo que, de algum modo, a relação da criança com a estagiária também
a ameaçava.
Essa negativa pode ser uma expressão defensiva da avó contra a
possível culpa pelo sentimento de tirar um filho da mãe e a ambivalência
na relação com o neto. Não foi possível compreender quais desejos ou
sentimentos conformaram esse posicionamento discursivo, contudo pode
ser alcançada a compreensão de que eles precisam ser negados. Faz-se
necessário ressaltar que Madalena descreveu o seu sentimento por Juliana
como um desprezo e Carlos é parte de sua mãe, sendo essa mulher a mes-
ma que Daniel amou ao ponto de prolongar de modo tácito sua história com
ela por meio da vida de uma criança. Tirar o paciente da mãe talvez seja a
atuação de uma vingança narcísica de Madalena diante da ameaça ao seu
domínio quando Daniel se apaixonou por Juliana (FULGENCIO, 2019).
Daniel, por vezes, direcionou a Madalena um papel materno, dizen-
do que Carlos a via como uma mãe, desde antes do divórcio. A partir disso
tornou-se importante o questionamento das possíveis implicações desse
casamento entre pai e avó para a constituição personalística e o desenvolvi-
mento afetivo do paciente frente à dimensão de suas relações atuais (prin-
cipalmente com a mãe) e futuras. Dada a dinâmica relacional apresentada
entre Daniel e sua mãe, foi possível observá-lo como alguém que tenta se

179
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

mostrar independente e negar seu domínio, sem romper com o exercício de


seu poder materno (talvez por se sentir seguro dentro desse domínio), e ela
como a figura que exerce sua dominação sob os direitos do afeto, do amor
e das boas intenções. Pode-se supor que talvez existam elementos cíclicos
produzidos pela/na triangulação entre Madalena, Daniel e Carlos que man-
tenham, ainda que não estruturalmente, a função dominante e destrutiva
(deslocada e sublimada) exercida pela mãe do paciente.
O fato de Daniel ter se envolvido e casado com Juliana, uma mulher
supostamente controladora e abusiva, que lança mão de humilhações e
agressões no convívio íntimo, pode indicar seu aprendizado relacional pri-
mário. Zimerman (2010) considera que a sedução patogênica exercida nas
relações primárias por um dos pais, que invariavelmente resulta em um filho
adulto sedento por amor, leva, por vezes, à busca por uma figura amorosa
que tenha traços semelhantes ao do progenitor dominante. Todas essas
considerações acerca de dinâmicas inconscientes que configuravam um
complexo familiar no qual o paciente expressava também, e dentro de suas
possibilidades, seus conflitos. A compreensão destes aspectos favoreceu a
abordagem junto a Carlos e permitiu, ainda que de modo sutil, indicar ao pai
a necessidade de que ele pudesse também olhar para aquilo que, em sendo
dele e de sua mãe, influenciavam, na relação do filho com sua própria mãe.
A aproximação do mundo interno de Carlos aconteceu de modo
lento. Desde as primeiras sessões ele demonstrava sua frágil capacidade de
articular o novo, ou seja, a relação com uma pessoa desconhecida que se
apresentava com disposição de estar com ele e ajudá-lo na compreensão
de suas dificuldades, nem sempre expressas por palavras de um discurso
inteligível. Brincar era um desafio importante. Mantinha-se resistente a dar
continuidade a uma mesma atividade, seu interesse era mudar de brinca-
deira e não se deter em uma delas. Irritava-se com frequência nos jogos
de disputa, especialmente quando perdia. Propunha novas rodadas para as
quais se preparava rápida e ansiosamente e dispensava artifícios e trapaças
para que pudesse ganhar e encerrar definitivamente o jogo.
Se, como afirmava Melanie Klein (apud FULGENCIO, 2008), o brincar
é uma expressão do mundo interno da criança, sendo a brincadeira o modo

180
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de manifestação das fantasias inconscientes infantis, a interpretação analí-


tica dos conteúdos presentes no brincar é, por sua vez, correspondente à
interpretação dessas fantasias, por exemplo, diante de perdas vivenciadas e
que podem ser entendidas como uma espécie de terror a ser evitado. Neste
caso, para Carlos, perder é ruim, é muito ruim e as falas eu não posso fazer
nada, brincar... nada, podem ser entendidas como uma expressão do vazio,
ou da ausência (objetal e de capacidade elaborativa/simbolizante) à qual era
remetido diante da perda. Não se vincular às brincadeiras é um movimento
defensivo decorrente de uma economia psíquica estabelecida pela criança,
pois evitar vinculação afasta a possibilidade de perder.
Neste sentido Freud (1905/1972, p. 125-126 apud COELHO, 2001)
admite que “Existem, portanto, boas razões para que o ato de uma criança
sugar o seio da mãe se torne o protótipo para toda relação de amor. En-
contrar um objeto (die Objektfindung) é na realidade reencontrá-lo”. Para
que Carlos pudesse efetivamente reencontrar objetos-brincadeiras ou
encontrar objeto-estagiária, precisaria de algum modo poder perdê-los,
mesmo que temporariamente.
É possível ampliar a compreensão deste conflito apresentado por
Carlos quando admitimos que ele evita se deter em objetos lúdicos porque,
em sua experiência primária, o seu objeto de amor (mãe), quando presente,
lhe causava terror e, quando foi perdido, sua ausência produziu uma falta do-
lorosa afetiva e simbólica, uma vez que a maternagem é, segundo Waddell
(2017), a função que produz e estimula a capacidade simbólica e elaborativa
do sujeito desde os primeiros estágios do desenvolvimento.
As brincadeiras preferidas do paciente envolviam principalmente
a casa de plástico da brinquedoteca e as espadas, além de um claro in-
teresse pelos itens relacionados às comidas, portanto, itens associados ao
acolhimento e nutrição, mas também à destrutividade. Cozinhar para si, para
a estagiária psicoterapeuta e para os bonecos, conversava diretamente com
a fome de afetos e segurança que supria por conta própria, haja vista que o
terreno relacional com a mãe era marcado por tensões e terrores relativos à
experiência concreta e simbólica de violência.

181
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Expressar gestos agressivos, mesmo em brincadeiras que exigiam


isso, como as lutas de espadas, o jogo de dardos, corridas, dentre outros,
foi algo complexo. A espada, talvez o mais contundente objeto a ser utiliza-
do por ele como arma de combate, teve papel secundário durante algum
tempo. Antes de utilizá-la de modo direto, as brincadeiras em espaços onde
estivesse contido — casa de bonecas, caixa organizadora — eram as opções
mais escolhidas e, de modo repetitivo, para expressar sua agressividade por
meio de eventos destrutivos e violentos, tempestades, terremotos e tornados
que faziam tremer as estruturas e ameaçar o abrigo-mãe de destruição.
Freud (1980, p. 196), no texto Recordar, Repetir e Elaborar, afirma que
“o paciente não recorda3 coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas
expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança,
mas como ação; repete-o, sem, naturalmente, saber o que está repetindo”.
Repetir a brincadeira na caixa organizadora relacionava-se a uma possível
conexão inconsciente com o espaço-caixa-barriga da mãe durante período
que antecedeu seu nascimento. Importante registrar que sua opção de per-
manecer dentro da caixa, e que ela estivesse bem fechadinha, foi associada a
uma imago inconsciente de sua experiência na barriga da mamãe, expressão
usada pela estagiária a qual ele admitiu conscientemente que sim! Repetir
esta brincadeira permitia que ele entrasse em contato com seus sentimentos
recalcados, reprimidos e esquecidos, mas presentes em seu mundo interno
por meio das marcas mnêmicas. Para Zavaroni et al. (2007), “o infantil também
se refere às sensações que ficam gravadas no psiquismo nos primórdios da
constituição psíquica. Os sons, os cheiros, as sensações táteis compõem as
marcas mnêmicas primordiais e estende-se para além delas”.
Em uma das sessões, Carlos alegou ter sido machucado pela caixa-
-mãe. A identificação da caixa como algo que machucou o paciente sugere
o deslocamento, para a materialidade presente, da mãe-caixa real que o
machucou, que apertou e bateu, produzindo uma experiência de angústia e
terror, até aquele momento não nomeados. Winnicott (1975) ressaltou que o
“terapeuta busca a comunicação da criança e sabe que geralmente ela não
possui um domínio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas

3  O uso do itálico aqui é do autor mencionado.

182
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

que podem ser encontradas na brincadeira”, e que ao fazê-lo permite que a


criança possa simbolizar experiências dolorosas. Na mesma sessão e ainda
dentro da caixa organizadora, Carlos descreveu o ambiente em que estava,
em posição fetal, como escuro, duro, frio e disse que nunca vou conseguir
sair daqui. Posteriormente, na continuidade do atendimento, a criança fez a
constatação de que sua espada era mágica, mas só cortava madeira e que a
espada da estagiária era a única que corta tudo, corta até pedra, de forma a
permitir sua saída de dentro do útero-pedra.
Na semana seguinte Carlos tornou a brincar com a caixa organiza-
dora, mas de modo distinto: ele pedia à estagiária abre a caixa que eu vou
sair e gritava com um sorriso quando a tampa era retirada: Surpresa! Esse
movimento foi repetido por algumas vezes até a estagiária perguntar se era
da barriga da mamãe que ele estava saindo e o paciente gritar afirmativa-
mente que sim!
Outro tema relevante no acompanhamento psicoterápico de Carlos
refere-se às suas elaborações relacionadas à sexualidade. Ao lado das
brincadeiras relacionadas aos tornados, que eram sentidos como um evento
grandioso, surgiram dois outros objetos o túnel onde ele jogava os bonecos
durante o tornado e a cama da mãe, onde os bonecos ficavam enquanto o
tornado acontecia e que estiveram presentes em outras brincadeiras repeti-
tivas do paciente. De uma perspectiva psicanalítica, é possível compreender
que o túnel-proteção durante o tornado fosse uma associação ao canal va-
ginal pelo qual passam os bebês durante o nascimento, mas em uma dada
sessão uma elaboração surge de modo mais complexo (KLEIN, 1982).
Naquele dia, dois momentos marcaram a brincadeira de Carlos: no
primeiro o túnel protegia os bonecos do tornado, como em outras sessões,
mas no segundo, aparece algo novo, o tornado ocorria dentro do túnel. Na
narrativa da criança o tornado vai destruir e você vai morrer, filha. Carlos,
aparentemente curioso, jogou a filha dentro do tornado, enquanto esse
acontecia dentro do túnel, com a colocação de que ela queria ver o tornado.
Em determinado momento da brincadeira, o paciente jogou a cama da mãe
dentro do tornado que se formava no interior do túnel.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O túnel pode estar associado a diferentes significantes. Uma delas é


de que expressa uma relação sexual, de alguma forma, imaginada ou pre-
senciada por Carlos. Outra estaria associada à vagina da mãe e aqui, o torna-
do-falo — que nesta sessão tinha 40 km — torna-se a expressão da relação
sexual com uma figura masculina que penetra o túnel-vagina, diante do qual
surge o terror do paciente associado ao risco de vida em seu nascimento
problemático. A relação entre o túnel e o tornado, enquanto elementos
derivados do momento edípico, ainda poderiam estar relacionados à culpa,
à inveja e suas angústias diante de seus desejos destrutivos (KLEIN, 1982;
RUDGE, 2006).
Talvez não só uma curiosidade sexual surja em um garoto de seis
anos, ao final da fase fálica, que adorava penetrar com sua espada de plásti-
co (espaços, janelas, portas, caixas, dentre outros), mas também sentimentos
edípicos, conforme postulado por Freud (2007) de culpa, raiva, frustração,
ciúme, desejo de aniquilação e medo da castração, os quais invariavelmente
produzem angústias para além do medo de um Carlos-bebê lançado às
angústias persecutórias que irrompem diante da fantasia de ser engolido
por um tornado simbolizante da relação sexual (NASIO, 2007).
É importante destacar que, no início desta sessão, Carlos verbalizou
que era grande, mas ao final pediu que sua altura fosse medida e perguntou
qual era o seu tamanho. Pensamos ser possível admitir que o paciente che-
gou à sessão em um estado mental defensivo, negou suas fragilidades ao
afirmar que era grande e, posteriormente, expressou seu desejo de destruir
a casa de bonecas (talvez como um adulto possa, sob o símbolo de um
tornado, “destruir” a mãe). Ao pedir que a estagiária medisse seu tamanho, ao
final, sugere alguma elaboração ocorrida ao longo do tempo da psicoterapia
e externalizada como um desfecho nesta sessão (KLEIN, 1946).
Por fim, resta abordar as constantes brincadeiras associadas à fuga
de monstros, de fuga e de desmoronamento, sugerindo aspectos paranoicos
relacionados às suas vivências anteriores. Os monstros que movimentaram
seu desejo de fugir para o interior da casa de bonecas podem ser interpre-
tados como expressões do caráter persecutório presente em seu mundo
interno, marcado por experiências de violência concreta por parte da mãe. Já

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

o desmoronar da casinha talvez representasse a ameaça de ruptura daquilo


que não pode ser mantido como integrado diante da angústia persecutória
derivada da pulsão de morte (KLEIN, 1991; FREUD, 1996b).
Nos últimos atendimentos de sua psicoterapia, Carlos manifestou
extrema angústia diante de uma pergunta sobre a morte e sobre o fato
dele vir a morrer. A estagiária, de modo distinto do que a avó e a professora
afirmaram — de que ele nunca iria morrer — disse a ele que sim, como todos
ele iria morrer. Ele em seguida perguntou se iria morrer bem velhinho com 100
anos, ao que a estagiária disse que não tinha como a gente saber. Ele chorou,
ficou ansioso e, embora não fosse de manter interações físicas, buscou
proximidade com a estagiária, que o abraçou. Na sequência ele quis saber
por que mentiram para ele, ao que a estagiária respondeu que às vezes os
adultos não sabem como dizer algumas coisas para as crianças, porque são
coisas que também deixam os adultos tristes. Ele, por fim, se acalmou um
pouco mais e, na saída da sessão, ao encontrar o pai o abraçou e disse que
tinha medo de morrer. Ainda permaneceram os três por algum tempo na por-
taria, acolhendo a dor e angústia de Carlos, diante da qual o pai manifestou
com muita clareza seu amor pela criança, acolhendo-a de modo afetuoso
ao dizer que ele não iria morrer agora não, que ele iria cuidar dele.
Para Werle (2003, p. 110), a morte possui uma conotação negativa
quando é compreendida, a partir de um sentido vulgar, como o fim da vida
física. Contudo, o autor ressaltou que há positividade na morte, desde que o
sujeito esteja pronto para assumir o “ser-para-a-morte”, ou seja, considerar
o morrer como um fenômeno inerente à existência, o que difere de tomar a
morte estritamente como o término existencial. A morte só é dotada de sen-
tido para os que ainda estão vivos e pode ser indiretamente experimentada
naquele que morre e, de alguma forma, vemos morrer.
Segundo o relato de Daniel, Carlos não pôde experimentar a morte
diretamente, pois não teve contato com esse fenômeno, nem por vivência,
nem por explicações claras e honestas acerca do evento. Entretanto, foi
possível perceber que o morrer era uma conjugação em movimento na
constituição psíquica inconsciente de Carlos e que se manifestou como um
grande pavor nas sessões finais, uma vez que o fim da vida se trata de uma

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

certeza humana, e que, nesse caso, foi tratado, contudo, como uma espécie
de segredo que, por não ser nomeado, saltou aos olhos do garoto como um
fantasma ao sair das sombras em um pesadelo feito, predominantemente,
de realidades.
O medo de Carlos diante de uma possibilidade de aniquilação se
estabeleceu, possivelmente, após tantas sessões de psicoterapia, porque o
paciente se permitiu finalmente olhar para suas angústias e encará-las no pro-
cesso terapêutico, e isso só foi possível por meio do vínculo e da confiança que
puderam ser estabelecidos entre Carlos e a estagiária durante os atendimentos.

Conclusão

Ao longo do processo psicoterapêutico, foi possível a Carlos elaborar


os conflitos que paralisavam seu desenvolvimento saudável. Para uma crian-
ça tão pequena, ele já havia vivenciado violências importantes e sofrido por e
em relações sem recursos elaborativos. O modelo empregado possibilitou à
criança expressar suas angústias, a escuta atenta e honesta o colocou diante
de suas dores e favoreceu a integração de muitos aspectos antes dissocia-
dos e produtores de experiências fantasmáticas, diante das quais não tinha
recursos de enfrentamento. Poder falar, brincar, representar e, sobretudo, ser
acolhido permitiu que ele pudesse estar, novamente, como alguém de seu
tempo, ainda tão fresco diante de suas possibilidades de vida.
Importante registrar que ele deixou de sujar a cueca, retomou suas
atividades escolares, ampliou sua qualidade discursiva, mas, como um fato
mais relevante, pôde, novamente, aproximar-se de sua mãe, inclusive solici-
tando que o pai o levasse à casa dela. Esta reaproximação foi um movimento
importante para Carlos, que sentia a experiência originária com sua mãe
assemelhada ao útero de pedra, mas por meio do processo analítico pôde
estabelecer importantes conexões entre seus muitos significantes de amor
e ódio por ela e integrá-los numa mãe possível de amá-lo à sua maneira e
passível de seu amor de filho. Um belo renascimento.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Diante dos resultados atingidos com este atendimento, é importante


destacar o valor da abordagem psicanalítica no atendimento de crianças que
viveram experiências de marcada vulnerabilidade física e psíquica a partir da
atenção e da escuta que se voltam não apenas ao que é explicitado imedia-
tamente nas sessões, mas que numa cadeia de significantes busca recuperar
sentidos ocultados, esquecidos e negados, favorecendo o acolhimento e a
elaboração psíquica das crianças em situações de profundo sofrimento.

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Capítulo 12
UM OLHAR PARA O CONTEXTO:
especificidade do cuidado em Terapia Familiar Sistêmica

Carolina de Campos Borges


Daiany Penzo
Tamiris Imai

A formação em Psicologia propicia aos estudantes conhecer dife-


rentes concepções de cuidado em saúde mental estabelecidas a partir dos
vários enfoques teóricos que embasam as práticas interventivas neste campo
de atuação. Calcados em distintos pressupostos epistemológicos, os diversos
constructos teórico-metodológicos tornam legítima a constituição de olhares
plurais na abordagem das demandas que chegam à clínica de Psicologia.
Este artigo trata da noção de cuidado produzida por meio do olhar
contextual, o qual subsidia as intervenções familiares, referência esta que
pode ser considerada uma das mais importantes contribuições do estágio
em Terapia Familiar Sistêmica para a formação do psicólogo clínico. O texto
está dividido em duas partes. Na primeira, apresentamos uma revisão teórica
dos preceitos da teoria sistêmica que concebem a contextualização como
processo fundamental para a compreensão dos fenômenos. Na segunda, ex-
pomos um caso clínico de intervenção familiar realizada no ano de 2017 como
atividade do Estágio em Terapia Familiar (Ênfase Clínica) para ilustrar como se
articulam o olhar contextual e esta forma de cuidado em saúde mental.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

“Contexto” na visão sistêmica

Paradigmas, conforme Morin, são:

princípios supralógicos de organização do pensamento, princí-


pios ocultos que governam nossa visão de mundo, que contro-
lam a lógica de nossos discursos, que comandam nossa seleção
de dados significativos e nossa recusa dos não significativos,
sem que tenhamos consciência disso (MORIN, 1990, p. 15).

Um paradigma nos permite filtrar informações e compreender o


mundo de uma certa maneira, mas, com isso, também promove uma forma
de “cegueira” concernente aos outros elementos que acabaram sendo des-
cartados na leitura de um fenômeno. Afinal, as verdades construídas dentro
de um paradigma se produzem pela exclusão de outras possibilidades de
entendimento de um acontecimento. Então, de acordo com Capra (1996),
um paradigma inevitavelmente produz a “doença fatal de certeza”, que se
refere justamente a esta dificuldade de se conceber a possibilidade de se
ver o mundo fora dos parâmetros do paradigma adotado.
O paradigma sistêmico nasceu de questionamentos advindos de
diferentes campos do conhecimento, como biologia, física e química, a res-
peito dos limites que um outro paradigma da ciência impõe à compreensão
dos fenômenos. Esses questionamentos voltaram-se principalmente contra
o modelo científico que se constituiu com a chamada revolução científica,
no qual a ideia do universo como entidade orgânica, viva e espiritual foi
substituída pela metáfora de uma máquina cujo funcionamento deveria ser
compreendido por meio do método científico (CAPRA, 1996).
A influência de filósofos racionalistas, empiristas e positivistas foi
determinante no movimento de emersão de um pensamento científico
aos moldes do mecanicismo cartesiano, a exemplo de: René Descartes
(1596-1650) — criou o método do pensamento analítico, que consiste em
quebrar fenômenos complexos em pedaços a fim de compreender o com-
portamento do todo a partir das propriedades de suas partes; Galileu Galilei
(1594-1642) — fundiu o racionalismo (a razão é a mais importante fonte de
conhecimento) e o empirismo (a experiência é a mais importante fonte de

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

conhecimento) e estabeleceu o método científico como sendo composto


pelas etapas de observação, geração de hipóteses, experimentação, men-
suração, análise e conclusão, preconizando a restrição da ciência ao estudo
dos fenômenos que podiam ser medidos e quantificados; Bacon (1561-1626)
— considerava que o conhecimento em si não possuía nenhum valor, mas
apenas os resultados práticos que dele adviessem, sendo, portanto, o princí-
pio de todo conhecimento, a observação da natureza, observação esta livre
de certos preconceitos; e Comte (1798-1857) — filósofo positivista segundo o
qual a natureza seria composta por fenômenos ordenados de forma imutá-
vel e inexorável, cabendo à ciência observá-la e descrevê-la. Além deles, o
matemático e físico Newton (1643-1727) corroborou para difundir um espírito
filosófico de ciência no qual a máquina seria a metáfora dominante da era
moderna e para constituir o paradigma mecanicista para a compreensão do
funcionamento do universo (APPOLINÁRIO, 2015).
Constituiu-se, assim, o que Vasconcellos (2009) denomina Paradig-
ma Tradicional da Ciência, também chamado Paradigma da Simplicidade.
Segundo a autora, este paradigma se baseia nos pressupostos da simplici-
dade, estabilidade e objetividade. O pressuposto da simplicidade consiste
na crença de que, separando o mundo complexo em partes, encontram-se
elementos simples. Reside aí a ideia de que é preciso separar as partes para
compreender o todo. Simplificação, análise, redução, compartimentalização
do saber, fragmentação do conhecimento em disciplinas, causalidade linear
são desdobramentos desse pressuposto. O segundo pressuposto, o pres-
suposto da estabilidade, consiste na crença de que o mundo é estável, or-
denado por leis imutáveis, o que permite a explicabilidade, a previsibilidade
e a controlabilidade dos fenômenos do universo, sendo esses exatamente
o objetivo do conhecimento a ser alcançado por meio do método científico.
E o terceiro pressuposto é o da objetividade, que trata da crença na neutra-
lidade do observador, ou seja, de que é possível conhecer objetivamente o
mundo tal como ele é na realidade, considerando que o cientista observa
o mundo de uma perspectiva “de fora”, sem interferências mútuas entre
observador e observado.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Conhecimentos advindos de áreas como a biologia e a física quântica


desafiaram a suposição de que o mundo poderia ser compreendido a partir
de um modelo mecanicista. A ideia de decompor o mundo em unidades
elementares, que existem de maneira independente, para se compreender
o todo maior mostrou-se insustentável e a imagem de uma complexa teia de
relações entre as várias partes de um todo unificado emergiu como metáfo-
ra mais apropriada para representar a natureza. Isso abriu a possibilidade de
uma mudança de paradigma, do paradigma mecanicista para o ecológico,
na compreensão dos fenômenos (CAPRA, 1996).
Inaugurou-se, a partir disso, o que Vasconcellos (2009) denominou de
Novo Paradigma da Ciência, ou Paradigma da Complexidade. Ele se delineia
em oposição ao Paradigma Tradicional da Ciência e tem pressupostos que fa-
zem exata contraposição aos pressupostos acima apresentados: pressuposto
da complexidade, pressuposto da instabilidade e pressuposto da intersub-
jetividade. O pressuposto da complexidade diz respeito ao reconhecimento
de que a simplificação obscurece as inter-relações de fato existentes entre
todos os fenômenos, havendo portanto a necessidade de contextualização
dos fenômenos para sua compreensão; o pressuposto da instabilidade do
mundo consiste no reconhecimento de que o mundo está em processo
de tornar-se, havendo indeterminação, imprevisibilidade, irreversibilidade
e incontrolabilidade dos fenômenos; e o pressuposto da intersubjetividade
na constituição do conhecimento refere-se ao reconhecimento de que não
existe uma realidade independente do observador e que o conhecimento
científico é construção social, emerge em espaços consensuais formados por
diferentes sujeitos/observadores, de forma que a subjetividade não pode ser
desconsiderada na produção de um conhecimento.
O pensamento sistêmico se estabeleceu dentro do espírito do
Novo Paradigma da Ciência como uma nova visão de mundo em que se
ressalta a relação de todos os fenômenos dentro do contexto em que estão
inseridos. De acordo com a visão sistêmica, o termo sistema refere-se a um
todo integrado cujas propriedades “essenciais” surgem das relações entre
suas partes. Também as propriedades das partes de um sistema não são
propriedades intrínsecas, pois elas emergem de relações estabelecidas no

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

contexto mais amplo. Portanto, as propriedades de um organismo, ou siste-


ma vivo, são na verdade propriedades de um todo que nenhuma das partes
possui. Elas resultam do padrão de organização estabelecido no sistema,
o que só pode ser compreendido considerando o contexto, ou seja, o todo
maior (CAPRA, 1996; GOMES; BOLZE; BUENO; CREPALDI, 2014).
Com isso, verifica-se que as propriedades de um sistema são destru-
ídas quando ele é dissecado, física ou teoricamente, em elementos isolados,
o que conduz a um lamentável desprezo das conexões que há entre as
partes que compõem o todo. Embora possamos discernir partes individuais
em qualquer sistema, essas partes não são isoladas e a natureza do todo é
sempre diferente da mera soma de suas partes (CAPRA, 1996).
Sendo assim, entender os fenômenos sistemicamente significa, li-
teralmente, colocá-los dentro de um contexto, estabelecer a natureza de
suas relações. O pensamento sistêmico é “contextual” e oposto ao pen-
samento analítico. Ele nos convida a pensar em termos de conexidade,
de relações e de contexto, e justamente por isso inspirou psicoterapeutas
de todo o mundo na formação do campo de estudo e de atuação da
Terapia Familiar Sistêmica.
Ver a família como sistema significa, acima de tudo, entender cada
indivíduo como imerso e indissociável nesta rede de relações; e um “sin-
toma”, um comportamento ou uma narrativa como produto das inter-rela-
ções. Afirma-se que uma família não equivale à soma dos indivíduos que
a compõem, pois são as inter-relações estabelecidas entre seus membros
que propiciam a emersão das características individuais, as quais remetem à
organização do sistema como um todo.
Desta forma, como discutem Aun, Vasconcellos e Coelho (2006),
enquanto o paradigma tradicional nos ensina a compreender famílias, se-
parando o todo em partes e localizando o problema em uma delas — o que
muitas vezes legitima o encaminhamento para uma psicoterapia individual
—, o paradigma sistêmico nos convida a olhar para o contexto e compre-
ender as relações que conectam as partes na família — o que justifica o
encaminhamento para uma Terapia Familiar. Para ver as relações, não pode-
mos olhar separadamente os elementos do sistema. O exercício é ampliar

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o foco de observação e incluir todos os membros da família na explicação


de um problema, não mantendo a atenção em apenas um dos elementos
do sistema. Buscam-se os padrões relacionais e as histórias compartilhadas
que conectam os indivíduos da família.

Um caso clínico de terapia familiar

Nesta seção veremos como um olhar contextual se aplica ao


processo terapêutico da Terapia Familiar Sistêmica por meio de um caso
clínico. Utilizaremos nomes fictícios para preservar o anonimato das pes-
soas envolvidas.
A família em foco foi encaminhada para atendimento psicoterápico
na clínica de Psicologia de uma instituição de ensino superior em Dourados,
Mato Grosso do Sul. Composta por três membros — pai (Sérgio), mãe (Vânia)
e filho (Pedro) — ela buscou o serviço após o retorno do filho de uma clínica
de reabilitação onde permaneceu em tratamento durante seis meses de-
vido ao uso abusivo de substância química (cocaína). Trouxeram uma carta
de encaminhamento do médico que atendia Pedro em que era solicitado
atendimento em Terapia Familiar.
Foi feita uma entrevista inicial para compreender melhor os moti-
vos que levaram ao encaminhamento da família ao atendimento familiar,
ocasião em que se estabeleceram parâmetros para o início do processo
terapêutico. A queixa inicial foi, então, o abuso de substância química pelo
filho. A abordagem teórica que subsidiou os atendimentos foi a da terapia
familiar sistêmica, especialmente os embasamentos das escolas Estrutural e
de Milão (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). Foram realizadas ao todo dezesseis
sessões, sendo as seis primeiras com frequência semanal e as seguintes
com frequência quinzenal. Todas as sessões foram realizadas com a pre-
sença dos três membros da família e de três psicoterapeutas, sendo duas
estagiárias do curso de Psicologia e uma professora supervisora do estágio.
Durante o período em que ocorreram os atendimentos, Pedro — o
paciente identificado —, filho único, estava com 20 anos e residia com os pais

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Sérgio, de 54 anos, e Vânia, de 46 anos. Sérgio havia concluído dois cursos


de graduação, porém não atuava em nenhuma dessas áreas e sim como
comerciante na cidade em que reside. Pedro estava trabalhando na loja do
pai enquanto se preparava para prestar um novo vestibular. Vânia tinha curso
de graduação e pós-graduação e era funcionária pública.
Pedro relatou que, aos dezessete anos, mudou-se para uma cidade
grande, capital de um estado do Brasil, para fazer um curso de graduação
em uma Universidade. Segundo ele, os primeiros meses na nova cidade
foram “tranquilos”. Contudo, após algum tempo, começou a fazer uso de
cocaína. Pedro contou sua história de uso e abuso de substância química
e descreveu os momentos de transição entre os estágios da dependência
química que atravessou. Naquele período, seus pais pagavam suas contas
para que ele pudesse se dedicar inteiramente aos estudos. E, justamente
por isso, Vânia suspeitou que o filho estivesse passando por algum pro-
blema, pois se deparou com gastos exorbitantes na fatura de seu cartão, o
que motivou os pais a visitá-lo. Encontraram o apartamento do filho muito
desorganizado, um tanto sujo e sem estoque de comida, reforçando assim
suas suspeitas de que o filho estaria usando drogas. Tempos depois, já bus-
cando tratamento para a dependência química, Pedro passou a frequentar
os Narcóticos Anônimos (N.A.) e a fazer acompanhamento com psicólogo
individual e psiquiatra. Naquela ocasião, Vânia passou a frequentar o grupo
de apoio Amor Exigente. No entanto, em 2016 Pedro teve uma recaída e
o psiquiatra pediu sua internação. Quando recebeu alta, foi solicitado pelo
médico que a família fizesse terapia familiar.
Sobre a época em que o filho estava vivendo em outra cidade, Sér-
gio disse que se preocupava com o fato de Pedro morar em uma república
ou em um lugar com mais pessoas, pois achava que tal fato aumentaria os
riscos de que ele viesse a conhecer pessoas que trouxessem “más influ-
ências”. Ele preferia que o filho morasse sozinho, mas Pedro discordava do
argumento do pai, dizendo que tal medida não o impediria de frequentar
os mesmos lugares que “aquelas pessoas”. Pedro relatou que desejava ter
mais liberdade para sair e conhecer novos lugares, o que justamente fortale-
ceu sua escolha de cursar a faculdade em uma cidade distante da dos pais.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Então, de um lado estava o filho, ávido por se lançar no mundo e viver coisas
novas longe do controle dos pais. De outro, estava o pai, preocupado com o
distanciamento do filho do seu núcleo familiar.
Identificada a questão da busca por liberdade e independência
pelo jovem adulto, fizemos uma analogia entre aquilo que relatavam com
a imagem de filhos que “criam asas” e deixam a casa dos pais, articulando
essa situação ao momento do ciclo vital que a família atravessava: a fase
em que jovens solteiros saem de casa enquanto os pais lançam os filhos
para o mundo e seguem em frente. Trata-se, de acordo com Carter e Mc-
Goldrick (1995), de um momento da vida familiar em que todos os membros
da família precisam lidar com novos desafios: os filhos começam a ganhar
mais autonomia e precisam viver a diferenciação do eu em relação à família
de origem; ambos, pais e filhos, precisam desenvolver relacionamentos de
adulto para adulto, embora os pais ainda sejam esteio dos filhos.
Os momentos de transição de uma fase do ciclo vital para a seguinte
são especialmente propícios ao surgimento de sintomas, uma vez que eles
trazem para a família a necessidade de o sistema familiar reorganizar seus
padrões relacionais estabelecidos para se adaptar às novas demandas
que surgem no novo momento. Como afirmam Carter e McGoldrick (1995),
“muitas vezes, é necessário dirigir os esforços terapêuticos para ajudar os
membros da família a se reorganizarem, de modo a poderem prosseguir
desenvolvimentalmente” (p. 8).
Ouvindo nossa analogia sobre os filhos “criarem asas”, Sérgio co-
mentou que isso o havia remetido a uma música cuja letra refere-se a uma
águia filhote que precisa olhar como os pais voam para poder voar sozinha.
Pedro contestou, dizendo que não gostaria de seguir os passos do pai, que
rapidamente respondeu que não espera que o filho trilhe os mesmos ca-
minhos, mas que, como diz a música, o filhote precisa olhar o pai voar para
aprender e trilhar seu próprio caminho.
Com relação à mudança de cidade de Pedro, Vânia afirmou que não
sofreu, pois sabia que ele estava indo fazer o que gosta, ao contrário do pai,
que sofreu muito e sempre chorava nas despedidas. Sérgio relata que tinha

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

medo do afastamento que a mudança poderia gerar e que queria o filho


mais próximo para terem contato frequentemente.
A terapia familiar se estabeleceu, então, como um suporte necessá-
rio para ajudar o sistema familiar a se reorganizar, superando os impasses
e o estresse gerados pela transição do estágio do ciclo de vida familiar
nas relações. A partir das informações obtidas, uma hipótese sistêmica
do problema foi se delineando, de modo que a articulação entre a queixa
apresentada e outras questões presentes no contexto familiar mais amplo
se tornou evidente. A situação do abuso de drogas foi compreendida dentro
do contexto familiar marcado pela entrada nesta nova fase em que o filho
sai da casa dos pais e começa a desenvolver a capacidade de gerenciar sua
própria vida, ganhando autonomia e responsabilidades. Isso, pelo que su-
pusemos, estaria relacionado de alguma forma ao apetite de liberdade por
parte de Pedro; ao excesso de preocupação do pai em relação aos assuntos
familiares, especialmente em relação ao filho; à queixa da mãe quanto ao
distanciamento de Pedro, o que pode ser compreendido como uma tentati-
va dele de fortalecer sua individualidade naquela nova fase de vida.
O processo terapêutico se deu por meio da aplicação de diversas
técnicas durante as sessões e da indicação de tarefas para realizarem fora do
horário dos atendimentos. Nas sessões, construímos o genograma familiar e
trabalhamos com as técnicas da “escultura familiar” e da “dinâmica de distancia-
mento/independência”. Como tarefas para casa, foi pedido que encontrassem
em casa imagens/fotografias que representassem a família (escolhidas tanto
individual como conjuntamente pelos membros da família), além de solicitado
que saíssem para fazer algo juntos, como sair para jantar. Também a finalização
dos últimos detalhes do genograma foi feita por eles, conjuntamente, em casa.
Vejamos, então, como tais procedimentos levaram à evolução do caso.
A confecção do genograma junto às famílias propicia a ampliação
do olhar para as outras gerações da família, fazendo com que os membros
da família — principalmente os mais novos — sintam-se pertencentes a um
sistema mais amplo, integrando à sua história pessoal aquelas trazidas pelas
outras pessoas que compõem a família. No caso da família atendida, o ge-
nograma nos auxiliou a esclarecer questões acerca da composição familiar

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e da passagem pelos estágios do ciclo de vida da família, descortinando


fatos e histórias desconhecidos até mesmo por Pedro, transformando-se
em um momento de relembrar o passado e sanar curiosidades sobre ele, e
também de aproximação afetiva dos membros da família.
No processo de construção do genograma junto à família, emergiu
uma tensão referente à pergunta “Como foi o nascimento do Pedro?”. Nesse
momento, Vânia começou a chorar e Sérgio relatou que nunca quis ter filhos
por medo de que ele nascesse com algum problema de saúde ou de que en-
trasse no “mundo das drogas”, o que, segundo ele, acabou se concretizando:
Pedro nascera com uma forma de deficiência visual, em decorrência da qual
teve que se submeter a uma cirurgia quando criança e não poderá dirigir ve-
ículos; e mais tarde se envolveu com drogas. Vânia relatou que a experiência
da gravidez fora difícil e solitária em razão de Sérgio não a ter acompanhado
naquele momento, cabendo a ela atravessar tudo sozinha. Na sessão, Sérgio
pediu perdão à esposa e explicou que o medo o impediu de se envolver. Foi
um momento de desabafo e resoluções. O que foi relatado por Sérgio e Vânia
corroborou com nossa hipótese de que o sintoma apresentado por Pedro
se relacionava com a superproteção do pai, decorrente de seus medos em
relação ao que poderia acontecer com o filho.
Com o genograma foi visto também que o avô paterno de Sérgio fora
alcoolista e frequentara o Alcoólicos Anônimos (AA) por oito anos, assim como
seu irmão caçula, sendo que ambos estavam em remissão dos sintomas.
Sérgio é o mais velho de três irmãos. Vânia, a segunda filha de quatro irmãs,
relatou que não houve histórico de abuso de substâncias em sua família.
Outra técnica utilizada por nós foi a da “escultura familiar”, que con-
siste na montagem de uma pose, ou cena familiar, com todos os membros
da família, cuja imagem foi fotografada e analisada por todos. Nesta técnica,
buscamos observar como é a visão de cada um dos membros sobre as re-
lações familiares. Notamos que foram bastante distintas as visões de Sérgio,
Vânia e Pedro a respeito de suas famílias. Vânia construiu uma imagem da
família em que ela ficou em um dos cantos da foto, ao lado do marido, no
centro, e do filho, no outro canto, justificando que esta é a pose que a família
sempre faz quando é fotografada em qualquer situação. Pedro escolheu

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

ficar no meio dos pais, apoiando-se nos ombros deles e justificou a escolha
da pose pelo fato de eles serem seu suporte e sua base. Já Sérgio expres-
sou em sua escultura uma imagem que deixa nítida sua posição de esteio
familiar. Ele se colocou sentado no centro, com a esposa e o filho sentados
em cada uma de suas pernas, sendo ele, portanto, a base de sustentação
de toda a família. Quando questionado sobre o porquê da escolha da pose,
ele disse que gostava de oferecer conforto à sua família, mesmo que isso
custasse o seu próprio conforto. Isso foi ao encontro de observações feitas
por Vânia sobre a sobrecarga do marido no trabalho e na família. A esposa
inclusive sugeriu a Sérgio que ele contratasse uma assistente para diminuir
sua sobrecarga no trabalho e ele disse que pensaria, sim, sobre isso.
Na dinâmica de “distanciamento/individualidade” de Pedro, dispo-
mos os pais e Pedro dentro dos limites de um quadrado marcado no piso
da sala. Depois, pedimos que Pedro se dirigisse para um outro quadrado
a aproximadamente um metro de distância daquele onde permaneceram
os pais, como se este fosse sua casa separada da dos pais. Questionamos
como cada um se sentia nesta organização em que Pedro estava mais
distante. Os pais tiveram opiniões iguais. Disseram achar estranho, em um
primeiro momento, porém consideravam que essa distância seria necessária
no processo de desenvolvimento de Pedro. Quando Pedro foi perguntado
sobre como ele estava se sentindo, ele puxou uma das estagiárias pelo bra-
ço para representar sua namorada, pois ele ainda não conseguia se enxergar
ali sozinho e disse que, se ela estivesse junto com ele, a distância em relação
aos pais não seria um problema.
É interessante assinalar que, durante o tempo que durou a terapia
familiar, Pedro noivou e terminou o noivado, adquiriu maior responsabilidade
no N.A., foi promovido secretário no N.A. e também fazia academia e nata-
ção. Pedro também estava orgulhoso por conseguir levar o pai à academia
e à natação junto com ele, pois segundo ele, o pai tinha medo de deixá-lo
fazer essas atividades por achá-las perigosas.
Apesar desses avanços alcançados, ainda havia por parte dos pais
uma insatisfação em relação à falta de diálogo e conexão com Pedro. Pedro
havia “proibido” a mãe de conversar com sua noiva, não avisou os pais que

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

ele havia pedido a namorada em noivado e também não informou aos pais
que ela iria viajar junto a ele. Conversamos sobre a necessidade de encon-
trarem um meio termo na comunicação entre eles, considerando que Pedro
estava se tornando adulto, o que forçava o sistema familiar a redefinir as
fronteiras entre os membros e os subsistemas, permitindo que se comuni-
cassem sem que houvesse a sensação de invasão do espaço de cada um.
No retorno à terapia na sessão seguinte, Pedro informou que percebeu a
falta de comunicação dele com os pais como algo negativo e que buscaria
encontrar um equilíbrio entre sua privacidade e a comunicação necessária
para a saúde das relações familiares.
Observamos uma importante ressignificação do valor de família para
Pedro. Em uma tarefa indicada, foi pedido a Pedro, Vânia e Sérgio que trou-
xessem uma foto que os representassem enquanto família. Vânia trouxe uma
foto tirada por ela da porta do quarto do filho onde estavam colocadas várias
fotos: uma da família toda, uma dele sozinho, uma da noiva, uma do melhor
amigo e a frase “família é tudo”. Questionado sobre o significado dessa frase,
Pedro disse que, antes de ir para a Universidade na outra cidade, as fotos na
porta eram somente dele e de bandas que gostava, mas que, quando re-
tornou para a casa dos pais, colocou fotos das pessoas que considerava ser
seu suporte. Pedro passou a ver na família uma âncora importante para seu
processo de obtenção de individualidade e autonomia. Tal fato, acreditamos,
tornarão mais seguros os voos que lançará futuramente.
É interessante assinalar que este retorno de Pedro à casa dos pais
foi necessário para que eles todos se preparassem para a retomada do
processo de individualização de Pedro. Como Combrink-Graham (1985)
sugere, o sistema familiar geralmente atravessa momentos de oscilação
entre fases mais ou menos individualizantes no desenvolvimento familiar,
correspondendo aos períodos centrípetos e centrífugos no sistema familiar.
Algumas experiências de vida, como nascimento ou enfermidade, exigem
um estreitamento dos relacionamentos e um enfraquecimento das individu-
alidades (período centrípeto), enquanto outras, como o início da vida escolar
ou de um novo emprego, fazem com que o foco se volte para a vivência da
individualidade dos membros da família (período centrífugo). Percebemos

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

que a família atendida passava por um período centrífugo, focalizado nas


individualidades, quando ocorreu a mudança de Pedro para a outra cidade
para que iniciasse a faculdade. Contudo, a dependência química instalada
fez necessária a reaproximação da família para que um novo ajustamento da
relação entre os membros fosse estabelecido, de modo que Pedro, Sérgio e
Vânia pudessem retomar com maior segurança o processo de desenvolvi-
mento e as conquistas que se dão na esfera individual.
Por fim, salientamos que, em todo o processo terapêutico, a família
se mostrou muito colaborativa e comprometida com o propósito que tinham.
Inclusive, foi comentado em sessão que Pedro nunca deixava os pais se
esquecerem da realização de alguma tarefa que havia sido prescrita. Eles
gostavam de realizá-las e sempre pediam por mais. No encerramento da
terapia, a família já se mostrava mais segura, tendo tido a oportunidade de
compartilhar seus problemas, inseguranças e demonstrar apoio mútuo,
sabendo que tinham agora um vínculo mais forte. Antes de encerrarmos o
processo, perguntamos se eles estavam prontos para seguir adiante sem
aquele espaço de conversas propiciado pelas sessões de terapia familiar e
eles confirmaram que sim, que poderiam seguir sem nós.

Considerações finais

A Terapia Familiar Sistêmica produz uma forma de cuidado voltada


para todo o sistema familiar, levando em consideração a relação estabele-
cida por todos os membros da família e não tendo o paciente identificado
como o foco principal. Nossa proposta aqui foi demonstrar, por meio da
apresentação de um caso de família atendida, como um olhar contextual,
no qual a ligação entre os fenômenos é considerada, pode se constituir em
uma ferramenta de cuidado em saúde mental. A queixa principal trazida pela
família — abuso de drogas por Pedro — foi compreendida como um fenô-
meno que emergiu dentro de um contexto de transição do estágio do ciclo
de vida familiar. Assim, foi enfocada a necessidade de transformação dos
padrões relacionais e de comunicação para que o sistema se adequasse à

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sua nova condição, marcada pela existência de três adultos na família, os


quais têm sua independência, autonomia e privacidade, embora continuas-
sem interligados e se apoiando mutuamente.
Percorrer as sucessivas etapas do ciclo de vida familiar é essencial
para o bom desenvolvimento dos membros da família. Entendendo que os
indivíduos estão sempre inseridos em um contexto relacional, tem-se que o
cuidado em relação à perspectiva do ciclo de vida familiar, ao envolver todos
os familiares no realinhamento do sistema às novas necessidades que vão
surgindo com o passar do tempo, repercute na saúde mental de todos na
família. Isso faz do olhar contextual uma estratégia frutífera para se pensar
o cuidado, sendo esta uma referência valiosa a ser transmitida na formação
de futuros psicólogos.

Referências

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Cengage Learning, 2015.

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Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2006.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Ed. Cultrix, 1996.

CARTER, Betty; McGOLDRICK, Monica. As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura
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COMBRINK-GRAHAM, Lee. A developmental model for family systems. Family Process, n. 24,
v. 2, 1985.

GOMES, Lauren Beltrão; BOLZE, Simone Dill Azeredo; BUENO, Rovana Kinas; CREPALDI, Maria
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Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 3-16, dez. 2014. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?s-
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MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 2a. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

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VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência.
8a. ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.

202
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 13
A SUPERVISÃO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
COMO SUSTENTAÇÃO PARA O DEVIR DO
PSICÓLOGO CLÍNICO4

Maria Salete Junqueira Lucas

Introdução

A supervisão na clínica psicanalítica constitui a sustentação inicial


na formação para o possível devir da(o) psicóloga(o) clínica(o) e pode ser
o primeiro contato que a(o) aluna(o) de psicologia tem com a Psicoterapia
Psicanalítica, quando assume o estágio de atendimentos de pacientes no
Serviço-Escola. Essa reflexão é fruto da minha experiência como superviso-
ra de estágio em Psicoterapia Psicanalítica, função que venho exercendo há
muitos anos nas universidades.
Por ser uma exigência na formação de alunas(os) de Psicologia, o
estágio faz parte de uma série de atividades obrigatórias para sua gradua-
ção. A(O) estagiária(o) de Psicologia, ao escolher atender pacientes através
da clínica psicanalítica, busca entrar em contato com a Psicanálise por se
identificar com a teoria, conhecida preliminarmente pelas matérias que cur-

4  Este capítulo é um desdobramento de uma apresentação realizada pela autora no XXVII Congresso
Brasileiro de Psicanálise, transcorrido em Belo Horizonte (MG), em junho de 2019.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

sou ao longo da matriz curricular, e por demonstrar curiosidade em ocupar a


posição clínica que o amedronta, mas que, ao mesmo tempo, lhe dá indícios
do que poderá almejar como futuro psicólogo clínico ou, mais adiante, com
uma formação em Psicanálise. Há um desejo de poder compreender melhor
como o manejo psicoterápico se desenvolve. Uma estagiária, postulante a
um estágio meu, interpelada sobre os motivos que a fizerem escolher o
estágio em Psicoterapia Psicanalítica, respondeu que não conseguia pensar
o ser humano sem um inconsciente que determinasse seus sentimentos e
ações, não conseguia ver de outra forma, e, por isso, o estágio da clínica
psicanalítica contemplava desejos e identificações profissionais.
Partindo dessa importância primordial do que é o inconsciente para
a Psicanálise, é que esse trabalho procurará refletir sobre a supervisão na
clínica psicanalítica inserida na clínica-escola, levando em conta os funda-
mentos mais importantes da Psicanálise, que é o inconsciente e a clínica
como lugar de produção do método psicanalítico através da transferência
e resistência. Para Herrmann (2005), é possível habitar a clínica, seja nos
consultórios ou na clínica extensa, procurando o máximo de rigor possível
na pesquisa qualitativa e nas intervenções que os atendimentos requerem,
mas sem perder de vista a crítica e a criação de teoria.
Birman (1989) corrobora esta estreita ligação com os saberes e faze-
res da Psicanálise:

Portanto, em psicanálise a clínica é representada como sendo


correlata e homogênea à teoria. Vale dizer, a clínica analítica é o
espaço experimental da psicanálise, sendo o lugar definido por
condições teóricas rigorosas para que os enunciados do discur-
so psicanalítico possam adquirir consistência e funcionalidade
operacional (BIRMAN, 1989, p. 197).

Essas considerações são para legitimar o lugar da produção da inter-


venção terapêutica construída no dispositivo institucional que é a clínica-es-
cola e para mostrar o apreço que tenho pela transmissão e práxis construída
por muitos anos neste dispositivo com a abordagem psicanalítica. Acredito,
como Freud já vislumbrava, que a psicoterapia pode ser acessível para todas
as pessoas que necessitam dela. Freud considerou a viabilidade de atendi-

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

mento de populações que não tinham condições para pagar uma análise. A
única exigência que ele colocava era que ela estivesse em consonância com
os ingredientes relativos à Psicanálise estrita. Freud assinalou que a ética é
que pautaria a técnica, e que o espaço da Psicanálise estaria assegurado
quando estivesse pautado pela transferência, pela relação intersubjetiva e
pelo objeto teórico da Psicanálise que é o inconsciente (FREUD, 2019b).
Para a Psicanálise, é a posição do analista/psicoterapeuta/estagiá-
rio que possibilita a emergência do inconsciente para produzir um trabalho
analítico. “Todo trabalho dependerá do desejo do analista na função de
suporte transferencial, na sustentação de um vazio, para que, nesse espaço,
o analisante possa produzir uma fala, em associação livre, uma elaboração
acerca do que o faz sofrer” (PEREIRA; KESSLER, 2016, p. 491). Nesse sentido,
a reflexão sobre a supervisão na clínica-escola encontra grande importância
quando podemos sustentá-la e ainda comprovar os efeitos benéficos na
produção de saúde e na compreensão dos sofrimentos humanos.

A clínica psicanalítica no serviço-escola

A clínica psicanalítica privilegia a compreensão dos mecanismos


inconscientes subjacentes aos sofrimentos e estruturações do psiquismo. O
método psicanalítico se debruça sobre as configurações do campo analítico
como o espaço privilegiado onde o paciente ou população atendida pode
ressignificar angústias e sentimentos não simbolizados na tentativa de poder
administrar melhor as formas de sentir e pensar, para alcançar uma maior
condição de saúde.
Para Marcos (2011), a problematização da clínica-escola suscita re-
flexões em torno de um lugar de formação e de transmissão que acontece
na universidade e no modo como a clínica se transforma em um ponto de
intersecção da universidade com a comunidade. O fator primordial que
determina a clínica é a atenção à saúde e o cuidado que estagiários e super-
visores promovem na comunidade. “O atendimento à comunidade é, neste
sentido, formador” (MARCOS, 2011, p. 206).

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Com a escolha da abordagem psicanalítica no atendimento à comu-


nidade, acadêmicos e supervisores buscam compreender o ser humano e
seu sofrimento psíquico. O espaço construído nas clínicas-escola propor-
ciona aos estudantes a oportunidade de experienciar o papel de terapeuta/
analista pela primeira vez em suas vidas profissionais. Assim, na prática
supervisionada, são formadas as reflexões psicodinâmicas que possibilitam
o atendimento dos casos e o crescimento profissional dos estudantes.
Com relação à abordagem psicanalítica como intervenção na clínica-
-escola, algumas considerações precisam ser feitas, dadas suas especifici-
dades: o fato das clínicas-escolas serem regidas pelo calendário escolar com
interrupções de aulas, supervisões e atendimentos de pacientes no recesso
escolar e prazos para os términos de tratamentos ou encaminhamentos
para outros estagiários quando o ano letivo acaba. Esses aspectos colocam
o manejo psicanalítico não da forma clássica, padrão, como é preconizada
nas Sociedades de Psicanálise, mas na forma de clínica extensa, abrindo
espaço para que as intervenções e pesquisas sejam feitas de acordo com o
cotidiano da Universidade.
De acordo com Herrmann (2005), a construção da clínica vem se
transformando nos quesitos frequência das sessões, uso do divã e local
de atendimento. O autor considera que a clínica extensa não se restringe
somente ao enquadre clássico, vai mais além, diz respeito à escuta das
demandas da sociedade. A Psicanálise recebe essa escuta e amplia o trata-
mento para além dos consultórios e clínicas particulares, desde que os no-
vos dispositivos se realizem pela ação do método interpretativo, que dá vez
aos conteúdos inconscientes (suporte das palavras e ações), e pela função
terapêutica, cujo objetivo é possibilitar ao paciente o uso dos seus recursos
internos, que estavam inacessíveis, para poder alcançar uma qualidade de
vida melhor.
Freud considerava a possibilidade de a Psicanálise poder adentrar a
universidade, ora como estudo teórico, ora como intervenção propriamente
dita. No artigo “Sobre o ensino da Psicanálise nas universidades”, texto de
1918, publicado em 1919, ele apontava a necessidade de um curso de Psi-
canálise para os estudantes de medicina, postulando que esse ensino seria

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

adequado na compreensão de uma psicologia profunda, não se reduzindo


aos aspectos descritivos da psicopatologia e ao reconhecimento de entida-
des patológicas como eram comuns nessa época. O desejo era que esse
ensino fosse voltado para compreender, com os alunos, os problemas da
vida em geral e dos aspectos profissionais do médico, bem como as rela-
ções entre a vida mental e a vida física. Esses objetivos acompanhavam uma
ressalva, a de que o conhecimento sobre a Psicanálise não se daria com o
ensino e intervenção na Universidade, pois esta seria uma primeira aproxi-
mação no campo da Psicanálise, indicando que a formação em Psicanálise
comportaria estudo mais aprofundado e análise pessoal.
A abordagem psicanalítica na clínica-escola também pode ser
considerada uma porta de entrada para uma formação que poderá ser con-
solidada após a graduação, caso tenha o desejo de seguir na área clínica. A
supervisão na clínica psicanalítica está ancorada no tripé que Freud delineou
ao longo do desenvolvimento da Psicanálise e é considerada condição im-
portante para a formação do analista. O tripé refere-se ao estudo teórico da
Psicanálise, às supervisões dos casos clínicos e à análise pessoal do analista.
Na universidade, a transmissão da Psicanálise não tem a pretensão
de formar analistas, visto que essa formação demanda o aperfeiçoamento
do tripé acima relatado, distante do que o estudante poderia alcançar na
graduação. A formação almejada é direcionar a transmissão da Psicanálise
para formar psicólogos, médicos etc., caberá ao estudante transformar essa
demanda em formação se assim o desejar. “Ou seja, apesar de a universi-
dade não ser um lugar que forma analistas, é possível que seja por esse
mesmo espaço que o desejo do aluno seja, pela primeira vez, suscitado
nesta direção” (PEREIRA; KESSLER, 2016, p. 478).
Embora a análise pessoal não seja impeditiva para que inicie seu
estágio supervisionado, é interessante observar que muitos deles iniciam
um processo psicoterápico assim que começam a atender na clínica-escola.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A supervisão psicanalítica na clínica-escola

Assis (1999), em relatório ao Instituto de Psicanálise da Sociedade


Brasileira de São Paulo, intitulado “Considerações sobre Experiências Clínicas
no Campo Teórico da Intersubjetividade”, argumenta que nos encontros de
supervisão a ênfase é dada sobre o movimento do par analítico, não ficando
restrita somente à dinâmica do paciente, e que a relação com o supervisor
também se configura como um aprender com a experiência, igual ao campo
analítico, onde as compreensões sobre o paciente, sobre a relação transfe-
rencial da dupla analítica são construídas a partir de uma nova relação, em
um momento de experiência teórico-clínica.
A supervisão proporciona um desenvolvimento da condição de
ser analista, é uma aprendizagem para além da técnica, envolvida na ética
de uma postura psicanalítica. O estagiário e o supervisor constroem uma
experiência mútua de aprendizagem, na qual lutarão para que não haja im-
posições, cobranças e resistências comprometedoras para o par florescer,
podendo assim apreender um terceiro elemento presente na dupla que
é o fenômeno clínico. Ribeiro e Wierman (2004) discorrem sobre a função
paterna subjacente à supervisão, que permite a discriminação dos afetos
e ansiedades envolvidos na experiência analítica, a fim de possibilitar o
favorecimento de uma simbolização e de um clima analítico que gerarão
um espaço para uma terceira posição, posição esta que seria a reflexão dos
movimentos com seu paciente.
Ruschel e D’Agord (2009) consideram que a ética na supervisão
psicanalítica está centrada no valor dos discursos do paciente, do analista
sobre o paciente e do discurso do supervisor, sem a determinação ideológica
de qual discurso tem mais poder. As autoras consideram que, ao expor um
caso clínico, existe uma especificidade, a da palavra destinada a um terceiro,
e que, no exercício deste lugar, haverá a produção de efeitos na prática do
supervisionando a partir da relação transferencial estabelecida entre o super-
visionando e o supervisor. Partindo deste pressuposto, a supervisão não é um
lugar de relatos de fala, mas sim de fala desde a experiência compartilhada.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A supervisão psicanalítica na clínica-escola busca facilitar o desenvol-


vimento da capacidade para o devir do psicólogo clínico no supervisionando.
Tem o objetivo de auxiliá-lo no desenvolvimento de suas próprias habilidades,
na segurança que vai sendo habilitada com os atendimentos e na forma como
o manejo das dificuldades do par analítico vai sendo elaborado.
Cabe ao supervisor acolher essas dificuldades, dar sustentação e
apoio para a compreensão do setting analítico, sobretudo dos movimentos
contratransferenciais do supervisionando (quando há o medo de como ele
irá lidar com o caso clínico frente aos colegas, a si mesmo, e ao supervisor;
o tempo necessário que precisará ser construído para tolerar a ansiedade
da formação, do vir a ser). Esses movimentos funcionam como material
de aprendizagem para amenizar a angústia do não saber. Nesse sentido,
a experiência de supervisão é o lugar privilegiado da elaboração da teoria
psicanalítica, do trabalho psíquico do supervisionando, de sua psicopatolo-
gia e, também, de sua contratransferência (FÉDIDA, 1991). A supervisão é um
movimento profícuo para ativar o potencial criativo na constituição de uma
nova realidade psíquica, tanto para o paciente quanto para o desenvolvi-
mento profissional do supervisionando/terapeuta.
Fédida (1991) considera que, na construção de um caso clínico, é
preciso fazer uso de uma escuta equiflutuante, a escuta na qual o terapeuta
auxilia o paciente a exercer a livre associação. Concomitante a esse movi-
mento, quando a memória é evocada ao supervisionando, ela traz conteú-
dos não só relativos ao paciente, mas, também, na supervisão psicanalítica
virá o material do inconsciente do supervisionando que, por meio de uma
terceira escuta do supervisor, poderá acessar seus equívocos de escuta,
sua surdez, suas precipitações etc. Fédida (1991) esclarece que, pela escuta
equiflutuante, tem-se a possibilidade do acesso a conteúdos inconscientes,
pois o lugar do psíquico se refere ao lugar de qualquer acontecimento.
Nas supervisões, os estagiários apresentam seus casos clínicos
para o supervisor buscando uma compreensão ampliada da subjetividade
humana. As supervisões são feitas em grupo, originando um procedimento
processual em uma constante abertura para o devir (SAFRA, 2001). O esta-
giário relata, nos encontros de supervisão, da forma mais fidedigna possível,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

o que transcorreu na psicoterapia psicanalítica com seu paciente ou com o


grupo que atendeu. O supervisor busca facilitar para o estagiário o desen-
volvimento de suas próprias habilidades, da capacidade para se perceber
e para ampliar a compreensão em torno de suas dificuldades. Consiste em
uma relação de ensino-aprendizagem (ZASLAVSKY; NUNES; EIZIRIK, 2003).
Penso que, com as reflexões elencadas até agora, fica claro que a
supervisão como comunicação e transmissão possui um aspecto constitu-
tivo, que é preciso falar a um outro e se escutar falando para criar novos
significantes, transformando esse ato em uma experiência singular.
De acordo com Zaslavsky, Nunes e Eizirik (2003), existem basica-
mente três modelos metodológicos de supervisão: 1. Demonstrativo ou
Clássico; 2. Corretivo ou Comunicativo; e 3. Compreensivo, Relacional ou
Experiencial. O modelo Demonstrativo corresponde ao método no qual o
supervisor transmite o modo pelo qual faria a intervenção junto ao paciente.
O modelo Corretivo está centrado no modelo anterior, mas assinala o tempo
todo os erros e acertos do supervisionando. No modelo Compreensivo há
um giro importante na interação do supervisor com o supervisionando, no
qual o supervisor privilegiará uma relação empática com o supervisionando,
usando a si mesmo como instrumento para compreensão do setting ana-
lítico e no que se passa entre ele e o supervisionando. Embora esses três
modelos sejam complementares, há bastante tempo o modelo Compreen-
sivo ou Experiencial tem uma predominância maior no cenário de práticas
da Psicanálise contemporânea, a qual valoriza enormemente os aspectos
vinculares e interacionais das experiências em análise, trabalhando com o
que é intrapsíquico sem desconsiderar as relações intersubjetivas.
O supervisor na condução do manejo clínico transmite também uma
postura ética e relacional, demonstra os caminhos que foram percorridos
explicitando um estilo de pensamento clínico que auxilia o supervisionando
no desenvolvimento de um modelo próprio de entendimento das motiva-
ções inconscientes e dos manejos interpretativos.
A condução da supervisão para que o estagiário desenvolva uma
identidade profissional implica em sustentar a imaturidade do estagiário para
que ele consiga um grau de maturidade relativa que possibilitará um ganho

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de saúde. Winnicott (1983) ajuda a compreender a sustentação ambiental


necessária nos momentos de desenvolvimento rumo ao amadurecimento
quando coloca uma condição primordial, o holding, que diz respeito aos
cuidados físicos e psicológicos para o suporte egoico que auxiliará indivíduo
no seu vir a ser.
Sei e Paiva (2011) consideram que a supervisão deve ser um espaço
de sustentação, privilegiando o holding para que o estagiário possa desen-
volver uma postura clínica a partir de um pensamento autônomo. Através do
holding o psicoterapeuta iniciante encontrará um ambiente suficientemente
bom no qual será escutado, para que suas angústias possam ser mais
toleráveis. O supervisor lança mão de empatia e da capacidade de se iden-
tificar com o outro, a fim de auxiliar o estagiário na busca cada vez maior da
compreensão dos processos psíquicos que permeiam o campo analítico, da
condução das supervisões e do desenvolvimento da identidade profissional
do estagiário.

O estagiário na supervisão psicanalítica

O estagiário que inicia os atendimentos em psicoterapia psicanalítica


já teve uma aproximação aos textos teóricos psicanalíticos apresentados
pela grade curricular do curso de Psicologia. A teoria da técnica psicanalítica
compõe, de forma preliminar, os pré-requisitos necessários para o início dos
estágios, mas o conhecimento sobre o método psicanalítico é ainda incipiente.
Pela primeira vez, embora já tenha passado pelo estágio de Psicodiag-
nóstico, um estágio obrigatório para todos da graduação, o aluno terá uma ex-
periência de atendimento com uma duração de tempo maior e de expansão
das finalidades terapêuticas. Uma gama de sentimentos povoa o estagiário:
será capaz de sustentar um atendimento clínico sem ter experiência? E se
encontrar com algum paciente bem parecido com suas próprias dificuldades,
conseguirá realizar uma intervenção? Será que vão respeitar seus erros diante
da inabilidade para manejar a transferência e contratransferência?

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O estagiário não estará sozinho — se tiver a coragem de se colocar


como aprendiz, receptivo das experiências emocionais vivenciadas no pro-
cesso psicoterápico, poderá compreender sua conduta como psicoterapeu-
ta iniciante conduzida na supervisão em grupo.
A exposição na maneira de conduzir o caso ajudará a todos, estagiá-
rios e supervisor. Há uma aprendizagem mútua quando são compartilhados
os casos clínicos e a construção de sentidos para o entendimento do in-
trassubjetivo e o intersubjetivo. Há que se ter um clima de compreensão e
respeito pelo que é trazido. A supervisão em grupo possibilita compartilhar
experiências, ver-se por meio do outro, identificar-se com um papel profis-
sional através do fazer psicanalítico.
O estágio supervisionado é um espaço novo para a(o) estudante,
não está configurada uma sala de aula, mas a(o) estagiária(o) tem uma série
de tarefas burocráticas e teóricas para realizar análogas às disciplinas que
contêm provas e trabalhos. Há um protocolo na instituição de prestação de
contas de relatórios, prontuários de pacientes, termos de consentimento
que têm que ser pedidos para pacientes, comitê de pesquisa etc. Instaura-
-se um espaço duplo, criando confusões e necessidade de adequação ao
novo formato que está sendo configurado (BISOL; ALQUATTI; GONEM, 2017).
A supervisão é um momento de aprendizado entre a teoria estudada
ao longo do curso e a prática vivenciada. Consiste em um processo em que
salvaguarda a qualidade de atendimento e a segurança da pessoa que está
sendo atendida por seu supervisionando (WITTER, 2006 apud SEI; PAIVA,
2011). Um estagiário exemplifica esse momento: “O espaço de supervisão foi
um fator primordial para a condução do estágio, especificamente do manejo
dos casos clínicos apresentados, sem a qual nenhum atendimento psicoló-
gico poderia ser oferecido no contexto de uma clínica-escola”.
O aprendizado está ligado ao desenvolvimento de uma atitude
clínica, a qual será desenvolvida mediante a experiência dos atendimentos
realizados, do compartilhamento nos encontros de supervisão e, por fim, da
experiência emocional que vai tendo sobre si mesmo, que é deflagrada cada
vez mais com o caminho trilhado na clínica psicanalítica. Frequentemente,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

como já foi elucidado, este desenvolvimento fará procurar uma psicoterapia


para si próprio.
Para Sei e Paiva (2011, p. 12): “Desenvolver a atitude clínica signi-
fica que precisa se colocar no papel do psicólogo clínico, a partir de um
setting estabelecido, respeitando os princípios éticos profissionais”. Neste
percurso para a construção de uma identidade própria, a universidade
passa a ser balizadora.
Nesta nova configuração, passa por sentimentos ambivalentes,
angústias diante do medo de achar que não dará conta de realizar a tarefa
que lhe é atribuída. Assim fala uma estagiária em um encontro de supervi-
são: “Pensando especificamente nas supervisões em Psicanálise, algumas
características podem ser citadas como mais emergentes e desconhecidas
(ou conhecidas de forma teórica apenas), aquelas que requerem uma aten-
ção especial aos aspectos inconscientes e sutis dos pacientes, o cuidado
no manejo da transferência/contratransferência, além da importância da
sustentação a ser oferecida ao paciente”. A estagiária na sua colocação
descortina toda a problemática que encerra a compreensão complexa da
subjetividade que uma psicoterapia requer. O manejo não se sustenta ape-
nas com teorias, mas abarca um campo relacional e transferencial que será
criado no estabelecimento de um lugar de escuta e compreensão.

Considerações finais

Levando em conta a grande expansão que a Psicanálise tem al-


cançado nas últimas décadas nas Universidades, consideramos de suma
importância refletir sobre as práticas e intervenções realizadas no espaço do
serviço-escola a fim de possibilitar novos estudos e intervenções. O aspecto
formador da clínica-escola na sua relação com as atividades de supervisão
consiste no lugar de excelência em que a clínica psicanalítica se encontra ao
desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Indagações acerca do lugar que a psicanálise ocupa na universidade,
desde as colocações de Freud sobre o benefício da universidade quando

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

aceita a inserção da psicanálise, até hoje, quando há uma expansão da clíni-


ca padrão para novos formatos de intervenções, sempre serão bem-vindas
para o aprimoramento da técnica psicanalítica.
Pela minha experiência como supervisora é nítida a percepção de
que os pacientes que recorrem ao Serviço-Escola sabem que os atendi-
mentos são oferecidos por estudantes em formação, sabem que os alunos
são assessorados por professores/supervisores e, muitos dos pacientes
reconhecem que essa iniciação não é impeditiva para que sejam acolhidos
em uma intervenção terapêutica. Uma parcela da população que procura
atendimento, também desistirá do processo psicoterápico. A parcela que
fica demonstra o ganho psíquico ao poder atingir uma compreensão maior
de sua existência.
O crescimento emocional dos pacientes pode ser demonstrado por
algumas vinhetas, oriundas de relatos de sessões debatidos nas supervisões:
Uma paciente falando sobre a madrasta:
• “É... Nunca tinha parado para pensar dessa forma... ela poderia ter
cuidado de mim, se ela quisesse. Mas ela não era uma boa mãe nem
para os seus próprios filhos, imagina eu que nem era filha dela”.Um
paciente justificando uma confusão com o horário da sessão:
• “Ah, não sei...às vezes tem coisas que são difíceis de falar, sabe? E
aqui eu tenho que falar, acho que pode ter alguma coisa a ver”
Uma paciente sobre vivenciar um relacionamento abusivo:
• “É, agora eu entendi que ninguém vai me resgatar dessa situação, eu
que tenho que decidir o que eu estou disposta a fazer ou não, para
ir adiante nisso”.
As supervisões na clínica-escola demonstram que esse lugar de
escuta e de fala produz um saber no paciente, uma elaboração simbólica do
vivido, ilustrando assim a importância dessa atividade para a busca de uma
qualidade de vida melhor, conquistada com a compreensão de sentimentos
e desejos inconscientes. A supervisão psicanalítica também contribui para
a formação do futuro psicólogo e da sistematização sempre constante da
práxis que envolve a Psicanálise.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Mezan (1998), em sua apaixonada defesa pelo exercício da Psicaná-


lise, coloca:

a Psicanálise, que tanto contribui para dar sua feição ao nosso


século, continua a ser o que sempre foi: uma exploração auda-
ciosa dos recessos e dos mecanismos da mente humana. Ela
reconhece o poder das paixões, mas acredita que o conheci-
mento de si, adquirido pela experiência do contato com o outro
nas condições específicas da situação analítica seja capaz de
colocá-las a serviço da liberdade interna e da diminuição dos
sofrimentos inúteis que tão bem sabemos nos impor (MEZAN,
1998, p. 12).

Corroboro o escrito de Mezan e concluo que a Psicanálise precisa


habitar os vários dispositivos que fazem parte da rede de atendimento em
saúde mental, com a disposição de promover encontros que visem reorga-
nizações internas e externas. Se ela não puder servir para a população de
baixa renda que procura os nossos serviços, se ela não puder ser manejada
nos serviços-escola das universidades, de que terá valido a construção de
uma teoria sempre dinâmica e que não pode ser encastelada? Como Freud
sempre nos alertou, o desenvolvimento de um método precisa acompanhar
a escuta e o acolhimento de populações que necessitam de ajuda. A su-
pervisão dos atendimentos psicanalíticos na clínica-escola não se restringe
somente aos aspectos formativos do psicólogo, há uma dimensão ética no
cuidado quando habitamos e compartilhamos o mundo interno e externo
das pessoas que sofrem.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 14
PLANTÃO PSICOLÓGICO EM UMA
CLÍNICA-ESCOLA:
atravessamentos da pandemia da Covid-19

Gabriela Manzoni Leite


Adrielly Louise Alves Leal
Endy Willians de Assis Gomes
Pamela Staliano

Introdução

O presente texto se propõe a apresentar um relato de experiência


acerca da transposição de um serviço de Plantão Psicológico desenvolvido
na modalidade presencial no curso de Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD) para o formato remoto emergencial, trazendo
as adaptações que precisaram ser implementadas na proposta original com
o início da pandemia da Covid-19.
Para situar o contexto que levou à necessidade de tais adaptações,
no início do ano de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a
pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo Coronavírus SARS-CoV-2.
De acordo com Viana (2020), um dos impactos da pandemia foi justamente
o aumento de questões relativas à saúde mental, tendo em vista o contexto
de isolamento, a vivência do luto, o comprometimento da subsistência de

217
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

renda de muitas pessoas, o aumento de conflitos familiares e o aumento da


violência familiar, dentre outras problemáticas.
Por conseguinte, a Psicologia se depara com a necessidade de
repensar aspectos da profissão e do processo formativo a fim de viabilizar a
continuidade da assistência à população em saúde mental e da formação de
estudantes de psicologia, por meio da estruturação de serviços psicológicos
no formato remoto emergencial. Sendo assim, na UFGD, a transposição do
plantão psicológico para o modelo on-line se deu como resposta às deman-
das da comunidade, mas também pela necessidade pedagógica do curso
com relação ao processo formativo dos estudantes.
Nesse contexto, o plantão no formato remoto do curso de Psico-
logia da UFGD ocorreu situado na proposta de estágio supervisionado em
Plantão Psicológico, com ênfase em processos clínicos, tendo como base
as recomendações publicadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP,
2020a): “Práticas e estágios remotos em Psicologia no contexto da pandemia
da COVID-19: recomendações”. O documento apresenta orientações sobre
a prática em Psicologia em cenário de educação remota emergencial, bem
como indicações para a condução dos processos de trabalho na formação,
regulamentados em tal contexto, que inclui a prática do Plantão Psicológico,
tendo em vista que este se configura como um serviço de atendimento à
comunidade que proporciona uma resposta efetiva às demandas emergen-
ciais do contexto pandêmico.
Dessa forma, este texto se propõe discutir a legislação que versa
sobre as práticas de formação e a atuação profissional na modalidade remo-
ta, destacando as possibilidades acerca do plantão psicológico articulado a
uma proposta de estágio no modelo on-line, com a apresentação de como
se estruturou o serviço na UFGD para o contexto pandêmico, apontando
possibilidades e limites da atuação, vivenciados pela equipe.

218
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Formação e atuação em Psicologia: práticas na modalidade


remota emergencial

O início da pandemia da Covid-19, declarado pela OMS em março de


2020, mudou completamente as formas de viver e se relacionar, impactando
pessoas, famílias, contextos de trabalho, relações interpessoais, relações sociais
e políticas, com o início do isolamento social, o número crescente de mortes e o
consequente aumento da demanda em saúde mental (VIANA, 2020).
O formato on-line surgiu como possibilidade para a Psicologia no
Brasil com a Resolução nº 12/2005, emitida pelo CFP, que regulamentou a
realização de serviços psicológicos mediados por computador, à exceção da
modalidade psicoterapêutica, que aparecia somente em caráter experimen-
tal. Em 2018, com a Resolução nº 11/2018 (CFP, 2018), os serviços prestados
foram ampliados para consultas e/ou atendimentos psicológicos síncronos
e assíncronos de diferentes tipos, sendo exigência que o psicólogo efetuasse
um cadastro específico em uma plataforma on-line chamada e-psi, na qual é
necessário registrar e fundamentar o tipo de tecnologia utilizada, o público a
quem se destina, além das possibilidades e limitações do uso (VIANA, 2020).
Considerando o contexto pandêmico, em março de 2020 foi publica-
da a Resolução CFP nº 4/2020 no Brasil, que flexibilizou a normativa de 2018
durante o período da pandemia para contribuir com a oferta de serviços de
saúde mental à população e minimizar as implicações psicológicas diante de
tal contexto. A partir desta, passou a ser autorizada a prestação de serviços
psicológicos on-line por meio das Tecnologias da Informação e Comunica-
ção (TICs) a “[...] pessoas e grupos em situação de urgência, emergência e
desastre, bem como de violação de direitos ou violência [...]” (CFP, 2020b;
SCHMIDT et al., 2020, p. 7).
No tocante ao processo formativo, especificamente às atividades
práticas e estágios em Psicologia, o CFP, junto aos Conselhos Regionais de
Psicologia (CRPs) e à Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa (ABEP),
organizou um documento com orientações para a condução das atividades
durante o período da pandemia, resultante de um trabalho coletivo e coo-
perativo ao longo de cinco meses, que buscou conciliar, considerando as

219
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

limitações existentes do contexto, o compromisso com a qualidade de uma


formação científica, técnica e ética (CFP, 2020a).
O documento trata de uma modalidade de ensino emergencial re-
moto, no qual houve uma intensificação do uso de TICs no período em que
vigora a necessidade de isolamento social, apontando que este se diferencia
da educação à distância, modalidade de formação que não está prevista no
marco regulatório dos cursos de graduação em Psicologia. Nesse sentido,
é importante ressaltar que as práticas, laboratórios e estágios remotos só
se tornaram possíveis a partir da Portaria MEC 544 de junho de 2020, que
autorizou tais atividades, desde que alinhadas às Diretrizes Nacionais Curri-
culares (DCN) do curso. Inicialmente, havia sido estabelecido o período de
autorização até 31 de dezembro de 2020, todavia, devido à gravidade da
situação, essa condição foi estendida (CFP, 2020a).
Como resultado da análise empreendida acerca das possibilidades
no modelo remoto, o documento apresenta indicações de práticas relativas a
cada processo de trabalho, dentre os quais cabe discorrer aqui sobre um em
especial, a saber: processos clínicos. Tais processos englobam as compe-
tências voltadas para estratégias clínicas direcionadas ao enfrentamento de
problemas de ordem psicológica ou psicossocial apresentadas por pessoas
ou grupos. No formato remoto, os processos clínicos apresentam limitações
na garantia de sigilo e privacidade, considerando a complexidade da relação
terapêutica e existência de diferentes abordagens, todavia, o documento
marca a possibilidade de desenvolvimento de algumas atividades, dentre
elas o Plantão Psicológico — acolhimento e encaminhamento (CFP, 2020a).
Por fim, este documento enfatiza que as práticas oferecidas por
estagiários em psicologia devem ser acompanhadas em supervisões, que
devem ser realizadas de forma síncrona, de acordo com o previsto na Reso-
lução nº 11/2018 do CFP (BRASIL, 2018). A supervisão deve ser desenvolvida
por um profissional de psicologia devidamente cadastrado junto ao CRP,
sendo exigência um cadastramento na plataforma e-psi, de tal forma que o
orientador se responsabilize pela atividade do estagiário, conforme determi-
na o Código de Ética e a Carta de Serviços sobre Estágios e Serviços-Escola
(CFP, 2020a).

220
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Partindo do exposto, observa-se que as novas orientações do CFP


contribuíram com a flexibilização da oferta de serviços psicológicos no mo-
delo on-line e, de acordo com Barcellos et al. (2020, p. 3), esse movimento
favoreceu a oferta de serviços que ultrapassam os contornos da metodolo-
gia tradicional, incluindo a modalidade do Plantão Psicológico, considerando
que esta “[...] abarca e responde, de maneira acolhedora e pontual, às de-
mandas que se apresentam em tal contexto”.
O Plantão Psicológico pode ser entendido como uma “[...] modali-
dade de atendimento clínico-psicológico de tipo emergencial, aberto à
comunidade, cuja função é proporcionar uma escuta e um acolhimento à
pessoa num momento de crise” (BRITO; DANTAS, 2016, p. 91). A proposta
foi inaugurada no Brasil em 1969 no Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (USP), a partir da iniciativa dos professores Oswaldo de Barros
Santo e Rachel Léa Rosenberg, inspirados no modelo norte-americano “walk
in clinics”, com objetivos voltados à formação de psicólogos e o atendimento
à comunidade (ALCÂNTARA et al., 2021; BORGES; BRITO; DANTAS, 2017;
STALIANO et al., 2017).
Configurando-se como um serviço de portas abertas, o plantão
psicológico é orientado pela busca espontânea e visa acolher o sofrimento
no momento de necessidade, sendo voltado para usuários que recorrem
a suporte em situações emergenciais (ROSÁRIO; KYRILLOS NETO, 2015). O
serviço, em sua origem, tem como fundamentação teórica essencialmente a
teoria humanista; todavia, ao longo dos últimos anos, passou a ser desenvol-
vido também em outras abordagens, como a Cognitivo-Comportamental e
a Psicanálise, tendo em vista que, independentemente desta, o que a prática
exige é uma tomada imediata de posição ética, política, social e profissional
(PAPARELLI; NOGUEIRA-MARTINS, 2007).
No tocante à caracterização do plantão, três pontos importantes o
definem, a saber: a emergência ou crise emocional, a demanda espontânea
e o tempo de duração do atendimento (VASCONCELOS, 2019). A primeira
característica diz respeito à emergência ou à crise emocional que pode ser
entendida como um sofrimento psíquico intenso que precisa de apoio imedia-
to. O segundo ponto é a demanda espontânea referindo-se ao fato de que o

221
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

serviço se estrutura em turnos de plantão, objetivando receber o indivíduo no


momento em que surge a demanda, sem a necessidade de agendamento ou
encaminhamento prévio, afastando-se do modelo clínico tradicional.
Quanto ao tempo de duração, o atendimento no plantão pode acon-
tece em um encontro único, sem duração predefinida, ou ainda, de acordo
com complexidade da demanda do paciente, os encontros podem ser es-
tendidos, envolvendo desde o acolhimento do sofrimento, a compreensão
da queixa, o fornecimento de informações e orientações, até o encaminha-
mento, sempre que necessário, para outros serviços após o encerramento
(ALCÂNTARA et al., 2021).
Nessa perspectiva, Paparelli e Nogueira-Martins (2007) contribuem
para pensar o plantão psicológico ao apresentarem a possibilidade de es-
truturação do serviço em três fases, a saber: a primeira diz respeito à sessão
inicial, na qual é feito o acolhimento da queixa, por meio de uma entrevista; a
segunda fase abrange um período de acompanhamento de tempo limitado,
na qual ocorrem intervenções; e o desfecho, que seria a última fase, envol-
vendo o encerramento do processo, que pode resultar no encaminhamento
a outras áreas de saúde.
Considerando o exposto até aqui, o contexto pandêmico possibilitou
o surgimento de propostas de plantões psicológicos na modalidade on-line,
bem como a possibilidade de estágios supervisionados nesta modalidade,
reafirmando o compromisso da Psicologia em promover saúde e qualidade
de vida à população. Observa-se que o Plantão Psicológico se configura
como um terreno fértil para contribuir com o atendimento à população no
contexto on-line e pandêmico que ultrapassa o caráter individual, na medida
em que propõe “[...] o acesso da pessoa à própria experiência, podendo
acarretar novos posicionamentos [...] Assim, serve como espaço de acolhi-
mento e de informação e auxilia as pessoas a terem uma maior autonomia
emocional” (PEREIRA et al., 2021, p. 43).

222
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A estruturação do serviço e o contexto pandêmico

O plantão psicológico na UFGD acontece vinculado à clínica-escola


da instituição, a saber: o Laboratório Serviço de Psicologia Aplicada (LabS-
PA). O serviço foi inaugurado em 2014 e desde então ocorria na modalidade
presencial, com o objetivo de atender gratuitamente a população interna e
externa da UFGD. Na clínica, o plantão, ao longo deste tempo, se estruturou
como um serviço que auxilia, para além da prática de acolhimento de deman-
das emergenciais, como porta de entrada para os demais serviços da clínica.
Na modalidade presencial, no início de cada ano letivo, os estagiários
participantes do plantão, juntamente com uma professora supervisora devi-
damente vinculada ao CFP, definem turnos obrigatórios em um esquema de
revezamento, de tal maneira que fique um estagiário disponível para receber
as demandas que comparecem à clínica, seja de maneira espontânea ou a
partir de encaminhamentos, sem necessidade de agendamento prévio, de
segunda a sexta, nos períodos matutino e vespertino. O serviço de plantão
psicológico possui distintos formatos, podendo ser pontual em um único
encontro, ou estendido, que compreende alguns encontros com a pessoa.
O serviço na UFGD foi estruturado de forma semelhante ao proposto por
Paparelli e Nogueira-Martins (2007), sendo composto por três fases: a.
entrevista inicial de acolhimento; b. acompanhamento, podendo envolver a
realização de um psicodiagnóstico interventivo ou colaborativo, orientação
e/ou escuta; e c. encerramento, que consiste na finalização do processo
com a possibilidade de alta ou encaminhamento para outro serviço, quando
constatada a necessidade (STALIANO et al., 2017).
As atividades do estágio tiveram início em fevereiro de 2020. No
entanto, com o início da pandemia da Covid-19, diante da necessidade de
isolamento social e demais restrições como medidas de combate ao novo
coronavírus, houve a suspensão do calendário acadêmico em março de
2020, o que resultou também na suspensão das atividades da Clínica-Esco-
la, cujo retorno só ocorreu no ano seguinte, em março de 2021, exigindo um
novo planejamento para viabilizar uma transposição dos serviços que eram
oferecidos na modalidade presencial para um formato remoto emergencial.

223
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Dessa forma, tendo como referência central o documento de orienta-


ções publicado pelo CFP e apoiando-se em iniciativas recentes (BARCELLOS
et al., 2020; CFP, 2020a; PEREIRA et al., 2021; VASCONCELOS, 2020; VIANA,
2020), houve a transposição para o formato remoto e on-line. O intuito inicial
era promover a criação de um Plantão Psicológico on-line próprio da proposta
de estágio ao qual é vinculado na UFGD, o que iria permitir a estruturação de
um serviço em uma configuração mais próxima da ideia original do plantão,
envolvendo o pronto atendimento e a demanda emergencial.
Todavia, a coordenação da Clínica-Escola disponibilizou um For-
mulário de Inscrição para Atendimento on-line na UFGD, com o objetivo de
retomar o serviço em saúde mental oferecido à população, a partir do qual
os pacientes inscritos foram distribuídos entre todos os estágios específicos
e obrigatórios do curso de Psicologia da instituição. Dessa forma, o Plantão
Psicológico passou a compor o formulário de inscrição da clínica, como
uma das modalidades de atendimento disponíveis, sendo que a pessoa
que se inscrevesse no formulário deveria escolher a proposta que mais se
adequasse à sua demanda.
Partindo do exposto, considerando as especificidades do acesso ao
atendimento na Clínica-Escola e do contexto, o Plantão Psicológico on-line
se estruturou por intermédio das TICs, com a criação de uma página na
rede social Instagram, intitulada “Plantão Psicológico UFGD”, e um e-mail
institucional, para intermediar o contato dos estagiários plantonistas com os
pacientes. A estruturação do serviço ocorreu de acordo com o previsto pelo
CFP, envolvendo o acolhimento e encaminhamentos, com supervisões sob
o enfoque teórico psicanalítico, encontros agendados pelo e-mail institucio-
nal, realizados por vídeo chamada no Google Meet, com duração de cerca
de 50 min., submetidos a supervisões semanais síncronas, e também por
vídeo chamada com a supervisora da proposta do estágio.
É válido ressaltar que se realizou apenas uma adaptação das ativi-
dades de estágio para tentar garantir a formação remota emergencial, que
esta adaptação não abarca a complexidade da atuação do futuro psicólogo,
e que, assim que possível, as atividades serão retomadas na modalidade
presencial, como preveem as recomendações do CFP (2020a). Dessa forma,

224
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

na sequência, serão apresentadas discussões referentes à estruturação do


serviço na modalidade on-line, no tocante às diferenças observadas em
relação ao presencial, as dificuldades enfrentadas pelos plantonistas e su-
pervisora, bem como as limitações que a modalidade remota emergencial
impôs para os atendimentos.

Possibilidades e limites da formação em Plantão Psicológico


remoto emergencial

No tocante à estruturação do Plantão Psicológico on-line da UFGD, o


serviço manteve o atendimento em fases, envolvendo uma entrevista inicial
de acolhimento, um período de atendimento limitado e o encerramento.
Todavia, houve a suspensão de práticas de psicodiagnóstico colaborativo
ou interventivo, tendo em vista as limitações impostas pelo formato remoto
na aplicação de testes psicológicos e demais ferramentas que requerem o
contato presencial.
Um fato interessante a ser destacado é que o Plantão Psicológico foi
inaugurado na UFGD em 2014 na modalidade presencial como uma forma de
responder à problemática identificada nos primeiros anos de funcionamento
da Clínica-Escola: a existência de uma grande lista de espera que transcorria
até quatro meses desde o momento da busca do paciente pelo atendimento
até o primeiro contato (STALIANO et al., 2017). Frente a isso, o serviço se estru-
turou como porta de entrada para os demais atendimentos na instituição, por
meio de um primeiro contato que não se limitasse a um processo de triagem,
mas que fosse um acolhimento inicial com teor terapêutico.
Nesse sentido, o Formulário de Atendimento on-line disponibilizado
pela Clínica-Escola no contexto pandêmico contribuiu para mudar a estrutu-
ração do plantão psicológico no formato on-line, de tal forma que o serviço
deixou de ser a porta de entrada dos atendimentos na instituição. Sobre essa
mudança, um aspecto que ficou evidente é o desconhecimento da popula-
ção e até mesmo dos profissionais que desenvolveram o formulário quanto
às especificidades de cada serviço oferecido, inclusive sobre a funcionali-

225
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dade do Plantão Psicológico, ferindo a autonomia da professora supervisora


e responsável pela criação e implementação do serviço em funcionamento
desde 2014.
De acordo com Mahfoud (2012), na sociedade brasileira existe uma
prevalência de serviços especializados em saúde mental que priorizam ca-
sos mais graves. Dessa forma, parte da população não tem a sua demanda
atendida no momento de urgência. Atrelado a isso, de acordo com Gomes
(2008), nota-se que a população apresenta dificuldades em se localizar quan-
to à existência de uma prática mais adequada para lidar com sua demanda
e seus limites. Nesse sentido, durante a experiência aqui relatada, notou-se
que muitos pacientes que se inscreveram para o plantão não buscaram
atendimento estando, necessariamente, em situação de crise emergencial,
mas desejando um processo de psicoterapia. Todavia, esse processo de tra-
balho não se encontra regulamentado pelo CFP para os estágios. Motivado
por este fato, os estagiários plantonistas se mobilizaram na construção de
uma página na rede social Instagram, nomeada “Plantão Psicológico UFGD”,
com o intuito de divulgar e esclarecer o serviço oferecido.
Nessa perspectiva, outro fator que se apresentou como um desafio
diz respeito à falta de formação nos cursos de Psicologia para embasar o
desenvolvimento e a oferta de serviços psicológicos na modalidade on-line,
sendo necessário destacar também o andamento da regulamentação dos
atendimentos de caráter psicoterapêutico no formato on-line junto ao CFP,
que poderiam contribuir com a preocupação e o avanço no sentido de pro-
mover esse tipo de instrução. Estudos já demonstram que a experiência em
si, na modalidade do plantão, desperta nos plantonistas diversos sentimen-
tos ambíguos, como ansiedade, medo, insegurança e, ao mesmo tempo, o
desejo pela vivência (BORGES; BRITO; DANTAS, 2017; BRITO; DANTAS, 2016;
PAPARELLI; NOGUEIRA-MARTINS, 2007). Em um contexto completamente
novo de atendimento, tal qual a pandemia do novo coronavírus, os senti-
mentos já ambíguos e a ansiedade se acentuam, sendo estes vivenciados
não só na proposta do plantão, mas nos demais atendimentos psicológicos
previstos na recomendação do CFP, escancarando a necessidade de avan-
çar na discussão e regulamentação do formato on-line.

226
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Colocadas as diferenças nos aspectos macros que foram obser-


vadas no desenvolvimento do serviço on-line, cabe então caminhar para a
discussão dos aspectos micro dos atendimentos, envolvendo as diferenças
e dificuldades encontradas com relação ao formato remoto. Na literatura
já são indicados alguns fatores que se apresentam como desafios à oferta
de serviços psicológicos em geral no formato on-line, que se configuram, a
partir deste relato, de modo similar para os estágios na modalidade remota
emergencial, sendo eles: a falta de familiarização com a ferramenta a ser
utilizada, tanto por parte dos psicólogos quanto dos pacientes; dificuldades
estruturais, envolvendo a estabilidade da conexão com a internet e um local
de privacidade; e também aspectos da efetividade do próprio atendimento,
tendo em vista que as TICs não são ferramentas que favorecem a percepção
das nuances do discurso e os aspectos não verbais, que contribuem com o
andamento do acompanhamento (PINTO, 2002; SCHMIDT et al., 2020).
Assim, para iniciar o acolhimento dos pacientes no Plantão Psico-
lógico oferecido na UFGD, os estagiários plantonistas precisaram realizar
adequações em suas residências, tendo em vista a importância de ter um
espaço sigiloso e o acesso a uma conexão de internet estável, de acordo
com os preceitos éticos e as disposições do CFP. Da mesma forma, para dar
início ao processo, foi solicitado que os pacientes cumprissem os mesmos
requisitos, de forma a viabilizar um ambiente para que o atendimento pu-
desse ocorrer livre de interrupções.
Nesse processo, foi possível observar que a dificuldade com o uso
de smartphones, computadores e o e-mail se constituiu como um empeci-
lho ou impedimento para alguns pacientes iniciarem o acompanhamento,
especialmente idosos. Ademais, como afirmado por Schmidt et al. (2020, p.
8), “[...] muitos brasileiros não têm acesso à internet, o que limita a possibili-
dade de oferta de apoio nesse momento”. No tocante à falta de um espaço
em casa para a realização das sessões com privacidade, notou-se que
muitos pacientes, por vezes, foram interrompidos, seja por um parente, por
um animal de estimação ou algum outro elemento que desviou a atenção
do momento. Além disso, a falta de privacidade e sigilo também limitou o

227
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

conteúdo trazido pelo paciente no encontro, devido ao receio de algum


familiar ou outras pessoas presentes na casa escutarem o relato.
Ainda no que tange às dificuldades estruturais, a qualidade da cone-
xão com a internet também se configurou como um empecilho para o bom
desenvolvimento das sessões. Em alguns casos acompanhados, durante
algumas sessões a conexão se encontrava instável, dificultando uma boa
visualização do vídeo e resultando na perda ou no corte de expressões e
falas do paciente.
Nesta altura, a fim de entender as implicações dessas interrupções,
cabe então retomar e discutir um pouco sobre a abordagem teórica adotada
no plantão psicológico da UFGD, a saber, a Psicanálise. Rosário e Kyrillos Neto
(2015) contribuem para pensar o uso da perspectiva psicanalítica ao apon-
tarem que a mesma cria condições para acolher o sujeito de desejos, sem
ignorar o contexto social implicado na realidade dos pacientes atendidos.
Ao se tratar da abordagem psicanalítica, Daher et al. (2017) lembram
que é preciso se ater ao fato de que ela não visa uma cura, pelo menos não
no molde clínico-médico. Essa abordagem entende que o “falar” permite
que o paciente possa se “escutar”, ou seja, é falando sobre suas demandas
e questões que a pessoa que está em análise vai conseguir de fato compre-
endê-las. Sendo assim, para o processo analítico ocorrer, faz-se necessária
a combinação de dois processos: as associações livres do paciente e a
atenção flutuante do analista.
Para trabalhar as questões que o analisando traz para a sessão, é
preciso que o analista procure se desprender de suas influências conscientes
e, assim, usando da atenção flutuante, permita ao paciente falar livremente e
com o mínimo de interrupções, apenas apontando o caminho a partir do que
emerge em seu discurso. A livre associação de ideias ininterrupta permite
que as defesas do Ego sejam “enfraquecidas”, contribuindo para a saída de
material inconsciente. Os mecanismos defensivos podem ser entendidos
como o mecanismo fundamental do ego de rejeitar de qualquer forma a
vivência e a tomada de conhecimento de experiências emocionais ansiogê-
nicas e que causariam sofrimento (ZIMERMAN, 1999).

228
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A utilização da abordagem psicanalítica no Plantão Psicológico


pode promover, dentro de suas possibilidades e limitações, “um espaço de
escuta a alguém que apresenta uma demanda psíquica [...] e oferece um
momento no qual esse sujeito [...] possa ressignificar o seu estar no mundo”
(REBOUÇAS; DUTRA, 2010, p. 27). Nesse sentido, no plantão é essencial que
o plantonista esteja implicado completamente no setting, atento às mani-
festações verbais e não verbais, de forma a auxiliar o paciente a organizar os
aspectos da queixa apresentada (STALIANO et al., 2017).
Ressalta-se que a técnica precisa ser adaptada da psicoterapia tradi-
cional para o plantão psicológico, levando em consideração que o tratamento
analítico geralmente consiste em um processo lento e profundo, enquanto
no plantão o tempo e os objetivos são especificados, existindo, inclusive,
a possibilidade de ser um encontro único. Além disso, outras diferenças
importantes são: não é possível conservar totalmente o setting da clínica tra-
dicional, e a dimensão das demandas tratadas mudam consideravelmente.
Partindo do exposto, marca-se que a utilização da abordagem psicanalítica
no plantão psicológico on-line não exigiu adaptações com relação à realiza-
da no presencial; no entanto, foram observadas diversas limitações quanto
ao seu uso por intermédio das TICs. As distrações e interrupções durante os
encontros, resultantes da conexão instável, limitam que o psicólogo consi-
ga perceber todas as manifestações verbais e não verbais que aparecem
no setting. Nesse sentido, os cortes durante a fala ou outra expressão do
paciente podem ser percebidos como uma interrupção na livre associação
de ideias, favorecendo com que os mecanismos defensivos se reorganizem
para impedir a saída de material inconsciente, o que, consequentemente,
prejudica o andamento do acompanhamento.
As diferenças observadas no modelo on-line com relação a um aten-
dimento presencial são significativas, levando em conta que o contato com a
pessoa frente a frente permite conservar melhor o setting, afastar possíveis
distrações, contribuindo também para o estabelecimento do vínculo entre o
estagiário plantonista e o paciente. Outro fator a ser destacado, que corro-
bora com o exposto por Pinto (2002) e Siegmund e Lisboa (2015), diz respeito
ao fato de que a visualização do paciente no modelo on-line fica submetida

229
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

a um recorte do que aparece em uma “janela” pelo computador, o que pode


atribuir um caráter superficial e impessoal ao atendimento. Atrelado a isso,
esse recorte do que é visto pelo psicólogo pode limitar a percepção das
nuances da expressão não verbal, dificultando uma avaliação mais completa
do indivíduo e a percepção do teor de alguma fala pelo psicólogo.
Retomando a questão da vinculação, sabe-se que a relação tera-
pêutica possui um papel fundamental no atendimento psicológico, podendo
ser entendida como o mecanismo pelo qual se processam os tratamentos
psicoterápicos. Sobre esse ponto, foi possível notar que o estabelecimento
do vínculo também se dá de forma diferenciada no modelo remoto. Assim
como fora apontado por Siegmund e Lisboa (2015), alguns fatores que
podem influenciar nesse fato são: a desconfiança com relação a serviços
oferecidos na internet, a dificuldade em expressar emoções na frente de
uma tela por parte do paciente, e a preferência pelo atendimento presencial.
Todavia, destaca-se que é possível estabelecer um vínculo adequado com o
paciente, criando um ambiente agradável e produtivo, mesmo que implica-
do em novas formas de contato e relações.
Por outro lado, se faz necessário discorrer sobre alguns aspectos
positivos identificados e já apontados por Siegmund e Lisboa (2015) ante-
riormente, tais como a maior facilidade espacial e temporal proporcionada
pelo formato on-line, mas, especialmente, a possibilidade do anonimato,
propiciado pela relação virtual, que contribui para a diminuição da inibição e
autocensura e o aumento da espontaneidade na relação terapêutica. Nessa
perspectiva, marca-se a necessidade da prática para lidar com os desafios e
limitações do formato, tendo em vista que as experiências sistemáticas com
atendimentos on-line geram “aprendizado” para a leitura e entendimento
dos chats e trocas virtuais.
Por fim, considerando o exposto, nota-se que a modalidade on-line
se configura como um grande desafio, sendo necessário o desenvolvimento
de estratégias para entrar em sintonia com o ritmo das especificidades
do serviço on-line e das possibilidades e limitações postas nesta prática.
A necessidade de adaptação é uma realidade e, neste cenário, o Plantão
Psicológico, enquanto um serviço orientado pela demanda emergencial e

230
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de aspecto imediato, se configura como um terreno fértil para contribuir no


atendimento à população no contexto on-line e pandêmico.

Referências

ALCÂNTARA, M. R.; SANTOS, D. V.; STALIANO, P. Plantão psicológico: Porta de entrada dos
serviços de psicologia em uma clínica-escola. In: BATISTA, C. E. R. B.; FERREIRA, E. M. (org.).
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232
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 15
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA PARA A
SAÚDE MATERNO-INFANTIL: experiências de um
estágio supervisionado

Luciana Leonetti Correia


Ana Beatriz Bento Gonçalves Lemes
Alexandra Naomi Hiraide Degaki

O estágio supervisionado apresenta-se como uma oportunidade aos


acadêmicos para adquirirem práticas em todas as áreas nas quais o psicó-
logo atua, sendo uma das mais importantes ferramentas para o acadêmico
colocar em prática o conhecimento adquirido no decorrer de sua formação.
Considerando que o acadêmico, em seu processo de formação, necessita
ter uma visão mais ampla sobre o sistema de saúde, evidencia-se a impor-
tância de se associar teoria e experiência prática, oportunizando vivências
de situações reais a fim de desenvolver habilidades e ter mais autonomia,
com caráter profissionalizante.
O objetivo deste capítulo é descrever as práticas de estágio do
Curso de Psicologia nas disciplinas de estágio básico e específico na área
da Saúde, mais especificamente na área materno-infantil. Cabe destacar
que, de acordo com o princípio da indissociabilidade entre pesquisa, ensino
e extensão, tais práticas de estágios ocorreram articuladas ao Projeto de
extensão “Para uma vinda bem-vinda” nos anos de 2012 a 2017 e ao Projeto
de Pesquisa “Pré-natal psicológico” de 2014 a 2017, todos coordenados pela
primeira autora. Porém, antes de tratar de modo mais específico sobre as

233
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

práticas de estágios, será apresentada uma breve síntese acerca da gesta-


ção, um breve histórico das políticas de saúde relacionadas à gestante, além
de considerações sobre a atuação da Psicologia nesse contexto.
Por gestação, entende-se o momento em que se inicia a concepção,
passando pelo desenvolvimento fetal e nascimento. Durante o período
gestacional é possível observar sentimento de tristeza ou de diminuição
na capacidade da mulher de sentir prazer, os quais podem ocorrer apenas
de forma transitória, entendida como uma reação fisiológica, psicológica
e comportamental da mulher que busca se ajustar às novas condições e
demandas internas e externas advindas do ambiente (RODRIGUES; SCHIA-
VO, 2011). Além disso, esse período envolve significativas mudanças e
adaptações no quadro psicossocial (ESPER; FURTADO, 2010; RODRIGUES;
SCHIAVO, 2011; CAMPOS; DEL PRETTE; DEL PRETTE, 2014; PINA; LOURES,
2014; LEITE et al., 2014; ZEOTI; PETEAN, 2015), implicando, por vezes, em um
acentuado nível de situações estressoras e de mal-estar que cada mulher
irá vivenciar de forma distinta (FIGUEIREDO; PACHECO; COSTA, 2006). Dada
a vulnerabilidade emocional materna, verifica-se ainda nesse período uma
maior predisposição para o aumento dos níveis de indicadores de depres-
são e ansiedade (CANTILINO et al., 2010; ALVES et al., 2011; PINA; LOURES,
2014; TOLENTINO; MAXIMINO; SOUTO, 2016; MORAIS et al., 2017; ALMEIDA;
ARRAIS, 2016).
O período pré-natal para a mulher é considerado um momento de
preparação psicológica e física para o parto e maternidade (ALVES et al.,
2011; ALMEIDA; ARRAIS, 2016). Apesar de algumas características serem
comuns durante os diferentes momentos da gestação, é possível identificar
algumas particularidades em cada um dos trimestres (BAPTISTA; BAPTISTA;
TORRES, 2006).
O primeiro trimestre é, geralmente, marcado pela descoberta da
gravidez, sendo comum o sentimento de ambivalência, relacionado ao
desejo de prosseguir com a gestação ou não (LEITE et al., 2014). Ademais,
estão presentes oscilações de humor e os primeiros sintomas gestacionais,
tais como náuseas, vômitos, sensibilidade nas mamas, maior instabilidade
emocional, sonolência, cansaço e repulsa por determinados alimentos, as-

234
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

sociados às transformações e adaptações físicas e psicológicas, ocasiona-


das pelas mudanças hormonais e corporais (BAPTISTA; BAPTISTA; TORRES,
2006; LEITE et al., 2014).
No segundo trimestre gestacional, devido aos movimentos fetais, a
gestante passa a sentir o seu bebê, momento no qual existe uma modifica-
ção no imaginário materno, uma vez que o bebê imaginário passa a ser um
bebê real (BAPTISTA; BAPTISTA; TORRES, 2006; LEITE et al., 2014). Brazelton
e Cramer (1992) afirmaram que a mãe, personificando o feto e atribuindo-lhe
características e personalidade, começa a se relacionar com ele. A realidade
dos movimentos fetais e das ultrassonografias proporcionam mais dados
para serem acrescentados ao bebê imaginado (FERRARI; PICCININI; LOPES,
2007). Além disso, as alterações no corpo da mulher também ficam mais evi-
dentes, o que pode desencadear altos níveis de indicadores de depressão
e ansiedade, sentimentos de insatisfação em relação ao corpo, insegurança,
baixa autoestima, além de preocupações e fantasias referentes à materni-
dade (MELO; LIMA, 2000; BAPTISTA; BAPTISTA; TORRES, 2006). Entretanto,
estes temores desencadeados com a gestação podem assumir um signifi-
cado simbólico ainda maior, no que diz respeito à mulher assumir uma nova
identidade baseada em sua experiência da maternidade, o que resultaria na
“perda” de sua antiga identidade. Além disso, todos esses fatores podem
impactar negativamente a saúde mental materna (MELO; LIMA, 2000).
Estas alterações emocionais podem tanto impulsionar fantasias ma-
ternas quanto ser motivo de antecipações de acontecimentos e frustrações
referentes à gestação e à maternidade. A espera pela descoberta do sexo
do bebê, por exemplo, é carregada por simbolismos e inquietudes para a
gestante, visto que, mesmo sem o conhecimento do sexo da criança, os pais
tendem antecipadamente a formular uma criação imaginária de seu filho,
com características e atribuições que, em alguns casos, em nada coincidem
com a realidade (PICCININI et al., 2004).
Finalmente, no terceiro trimestre gestacional verifica-se um aumen-
to acentuado nos indicadores de ansiedade, devido à proximidade do parto
(MELO; LIMA, 2000; LEITE et al., 2014). Neste momento, a mulher se vê toma-
da por inseguranças e medo, que vão desde o medo da dor das contrações

235
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e parto, passando por preocupação pela saúde do bebê, medo de morrer,


medo de que algo dê errado, desconforto devido à elevação da barriga,
insegurança em relação ao aleitamento, sua recuperação, mudanças em
sua rotina com a chegada da criança, até dúvidas e angústias quanto à sua
capacidade de realizar os cuidados com o recém-nascido e conciliá-los com
todas as atividades que, antes da gravidez, já eram de sua responsabilidade
(BAPTISTA; BAPTISTA; TORRES, 2006; PRIMO; AMORIM, 2008).
Fatores fisiológicos, psicológicos e sociais maternos, além do próprio
comportamento do feto nos meses finais da gestação, podem influenciar no
bem-estar da mulher e na constituição do vínculo mãe-bebê (ALVARENGA
et al., 2012). Desse modo, a vinculação entre pais e filhos não ocorre de forma
instantânea, mas inicia-se na gestação, tratando-se de um processo longo e
contínuo, no qual o bebê já começa a fazer parte da vida, dos cuidados, das
preocupações e do cotidiano da mulher, seja por meio de representações,
fantasias ou desejos (PERRELLI et al., 2014).
Após o período gestacional, a mulher se prepara para a chegada
do bebê. A ansiedade torna-se aguda nestes últimos dias, e a ambivalência
pode aparecer, pois, ao mesmo tempo em que esta mulher deseja ter o filho
e encerrar a gravidez, ela também pode desejar estender esta gestação,
adiando a necessidade de fazer as novas alterações exigidas por uma nova
rotina (MALDONADO, 2002).
Sendo assim, considerar a gravidez como um processo de transição
não quer dizer que o estágio crítico se encerre no momento do parto, pois
uma série de modificações ocorre após a chegada do bebê. O próprio parto
é identificado como sendo um estágio crítico, dado o sentido de transição
de um estado a outro, ou seja, o bebê que estava na barriga da mãe passará
a estar em seus braços em um processo irreversível. Isso tudo é vivenciado
como um “salto no escuro”, um momento imprevisível e desconhecido, o
que contribui para aumentar a ansiedade e insegurança da futura mãe, uma
vez que não se sabe como e quando se dará o trabalho de parto (MALDO-
NADO, 2002).
O puerpério, por sua vez, deve ser visto como a continuação desta
fase de transformações, implicando em alterações fisiológicas, cotidianas

236
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e familiares. Segundo o Ministério da Saúde, o puerpério corresponde ao


período do ciclo gravídico-puerperal em que as modificações locais e sistê-
micas, provocadas pela gravidez e parto no organismo da mulher, retornam
à situação do estado pré-gravídico (BRASIL, 2003). A duração do puerpério é
bastante variável: fisiologicamente, até 90 dias; e, psicologicamente, não há
um término preciso (ZIMMERMAN et al., 2001).
O período puerperal pode ser vivido ainda com um misto de sen-
timentos ambíguos, por exemplo, a gestante pode estar alegre, porém
também sentir-se insegura ou deprimida; por vezes, essa dualidade de
sentimentos é experienciada em segredo, não sendo compartilhada ou
demonstrada de alguma forma (MERIGHI; GONÇALVES; RODRIGUES, 2006).
As transformações corporais e hormonais, a adaptação à chegada do bebê,
a amamentação, o estabelecimento de uma nova rotina, as noites mal dor-
midas, a carência afetiva, enfim, as novas exigências, tornam a mulher mais
vulnerável emocionalmente.
Destaca-se, portanto, que esse período também requer um cuidado
especial em relação à saúde mental da mulher, devido à intensidade das
diversas mudanças físicas e emocionais, que exigem uma grande capaci-
dade de adaptação, especialmente materna, uma vez que, na maioria das
vezes, ela é a principal responsável pelos cuidados dispensados ao bebê.
Por isso, é de suma importância que a puérpera receba continuamente cui-
dados, atenção e acompanhamento dos familiares e profissionais da saúde
(BARROS; MARIN; ABRÃO, 2002).
Na década de 70, as Políticas Públicas de Saúde no Brasil focaram-
-se nos aspectos preventivos, com o intuito de atingir uma maior parcela da
população. A assistência à gestante, uma das atividades realizadas há mais
tempo nos serviços públicos de saúde no país, foi, por muitos anos, orientada
principalmente para melhorar os indicadores da saúde infantil. O Programa
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), instituído pelo Ministério
da Saúde em 1983, concebeu um novo paradigma na atenção à saúde da
mulher, o qual ganhou força com a Constituição Federal em 1988, na qual o
direito à saúde estaria garantido por lei, em um sistema único de saúde a ser
implantado de forma descentralizada e com instâncias de controle social.

237
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Contudo, só nos anos 2000, com a Política Nacional de Humanização no


Pré-natal e Nascimento (PHPN), inicia-se uma nova perspectiva, consideran-
do a humanização como o elemento estruturador de um novo modelo de
atenção à mulher durante a gestação e o parto. A PHPN definiu elementos
chaves da assistência à gestação e ao parto, em torno dos quais deveria
concentrar esforços para a ampliação do acesso ao pré-natal e a promoção
do vínculo entre a assistência ambulatorial e o momento do parto, entre
outros (SERRUYA; CECATTI; LAGO, 2004).
Em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH) buscou pôr em
prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo
mudanças tanto nos modos de gestão quanto nos cuidados. A PNH é uma
política inserida em todas as políticas e programas do SUS e, portanto, con-
tribui para a promoção da saúde de forma mais corresponsável. A PNH prevê
ações que envolvam empatia, compreensão, responsabilidade (HECKERT;
PASSOS; BARROS, 2009), uma vez que tem por diretrizes o acolhimento, a
cogestão e a ambiência, entre outros. A prática acolhedora visa promover
um ambiente humanizador, no qual estarão presentes o relacionamento
saudável, a escuta, a comunicação eficaz, o interesse e a valorização, tendo
como objetivo auxiliar e facilitar o enfrentamento das dificuldades que sur-
girão neste processo (DAVIM; TORRES, 2008).
Dessa forma, verifica-se que a Psicologia vem conquistando maior
espaço nesse contexto (ALMEIDA; MALAGRIS, 2011), pois tem muito a con-
tribuir com a saúde mental materno-infantil, na medida em que promove
espaços de escuta, acolhimento e atenção, e, portanto, a maternidade de
um hospital apresenta-se como um espaço de prática psicológica (ALVES et
al., 2011). A inserção do psicólogo na assistência ao contexto gestacional de
alto risco está preconizada pela Portaria nº 3.477, de 20 de agosto de 1998
do Ministério da Saúde. Sendo assim, a atuação do psicólogo nesse cenário
objetiva preparar a mulher e/ou o casal para os aspectos evolutivos próprios
da gestação, visando um maior entendimento das possíveis alterações psí-
quicas, das fantasias e dos papéis a serem desempenhados por mãe e pai
(ALMEIDA; ARRAIS, 2016).

238
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Além disso, a importância do trabalho da psicologia no âmbito da


maternidade, mesmo após o nascimento do bebê é reiterada, de forma
que é esperado que a atenção e os cuidados se estendam para além dos
aspectos afetivos envolvidos na díade mãe-bebê, incluindo também o pai e
os demais familiares (ALVES et al., 2011).

Sobre o estágio realizado

A proposta do presente estágio teve por objetivo promover o aco-


lhimento de gestantes e de seus acompanhantes, por meio de ações de
orientação e de apoio acerca de gestação, parto e puerpério. As atividades
do estágio ocorreram paralelamente às atividades de extensão do projeto
“Para uma vinda bem-vinda” e foram desenvolvidas nos anos de 2013 a 2017.
Essa prática foi articulada com as diretrizes da PNH. Desse modo, por meio
do presente estágio procurava-se desenvolver ações de prevenção, promo-
ção, proteção e reabilitação da saúde psicológica e psicossocial, em grupos,
baseados em evidências científicas e dentro dos princípios éticos.
A seguir, serão descritas duas atividades que foram realizadas como
prática de estágio supervisionado, que tinham objetivos complementares:
visita à maternidade e workshop para gestantes.

Visita à maternidade

A primeira ação desenvolvida por meio do estágio era a visita à


maternidade, realizada pelos estagiários, juntamente com as mães e seus
respectivos acompanhantes na maternidade de referência da região da
Grande Dourados.
As visitas eram divulgadas pelo projeto de extensão “Para uma vinda
bem-vinda” e os agendamentos para as visitas eram de responsabilidade
da bolsista deste projeto, conforme o horário reservado previamente com
a instituição e com os estagiários. As visitas ocorriam três vezes na semana
e eram previamente agendadas, via contato telefônico com a maternidade
do hospital. As gestantes podiam levar um acompanhante de livre escolha.

239
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

No horário agendado, os estagiários aguardavam a gestante e seu acompa-


nhante na porta de entrada da maternidade para iniciar a visita.
Inicialmente, seguindo a própria estrutura do hospital, as gestantes e
seus acompanhantes eram recebidos na sala de recepção da maternidade.
Ali acontecia o primeiro contato da gestante com a instituição hospitalar e
era informado que, quando voltasse à maternidade para o dia do parto, de-
veria levar e entregar na recepção todos os exames referentes ao pré-natal
e seus documentos pessoais. Além disso, também apresentava-se a sala do
cartório, pois os visitantes eram comunicados sobre o registro do bebê antes
de receber alta do hospital, inclusive sobre quais os documentos necessários
para o registro, assim como os horários e dias do funcionamento dessa sala.
Ao adentrar o hospital, entrava-se em um corredor com diversos
quartos, sendo os primeiros destinados à observação e monitoramento das
gestantes em situação de risco e que precisavam ser assistidas pela equipe
médica. Na sequência, estavam os quartos comunitários destinados às mães
e aos bebês até o momento da alta. Cada quarto tinha capacidade para
atender duas mães com seus bebês e um acompanhante, respectivamente,
e era equipado com uma cama para as mães, um berço e uma cadeira para
os acompanhantes.
Posteriormente, devido às normas de segurança e higienização
do respectivo hospital, a visita ao Centro Obstétrico limitava-se à sala de
pré-parto, equipada com alguns materiais utilizados para amenizar dores e
desconforto durante o trabalho de parto, tais como a bola suíça, um “cavali-
nho” e chuveiro.
As Unidades de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) e a de Cuidado In-
termediário (UCI), além da sala de ordenha, eram apresentadas da porta para
fora, devido aos critérios acima mencionados. No caso da UTIN e da UCI, a
intenção na visita era demonstrar que a presente instituição oferecia assis-
tência específica aos cuidados neonatais e, consequentemente, tranquilizar
as gestantes na hipótese de alguma intercorrência relacionada à saúde do
bebê, durante e após o parto. Já a sala de ordenha, que funcionava para
atender a demanda dos bebês hospitalizados na UTIN, fornecia orientação
para a futura lactante. Estas ações eram alinhadas com as políticas de alei-

240
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tamento materno do Ministério da Saúde, em parceria com a Secretária de


Saúde do município. Ainda nesse Setor, havia um banco de leite cadastrado
no Ministério da Saúde, o qual disponibilizava os procedimentos necessários
para o processo de doação de leite materno em todo o município.
Ao final, todos os visitantes eram conduzidos ao auditório da ins-
tituição hospitalar. Lá eram repassadas as informações mais relevantes e
esclarecidas as últimas dúvidas. Destaca-se ainda que, por vezes, membros
da equipe multidisciplinar da maternidade, em especial da enfermagem e
fisioterapia, também participavam da visita, fornecendo mais informações
sobre seu setor ou esclarecendo dúvidas mais específicas.
No decorrer do estágio, observou-se que, em grande parte das
visitas realizadas, os acompanhantes eram os atuais companheiros e pais
do filho da gestante. Foram poucas as gestantes que iam acompanhadas
por suas mães ou irmãs. Além disso, percebeu-se que as gestantes e seus
acompanhantes, em geral, mostravam-se tímidos ou envergonhados em
perguntar ou questionar sobre temas relacionados à maternidade, sendo
que grande parte das questões era relacionada às vias de parto (normal ou
cesárea) e à alta do hospital. Contudo, verificando-se a necessidade de dis-
cutir sobre outros temas relevantes relacionados à maternidade, gestação,
parto e puerpério, foi elaborado um workshop destinado às gestantes e aos
seus acompanhantes, os quais eram convidados após participarem da visita
à maternidade.

Workshops para gestantes


A segunda ação realizada pelos estagiários corresponde aos
Workshops destinados a gestantes e seus acompanhantes, após terem
participado da visita à maternidade. Estes Workshops eram planejados
previamente como umas das atividades de estágio e eram previstos para
ocorrerem mensalmente, da seguinte forma: 1. Apresentação do projeto e
dos convidados e demais presentes: incialmente era solicitado às gestan-
tes e aos seus acompanhantes que se apresentassem, dizendo o nome, a
idade e o tempo de gestação. Na sequência, era apresentada a proposta

241
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

do workshop como um momento de escuta, acolhimento e reflexão sobre a


gestação, parto e puerpério, e, na sequência, sugeria-se que os demais pre-
sentes comentassem sobre a descoberta da gestação, as mudanças físicas
e emocionais pelas quais haviam ou estavam passando. Aproveitava-se a
oportunidade para falar dessas mudanças e promover um canal livre para
comunicação; 2. Em seguida, era realizada uma dinâmica de “Mitos ou ver-
dades”, na qual apresentavam-se algumas afirmações, como, por exemplo,
“A gestante deve comer por dois”, “A gestante não pode praticar exercícios
físicos” e “Existe leite fraco”, e, posteriormente, solicitava-se que os presentes
respondessem se tais afirmações eram mito ou verdade. Após a resposta,
discutia-se com o grupo acerca de eventuais dúvidas sobre os assuntos
abordados; e 3. Por fim, as gestantes e acompanhantes eram conduzidos a
uma sala maior para participarem de um momento de relaxamento guiado
e com música, reforçando o contato e vínculo de mãe, bebê e, muitas vezes,
do acompanhante. Após o relaxamento, era oferecido um coffee break, além
de sorteio de brindes e entrega de lembrancinhas.
Verificou-se que, durante os workshops, as mães traziam dúvidas
e questionamentos sobre a gestação, as quais muitas vezes não eram to-
talmente esclarecidas nas consultas pré-natais. Por isso, esse momento
tornou-se um espaço para que tanto as gestantes quanto seus acompa-
nhantes pudessem se expressar livremente e compartilhar experiências,
angústias e aflições.
A repercussão dessa ação fez com que fôssemos convidadas a es-
tendê-la e realizá-la nas Unidades de Saúde de alguns bairros no Município
de Dourados, na medida em que alguns profissionais de saúde já conheciam
o projeto de extensão das visitas à Maternidade. Além disso, a realização do
workshop na sede da Unidade de Saúde teve grande adesão e participação das
gestantes, devido à maior facilidade de mobilidade e acesso pelas mesmas.
Aos estagiários, a atuação direta com a população alvo proporcio-
nou a identificação e análise das necessidades de natureza psicológica das
gestantes, bem como a atuação de forma mais coerente, tanto em um nível
preventivo quanto terapêutico, considerando as características das situa-
ções e das questões específicas que envolviam a gestação. Além disso, o

242
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

planejamento e as intervenções possibilitaram que os estagiários pudessem


escolher e utilizar instrumentos e procedimentos metodológicos pertinentes
às demandas encontradas. Por fim, na elaboração dos relatórios parciais e
finais de estágio demonstrou-se a capacidade de maior articulação entre o
conhecimento científico e a atuação profissional.

Considerações finais

Por meio do relato dessas experiências de estágio, buscou-se apre-


sentar possíveis atuações do psicólogo na saúde materno-infantil, incitando
também novos pensamentos sobre essa prática. A experiência dessa prática
foi enriquecedora e importante, proporcionando uma vivência do conheci-
mento que articula teoria e prática na formação dos estagiários, os quais
puderam aprender a trabalhar “em grupo” e “com grupos” de gestantes;
conhecer, acolher e atender a demanda de parte da população gestante do
município; além de estabelecer contato direto com um hospital universitário
e com a equipe envolvida na saúde materno-infantil.
Considerando que uma das funções do psicólogo reside na com-
preensão do que está por trás da queixa ou sintoma trazido pelo paciente,
ou seja, aquilo que não está explícito, um dos objetivos do presente estágio
era o de conhecer e identificar como estava sendo a experiência da ges-
tação, quais as ansiedades, angústias e alegrias maternas relacionadas
com a espera do bebê e quais as dificuldades enfrentadas neste período,
entre outros aspectos. Desse modo, todo o relato materno e também dos
acompanhantes era acolhido com atenção e empatia e, quando necessário,
os estagiários faziam orientações mais especificas e encaminhamentos à
Clínica de Psicologia da Faculdade (LabSPA).
Enfatiza-se, portanto, a importância de práticas dessa natureza na
maternidade ou em serviços direcionados a gestantes, visto que as mães
e pais encontram-se, em geral, vulneráveis e fragilizados emocionalmente,
devido ao momento que estão vivenciando, momento este de grandes
mudanças em suas vidas e que pode gerar angústia e ansiedade, desde

243
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

a descoberta da gravidez (ALVES et al., 2011) até o parto e, posteriormente,


o puerpério. Dessa forma, o acolhimento psicológico é uma das ferramen-
tas que possibilita amenizar estes sintomas, visto que estes pais terão um
espaço para falar abertamente sobre seus medos, fantasias, descobertas
e inseguranças, buscando também sanar suas dúvidas no que cabe ao
conhecimento deste profissional.
Destaca-se ainda que a abordagem em grupo foi benéfica e ade-
quada nesse contexto. Considerando que a aprendizagem social é feita em
grupos, esse tipo de abordagem mostrou-se pertinente neste cenário por
diversas razões. A primeira é porque gestantes e seus acompanhantes, em
geral, vivem realidades muito semelhantes, e isso proporcionou aprendiza-
dos com a experiência de outros que passam pela mesma situação. Outra
razão importante é que o grupo permite o desenvolvimento e ampliação de
habilidades sociais e de comunicação mais eficientes. E, por último, diversas
pessoas podem ser atendidas ao mesmo tempo, maximizando o aproveita-
mento de tempo e custos.
Por fim, tais atividades de estágio permitiram uma visão mais abran-
gente da atuação psicológica na área da saúde materno-infantil, visando não
somente a gestante, mas também a sua família e, indiretamente, a equipe de
profissionais de saúde envolvidos nos cuidados à mãe e ao bebê. Portanto,
as relações estabelecidas entre os estagiários e os acompanhantes da
gestante e os demais membros da equipe de saúde proporcionaram novas
aprendizagens e vivências, uma vez que, na atuação, o psicólogo é agente
facilitador de comunicação entre todos estes atores, seja com o intuito de
obter informações e esclarecimentos médicos acerca do paciente ou de
redirecionar o olhar dos demais profissionais para os aspectos subjetivos do
sujeito, contribuindo para um atendimento mais humanizado e acolhedor.

244
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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247
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 16
ECONOMIA SOLIDÁRIA: uma intervenção de
estágio em lavanderias comunitárias

Sandra Fogaça Rosa Ribeiro


Sonia Tsai Huang

Esta intervenção foi realizada a partir do Estágio Supervisionado


no âmbito da Psicologia do Trabalho e Gestão, com vistas à conclusão da
Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados —
UFGD. Apesar de não ser muito comum, a proposta foi intervir no âmbito
da Economia Solidária, em duas lavanderias comunitárias do município.
Coutinho, Beiras, Picinin e Luckmann (2005) destacaram que a Psicologia
pode contribuir nos empreendimentos solidários, no sentido de desenvolver
a autonomia e solidariedade dos trabalhadores, uma vez que estes atribuem
novos significados às suas identidades profissionais, vivenciando o trabalho
através de uma nova perspectiva.
Nessa experiência, participaram um estagiário e uma estagiária do
último ano do curso, sendo acompanhados durante toda prática por meio
de supervisão semanal pela docente responsável pelo estágio. O plano
curricular foi a ação profissional na área da Psicologia do Trabalho, tendo em
vista a atuação com grupos e equipes de trabalho, observando as relações
de trabalho, elaboração do diagnóstico organizacional, além da prevenção e
promoção de saúde do trabalhador no âmbito organizacional.
A Economia Solidária caracteriza-se como um movimento vivo,
amplo e dinâmico, cujas raízes históricas se encontram nas ações e nas
lutas de organizações de trabalhadores, movimentos populares, grupo de

248
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

universidades, igrejas e também com o apoio de governos. Assim, nos anos


80, quando predominou a produção maquinária, exigiu-se a mão de obra
qualificada, deixando milhões de pessoas desempregadas. Nesse cenário,
os trabalhadores se organizaram de forma coletiva, surgindo a ANTEG (As-
sociação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão). Na década
de 90, surgiram as ITCPs (Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Popu-
lares), pertencentes às Universidades, com o objetivo de auxiliar a população
de baixa renda em cooperativas de produção. A Economia Solidária foi se
fortalecendo com base nas esferas privada, pública e popular; com muito
esforço e luta coletiva, a teoria e a institucionalização foram se tornando
legítimos. Mais tarde, na década de 2000, foram criados o Fórum Brasileiro
de Economia Solidária (FBES) e Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES) (SILVA, 2015).
Desta maneira, a prática da Economia Solidária é regida pelos
valores de autogestão, democracia, cooperação, solidariedade, respeito à
natureza, promoção da dignidade e valorização do trabalho humano, visan-
do um projeto de desenvolvimento sustentável global e coletivo, além de
enfrentar a exclusão social. A Economia Solidária acontece onde, em vez
de individualismo, há união; em vez de competição, há cooperação; em vez
de individualidade, há solidariedade. É um jeito de produzir, de vender, de
consumir produtos onde as pessoas não são movidas pela ganância, mas
pelo desejo de que não haja ninguém excluído, de que todos possam viver
bem (BRASIL, 2007). Hoje, a Economia Solidária já se espalhou pelo país
inteiro, criando milhares de empreendimentos econômicos, como exemplo:
associações, cooperativas, agricultores, grupos de costura, borda, coopera-
tivas de catadores, trabalhadores de fábricas falidas, pessoas que ao invés
de vender realizam trocas, comunidades que usam moeda social em clubes
de trocas e bancos solidários. Em todo o país, milhões de pessoas estão
produzindo, vendendo e comprando solidariamente, gerando trabalho e
renda. (BRASIL, 2007).
Nessa perspectiva, o leitor poderá adentrar na experiência do estágio,
iniciando pelo relato acerca das primeiras aproximações com a Secretaria de

249
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Agricultura e Economia Solidária do município e das lavanderias, seguido


das intervenções.

Primeiras conversas com a Secretaria de Agricultura e Economia


Solidária

A atuação foi dividida em duas Lavanderias Comunitárias da cidade


de Dourados-MS. Entretanto, o primeiro contato foi com a Secretaria da
Agricultura e Economia Solidária, tendo em vista que as lavanderias faziam
parte desse departamento. Foram realizados alguns encontros iniciais com
a coordenadora do projeto, que posteriormente encaminhou o estagiário e a
estagiária para as lavanderias, localizadas em dois bairros da cidade. O estágio
foi dividido em dois semestres, sendo o primeiro focado no estudo teórico
sobre Economia Solidária, seguido por um reconhecimento e aproximação do
campo de trabalho. No segundo semestre, iniciaram-se as intervenções.
As aproximações e as intervenções foram possíveis por terem sido
acompanhadas por reflexões pari-passu. A fim de propiciar uma leitura mais
próxima da vivência de estágio, as aproximações, intervenções e análises de
cada momento estarão expostas de forma imbricada. A separação desses
itens impediria que o leitor compreendesse a experiência.
Numa primeira reunião com a coordenadora da Secretaria de Agri-
cultura e Economia Solidária, foi apresentada a proposta de trabalho, que
consistiria em inserir a psicologia nos empreendimentos, a fim de disponibi-
lizar para as trabalhadoras da lavanderia situações nas quais elas pudessem
conversar, refletir sobre suas relações, seus desgastes, suas ansiedades
referentes ao trabalho. Cabe apontar que o termo “empreendimento” era
utilizado pela coordenação do projeto, por isso foi mantido neste relato,
mesmo que, nas supervisões do estágio, as polemizações acerca dessa ter-
minologia tivessem sido apontadas (GAIGER; FERRARINI; VERONESE, 2018).
Foi possível conhecer um pouco as dificuldades de relações entre
a secretaria e as lavanderias, e também tomar notas sobre o contexto e o
surgimento dos empreendimentos de Economia Solidaria na cidade de

250
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Dourados. Segundo a coordenadora, ela encontrou muitas dificuldades,


desde o início de seus trabalhos com as mulheres nas lavanderias, pois elas
se encontravam fechadas para certos diálogos e muito dependentes da
prefeitura. Inclusive, o surgimento da economia solidária na região se deu
através do incentivo do governo. A coordenadora mencionou que, quando
surgia um empreendimento novo, dependendo da demanda do grupo, era
falado sobre os conceitos da Economia Solidária; porém, em certos mo-
mentos, essa conversa era omitida, pois as pessoas acabavam perdendo o
interesse. Um exemplo citado foi da Feira Livre que surgiu no Parque dos
Ipês na cidade, onde houve a fala inicial sobre essa forma de economia,
porém, devido à grande rotatividade, essa conversa foi se perdendo.
Foi realizada uma outra conversa sobre o contexto histórico das
lavanderias na cidade e como eram organizados os setores na secretaria.
Inicialmente, a Economia Solidária surgiu por causa de uma demanda do
poder público, sendo esse um grande fator na dependência dos empreen-
dimentos para com a verba pública, se perdendo alguns conceitos da au-
togestão, que seriam a chave para que os princípios da Economia Solidária
se concretizassem. Um dos incentivos era o pagamento da luz e da água
das lavanderias pelo poder público, desde a implantação dos empreendi-
mentos. Nos anos de 2000 a 2008, surgiu com uma grande equipe, sendo
administrada pela assistência social com polos em cada CRAS dos bairros
da cidade de Dourados, oferecendo cursos e oficinas.

Primeiras conversas nas lavanderias

Nas reflexões realizadas nas supervisões do estágio, foi possível


ponderar sobre as dificuldades de comunicação entre a Secretaria de Agri-
cultura e Economia Solidária e as mulheres das lavanderias, pois, na pers-
pectiva da coordenação da secretaria, elas se encontravam fechadas para
certos diálogos. Por outro lado, quando as aproximações do estagiário e da
estagiária com as lavanderias foram realizadas, essa dificuldade na comuni-
cação também foi mencionada, discriminada como falta de apoio financeiro,

251
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

instabilidade na permanência do projeto e perda do local de funcionamento


dos serviços, devido a mudanças de gestão ao longo do tempo. As mulheres
também relataram apreensão por se sentirem pressionadas pela Secretaria
de Agricultura e Economia Solidária a se tornarem cooperativas, bem como se
transformarem num local de capacitação para outros grupos. Deveriam arcar
com as despesas, custos e também benefícios, por conta própria. Percebeu-
-se que, do ponto de vista das trabalhadoras, essas transformações seriam
prejudiciais. Não estavam convictas dos princípios da Economia Solidária e do
Cooperativismo, pois, segundo Cardoso (2014), entre os princípios do Coope-
rativismo, está a adesão voluntária e livre, aberta a todas as pessoas aptas a
utilizar os seus serviços e assumir as responsabilidades como membros, sem
discriminações, sociais, raciais, políticas, religiosas e de gênero. Pondera-se
que as trabalhadoras não conseguiam vislumbrar os benefícios do local tor-
nar-se uma cooperativa, caso todas se juntassem e repartissem por igual suas
rendas, o que possibilitaria a entrada de pessoas novas.
As conversas nas lavanderias Um e Dois — assim denominadas neste
relato, para evitar os nomes reais — revelaram a história delas. A lavanderia
Um tinha 25 anos de funcionamento e 10 trabalhadoras, enquanto a Dois
tinha 16 anos e 12 trabalhadoras.
Na lavanderia Um, a relação interpessoal era um pouco difícil, nem
todas participavam juntas das atividades, sendo que uma delas fazia todo
o seu serviço numa sala separada e não participava de nenhuma conversa
com as colegas. Inclusive, não participou dos encontros propostos pelo
estagiário e estagiária. Os vínculos de parentesco estavam presentes nesta
lavanderia, algo comum, reiterado pela literatura (POLASTRINI, 2005). Nessa
lavanderia trabalhava uma senhora, considerada pioneira do local. Existia
uma certa liderança por parte desta e sua filha, concentrando maior poder
de decisão em si do que nas demais trabalhadoras. Esta situação ocorreu de
forma similar em uma das pesquisas de intervenção da área de psicologia
comunitária em uma cooperativa de reciclagem de resíduos sólidos:

Notamos uma divisão dos cooperados em dois subgrupos:


os antigos e os novos integrantes. Os antigos, fundadores do
grupo, falavam de um passado mítico, em que havia união,

252
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

organização e trabalhava-se muito. O presente era só nega-


tividade. Este subgrupo detinha o poder na cooperativa e, de
certa forma, influenciava os novatos para atingir determinados
objetivos. Já os mais novos da cooperativa questionavam o
funcionamento do empreendimento e procuravam construir
um lugar mais qualificado para si no grupo. Nesse processo,
eles acabavam por se tornar uma ameaça aos mais antigos: as
iniciativas eram tomadas como ameaça aos papéis estabele-
cidos (GAMA; KODA, 2010, p. 217).

Por outro lado, na lavanderia Dois foi possível notar uma ótima re-
lação interpessoal. Muitas delas relataram que eram como uma família; na
verdade, tinham mesmo um grau de parentesco entre si. A presença dos
familiares era frequente, especialmente de crianças. Foi importante ponde-
rar até que ponto essas relações de parentesco eram favoráveis ao empre-
endimento e ao desenvolvimento dos pressupostos da Economia Solidária
(POLASTRINI, 2005). Nas conversas, as mulheres disseram que, apesar de
desentendimentos ocasionais, uma sempre ajudava a outra. Inclusive uma
delas ficou doente, com câncer, e outras fizeram o trabalho que seria dela,
possibilitando a manutenção da vaga quando se restabelecesse. Entretanto,
não receberia nenhum valor enquanto estivesse afastada. Percebeu-se
que, apesar das trabalhadoras terem sido solidárias no que se referiu ao
adoecimento da colega, mantendo a vaga, a forma de gestão, baseada
na lucratividade por serviço realizado, impediu que compartilhassem os
ganhos com ela. Isso demonstrou que estavam distantes dos princípios da
Economia Solidária.
Nesse sentido, algumas contradições foram encontradas, no que se
referia aos conceitos básicos corporativos da Economia Solidária. No caso
citado — da trabalhadora que se ausentou por conta do seu tratamento de
saúde —, se a lavanderia estivesse funcionando na perspectiva da Economia
Solidária e não no ganho individual, essa trabalhadora ausente teria seus
ganhos mantidos. Porém, no contexto em que se encontrava o empreendi-
mento, ela ficava com seus ganhos interrompidos, por não estar ativamente
no trabalho (CARDOSO, 2014).

253
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A despeito das diferenças entre as duas lavanderias, uma com mais


união no trabalho e outra menos, foi delicado propor temas sobre Economia
Solidária nos dois empreendimentos, pois, por mais que tivessem vinculadas
a um projeto público com esse direcionamento, o custeio não as caracteri-
zava nessa perspectiva. O fato da prefeitura pagar as contas de água e luz,
por mais que fosse necessário, acabava por quebrar os paradigmas da Eco-
nomia Solidária. Sobre isso, Singer (2001) afirmou que, para uma proposta se
caracterizar como Economia Solidária, seria preciso desenvolver um meio
de produção baseado na igualdade, o que já diferia nas lavanderias, pois
cada mulher tinha seu cliente: ora uma ganhava mais, ora a outra.
Reconhecendo as limitações de uma intervenção de estágio, bem
como os desafios conceituais apontados, fez-se uma reflexão cuidadosa a
respeito dos pontos levantados. A partir disso, elencaram-se alguns temas
pertinentes, que não se constituiriam num programa rígido, mas num dire-
cionamento para encontros periódicos: concorrência da liderança, dificul-
dades com práticas legítimas de Economia Solidária, gestão na perspectiva
da Economia Solidária, relacionamento solidário e dificuldades na relação
familiar e de trabalho.
Dessa forma, propôs-se uma intervenção nas lavanderias, no forma-
to de encontros. Foram seis encontros quinzenais, explicados e analisados
logo abaixo.

Intervenções

Os encontros de intervenção foram semelhantes nas duas lavande-


rias. Algumas diferenças serão apontadas na análise, exposta logo a seguir.
A estrutura dos encontros foi baseada em atividades ou jogos que
pudessem elucidar os temas de uma forma vivencial (GRAMIGNA, 1997).
Nesse sentido, as atividades tiveram a seguinte estrutura:

254
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Encontro 1 Breve apresentação da proposta.


Encontro 2 Jogo das Tarjetas com palavras.
Encontro 3 Jogo das cadeiras.
Encontro 4 Filmes de curta-metragem.
Encontro 5 Jogo dos balões.
Encontro 6 Jogo do barbante e encerramento com confraternização.

No primeiro encontro, foi feita uma apresentação da proposta da


intervenção. Na lavanderia Dois, a adesão foi maior, enquanto na Um houve
uma certa relutância em participar. Em ambas, percebeu-se uma certa des-
confiança sobre o papel do estagiário e da estagiária, com suspeitas de que
estivessem a serviço do município, com o intuito de vigiá-las ou controlá-las.
Na lavanderia Dois, isso se expressou com mais intensidade, relataram
comentários entre elas, referindo-se que teriam problemas caso faltassem
nos encontros. Foi esclarecido que isso não ocorreria, oportunizando-se
reflexões sobre alguns princípios da Economia Solidária, no que se refere
à autogestão. Por meio dessas ponderações, percebeu-se que o ideário
de punição por parte de um suposto patrão, a prefeitura, estava presente.
Através do relato, percebeu-se que as trabalhadoras ainda estavam muito
presas à ótica e sistematização capitalista de patrão-funcionário. Segundo
Bulla e Goerck (2010), um dos elementos que compõem a gestão nas ex-
periências de Economia Solidária, além da igualdade e da solidariedade, é a
autogestão, na qual o sujeito pode elaborar suas próprias regras de gestão e
sistematização do trabalho. Essas reflexões indicaram que a temática acerca
da gestão deveria ser aprofundada nos encontros posteriores.
No segundo encontro, ocorreu o Jogo do papel em branco. Em
forma de círculo, foram distribuídos papéis em branco, lápis de cor e cane-
tas coloridas, para que cada pessoa desenvolvesse livremente aquilo que
representasse o que sentia em relação ao trabalho. Em seguida, refletiram
sobre cada palavra. Foi possível conhecer um pouco sobre o que o trabalho
significava para cada uma, o que sentiam em relação ao trabalho e qual
a importância desse trabalho em suas vidas. Nas duas lavanderias foram
observadas as dificuldades com a escrita das palavras nas tarjetas, mas a
oportunidade de expressão foi valorizada, com incentivos a escreverem
sem preocupações ortográficas, ou então a falar o que iriam escrever. Umas
optaram por escrever, outras por falar, mas de forma leve e tranquila, cons-

255
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tituindo-se num momento educativo e libertador. Com o suporte teórico de


Rodrigues (2012), foi possível compreender a importância do diálogo entre
a educação popular e a economia solidária, imprescindível nesta situação,
pois abriu possibilidades para a superação da exclusão social daqueles que
vivenciam estereótipos de analfabetismo e desigualdade social. O sentido
do trabalho foi identificado por palavras que expressaram gratidão, mesmo
que fossem, muitas vezes, desprestigiadas pela tarefa de lavar roupas. Tiriba
(2000) referiu-se a essa questão verificando que a lógica capitalista influen-
cia os empreendimentos solidários, com suposta valorização baseada no
lucro e na mais-valia. Entretanto, a solidariedade e a alternância das tarefas
conferem ao trabalhador desses empreendimentos uma certa melhoria de
vida, mesmo que incipiente e carente de mais autonomia. Outro ponto re-
ferido, especialmente pelas mulheres da Lavanderia Dois, foi a instabilidade
política, que, no decorrer dos anos, interferiu favorável ou desfavoravelmen-
te no trabalho delas. Segundo Silva (2015), as perspectivas para a Economia
Solidária são instáveis devido ao cenário político, econômico e social, que
as modifica devido aos diferentes governos que se assumem. Portanto, po-
de-se ver como isso trouxe insegurança para as trabalhadoras, que temiam
ficar desempregadas a qualquer momento.
No terceiro encontro, foi colocado um número de cadeiras, com
uma a menos que a quantidade de mulheres. Começou com uma delas no
meio da roda, falando de uma característica que mais de uma pessoa pos-
suísse. A partir disso, todas com essa característica levantavam para trocar
de lugar; a pessoa que não conseguisse sentar ficaria no meio da roda e
repetiria o processo. Após o jogo, foram feitas algumas perguntas relacio-
nadas ao trabalho, como: O jogo tem a ver com o trabalho de vocês? Como
a pessoa que está sem cadeira se sente? As pessoas que estão sentadas
pensam em ceder a cadeira? Vocês têm medo de perder a cadeira? Quando
duas pessoas estão sentadas na mesma cadeira, uma precisa ceder? As
respostas provocaram reflexões diversas sobre competição e colaboração.
Segundo Bordieu (1984), a cooperação não se dá ao acaso, ela é resultante
de aprendizagem e confiança mútua entre as pessoas. As trabalhadoras da
Lavanderia Um refletiram que são sempre as mesmas que trabalham juntas,

256
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de forma colaborativa; o grupo todo não caminha junto. Já na Lavanderia Dois,


a questão da falta de colaboração, a disputa e competição não apareceram.
Inicialmente, supôs-se que foi por dificuldade de abstração, pois perguntas
sobre a relação entre a disputa pela cadeira e o trabalho na lavanderia não
despertaram reflexões sobre competitividade. Entretanto, ponderou-se que,
nessa lavanderia, a cooperação era proeminente, pois falaram que todas
cooperavam umas com as outras quando faltava algo no trabalho, além de
‘cederem’ a cadeira na medida do possível quando a outra precisava.
No quarto encontro, foram exibidos dois filmes de curta-metragem,
um intitulado ‘Coisa de pássaros’, da Pixar, que mostra um grupo de pássaros
acomodados em uma linha de transmissão, na qual aparece um pássaro
grande e diferente, causando estranhamento, zombaria e confusão por parte
dos demais. Os pequenos provocaram tanto o pássaro grande que acabaram
sendo depenados e lançados para cima. O segundo filme foi o ‘Alimento
para todos e todas’, da Cáritas Brasileira, apresentando um grupo de pessoas
pálidas, brigando em volta de um círculo que tinha um prato de comida al-
cançável apenas com uma colher comprida. A dificuldade é vencida quando
uma mulher toma a iniciativa de colocar a comida na boca do outro. Os vídeos
proporcionaram para as mulheres uma reflexão acerca da importância do
trabalho em equipe e, principalmente, da união entre elas para sanar seus
problemas e proporcionar uma boa relação de trabalho. Nesta reflexão, as
trabalhadoras trouxeram suas ponderações acerca das situações dos vídeos,
refletidas no trabalho cotidiano da lavanderia. Na lavanderia Um, afirmaram
se identificar com situações de exclusão em seu cotidiano, dificultando o
trabalho. Já na lavanderia Dois, relataram mais situações de ajuda mútua, fa-
cilitando a organização do trabalho na lavanderia. Ambas acrescentaram que
gostariam de receber mais capacitação, como palestras e grupos, o que não
era frequente. De acordo com França-Filho (2007), muitas vezes, o recurso
das políticas públicas é investido com objetivo de aumentar as condições de
empregabilidade da mão de obra, limitando-se aos paradigmas de economia
clássica em detrimento de modelos alternativos.
No quinto encontro, foi entregue um papel para as participantes,
pedindo para que fechassem os olhos e pensassem sobre as seguintes

257
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

questões: o que poderia contribuir para melhorar meu trabalho? Existe


algo que gostaria que mudasse? Será que sou responsável também pela
situação que está o trabalho hoje? Em seguida, dobraram o papel, coloca-
ram-no dentro de um balão, encheram-no e passaram a jogá-lo para cima,
imaginado que os balões fossem sonhos pessoais, procurando mantê-los
no alto, pelo maior tempo que pudessem. Ao compartilhar sobre a im-
pressão do jogo, refletiram sobre aquilo que cada um poderia melhorar no
processo do trabalho, dificuldades para manter os próprios interesses e do
grupo. Em ambas as lavanderias, as trabalhadoras trouxeram sentimentos
referentes à importância da união entre elas, através da analogia do jogo
do balão, relatando a tristeza quando os balões caíam no chão, como os
sonhos. Pensaram que, quando passassem a cuidar do balão das outras,
e não somente dos delas, fortaleceriam os projetos de melhoria para a la-
vanderia no futuro, incluindo os clientes. Através desses relatos, foi possível
vislumbrar o respaldo proporcionado pelos encontros. Segundo Guareschi e
Veronese (2009), é necessário que se tenham profissionais habilitados para
a transformação da subjetividade durante o processo da consolidação da
cultura da solidariedade, do processo de heteronomia para a autonomia.
No sexto e último encontro, o coordenador do grupo deu as ins-
truções sobre o jogo do barbante, pedindo que o rolo de barbante fosse
passando de pessoa em pessoa, que deveria falar “o que eu deixo para o
grupo”. Ao final, o grupo teria que enrolar novamente o barbante, começando
pela última pessoa que estava com o rolo, e cada uma deveria falar “o que
eu levo desse grupo”. Como foi o último dia, foi realizado um coffee break,
promovendo o fechamento das atividades. Nesse dia destacou-se nas duas
lavanderias o grande número de trabalhadoras que participaram dos encon-
tros, inclusive relataram que fizeram questão de que todas participassem.
Na lavanderia Dois, a trabalhadora que estava com câncer também partici-
pou, a convite das colegas. Elas trouxeram, emocionadas, a contribuição dos
grupos para o trabalho, que paulatinamente se tornaram importantes, pois
propiciaram o tempo e a discussão sobre temas que não existia antes, re-
fletindo em outras áreas de suas vidas. Relataram que, após o grupo, o laço
entre elas se fortaleceu, bem como o desenvolvimento de vínculo com o

258
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

estagiário e a estagiária, ressaltando a saudade que sentiriam e que sempre


estariam de portas abertas para visitas, na expectativa de novos encontros.
Gramigna (1997) apontou que a aprendizagem vivencial é uma oportunidade
de os participantes experimentarem determinadas situações e analisá-la de
forma crítica, trazendo o aprendizado para seu cotidiano.

Conclusão

Através deste estágio, sobressaiu-se a importância da união dentro


de um grupo, ainda mais porque se tratava de Economia Solidária. Diversas
questões foram exploradas, como as dificuldades de interação entre as
trabalhadoras, relação familiar, reconhecimento e valorização e como tais
questões têm sido tratadas nas lavanderias, reconhecendo-se a maneira de
cada mulher se expressar. Desta maneira, “o reconhecimento é o sentimento
de ser aceito e admirado no trabalho e ter a liberdade para expressar a indi-
vidualidade” (MENDES, TAMAYO, 2001, p. 41).
Apesar dos empreendimentos não terem sido totalmente fiéis às
filosofias da Economia Solidária, alguns pontos se mostraram bastantes
diferentes do modelo capitalista vigente nas organizações comerciais. Foi
possível também vislumbrar pontos a serem melhorados, tocados de forma
preliminar nos encontros. Um deles é a relação com a Secretaria de Econo-
mia Solidária do município, tratando de questões de gestão, comunicação,
capacitação e financiamento dos projetos. Espera-se que, no futuro, mais
projetos possam alcançar os empreendimentos solidários na cidade, princi-
palmente por parte da psicologia.
Por fim, as mulheres relataram que sentiram mudanças na lavande-
ria após os encontros realizados, a diferença que fizeram e que, no primeiro
momento, as brincadeiras pareciam não fazer sentido, mas no final fizeram
todo sentido. Disseram que em alguns dias estavam com problemas, e o
grupo as ajudou. Além disso, ponderaram que foi interessante usar o tempo
que achavam que não tinham, e que mesmo sendo difícil, conseguiram fazer
as reflexões propostas nos encontros. Desde então, souberam que tinham

259
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

esse tempo. Algo surpreendente foi que levaram as reflexões feitas nos
encontros para a vida em família: uma das mulheres relatou sobre o apren-
dizado de muitas das brincadeiras, repetindo-as em sua casa, para mostrar
aos seus filhos a importância da união e colaboração mútua.

Referências

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. p. 221-224.

261
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 17
PROGRAMA DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL NA
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA:
reflexões acerca do estágio em Psicologia Escolar

Lígia Rocha Cavalcante Feitosa

Introdução

Historicamente, no contexto da educação profissional e tecnológica,


a oferta do ensino foi voltada para a formação de sujeitos tecnicamente
qualificados para o mundo do trabalho. Com as mudanças nas políticas
educacionais ao longo dos anos, esta modalidade de ensino passou a
defender um novo modelo de profissionalização que privilegiasse também
a preparação de profissionais e cidadãos comprometidos socialmente, por
meio do diálogo entre educação e trabalho.
Com essa nova realidade, muitos são os desafios que emergem fren-
te ao planejamento dos processos educativos e nas relações que envolvem
os educadores nas escolas profissionalizantes, inclusive o psicólogo. No
âmbito das escolas técnicas federais, as trajetórias acadêmicas oferecidas
aos estudantes nos espaços que integram o ensino, a pesquisa e a extensão
nos diferentes níveis de ensino e áreas de formação; a diversidade do perfil
de estudantes e o incentivo na articulação entre a formação acadêmica
e a formação profissional comparecem como agendas de destaque e de

262
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

desafios constantes para se conceberem, planejarem e implementarem


atividades de orientação profissional no ensino médio integrado ao técnico
(FEITOSA; MARINHO-ARAUJO, 2016).
A contribuição da psicologia para o escopo da orientação profissio-
nal tem como principal objetivo promover trajetórias de desenvolvimento
escolar e profissional a partir das discussões entre a formação e o mundo
do trabalho (DIAS-SANTOS; FEITOSA; HOSTENSKY, 2021). Nesse sentido, a
atuação profissional envolve construir e consolidar espaços de reflexão junto
aos estudantes acerca de suas escolhas acadêmicas e profissionais, bem
como fortalecer trajetórias de sucesso desses estudantes. Adicionalmente, o
trabalho de orientação profissional requer do profissional da psicologia uma
postura comprometida e atualizada sobre orientações teórico-conceituais,
metodológicas e reflexões possíveis ao longo da articulação teórica, prática
e de pesquisa. No tocante aos diálogos com a nova institucionalidade da
educação profissional e tecnológica, por meio da prática de orientação pro-
fissional, torna-se possível contribuir para as potencialidades presentes no
perfil acadêmico e profissional dos estudantes frente à nova identidade do
ensino federal profissionalizante.
A produção do conhecimento na temática da orientação profissional
não é recente e pertence a diferentes áreas da psicologia (DIAS-SANTOS;
FEITOSA, 2021). No Brasil, a orientação profissional teve seus primeiros
registros vinculados a uma perspectiva predominantemente psicométrica
(AMBIEL; POLLI, 2011). Isso explica o porquê de muitas práticas psicológicas
terem sido desenvolvidas a partir da construção e validação de instrumentos
e escalas. Em meados da década de 1990, tem-se o registro que a psicologia
muito contribuiu para orientação profissional, com estudos e investimentos
em intervenções com o foco individual. Por outro lado, em uma perspectiva
emergente e crítica, a orientação profissional pode oferecer possibilidades
ao indivíduo de se apropriar, por meio do acesso ao conhecimento e de
espaços de reflexão, das trajetórias de sua própria escolha, assumindo seu
papel enquanto sujeito histórico e social ao longo de todo o processo de
desenvolvimento (BOCK, 2006).

263
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Em concepção semelhante, fundamentada pela psicologia históri-


co-cultural, as práticas de orientação profissional contribuem para a desna-
turalização do desenvolvimento do sujeito, em especial de adolescentes e
jovens. Nesse sentido, essa perspectiva defende a categoria trabalho como
um processo desenvolvido social e culturalmente. Portanto, o trabalho
passa a ser entendido como uma atividade intencionalmente planejada, de
caráter histórico, pela qual se constitui o motivo por meio da relação entre
significado e sentido (LEONTIEV, 1983).
Entende-se que, no período da adolescência, em vias de transição
para a fase adulta, as questões do vestibular e da profissão a seguir são
constantes nos discursos dos estudantes do ensino médio e, principalmente,
como dilema para aqueles que estão inseridos no contexto do ensino profis-
sionalizante. À luz da psicologia histórico-cultural, é necessário se ampliarem
as percepções que envolvem a escolha profissional desde a forma como
este processo se materializa, a fim de se considerarem as vivências de cada
estudante, o que o leva a escolher determinada trajetória profissional em
detrimento de outra, e o resgate da dimensão histórica desse adolescente
e jovem, bem como a dimensão histórica da sua identidade (AITA; RICCI;
TULESKI, 2012).
Diante do exposto, este capítulo tem por objetivo discutir a concep-
ção de um programa de orientação profissional no contexto da educação
profissional e tecnológica, a partir do relato de supervisão de estagiários em
psicologia escolar. Na sequência, será apresentada a estrutura do programa
de orientação profissional, voltado para o desenvolvimento dos estudantes
diante da reflexão e da crítica envolvendo suas trajetórias escolares e pro-
fissionais. Adicionalmente, serão discutidas as contribuições da psicologia
escolar para a formação profissional diante das questões que envolvem
juventudes, educação e trabalho.

264
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Conhecendo o Programa #Trajetórias: Fundamentos e


Metodologia

Na perspectiva da psicologia escolar crítica, a intervenção preven-


tiva institucional pode contribuir para uma atuação profissional relacional e
coletiva. Dentre as diferentes atividades possíveis para um psicólogo de-
senvolver em um contexto educacional, a orientação profissional tem sido
uma das mais requeridas para ser ofertada a estudantes do ensino médio.
Mais especificamente no contexto da educação profissional e tecnológica,
a orientação profissional também emerge como uma possibilidade para
se trabalharem as concepções de trabalho com os adolescentes e jovens,
tanto nos aspectos do significado coletivo/social quanto nos aspectos de
sentido pessoal (MAIA; LIBRAIZ; FEITOSA, 2019).
Sob a perspectiva da psicologia histórico-cultural, a vivência de-
termina o desenvolvimento entre o sujeito e o seu contexto. Por meio da
vivência, esse sujeito torna-se capaz de ressignificar suas experiências em e
por essas relações estabelecidas. Entende-se que a orientação profissional
é um contexto que oportuniza essa vivência. A partir da orientação profissio-
nal, os jovens têm acesso aos seus processos de autoconhecimento e de
tomada de consciência diante das escolhas profissionais em um percurso
de trocas e afetos com os pares (MEDEIROS; SOUZA, 2017).
Por outro lado, entende-se que podem existir muitos fatores que
influenciam as percepções acerca de si e os motivos das escolhas profissio-
nais de jovens. Ao longo desse processo, o jovem se constitui em um mundo
de muitas ofertas ou barreiras que, por conseguinte, podem estimulá-lo a
percorrer ou desistir de trajetórias escolares e profissionais. Nesse sentido,
defende-se que o psicólogo deve exercer o papel de mediador quando
trabalhar com o processo de orientação profissional. A partir de uma atuação
crítica e ampliada, este profissional tem condições de apoiar as trajetórias
juvenis, promovendo espaços de intervenção que fortaleçam o autoco-
nhecimento e a tomada de consciência acerca do futuro profissional das
juventudes (OZELLA, 2003; DIAS-SANTOS; FEITOSA, HOSTENSKY, 2021).

265
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Entendendo as especificidades que constituem a formação de


jovens no ensino profissionalizante, a proposta de orientação profissional
à luz da psicologia escolar crítica se apresentou como uma materialidade
importante para se trabalhar o eixo do ensino e da extensão junto aos gra-
duandos de Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados na
oferta de estágio supervisionado neste contexto. Nessa direção, o Programa
#Trajetórias foi concebido como um programa de extensão constituído pelo
planejamento e desenvolvimento de atividades voltadas para a promoção do
autoconhecimento dos jovens, bem como sobre os significados e sentidos
que a escolha profissional pode imprimir na trajetória de desenvolvimento
dos estudantes do ensino médio integrado ao técnico.
O #Trajetórias foi desenvolvido a partir de oito encontros semanais,
via oficinas de grupo, com duração de duas horas. As oficinas foram previstas
para receber até dez estudantes do segundo ano do ensino técnico integrado
ao médio. Para o desenvolvimento das atividades também se fez necessário
incluir a etapa de sensibilização com os estudantes, a equipe técnica dos ato-
res educativos e pais e/ou responsáveis para apresentar e discutir a proposta
das oficinas. Nesse percurso de aproximação com a comunidade acadêmica,
foram compartilhadas informações acerca dos princípios teóricos e práticos
da relevância de se oferecer orientação profissional, bem como os diversos
recursos que envolviam o referido programa, tais como oficinas lúdicas, rodas
de conversa sobre percepções de si, formação e trabalho e as possíveis trocas
de experiências com os participantes do grupo.
Após contextualização da comunidade acadêmica, as oficinas do
#Trajetórias foram desenvolvidas com os estudantes inscritos no programa
a partir de dois eixos temáticos: (a) autoconhecimento e (b) interesses profis-
sionais. A seguir, tem-se cada um desses eixos caracterizados por meio da
descrição das atividades grupais de orientação profissional.

266
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Encontro 1. Boas-vindas e apresentação do projeto.


Objetivo: Apresentação do projeto #Trajetórias, dos estagiários e dos
estudantes participantes.
Recursos: Notebook; Datashow e Atividades para pais (tarefa de casa).
Encontro 2. Painel de Expectativas e Roda de conversa
Objetivo: Promover a reflexão acerca das trajetórias juvenis diante da
escola e do trabalho.
Recursos: Papelaria (Revistas, Tesouras, Pincéis/Hidrocor, Cola,
Cartolinas).
Encontro 3. Frases para completar e História em Quadrinhos.
Objetivo: Identificar os valores atribuídos pelos estudantes diante do
processo de escolha do curso/profissão.
Recursos: Protocolo específico para atividade.
Encontro 4. Atividade quebra-gelo e Levantamento do Perfil de
Personalidade.
Objetivo: Identificar os aspectos de personalidade dos jovens que
podem auxiliar em seus processos de autoconhecimento e de to
mada de decisão.
Recursos: Protocolo específico para atividade.
Encontro 5. Festa das profissões e Família das profissões (tarefa de
casa).
Objetivo: Apresentar informações acerca das profissões e auxiliar no
processo de constituição das trajetórias profissionais juvenis.
Recursos: Protocolo específico para atividade.
Encontro 6. Projeto de vida e transmissão de documentário temático.
Objetivo: Auxiliar no processo de constituição das trajetórias profis
sionais juvenis.
Recursos: Protocolo específico para atividade, Datashow, Notebook.
Encontro 7. Tabela sim e não e Atividade da Balança.
Objetivo: Retomar aspectos pessoais e do processo de autoconhe
cimento.
Recursos: Protocolo específico para atividade.

267
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Encontro 8. Carreira ideal e Carta para o futuro.


Objetivo: Retomar aspectos pessoais do processo de autoconhe
cimento e auxiliar no processo de constituição das trajetórias profis
sionais juvenis.
Recursos: Protocolo específico para atividade.

O desenvolvimento de cada uma das atividades do #Trajetórias


proporcionou espaços de discussão e reflexão crítica acerca das trajetórias
escolares e profissionais dos estudantes do ensino médio integrado ao téc-
nico. O formato de oficinas em grupo permitiu a circulação de significados
e sentidos dos estudantes diante da sua história de vida e dos desafios que
o mundo do trabalho pode apresentar ao longo da vida. Esses desafios
envolveram dúvidas dos estudantes sobre exercer a formação técnica, o in-
teresse ou desinteresse de dar continuidade aos estudos no ensino superior,
o reconhecimento de suas competências pessoais e interesses diante de
novas trajetórias para dialogar com suas expectativas profissionais.

O estágio em psicologia na educação profissional e tecnológica:


contribuições da Psicologia Escolar

A formação em Psicologia prevê a oferta de estágio curricular


obrigatório nos últimos dois anos para conclusão do curso. Na UFGD, o
referido curso está constituído por duas ênfases de estágios circunscritas
em processos cognitivos e em processos psicossociais. Nessa experiência,
o estágio em processo de orientação profissional teve, por fundamentação
teórico-metodológico, as contribuições da psicologia escolar crítica para
atuação profissional em contexto escolar de cariz profissionalizante.
O fato de os Institutos Federais apresentarem uma forte vinculação
com a formação atenta às questões do mundo do trabalho, buscando arti-
cular o caráter crítico, acadêmico e de pesquisa na futura trajetória profissio-
nal dos seus estudantes, favoreceu inicialmente a proposição do Programa
#Trajetórias para se trabalhar a formação básica de psicólogos diante dessa

268
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

temática na UFGD. Na literatura, mesmo a orientação profissional tendo,


historicamente, tradição de oferta nos contextos educativos, a discussão
da atuação de psicólogos escolares envolvendo as trajetórias escolares e
trajetórias profissionais de jovens tem prevalecido nos espaços educativos
privados e/ou no ensino médio tradicional.
Quando se discute a psicologia na educação profissional e tecnoló-
gica, por outro lado, a atividade de orientação profissional é uma das mais
requeridas no serviço de apoio ao estudante (FEITOSA, 2017). De acordo
com Feitosa e Marinho-Araujo (2018), os psicólogos escolares no contexto
do ensino profissionalizante destacaram a prevalência de desenvolvimento
de projetos voltados também para projeto de vida/escolha profissional.
Diante dessas constatações, a oferta do estágio na temática da
orientação profissional aproximou os estudantes de Psicologia das ênfases
adotadas pelos profissionais em atividades de preparo do estudante para
uma formação profissional. Cabe destacar que a particularidade do perfil
dos estudantes do ensino médio integrado ao técnico tem uma forte a pre-
ocupação com a inserção profissional.
Enquanto a literatura assinala que a orientação profissional no nível
médio de ensino está mais direcionada para a escolha do curso superior
(MELO-SILVA; LASSANCE; SOARES, 2003), no contexto do ensino profissio-
nalizante prevalece a oportunidade no mercado de trabalho como primeira
necessidade dos discentes. As expectativas desses jovens são maiores por
conviverem por todo tempo de formação com a dimensão trabalho como
parte indissociável de sua trajetória (BARBOSA; LAMAS, 2012).
Ao trabalhar com a construção do projeto profissional dos estudan-
tes, cabe ao psicólogo escolar desenvolver espaços democráticos para
promover a desconstrução dos preconceitos e dos estereótipos que podem
estar pressentes nas mais diferentes ocupações (SPARTA; GOMES, 2005),
muitas vezes alimentados pelas opiniões familiares e pelas mídias sociais.
De acordo com Barbosa e Lamas (2012), o projeto de orientação profissional
na escola pode envolver outros profissionais na equipe, compondo uma
atividade transversal, e deve favorecer oportunidades para o autoconheci-

269
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

mento, o desenvolvimento de competências e a educação para a carreira


dos estudantes.

Considerações finais

No contexto da educação profissional e tecnológica, os espaços


educativos defendem a formação de sujeitos tecnicamente qualificados
como profissionais e cidadãos comprometidos socialmente, por meio do
diálogo entre educação e trabalho. Diante desta perspectiva, surgem inú-
meros desafios para o planejamento dos processos educativos envolvendo
todos os atores educativos, inclusive o psicólogo. O percurso acadêmico
oferecido aos estudantes em espaços compartilhados pelo ensino, pes-
quisa e extensão nos diferentes níveis de ensino e áreas de formação; a
heterogeneidade do perfil de estudantes e a potencialidade em se articular
a formação acadêmica e a formação profissional, alinhada com as principais
discussões do mundo trabalho, são destaques e desafios constantes para
as práticas da orientação profissional (FEITOSA; MARINHO-ARAUJO, 2018).
Nesse sentido, ter trabalhado o estágio curricular obrigatório com a
orientação profissional possibilitou discutir junto aos estudantes de Psicolo-
gia as nuanças das trajetórias de desenvolvimento acadêmico e profissional
a partir das discussões entre a formação e o mundo do trabalho. Para os
estudantes do ensino médio integrado ao técnico pode-se promover espa-
ços de reflexão sobre as escolhas acadêmicas e profissionais, bem como
fortalecer as trajetórias acadêmicas de sucesso desses jovens.
No âmbito acadêmico, esta proposta de estágio firmou o compro-
misso da atualização permanente de orientações teórico-conceituais e
metodológicas e reflexões acerca da concretização da articulação teoria,
prática e pesquisa em Psicologia Escolar crítica na formação básica. Para
os estudantes do ensino médio integrado ao técnico que participaram das
oficinas de orientação profissional, as atividades desenvolvidas ao longo do
estágio se apresentaram como uma alternativa de reconstrução da própria
história e de tomada de consciência de possibilidades desses jovens, bem

270
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

como das potencialidades que a nova institucionalidade da educação pro-


fissional e tecnológica pode imprimir no perfil acadêmico e profissional.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

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272
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 18
O COTIDIANO DO SUS COMO ESPAÇO DE
(TRANS)FORMAÇÃO

Catia Paranhos Martins


Esmael Alves de Oliveira
Bruno Passos Pizzi
Elenita Sureke Abílio
Letícia da Silva Pereira

Neste capítulo, apresentaremos experimentações, questionamentos


e desafios do estágio supervisionado “Psicologia Social e Saúde Coletiva” do
curso de Psicologia da UFGD. Em nossa cartografia entrelaçamos diferentes
perspectivas: a de uma supervisora com duas décadas de investimento
no Sistema Único de Saúde (SUS); a de um estudante do último ano e que
também é docente do curso de Ciências Sociais; a de um docente recém-
-chegado ao curso de Psicologia e que colaborou nas supervisões de 2021;
a de uma psicóloga e preceptora do CAPS AD; e, por fim, a de uma residente
em Saúde Mental, que estagiou no CAPS II e foi egressa da turma de 2018.
As experimentações foram construídas no período de 2013 a 2021.
Aqui temos um diálogo entre as aprendizagens e os desafios dos anos ante-
riores, somado às estratégias necessárias para dar continuidade ao estágio
durante o período da pandemia de Covid-19. Fomos e continuamos atra-
vessadas/os por muita indignação, em especial em decorrência das mais
de 605 mil mortes notificadas no País (até o fechamento deste texto). No
atual cenário, composto por um governo considerado por muitos genocida,
negacionista, empenhado no desmonte do Estado democrático, dentre tan-

273
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

tas outras incivilidades, continuamos apostando na saúde como valor, como


bem comum.
O presente é incerto, mas ousamos produzir um movimento coletivo
no estágio “Psicologia Social e Saúde Coletiva” de aprendizagens a partir
do “SUS que dá certo”, com as invenções e os acúmulos do movimento
sanitário brasileiro, e inspiradas/os pela Política Nacional de Humanização
— HumanizaSUS.
Tomamos o SUS como potente campo de formação para a inclusão
de estudantes nas atividades rotineiras dos serviços de saúde. Buscamos,
dentre tantos sonhos e planos, ampliar a compreensão sobre as potencia-
lidades e os desafios da saúde como direito de cidadania, em especial na
Atenção Básica e na Saúde Mental (Centro de Atenção Psicossocial II e Ál-
cool e outras Drogas) de Dourados-MS. Almejamos, em conjunto com esta-
giárias/os, usuárias/os, comunidades e trabalhadoras/es de saúde, investir
no fortalecimento da rede de cuidados, no exercício da clínica ampliada, da
democracia institucional e da participação social em alinhamento com as
diretrizes, princípios e método do HumanizaSUS (BRASIL, 2010; MARTINS;
LUZIO, 2017).
A proposta de estágio em discussão acumula alguns anos de expe-
rimentação, mas a compreendemos em construção com as/os inúmeras/
os parceiras/os que compõem o cotidiano do SUS e, inclusive, além dos
serviços de saúde. Uma das histórias que nos marcou foi, certa vez, termos
ido à Secretaria Municipal de Saúde com uma turma de estágio para uma
conversa com uma importante gestora local. Ela nos deu as boas-vindas
e contou que recebeu as/os novas/os profissionais da Psicologia para o
Núcleo Ampliado da Saúde da Família (NASF). Mas, após pouco tempo de
trabalho, estes pediram para serem transferidos para o ambulatório. “O que
acontece com a Psicologia? Porque vocês só querem consultório?”. Leva-
mos ali, na roda, um ‘puxão de orelha’, e a sinalização da urgência de uma
formação ético-política para os/as profissionais da psicologia que atuarão (e
atuam) nas redes do SUS.
Defendemos a importância da presença de profissionais e estudan-
tes de Psicologia nos processos e práticas da Atenção Básica, assim como

274
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

do debate sobre a especificidade de nossa profissão diante dos desafios


colocados pelo cotidiano do SUS. Afirmamos também a importância da
Psicologia na Atenção Psicossocial e na Atenção Especializada. A escuta,
um dos aspectos que caracterizam a nossa profissão, pode ser entendida
como exercício da clínica individual, que remete ao consultório numa rela-
ção entre profissional e sujeito, numa prática de especialidade. Entretanto,
pode ser considerada também como apoio à rede, às equipes, com abertura
à reinvenção a partir dos territórios e das problemáticas da determinação
social (ALBUQUERQUE; SILVA, 2014; SOUZA; OLIVEIRA; COSTA, 2015; BRA-
SIL, 2012, 2015). Esta presença de futuras/os profissionais de Psicologia, em
consonância com os princípios e as necessidades da Saúde Coletiva, evoca
a questão da formação.

HumanizaSUS e a Formação/Intervenção

A formação almejada e em alinhamento aos desafios elencados pelo


movimento sanitário brasileiro é no SUS, como campo de prática, e para o SUS,
como projeto civilizatório (CAMPOS, 2018; PAIM, 2008). Apostamos em “proces-
so de intervenção que se afirma na indissociabilidade entre pensamento e vida,
entre invenção de si e de mundo” (HECKERT; NEVES, 2010, p. 14).
Inspiradas/os pelo HumanizaSUS, os processos de formação são
tomados como inseparáveis da intervenção e visam produzir interferências
nas práticas cotidianas como um modo de “enfrentar e desmontar a sepa-
ração formação-trabalho, ao se considerar que os processos de trabalho se
constituem como matéria-prima dos processos de formação” (HECKERT;
PASSOS; BARROS, 2009, p. 499). Assim, a cada encontro, nas rodas de
conversa, nas atividades rotineiras na rede SUS, almejamos a “produção
concomitante de conhecimento, sujeitos e realidades. [...] transformação do
mundo numa morada — ethos que acolha a diversidade da vida e referente
às muitas saúdes possíveis” (PAULON; CARNEIRO, 2009, p. 749).
A função Apoio Institucional, os desafios e as delicadezas que a
engendram, é uma metodologia reconhecida no campo da Saúde Coletiva

275
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

como “uma das mais importantes inovações [...] alinhada com a defesa de
direitos e com a participação democrática no SUS” (PASSOS et al., 2014, p.
805). O Apoio tem ganhado força, pesquisas, atrizes e atores influenciando
as pautas do movimento sanitário e configura-se como um campo de expe-
rimentação para qualificação da atenção e da gestão.
O Apoio é considerado um dispositivo, e o método da Política Hu-
manizaSUS, um modo de operar no cotidiano do SUS, que implica numa
experimentação produzida na relação entre pessoas, instituições, saberes,
poderes, práticas e demais elementos. Sendo assim, apoiar um grupo tem
como meta operar entre os processos de trabalho que compõem o dia a
dia do serviço, fazendo agenciamentos diversos, colocando em análise os
modos verticais de fazer saúde para a criação coletiva de enfrentamentos
(PASCHE, 2009; PASSOS et al., 2014; MARTINS; LUZIO, 2014). Afinal, “quando
analisamos e intervimos em determinado campo da saúde, qual seria nosso
foco se não a vida em suas formações e seus processos?” (MACERATA;
SOARES; RAMOS, 2014, p. 920).
A partir de tal pressuposto, a/o estagiária/o — que almejamos enten-
der como um/a apoiador/a — e grupo vão construindo, a partir de uma dada
realidade e dos desafios locais, espaços para compartilhar os necessários
estranhamentos que possam produzir inflexões nos modos hegemônicos de
cuidar em saúde, de fazer saúde com as pessoas envolvidas. Essa é uma
aposta no exercício cotidiano da democracia, na criação de sujeitos e não de
assujeitamentos, de negociação permanente na construção da saúde como
bem comum (MARTINS; LUZIO, 2014; 2017).
Compreendemos que, em um contexto tão marcado pelo neolibera-
lismo, pelo poder do capital político e econômico da indústria farmacêutica
e grandes conglomerados, em que prevalece uma perspectiva de conhe-
cimento meritocrática, em que o SUS, a Ciência e o papel da Universidade
têm sido continuamente questionados e deslegitimados, há que se proble-
matizar qual nosso papel enquanto sujeitos que pensam e produzem saúde
(HARAYAMA, 2016).

276
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Como fazemos?

Inúmeros aprendizados e desafios se apresentam a cada nova


turma. Como ensinar estudantes sobre a saúde como valor inegociável?
Como (re)inventar a Psicologia a partir dos desafios locais? Como continuar
sonhando quando o cotidiano é de desmonte do SUS, do Estado de direitos
e da Ciência?
As/os estudantes/estagiárias/os, geralmente em duplas de traba-
lho, participavam das atividades rotineiras das Unidades Básicas de Saúde,
nas Estratégias de Saúde da Família e nos Centros de Atenção Psicossocial
(II e AD). De forma coletiva, nos organizamos para que cada dupla estivesse
num mesmo serviço ao longo do ano e, em conjunto com a Secretaria Muni-
cipal de Saúde, por meio do Núcleo de Educação Permanente, acertávamos
com as equipes e unidades disponíveis e, quando possível, continuávamos
nos campos de práticas dos anos anteriores.
Já colecionamos experimentações desenvolvidas em conjunto com
as equipes e comunidades, tais como: roda de conversa sobre saúde men-
tal; roda de conversa sobre saúde do/a trabalhador/a; colaboração e/ou
coordenação de grupos (de mulheres, homens, gestantes, adolescentes, de
caminhada, de passeio pela cidade, dentre outros); oficinas terapêuticas (de
música, para confecção de puffs, de cuidados com a horta, de enfeites para
festa, artesanatos, passeio, dentre outras).
Além das atividades citadas, estagiárias/os habitam os espaços de
convivência com as/os usuárias/os, seja na recepção, na fila, no corredor
ou nas áreas reservadas nos CAPS às/aos usuárias/os em modalidades de
atendimento intensivo, onde ocorrem conversas corriqueiras, histórias de
vida, piadas, silêncios, comentários sobre o serviço e o tratamento ofertado.
Histórias menores que servem como analisadores para problematizar sabe-
res, poderes e práticas em saúde, ou seja, que colocam sujeitos e relações
em análise.
Com o passar do tempo, e/ou quando a relação de confiança entre
estudantes e equipe avança, participávamos das reuniões, visitas domici-
liares, busca ativa, discussões de caso, oficinas terapêuticas, reuniões com

277
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

famílias, além de estudar e colaborar com a evolução nos prontuários e


coordenar rodas de conversa e grupos já em andamento. Em cada serviço,
com cada equipe, inúmeros aspectos são ponderados e ganhavam dife-
rentes contornos: o que estagiárias/os anteriores construíram ali? Como é
a relação da equipe entre si e conosco? O serviço e a equipe gostam de
receber estudantes? Como está a relação gestão/atenção? E como se dão
os diálogos com a comunidade?
Somamos, ainda, com ingredientes importantes para um estágio
proveitoso: a disponibilidade (de tempo e afetiva) das/os estudantes para
estar nos serviços, para estudar as políticas de saúde e a literatura; o diálogo
com a comunidade, escutar/sentir os analisadores; e suas perspectivas e
dúvidas nos momentos de supervisão. Destacávamos alguns questiona-
mentos sobre a formação em Psicologia para o SUS: como chegam as/os
estudantes para o estágio do último ano? Quais acúmulos sobre reforma
sanitária e psiquiátrica? Quais expectativas têm? Como entendem a clínica?
Quanto estão dispostos a (re)inventar a si, às práticas e ao cotidiano? Quais
concepções trazem de psicologia, saúde, subjetividade e justiça social?
Tais questionamentos servem também para nos colocar em análise,
para manter a nossa preocupação ético-política acerca de quais relações
tecemos entre universidade, comunidade e serviço, bem como quais são os
desafios para os nossos cursos de graduação e pós-graduação (mestrado
e residência multiprofissional). Das preocupações, citamos: como manter a
continuidade das atividades quando o tempo da vida e da Universidade são
diferentes? Como melhorar a relação com os campos de prática, construindo
ações com equipes e comunidades? Já podemos sonhar com a realização
de um planejamento integrado entre cursos da UFGD e demais instituições
de ensino, compondo as propostas de trabalho com as necessidades dos
serviços, das/os usuárias/os, das comunidades e das equipes? (SATHLER;
OLIVEIRA, 2021).
Ao longo das experiências, solicitávamos às/aos estudantes que
registrassem impressões, sensações, questionamentos e comentários num
diário de campo. Pedíamos, quando possível e com autorização das/os
participantes, fotos, filmes e desenhos. É o cotidiano, com suas riquezas,

278
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

repetições e novidades, que merece ser problematizado, seja com palavras,


imagens ou silêncios.
O uso do diário de campo é uma das nossas estratégias na busca por
produzir uma memória afetiva, inspirada nos movimentos feitos também pelo
HumanizaSUS (BRASIL, 2010). Aqui o diário se torna uma experiência de escrita
em devir, onde a realidade vivida e observada, os dilemas do território, as an-
gústias e inseguranças experimentadas tornam-se motivos para uma contínua
reflexão e análise pessoal e coletiva. Tal proposta metodológica, sustentada
numa ideia de abertura, imprecisão e inacabamento deliberado emerge como
potente antídoto contra saberes e fazeres presunçosos e capitalísticos.
A formação das/os futuras/os profissionais da Psicologia, comprometi-
das/os com o fortalecimento do SUS e com a saúde como direito de cidadania,
implica na abertura para compreensões sobre histórias de vida e processos de
saúde e doença que estão articulados com os problemas da vida coletiva, da
cidade e do País, acrescidos da luta pelo enfrentamento das desigualdades so-
ciais e das iniquidades em saúde. Assim, reafirmamos a importância de estarem
atentas/os aos processos, agenciamentos e micropolíticas.
Pensar nossas ações em saúde como constituídas de/por sujeitos
de desejo nos desafia a perceber sujeitos e coletivos como agentes ativos,
cujas vivências, experiências e atuações constituem-se em processos
dinâmicos de inventividade e criação nunca previamente estabelecidos e
atravessados pelas relações de poder. Nessa tessitura rizomática, uma atu-
ação coletiva, em detrimento de modelos individualistas e meritocráticos,
torna-se fundamental no e para o SUS.
Deste modo, apostamos que o dia a dia com as equipes de saúde,
a relação com a comunidade e as atividades ofertadas contribuem para
o crescimento das/os estudantes ao longo do estágio, não apenas numa
dimensão cognitiva e/ou técnica, mas sobretudo ético-política. Embora os
cotidianos de trabalho sejam exaustivos e as demandas costumam ser, co-
mumente, maiores que as ofertas, encontramos trabalhadoras/es e equipes
disponíveis aos diálogos, que acolhem tanto as dúvidas quanto as ideias
para novas propostas, bem como incluem as/os estudantes nas atividades
em andamento.

279
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

A condição privilegiada de estudante, seja pela ausência de cobran-


ças, por não ter o compromisso em dar conta da demanda, tampouco ser
responsável pela burocracia, permite tomar o cotidiano como espaço/tem-
po de experimentar atividades novas, aproximar-se das equipes e construir
vínculos. Somado a isso, traz os estranhamentos necessários para repensar
o que se apresenta como igual.
Nas UBS e nas ESF de Dourados ainda não há a/o profissional da
Psicologia; a participação ocorre através do Apoio Matricial realizado pelo
NASF às equipes da Atenção Básica. Merece destaque a disposição das
equipes para receber a Psicologia, em especial a Enfermagem, que cos-
tuma assumir a coordenação dos serviços, e as/os Agentes Comunitárias/
os de Saúde (ACS) que incluíam as/os estudantes nas visitas domiciliares
e compartilhavam os conhecimentos sobre o seu território e comunidade
conosco. Elas e eles mantinham a escuta atenta para as demandas e, de
forma concomitante, para as diferentes lógicas de cuidado, convidando-nos
a tecer costuras sobre os modos singulares de produzir saúde. Ao fazer
visitas, caminhar pelos bairros, olhar a vida por uma nova perspectiva, as/os
estudantes ampliavam as suas práticas em saúde.
Nos CAPS II e AD, o lugar da Psicologia já está predefinido pelas/os
profissionais dos serviços, o que facilita a participação e o envolvimento das/
os estagiárias/os. Se por um lado é fundamental experimentar as práticas já
consolidadas nos serviços substitutivos, por outro lado parece-nos que sobra
pouco tempo para a criação. A riqueza cotidiana dos serviços substitutivos
certamente merece outro texto nosso. Aqui, como analisadores, destacamos
a ausência de supervisão clínica e institucional; a rotatividade na gestão e o
desconhecimento da Luta Antimanicomial; e a necessidade de investimento
na ética da Atenção Psicossocial, já que a Reforma Psiquiátrica brasileira
merece um olhar diferente quando tratamos de municípios de pequeno e
médio porte (LUZIO; L’ABBATE, 2009) e, ainda, que estão fora das capitais.
Como trabalhadoras/es pelo SUS, ressaltamos a necessidade da
Psicologia nos diferentes níveis de atenção para a integralidade do cuidado
e na ampliação da clínica. Há também o desafio de avançar na compreensão
da Saúde Mental com dimensão transversal e não localizada na média e alta

280
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

complexidade. E, ainda, aproveitamos as supervisões para problematizar a


baixa participação da Psicologia na gestão do SUS, bem como a necessida-
de de fortalecer a participação social.
Nos momentos de supervisão, cada dupla narrava a sua experiência,
contava sobre os desafios e compartilhava as vivências com as/os demais
do grupo. As trocas de experiência entre estagiárias/os de diferentes servi-
ços fazem com que possamos aprender com a/o outra/o e construir uma
perspectiva de análise que toma a rede SUS e a produção de uma rede de
cuidados como desafio ético e político.
Tal como temos apostado, o espaço da supervisão não busca afir-
mar a superioridade das análises, tampouco uma “super visão” heroica e
infalível, e sim, em uma perspectiva que se produza no grupo, no coletivo e
como potência para estranhar o cenário, (re)conhecer as potencialidades e
fragilidades, aprender o que fazer e o que não fazer e a sonhar com outras
psicologias e saúdes.
Em nossos encontros de supervisão, a partir das narrativas do coti-
diano dos diferentes serviços, compreendemos que os campos de prática
colocam desafios que são clínicos e políticos, que são tanto para o pensa-
mento quanto para a ação. Não por acaso, o movimento sanitário brasileiro
reitera que os problemas do SUS são políticos e não técnicos, e que saúde
é democracia.
Em nosso processo de construção, em conjunto com incontáveis
parcerias, destacamos como potencialidades da relação estudante/equi-
pe/comunidade: a disposição para a escuta, para dialogar e experimentar
atividades novas que fortalecemos vínculos; os momentos de discussão do
trabalho, de reflexão sobre o que se fazer e como se faz, favorecendo a
resolutividade das ações de saúde e o sentido do trabalho; e o reconhe-
cimento da importância das contribuições da Psicologia e do campo da
Saúde Coletiva para a fundamentação das ações e como inspiração para as
necessárias transformações.
Em nossas idas aos serviços e nas devolutivas feitas às equipes e
à gestão, apontamos a necessidade de se discutir sobre as condições de
trabalho e a saúde mental das/os trabalhadoras/es. Indicamos também

281
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

a importância de ações para o fortalecimento da participação social. Tais


resultados nos permitiram o reconhecimento da importância da experiência
de estágio na luta pela construção e consolidação de uma clínica ampliada
e compartilhada e da cogestão (BRASIL, 2010).
Se o tempo cronos (quantitativo) é fundamental para construção das
relações estudantes/equipes de saúde/comunidade, entendemos que é
no tempo kairós (qualitativo) que os vínculos se constituem e consolidam
(FERREIRA; ARCO-VERDE, 2001). Portanto, são nas relações entre sujeitos,
no cotidiano, que os principais aprendizados ocorrem.
Para nós, ao habitar o cotidiano do SUS, inúmeros desafios do tra-
balho em saúde ganham destaque, como: a necessidade de se repensar
a organização do trabalho ainda vertical, fragmentado, corporativo, com
excesso de autonomia para alguns em detrimento da comunidade; o adoe-
cimento das/os trabalhadoras/es em decorrência das longas ou dolorosas
jornadas de trabalho, o pouco diálogo sobre o trabalho, cargas exaustivas,
convívio diário com as desigualdades sociais, com o sofrimento humano e
com a morte, além dos riscos químicos, físicos, ergonômicos, biológicos,
dentre outros; e a falta de condições de trabalho adequadas para realização
da tarefa; formação deficitária e sentimento de incapacidade frente aos pro-
blemas colocados pelas comunidades, dentre tantos outros aspectos que
merecem nossa atenção.
Em resposta ao relatório produzido pelo Banco Mundial, que acusa
o SUS de ineficiência e de onerar os cofres públicos, Campos (2018) afir-
ma que, se há alguns problemas indiscutíveis que atravessam o SUS, isso
não o desqualifica e/ou deslegitima enquanto política pública de saúde.
Ao contrário, o que se tem observado, a partir da falta de financiamento,
da ausência de uma política de Estado e não de governo, do predomínio
de uma racionalidade economicista, do sucateamento dos serviços (e que
passa também pelo descompromisso com as/os trabalhadas/es), é uma
tentativa deliberada de desmonte do SUS.
Mas a quem isso interessa? Ao afirmar que “a luta pelo SUS depende
da luta contra a desigualdade, contra o racismo, contra o machismo” (CAM-
POS, 2018, p. 1710), o autor dá nome aos bois: às elites político-econômicas

282
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

do País que são, historicamente, sustentadas por seus privilégios de raça,


classe e gênero. Não por acaso, o discurso amplamente disseminado entre
amplos setores da sociedade brasileira é de que o SUS “não funciona”, é o
“plano de saúde” dos pobres (NASCIMENTO; MELO, 2014).
Sabemos que os desafios são inúmeros. O campo da Saúde Coletiva
tem acúmulos significativos para reconhecermos a necessidade de finan-
ciamento adequado para garantia da universalidade do direito à saúde e de
planos de cargos, carreiras e salários condizentes com o reconhecimento
do/a trabalhador/a do SUS como riqueza, imprescindível na tarefa do cui-
dado, e não um mero recurso a ser substituído na lógica neoliberal.
O SUS, bem como a Política HumanizaSUS, é constituído por um mar
de anônimas e anônimos, as/os apoiadoras/es do e pelo SUS, que com-
preendam, ora mais e ora menos, a importância do que fazem e são funda-
mentais para a construção da saúde como um direito, ou seja, condição de
cidadania. Afinal, “O SUS é uma produção coletiva, e seus inúmeros entraves
e riquezas só podem ser compreendidos quando olhados por muitos de
nós” (MARTINS; LUZIO, 2017, p. 15).

Informa SUS e os desafios em tempos de pandemia

Em 2021, as atividades de estágio foram oferecidas em formato


remoto em decorrência da pandemia de Covid-19. Inúmeras eram as nossas
dúvidas. Como fazer estágio no SUS quando não podemos estar/sentir nele
e com ele? Estágio remoto não é uma contradição entre termos? Como
aprender sem os imprevisíveis do cotidiano do trabalho em saúde?
Para encantar as/os estudantes, utilizamos as “Experiências de
Atenção Primária em Saúde no SUS: invenção e resistência em tempos de
pandemia” (INFORMASUS UFSCAR, 2020). Por meio do canal do InformaSUS,
ao longo de todo o primeiro semestre de 2021, foi possível conhecer os muitos
“Brasis”, escutar as narrativas de usuários/as, gestores/as, trabalhadores/as e

283
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

docentes de Rurópolis/PA, Palmeira das Missões/RS, Mossoró/RN, Niterói/


RJ, Dourados/MS, do barco Abaré/PA e de comunidades/favelas/SP5.
O InformaSUS, coordenado pelo sanitarista Gustavo Nunes de Oli-
veira, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), é uma plataforma
de comunicação social e científica, produzida por uma rede de pesquisa-
doras/es de diversas universidades, que almeja democratizar a informação
científica e registrar a memória do “SUS que dá certo”. A proposta do Infor-
maSUS é produzir discussões qualificadas sobre a saúde brasileira, realizar
o debate com os movimentos sociais, com profissionais da atenção e da
gestão, com representantes do movimento sanitário e das universidades.
A ideia é favorecer a construção de uma “rede de comunicação social e
científica, colaborativa e cogestiva, surgida na universidade com objetivo de
conectar e disseminar informações intra e extramuros” (OLIVEIRA et al., 2020,
p. 108), auxiliando na problematização dos contextos e (re)conhecendo as
estratégias locais.
Numa conjuntura de retrocesso, de desmonte e retirada de direitos
(BRAVO; MENEZES; PELAEZ, 2020), tal como a que vivemos, é um projeto
relevante de promoção de debates pela luta de direitos no campo da saúde.
Cumpre destacar também que a proposta do InformaSUS é acompanhada
de uma discussão aprofundada sobre renovação e popularização da comu-
nicação científica, com uso de redes sociais e canais digitais, que permitem
interações com diferentes setores da sociedade.
As lives do InformaSUS foram produzidas entre julho e novembro
de 2020. Assistimos alguns desses materiais para discutir nos momentos de
supervisão. Além disso, as/os estudantes produziram um relatório comparti-
lhado sobre a experiência de estágio, na busca por reflexões possíveis nesse
momento pandêmico. As lives deram concretude sobre a atuação profissio-
nal na atenção básica; participação social em tempos de ‘normalidade’ e no
momento de entrada em situação de pandemia; necessidade de criação e
consolidação de redes entre diversos setores para a promoção de saúde
(profissionais, gestores, sindicatos, movimentos sociais, universidades etc.)
para enfrentamento da situação; e sobre como o plano de enfrentamento

5  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_Y_GlSqZxIA. Acesso em: 17 jun. 2021.

284
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

à pandemia pode ser melhor encadeado quando instâncias de participação


social já se encontram em funcionamento/construção há mais tempo.
Em uma das lives do InformaSUS, uma das profissionais aponta
como problemática a centralidade hospitalar na pandemia:

Quando a gente pensou nisso, pensou em toda uma estrutura


que invisibiliza a Atenção Básica. Porque se a gente para pra
pensar o que é produzido de imagens de heróis – eu, particular-
mente, não gosto dessa figura de heróis, a gente não precisa de
heróis, precisa de políticas públicas. Nessa história de produzir
os heróis, tudo remete à figura dos profissionais hospitalares. É
como se a gente da Atenção Básica nem existisse. Isso é tão
forte, que a gente precisa ocupar e disputar essa narrativa (SO-
LANO, 2020, transcrição nossa).6

E continua: “Nós fizemos e acumulamos um processo histórico da


organização do cuidado” (SOLANO, 2020). O “nós” comporta uma multipli-
cidade e remete-nos a inúmeras dimensões, tais como: a Atenção Básica
como estratégia de cuidado no território; às equipes multiprofissionais, seja
no CAPS, na UBS, no hospital, que estão em constante diálogo com a comu-
nidade na produção de saúde e cidadania em tempos tão desafiadores; e o
movimento sanitário brasileiro, com o qual aprendemos a sonhar e lutar pela
saúde como direito de qualquer uma/um, todes nós.
Conhecer um “SUS que dá certo”, a partir da narrativa das atrizes
e atores, tem potência para contribuir com a renovação do trabalho da/o
psicóloga/o na rede SUS, para a abertura de outras possibilidades de atua-
ção, para além do especialismo. Profissionais podem ampliar o seu escopo
de trabalho abrangendo a gestão e o apoio à rede. E assim sonhamos que
não seja mais recorrente a crítica de que psicólogas/os, ao se inserirem na
saúde pública, continuam buscando a atuação clínica individual como fazer
exclusivo ou prioritário (SOUZA; OLIVEIRA; COSTA, 2015).
Com quantas mãos e de quantos modos se faz(em) Saúde(s) nos
muitos Brasis?

6  Todos os vídeos citados podem ser acessados no canal do InformaSUS na plataforma do YouTube, dispo-
nível em: https://www.youtube.com/c/InformaSUSUFSCar/videos. Acesso em: 17 jun. 2021.

285
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Nesse país de dimensões continentais e enormes desigualdades


sociais, a terra brasilis narrada e vivenciada por inúmeros profissionais da
saúde, usuárias/os, ativistas, pesquisadoras/es, que participaram das lives
do InformaSUS, é reveladora de um “SUS que dá certo”. Seja nos rincões da
Amazônia, como no barco Abaré ou em Rurópolis, seja nos rincões do Rio
Grande do Sul, em Palmeiras das Missões, ou nas cidades do Nordeste, como
Mossoró, ou nas periferias das grandes cidades, como Rocinha, Paraisópo-
lis e favelas de Recife e, ainda, num contexto étnico como Dourados-MS,
a saúde que apostamos rima com luta, mobilização, rede, comunicação,
educação, intersetorialidade e protagonismo.
Em um país tão desigual, que naturaliza desigualdades sustentadas
em classe, raça/etnia, gênero, sexualidade, geração, região, deficiência,
dentre outras, até um direito básico como saúde tende a se tornar um
privilégio. Se tais desigualdades são cotidianas e corriqueiras para parcelas
significativas da população, elas acentuaram-se em tempos de crise (OLI-
VEIRA; MARTINS; SILVA, 2021).
Saúde é uma dimensão plural e em constante diálogo com as lutas
pela dignidade da vida. Somos múltiplas/os e ser cidadã/o não implica (ou
não deveria implicar) em homogeneidade. Sonhamos com serviços que
atendam às especificidades de cada segmento, uma atuação em saúde que
esteja conectada aos desafios e realidades de cada território. Saúde para a
população indígena, negra, ribeirinha, periférica, saúde para as mulheres cis,
mulheres lésbicas, gays, travestis, transexuais, saúde para população em si-
tuação de rua, saúde para população em privação de liberdade, saúde para
usuários de álcool e outras drogas, saúde de qualidade para quem precisa
ter acesso aos equipamentos de saúde. O SUS é um projeto libertário, e nele,
saúde, educação, democracia e justiça social caminham juntos.

Algumas (in)conclusões

Diante de um cenário avassalador de mais de 605 mil vidas perdidas


(até o momento) em decorrência da pandemia, da morte de inúmeras/os

286
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

conhecidas/os, anônimas/os, da dor daquelas/es que não puderam se


despedir e nem sepultar seus mortos, do adoecimento psíquico de trabalha-
doras/es que atuam nos três níveis de atenção e na gestão, qual o papel da
Psicologia diante desse cenário? Quais os desafios da formação em nossos
cursos? No que vale a pena apostar, ensinar, questionar e compartilhar?
Num quadro social marcado por uma série de desigualdades e vul-
nerabilidades, a atuação crítica da Psicologia, vinculada a uma visão integral
do ser humano e comprometida com uma prática ético-política engajada,
pode contribuir para o enfrentamento desses dilemas. Mas o contrário tam-
bém pode ocorrer, e uma prática profissional sustentada no modelo liberal
da profissão, longe de pensar/responder aos desafios do presente, corre o
risco de se colocar a serviço de práticas tutelares e coloniais.
As inúmeras narrativas que pudemos acessar por meio do Informa-
SUS, das leituras e experiências ao longo do estágio nos permitem sonhar
com outros mundos. Um mundo de novas práticas em saúde, de incontáveis
psicologias, de outros modelos interventivos, já preconizados nas Diretrizes
Curriculares Nacionais, como formação cidadã, crítica-reflexiva e emancipa-
dora. Um mundo em que um sujeito não seja sua doença, em que não haja
mais manicômios e prisões e a diferença não seja sinal de “anormalidade” ou
“desvio”. Ousamos coletivamente e desejamos um mundo em que ter saúde
rime com justiça social, direitos humanos, democracia e educação.
Caminhamos para fortalecer o SUS a partir da Universidade em
um processo dialógico, onde o ensino esteja cada vez mais presente nos
serviços de saúde e onde as equipes e comunidades nos ensinam cotidia-
namente. A luta contra os desmontes do SUS é constante, assim como a
luta pelo cuidado integral e longitudinal fora dos muros estigmatizantes.
São inúmeros os desafios da (trans)formação que aposta na produção/
invenção do cuidado e de espaços de liberdade no e a partir do SUS. E, por
isso, afirmamos que as/os estagiárias/os de ontem e hoje são as/os atuais
e futuras/os apoiadoras/es do SUS.

287
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Referências

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Capítulo 19
DESAFIOS DO ACOMPANHAMENTO FAMILIAR
NO PERÍODO PÓS-ADOÇÃO: experiências do
estágio supervisionado em Psicologia Jurídica

Veronica Aparecida Pereira


Bruno Carvalho dos Santos
Diana Rasteli Santos
Endy Willians de Assis Gomes
Letícia Yurica Koizumi Mendes

O processo de adoção é constituído por um longo caminho, perme-


ado por esperas e sentimentos ambivalentes, tanto por parte de quem es-
pera por uma família como por quem está à espera de um(a) filho(a). Após o
processo de habilitação, as famílias têm os seus dados incluídos no Sistema
Nacional de Adoção (SNA), onde constam também os dados das crianças e
adolescentes disponíveis para adoção. Posteriormente, os dados passam a
ser cruzados, partindo do município de residência do pretendente, para os
estados que tenham indicado interesse/disponibilidade. A partir de então,
tem-se um período de espera que pode variar segundo o perfil indicado,
podendo durar longos anos no caso de perfis muito restritos.
Visto que a equipe técnica, responsável pelo cadastro do SNA, con-
segue sincronizar o perfil de pretendentes com o de crianças ou adolescen-
tes disponíveis para adoção, torna-se possível o processo de aproximação,
que pode durar desde algumas horas (no caso de bebês que requeiram
cuidados emergenciais), dias (no caso de famílias que se deslocam para
outros municípios ou estados, permanecendo o tempo mínimo necessário

290
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

para conhecer a criança/adolescente) ou semanas/meses (para aqueles


que podem vivenciar essa aproximação de forma gradual, o que normal-
mente se dá quando a família está no mesmo município em que a criança
se encontra acolhida). Quando a aproximação é bem-sucedida, é possível
avançar mais um passo com a solicitação da guarda para fins de adoção e
início do estágio de convivência. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), o estágio de convivência pode levar até 90 dias, prorrogáveis por igual
período (BRASIL, 1990). É nessa fase que a nova família precisa estar bem
preparada e apoiada, pois irá transitar do plano das expectativas parentais
para a realidade concreta da constituição filial.
Nessa fase, novos desafios estão presentes. Esse período, que do
ponto de vista legal é reconhecido como estágio de convivência, nesse
capítulo será nomeado de pós-adoção por compreendermos que, embora
a adoção seja reconhecida apenas após o final do estágio de convivência,
na perspectiva das relações de afeto com a criança ou adolescente que
chegam a essa família a adoção já existe.
Os desafios enfrentados a partir de então constituem uma longa ca-
minhada em que nos tornamos pais, mães, filhos e filhas. Algumas famílias,
diante de possíveis dificuldades, desistem do processo, o que leva a uma
nova ruptura familiar para a criança ou adolescente, com sofrimento para
todos os envolvidos (FALEIROS; MORAES, 2014).
O presente capítulo visa compreender as diferentes percepções
sobre o período de estágio de convivência/pós-adoção indicadas na litera-
tura, de modo a refletir sobre a necessidade de apoio e acompanhamento
da constituição parental pela via da adoção. A partir de então, descreve-se
a proposta do estágio de Psicologia Jurídica junto às famílias em estágio
convivência/pós-adoção na Comarca de Dourados-MS.

291
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Estágio de convivência X adoção: a linha tênue entre essas


percepções

A inserção de um/a filho/a numa nova família é permeada por


expectativas mútuas, constituindo uma trajetória que pode apresentar de-
safios e dificuldades. Bicca e Grzybowski (2014) afirmam que as mudanças
no estilo de vida familiar com a chegada de um novo membro são comuns e
necessárias, pois permitem transições nos papéis empenhados pelo familiar
e ajustes no seu ambiente.
No caso da filiação constituída pela adoção, as famílias não têm
uma previsibilidade sobre quando será a chegada do/a filho/a, nem suas
necessidades. Ainda que se orientem pela idade da criança, outras variáveis
inerentes à sua história farão desse processo algo repleto de descobertas.
Segundo Campos (2016), é possível que, no período do estágio de convi-
vência, a criança apresente comportamentos regressivos, requerendo que
os pais façam por ela atividades que já realizava com autonomia. É possível
também observar comportamentos de agressividade, em função do ritmo
acelerado de desenvolvimento global da criança e das exigências do meio
em que se encontra. Além disso, várias demandas podem estar presentes,
como o enfrentamento do preconceito em torno da própria adoção, a partir
de questões inconvenientes que muitas vezes são lançadas à família na
frente da criança, reiterando a visão de que a filiação adotiva seria menos
importante ou legítima que a biológica.
Esse cenário exigirá um esforço significativo da criança/adolescente e
dos novos pais para a constituição do vínculo filial. Será necessária a aquisição
de novos hábitos, modificando a rotina familiar. Isso pode mobilizar sentimen-
tos e emoções intensas e ambivalentes. Não é incomum que a nova família se
perceba vulnerável, experienciando sentimento de impotência ou culpa.
Há relatos de famílias que descrevem os sentimentos positivos
vivenciados desde o primeiro contato com a criança (BAUMKARTEN; BUS-
NELLO; TATSCH, 2013). Nessa experiência, o vínculo foi fortalecido, visto que
perceberam as dificuldades inerentes ao início do processo de alfabetização
e se debruçaram sobre os conteúdos dessa fase para ajudar a filha nas ati-

292
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

vidades escolares. Entretanto, esse processo de vinculação pode demorar


um pouco mais, até que os conflitos, as mudanças e a adaptação familiar
estejam mais resolvidos, conforme observado no relato de experiência de
um casal no acolhimento de dois irmãos gêmeos de três anos “[...] as crian-
ças choravam demais e também como não sabiam o que eram regras e limites
se jogavam no chão, tiravam a roupa em qualquer lugar” (OLIVEIRA; MAGA-
LHÃES; PEDROSO, 2013, p. 31). A experiência com grupo de irmãos também
foi relatada por Merçon-Vargas, Rosa e Dell’Aglio (2011), que indicaram a
presença do afeto como um elemento fundamental para a aproximação
familiar e a superação de dificuldades.
Com isso, compreende-se que, embora o estágio de convivência
possa ser permeado por grandes desafios, a nova família precisa conciliar
os desejos e as necessidades das crianças com a sua realidade (BICCA;
GRZYBOWSKI, 2014). É o envolvimento afetivo que será fundamental para
constituição do vínculo parental entre pais e filhos, ainda que passem pela
fase crítica de adaptação (CAMPOS, 2016).
É fundamental que o processo de vinculação familiar ocorra de forma
natural e saudável, respeitando o tempo e o processo da criança/adolescen-
te. Isso favorecerá o estabelecimento de uma relação pautada no respeito e
aceitação. A interação familiar passa, então, a assegurar à criança/adolescente
que, apesar das dificuldades enfrentadas, os pais não desistirão dele/a.
Apesar da clareza da necessidade de enfrentamento dos desafios
do período de estágio de convivência na constituição parental, essa condi-
ção por vezes é confundida como a situação de guarda provisória. Contudo,
a legislação define papéis específicos para o guardião temporário e a guarda
atribuída para fins de adoção.
A guarda é definida no Artigo 33 do ECA como medida que estabe-
lece a obrigação de prestar à criança ou adolescente assistência material,
moral e educacional, com direito de representá-la frente a terceiros, inclu-
sive diante dos pais. Pode-se estabelecer uma guarda provisória para fins
específicos, uma condição de tutela, durante o período em que a criança ou
adolescente ainda não pode cuidar de si, ou a guarda para fins de adoção.
Desse modo, a guarda provisória ou tutela tem previsão de término, quer

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

seja pela retomada de responsabilidade pelos pais, quer seja pela condição
de autonomia do tutelado. Já a guarda para fins de adoção tem outra finali-
dade. Nela, cessam as responsabilidades da família de origem e se dá início
ao estágio de convivência, previsto no ECA em seu Artigo 46. Esse estágio
deve ser acompanhado por equipe técnica especializada para avaliação
do vínculo estabelecido na nova família, que é a finalidade do estágio de
convivência (BRASIL, 1990).
Porém, a percepção sobre a finalidade do estágio de convivência
como fase de desenvolvimento de competências parentais nem sempre
é bem compreendida. Alguns pretendentes à adoção se equivocam ao
considerar que, durante esse período, podem desistir. Contudo, a criança ou
adolescente, quando são inseridos em uma nova família com fins de adoção,
na maioria das vezes não têm consciência desse período como um estágio.
Em suas vivências, desde que estejam preparados para a adoção, estão em
uma família que precisa dar certo. Fracassar nesse processo de constituição
familiar é gerar novas rupturas, novas perdas, que vão se tornando ainda
mais dolorosas, principalmente porque as causas desse fracasso, muitas
vezes, ficam centradas no adotando.
Nesse contexto, ações que favoreçam o diálogo, a aproximação, a
vinculação e o enfrentamento de possíveis divergências são essenciais. Não
só a adoção é irreversível, como também o estágio de convivência precisa
ser assumido já com essa seriedade. A formação dos pretendentes e o
processo de espera pelo/a filho/a devem promover condições para que os
pais e as mães, que tanto esperaram por esse momento, possam exercer
sua parentalidade de forma afetiva, efetiva e responsável.
Porém, não são incomuns os casos de devoluções de crianças du-
rante o estágio de convivência. Quando isso ocorre, o adotando é submetido
a um novo abandono, vivenciando novas rupturas que podem dificultar
ainda mais futuras vinculações (BOWLBY, 2015). Para o autor, temos uma
necessidade biológica de estabelecer vínculos. Ao descrever os comporta-
mentos relacionados a esse processo, Bowlby (2015) apresenta a formação
do vínculo como: “[...] ‘apaixonar-se”, a manutenção do vínculo como ‘amar
alguém’ e a perda de um parceiro como ‘sofrer por alguém’. “A ameaça de

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

perda gera ansiedade e a perda real, tristeza” (p. 98). Nessa condição, a
simples ameaça de devolução pode desencadear sentimentos e emoções
negativas que, por vezes, expressam-se por problemas de comportamento
e agressividade. É estabelecida uma situação ambígua que magoa e fere
aquele/aquela que precisa ser amado ou que, muitas vezes, já é amado,
mas não consegue perceber isso.
Pesquisas sobre a desistência de adoção de crianças maiores e
adolescentes, tanto no estágio de convivência como após a sentença, apon-
tam que as principais justificativas usadas pelos adotantes para devolução
culpabilizam as crianças pelo fracasso da adoção (RIEDE; SARTORI, 2013;
CARNAÚBA; FERRET, 2018). Os relatos dos desistentes afirmam que as
crianças seriam ingratas, agitadas, desobedientes, mentirosas e que torna-
vam a convivência difícil. Os adultos não demonstram perceber suas próprias
dificuldades em lidar com as suas frustrações e solucionar conflitos, além da
falta de habilidades e maturidade para exercer a parentalidade. Também
se observou que as motivações não relacionadas a formar vínculos filiais,
como a adoção por caridade, constituem fatores de risco para o fracasso
da adoção. Nesse contexto, os adotantes atribuem os conflitos às caracte-
rísticas da família de origem e à herança genética, minimizam a relevância
de fatores socioculturais e não consideram sua própria influência sobre o
comportamento da criança com quem conviveram, em alguns casos, por
meses ou anos.
A compreensão dos motivos que levam à devolução da criança/
adolescente deve subsidiar a orientação e preparação dos pretendentes.
Destaca-se a necessidade de se esclarecerem os aspectos psicológicos
envolvidos na formação do vínculo na adoção, assim como os comporta-
mentos esperados para a idade de cada criança, visto que as justificativas
para as devoluções muitas vezes envolvem a descrição de comportamentos
incompatíveis com as idades das crianças mencionadas, o que evidencia
a falta de preparo dos pais. De modo a prevenir as desistências, os cursos
de preparação e os grupos de apoio à adoção precisam expandir suas dis-
cussões e abordar também a comunicação com crianças e adolescentes, a
orientação de práticas parentais e a vida conjugal após a chegada dos filhos,

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

entre outros tópicos relacionados às mudanças que ocorrem no período de


adaptação e os desafios que podem surgir durante o desenvolvimento de
seus filhos. Ademais, é imprescindível orientar os futuros pais a respeito de
que, tanto na filiação biológica como adotiva, há desafios e alegrias e que
todas as famílias podem se deparar com conflitos.
Uma das dificuldades relacionadas ao processo de vinculação re-
fere-se à transição do apego primário para secundário (IZIDORO; PEREIRA;
RODRIGUES, 2020). Algumas crianças ou adolescentes podem manter-se
afetivamente vinculados à família de origem, principalmente aqueles que
foram retirados por medida de proteção. Sem compreender de fato os ris-
cos aos quais estavam expostos, fantasiam o retorno ao lar, atribuindo aos
genitores características que muitas vezes só existem em sua imaginação.
Nesse contexto, qualquer outro adulto que queira constituir com essa crian-
ça/adolescente um vínculo de filiação pode encontrar dificuldades. Nessa
direção, tanto o adotando quanto as famílias que o recebem precisam ter
clareza de que um afeto não precisa tomar o lugar do outro. Ao contrário, ter
construído fortes laços afetivos em nossa história nos prepara positivamente
para outros laços de afeto, sem que um ocupe o lugar do outro.
Para que sejam constituídos processos de vinculação parental po-
sitivos, os pretendentes, crianças e adolescentes precisam ser preparados
para a adoção. A partir do momento em que é realizada a destituição da
família de origem, devem ser trabalhadas as razões que motivaram essa
ruptura como medida de proteção. Devem ser valorizados os aspectos rela-
cionados à autoestima e a possibilidade de formar novos vínculos afetivos.
Uma atitude adotiva precisa partir tanto dos pais quanto dos filhos, e ambos
precisam estar receptivos às diferenças e dispostos a formar uma família,
embora os pais tenham maior responsabilidade no processo por encon-
trarem-se mais orientados sobre o processo de adoção. Algumas crianças
maiores e adolescentes, devido à sua história de abandono e negligência, ou
pela esperança de retornar à família de origem, preferem não ser adotados.
Quando isso ocorre, a equipe técnica precisa ouvir e buscar compreender
se esse desejo pode ser mudado, respeitando o tempo e a necessidade da
criança ou adolescente.

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Desse modo, compreende-se que o estágio de convivência só pode


ser interrompido, sem a concretização da adoção, quando a inclusão na
família adotiva não se mostra saudável para o adotado. Essa decisão pode
gerar sofrimento, tanto para os pretendentes, que esperavam constituir
uma filiação via adoção, como para a criança/adolescente, que retorna à
condição de acolhido. Porém, a criança e o adolescente integram a parte
mais frágil dessa relação.
Para evitar situações de devolução é necessário um preparo dos
pretendentes que lhes permita refletir desde as motivações para a adoção
até os desafios inerentes à parentalidade. Para as crianças e adolescentes
que foram destituídos de sua família de origem, antes da inserção em novo
contexto familiar, devem estar preparados para uma nova experiência filial,
pois o processo de vinculação requer o desejo de fazer parte de uma família.
O processo de aproximação entre os pretendentes e adotandos é importan-
tíssimo para a formação inicial do vínculo e, por isso, deve ser realizado de
forma gradual, preferencialmente contando com a orientação e acompa-
nhamento psicológico para ambas as partes, de modo a evitar a criação de
expectativas que não correspondam à realidade. Além disso, a equipe técnica
precisa se manter acessível para esclarecer as dúvidas dos adotantes quanto
ao processo de adoção. Em estudo conduzido por Bicca e Grzybowski (2014),
a demora entre a aproximação e a sentença de adoção foi identificada como
fator gerador de ansiedade nas famílias que adotaram. Diante do sentimento
de insegurança, os pais podem apresentar maior dificuldade em estabelecer
vínculos, com receio que a criança seja retirada da família.
Em um estudo realizado com profissionais que trabalham em institui-
ções de acolhimento, observou-se que as crianças e adolescentes que viven-
ciaram uma devolução demonstravam graves indícios do sofrimento advindo
de mais uma ruptura afetiva, como a vergonha de retornar ao acolhimento e
a negação de que a devolução teria ocorrido. Além desses comportamen-
tos, foram relatados casos de conduta agressiva, expressada por agressões
físicas ou verbais direcionadas às pessoas da instituição e no ambiente
escolar. Ao mesmo tempo, algumas crianças e adolescentes apresentaram
comportamentos depressivos (isolamento, introspecção, episódios de choro

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

e alterações no sono), os quais geraram dificuldades escolares. Outros efeitos


da devolução referem-se à dificuldade de confiar novamente em pessoas
próximas e a autoculpabilização (MUNIZ; DIAS, 2018).
Não foram encontrados dados estatísticos sobre a desistência no
período pós-adoção no Brasil, mas alguns estudos buscam compreender
esse fenômeno, especialmente sobre os motivos das devoluções (RIEDE;
SARTORI, 2013; CARNAÚBA; FERRET, 2018). Nos relatos de Riede e Sartori
(2013), encontram-se situações de devolução de crianças e adolescentes,
tanto em estágio de convivência como depois da legalização da adoção,
sendo previstos para ambas sanções legais no âmbito civil, em observância
ao cumprimento do ECA. No estudo de Carnaúba e Ferret (2018), de revisão
de literatura, também foram discutidas situações nas quais a dissolução da
adoção ocorreu após anos de convivência. Embora a legislação aponte para
o caráter irrevogável da adoção, deve-se primar pelo melhor interesse da
criança e do adolescente (BRASIL, 1990). Quando a permanência do ado-
tado na nova família é avaliada como uma nova condição de negligência,
exploração ou vulnerabilidade, a família adotiva também pode perder o
poder familiar. Nesse caso, a avaliação da equipe técnica deve priorizar a
segurança e bem-estar da criança ou adolescente e retirá-lo do convívio
com a família que não o acolheu como filho.
O ECA, no artigo 197-E, § 5, prevê como consequência para desis-
tência da adoção a suspensão do cadastro do adotante no Sistema Nacional
de Adoção (SNA). Caso tenha interesse em continuar habilitado, precisará
ser reavaliado pela equipe técnica e aguardar nova decisão favorável. Em
diversos estados brasileiros, juízes estão compreendendo que há responsa-
bilidade civil e condenam os adotantes à compensação financeira em favor
da criança ou adolescente que foi abandonada(o) e novamente privada(o)
do convívio familiar (RIEDE; SARTORI, 2013). Todavia, o sofrimento relativo ao
abandono não é amenizado pelo dinheiro (CARNAÚBA; FERRETI, 2018). Por
isso, embora seja importante estabelecer consequências rígidas para esses
casos, é indispensável reestruturar e ampliar as práticas preventivas.

298
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O acompanhamento pós-adoção: construindo práticas de


suporte parental junto às famílias

A adoção precisa ser compreendida como um campo vasto, que vai


além dos aspectos jurídicos envolvidos, requerendo intervenções no âmbito
da psicologia, assistência social e atuação multiprofissional em saúde e edu-
cação. Desta forma, a preparação dos pais pretendentes à adoção pode ser
entendida como uma atuação preventiva, voltada à proposição de reflexões
sobre a responsabilidade parental, de modo a evitar situações de devolução
(ROSSATO; FALCKE, 2017)
Na literatura, são destacadas algumas ações preventivas voltadas ao
preparo de pretendentes à adoção, desenvolvidas no estado de São Paulo
(SEQUEIRA; STELLA, 2014), Pernambuco (MENEZES, 2019) e Mato Grosso
do Sul, atuação desenvolvida com a equipe multidisciplinar, com os autores
deste capítulo e demais estagiários de Psicologia Jurídica. Estas ações são
geralmente coordenadas por juízes, assistentes sociais, pedagogos, profis-
sionais e estudantes da área de psicologia, entre outros. Os encontros têm
cerca de duas horas semanais, com temáticas relacionadas às expectativas
dos pretendentes, perfil do filho esperado, motivações sobre a adoção, le-
gislação e responsabilidade parental, entre outros. A participação ativa dos
pretendentes nessas discussões contribui para a tomada de decisão sobre
ter um filho(a) pela via adotiva, consciente dos aspectos positivos e possíveis
dificuldades inerentes a essa filiação.
Além da preparação dos pretendentes, Menezes (2019) alerta para
a necessidade do preparo prévio da criança/adolescente para a adoção.
A autora salienta que é comum que estes sujeitos tenham passado por
situações traumatizantes, o que pode fragilizar ou dificultar a relação afe-
tiva com a nova família. Isso reforça a necessidade do acompanhamento
parental para aqueles que recém adotaram. Esta medida, conhecida como
Acompanhamento Pós-Adoção, tem sido utilizada em alguns municípios,
como nos estados de Minas Gerais (MOREIRA, 2018) e de Mato Grosso do
Sul. Tais ações têm como finalidade, por um lado, a intervenção precoce
e a diminuição de casos de devolução, uma vez que, dentre as principais

299
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

razões para a ocorrência deste fato, está a dificuldade da melhor adaptação


familiar diante dos conflitos vivenciados por estas (ARAÚJO, 2017; OLIVEIRA,
2010; MOREIRA, 2018). Por outro, buscam propiciar o apoio necessário ao
adotando para garantir o bem-estar emocional, diante do momento do esta-
belecimento de novas relações familiares (SILVA, 2010).
Por fim, tendo em vista o indispensável papel do Estado na formula-
ção de políticas públicas para a área, faz-se necessário um maior contingente
de pesquisas direcionadas a esta temática, com vistas ao desenvolvimento
de práticas preventivas que possam evitar a devolução de crianças e ado-
lescentes que se encontrem em estágio de convivência. Entre as medidas
necessárias, é crucial o investimento na formação de profissionais envolvidos
neste processo, que atuam direta e indiretamente junto às famílias (ARAUJO,
2017). Nesse contexto, reconhecendo o Estágio em Psicologia Jurídica como
um campo de atuação profissional que pode contribuir para o acompanha-
mento e orientação de famílias antes, durante e após a adoção, algumas
práticas são relatadas no presente capítulo.

O estágio de Psicologia Jurídica e o Programa de


Acompanhamento Pós-Adoção

O estágio em Psicologia Jurídica, inicialmente denominado Práticas


Contemporâneas em Psicologia, teve seu início no ano de 2017. Sua proposi-
ção ocorreu mediante demanda percebida pela primeira autora, supervisora
de estágios na área, em razão de sua atuação junto ao Grupo de Apoio à
Adoção de Dourados desde o ano de 2012, e da realidade percebida junto
às instituições de acolhimento, durante o desenvolvimento do Programa de
Extensão “Acompanhamento de crianças e adolescentes acolhidos: desafios
para conquista dos direitos humanos e inclusão social (2014 a 2016)”, ação
financiada pelo Ministério da Educação (MEC).
A partir do programa de extensão, contando com a oferta de bolsas
para estudantes e orientação multiprofissional, foi possível realizar avalia-
ções e intervenções na área de psicologia, avaliação e acompanhamento

300
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

nutricional, reforço escolar e formação de Educadoras, cursos de Línguas e


musicalização. Essas ações possibilitaram conhecer de modo mais próximo
a realidade das crianças em acolhimento.
Com o término do programa, discutiu-se junto ao Grupo de Apoio à
Adoção de Dourados (GAAD-Acolher) a viabilidade de somar esforços entre
o grupo de apoio, a equipe técnica da Vara da Infância e da Adolescência de
Dourados e o Curso de Psicologia da UFGD para viabilizar ações integradas.
Com esse propósito, constitui-se então a primeira turma de estágio, no ano
de 2017. As atuações foram centradas em discussões temáticas junto ao
grupo de adoção e oferta e à equipe técnica do curso de formação de pre-
tendentes. A mudança ocorreu principalmente no formato do curso. Embora
seja uma exigência do ECA, não há recomendação na legislação de como
o curso de formação de pretendentes deve ocorrer. Na avaliação junto à
equipe, destacou-se que o formato oferecido, centrado na documentação
e orientação de procedimentos para a habilitação dos pretendentes, apesar
de cumprir a exigência do ECA, não garantia espaço para reflexões mais
amplas sobre o processo de adoção. Com a participação dos estagiários, os
cursos passaram a ser oferecidos inicialmente em nove encontros, poste-
riormente reduzidos para sete. Além do aumento do número de encontros,
houve mudança no formato, alterando as palestras para comunicações dia-
logadas, com dinâmicas de grupo e espaço para discussão. Foram mantidos
os temas relacionados aos aspectos legais da adoção e orientação para o
processo de habilitação, acrescentando-se discussões sobre os motivos da
adoção, perfil de crianças a espera de uma família, adoções necessárias, e
práticas parentais e educativas em diferentes perspectivas familiares.
Apesar de inicialmente os pretendentes considerarem muito tempo
para a formação, ao final do curso expressaram o seu contentamento e reco-
nhecimento da necessidade de continuidade da discussão acerca do tema.
Compreendendo que do processo de formação e habilitação até a efetivação
da adoção há um longo caminho a ser percorrido, os participantes foram con-
vidados a continuar a caminhada participando do grupo de apoio à adoção. O
formato mostrou-se viável e novas turmas foram oferecidas nos anos de 2018
e 2019, sendo duas por ano, com mais de 40 participantes por turma.

301
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

No ano de 2020, em razão do isolamento físico provocado pela con-


dição de pandemia por Covid-19, os estágios foram suspensos, retomando-
-se no ano de 2021, no formato remoto. Isso exigiu uma série de adaptações
para a segurança dos/as estagiários/as e população atendida. Em busca
de garantir o desenvolvimento das competências necessárias ao/à futuro/a
psicólogo/a, no âmbito da Psicologia Jurídica, buscou-se desenvolver um
programa de acompanhamento de famílias que se encontram em estágio
de convivência: o grupo de pós-adoção.
Nesse contexto, os representantes da Comarca de Dourados, pre-
ocupados com as ocorrências de devolução de crianças ocorridas no ano
de 2020, acolheram a proposta e indicaram uma das fundadoras do GAA-
D-Acolher, Maristela Missio, como coordenadora do programa pós-adoção,
para que, em parceria com o estágio de Psicologia Jurídica da UFGD, de-
senvolvessem, no formato virtual, as seguintes ações: a) encontros mensais
com famílias em estágio de convivência, com a oferta de temas de interesse
das famílias; b) acompanhamento de famílias amigas da adoção — espaço
de diálogo entre pessoas que já adotaram e as que encontram em estágio
de convivência; e c) acompanhamento e orientação psicológica — com
ênfase na orientação de práticas parentais promotoras de desenvolvimento
e vinculação.
Nesse novo formato (virtual), os encontros mensais se iniciaram em
março de 2021, inicialmente com três famílias, ampliadas para nove até o
mês de setembro. Os temas dos encontros foram sugeridos pelas famílias
em uma roda de conversa realizada no primeiro encontro, destacando-se:
implementação de rotinas, cuidado com a saúde das crianças, desenvol-
vimento infantil, relacionamento entre irmãos, mudanças na rotina escolar
após o período de isolamento físico, expressão de sentimentos negativos e
transição para adolescência — dificuldades e desafios. O grupo é composto,
em sua maioria, por pais e mães de crianças de até seis anos, com apenas
uma das crianças com onze anos. Há uma diversidade na realidade das
famílias, tendo quatro famílias realizado a adoção de irmãos. Outra questão
importante discutida no grupo se trata da participação paterna no cuidado

302
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

dos filhos, visto que temos uma família com pai solo e uma família homopa-
rental masculina.
Além dos encontros mensais entre as famílias em estágio de convi-
vência, o programa prevê a possibilidade de acompanhamento por famílias
que já adotaram — “Famílias amigas da adoção”. Esse acompanhamento
consiste em uma rede de apoio oferecida por famílias que superaram os
desafios do estágio de convivência, compartilham suas dificuldades e
estratégias desenvolvidas durante a constituição parental e encorajam os
pretendentes a continuarem o processo. As famílias que oferecem essa mo-
dalidade são frequentadoras do GAAD-Acolher Dourados. Até o momento,
esse serviço foi solicitado por apenas uma família. Por fim, a terceira moda-
lidade do programa refere-se ao serviço de acompanhamento e orienta-
ção aos pais pelos estagiários da área de Psicologia Jurídica. O serviço foi
apresentado ao grupo e as famílias podem aderir por demanda espontânea.
Oportunamente, na apresentação dos temas, reforçamos a importância de
práticas preventivas, com intuito de evitar desistências/devoluções. Até o
momento, cinco famílias realizaram a adesão.
O acompanhamento e orientação psicológica são realizados por
duplas de estagiários. Foi estabelecido um horário semanal, conforme a dis-
ponibilidade da família, com vídeo chamadas pela plataforma Google Meet,
com duração de até uma hora. Durante a sessão, as famílias podem falar,
de modo mais reservado, sobre possíveis dificuldades vivenciadas durante
esse período. Visando identificar também necessidades de estimulação, uti-
lizamos um protocolo de desenvolvimento infantil para que os pais possam
relatar suas observações acerca do desenvolvimento motor, linguagem,
cognição, socialização e autocuidados (WILLIAMS; AIELLO, 2018). A partir
das observações dos pais, valorizamos as habilidades já adquiridas pelas
crianças e orientamos atividades, adaptadas ao contexto natural da família,
que possam favorecer novas aprendizagens. As orientações são pautadas
em práticas parentais positivas, com valorização de comportamentos
pró-sociais apresentados pelas crianças e orientação de comportamentos
alternativos ou concorrentes, diante de problemas comportamentais relata-
dos pelos pais. Tudo é realizado em uma dinâmica de desenvolvimento de

303
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

práticas parentais que poderiam ser destinadas a outras famílias, retirando


o peso que muitas vezes é atribuído ao adotando como locus de comporta-
mentos-problema.
Por fim, os acompanhamentos do programa de pós-adoção trazem
consigo muitos desafios e dificuldades. Na constituição parental será im-
prescindível cuidar das relações de afeto, buscando estabelecer vinculações
seguras, preditoras de relações sociais positivas (MERÇON-VARGAS; ROSA;
DELL’AGLIO, 2011). Cabe salientar também que a participação de redes de
apoio psicossocial é necessária durante essa etapa, principalmente na fase
inicial de adaptação para a compreensão da mudança e suas particularidades.

Considerações finais

A prática de estágio em Psicologia Jurídica tem um amplo leque de


atuação. A escolha de atuar junto à realidade das famílias com filiação pela
adoção foi justificada mediante a demanda apresentada pela comunidade
em que outras práticas de pesquisa e extensão já eram realizadas. Essa
realidade se apoia na indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão e na
necessidade de práticas comprometidas com a inserção social.
Reconhecendo, no âmbito do estágio proposto, a necessidade de
desenvolvimento de práticas preventivas que possam evitar a desistência
da adoção, mediante a devolução de crianças ou adolescentes, o caminho
proposto com ações junto à formação de pretendentes, grupo de apoio à
adoção e acompanhamento do pós-adoção possibilita a atuação profissio-
nal antes, durante e após a filiação adotiva, promovendo uma rede de apoio
para a efetivação da constituição familiar na plenitude de direitos da criança
e do adolescente, tendo como prioridade o melhor interesse do/a filho/a.
A adaptação das atividades de estágio no formato remoto ocorreu
como medida excepcional, frente ao grande problema de saúde pública que
enfrentamos. Embora tenha cumprido a função de possibilitar o desenvolvi-
mento de competências importantes para a formação do psicólogo, também
precisa ser analisada em suas limitações. Nesse caso, a avaliação realizada

304
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

apenas pelo relato dos pais, sem o contato com as crianças, não permitiu aos
estagiários a possibilidade de modelos mais assertivos de intervenção. Des-
se modo, espera-se que, diante do avanço do plano de imunização contra a
Covid-19, algumas atividades sejam viabilizadas, principalmente no âmbito
da avaliação e intervenção junto às crianças. Para os estagiários que tiveram
sua formação exclusivamente nesse formato, serão oferecidos projetos de
extensão, com ênfase na formação e acompanhamento profissional.

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Juruá, 2018.

306
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Sobre os Autores

PREFÁCIO

Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues


Psicóloga. Mestre em Educação Especial pela UFSCar e Doutora em Psicolo-
gia Experimental pelo IP/USP/SP. Docente do curso de Pós-Graduação em
Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, da Faculdade de Ciências
da UNESP, campus de Bauru.
E-mail: olga.rolim@unesp.br

DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES SOCIAIS


EM CRIANÇAS E FAMILIARES: uma possibilidade de
abordagem inclusiva da queixa escolar

Regina Célia Alves Barreira


Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), Mestrado em Psicologia: Análise do Comportamento
(PUC-SP) e Doutorado em Psicologia da Educação (PUC-SP). É professora
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), do curso de Gradua-
ção em Psicologia, atuando na área de Psicologia Escolar.
E-mail: reginabarreira@ufgd.edu.br

307
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Ana Flávia Batista Sousa


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Foi
estagiária em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Orientação Profissional.
Foi bolsista do PET Conexão de Saberes Psicologia/Geografia/Ciências Sociais.
E-mail: anaflaviabatista98sousa@gmail.com

Diana Rasteli Santos


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Foi estagiária em Psicologia Jurídica e em Terapia Comportamental Infantil.
Atuou no acompanhamento e orientação parental de famílias em estágio
de convivência, mediando práticas para a efetivação da adoção. Realizou
pesquisas em Análise Experimental do Comportamento como bolsista de
Iniciação Científica.
E-mail: dianarastelisantos@gmail.com

Natália Marcela Pain Oliveira


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Foi bolsista no Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educado-
res (LIFE). Desenvolve pesquisa na área de Psicologia Escolar e Educacional.
E-mail: natalia.pain235@academico.ufgd.edu.br

Waldety Stéffany Ferreira Flores


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Foi estagiária em Terapia Cognitivo-Comportamental e em Psicologia Ju-
rídica. Realizou pesquisas sobre inclusão escolar. Integrante do grupo de
pesquisa GEAPPI.
E-mail: steffanyflr@gmail.com

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

O HUMOR COMO FORMA DE DEFESA NO


TRABALHO NO CONTEXTO DE UMA ALA
PSIQUIÁTRICA DE UM HOSPITAL GERAL

Sanyo Drummond Pires


Psicólogo, Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Mi-
nas Gerais (UFMG), Doutor em Psicologia pela Universidade São Francisco
(USF), professor do curso de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Atua principalmente na
área de psicossociologia e psicologia do trabalho, com ênfase nas áreas de
economia solidária e gestão de empreendimentos culturais.
E-mail: sanyodrummond@yahoo.com.br

Caroline Matos Chaves da Silva


Acadêmica do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD).
E-mail: carolmatoschaves@gmail.com

Giovanna Lemos Ferraz


Acadêmica do curso de graduação em Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD).
E-mail: giovannaxp@hotmail.com

O ESTÁGIO BÁSICO EM PSICOLOGIA NO CONTEXTO DA


PANDEMIA POR COVID-19

Veronica Aparecida Pereira


Psicóloga. Doutora em Educação Especial (UFSCar). Pós-Doutorado em
Psicologia pela Universidade do Porto, Portugal. Docente do curso de Gra-
duação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Supervisora de Estágio na Área de Intervenção Precoce e
Psicologia Jurídica. Assessora na área de Psicologia da Associação Nacional

309
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD). Representante junto ao Obser-


vatório Nacional da Adoção. Membro do Grupo de Trabalho da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) “Parentali-
dade e desenvolvimento infantil em diferentes contextos”.
E-mail: veronicapereira@ufgd.edu.br

Fernanda Pinto
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Estagiária do Núcleo Comum, com ênfase em Intervenção Precoce
(2021). Participou do Pré-Natal Psicológico On-line com orientação e inter-
venção com gestantes e suas famílias.
E-mail: fernanda.pinto038@academico.ufgd.edu.br

Ada Oliveira da Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Estagiária do Núcleo Comum, com ênfase em Intervenção Precoce
(2021). Participou do Pré-Natal Psicológico On-line voltado a orientação e
intervenção com gestantes e suas famílias.
E-mail: ada.silva039@academico.ufgd.edu.br

ROTINA FAMILIAR E ESTIMULAÇÃO COGNITIVA


EM CONTEXTO DE PANDEMIA: construção de cartilhas
psicoeducativas para crianças e seus cuidadores

Adriana Yuri Kaneko


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
E-mail: adriana.kaneko035@academico.ufgd.edu.br

Alisson Junior Bueno Nascimento Alves


Discente do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).
E-mail: alisson.alves030@academico.ufgd.edu.br

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formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Regina Basso Zanon


Psicóloga, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Professora Adjunta do curso de Psicologia e do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD), vinculada à linha de pesquisa Processos Comportamentais e
Cognitivos. Coordenadora do Grupo de Estudos em Avaliação-intervenção
Psicológica e Processos Inclusivos: Interfaces com a Educação e a Saúde
(GEAPPI/CNPq) e do Núcleo de Atenção à Pessoa com Autismo (NAPA/
UFGD). Membro do Grupo de Pesquisa (GT) Transtornos do Espectro Autista
(TEA): Pesquisas em Saúde e Educação da Associação Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).
E-mail: reginazanon@ufgd.edu.br

O CONSELHO MUNICIPAL DE DIREITOS DAS MULHERES


DA CIDADE DE DOURADOS — MS: relato de experiência de
Estágio de Núcleo Comum

Gabriela Rieveres Borges de Andrade


Docente do Curso de Psicologia, da Residência Multiprofissional em Saúde
e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD). Graduada em Psicologia pela Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), Mestre e Doutora em Políticas Públicas
pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz-RJ).
Pesquisa sobre os temas: políticas públicas de saúde, políticas sociais, me-
todologias de pesquisa.
E-mail: gabrielaandrade@ufgd.edu.br

Letícia Silva Pereira


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Estagiou no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas da cidade de
Dourados- MS. Tem como temas de interesse: Saúde pública;
Políticas públicas; Psicologia Social Comunitária.
E-mail: leticia_silva.050@hotmail.com

311
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Michelli Palmeira
Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Artista. Pesquisadora da Saúde Coletiva/SUS (PIBIC/UFGD) e da Filosofia
da Diferença.
E-mail: michellipalmeira.com@gmail.com

O RELATÓRIO DE ESTÁGIO EM POLÍTICAS PÚBLICAS:


pesquisa, análise e ensino de escrita

Conrado Neves Sathler


Psicólogo. Mestre em Psicopatologia e Psicologia Clínica pelo Instituto Su-
perior de Psicologia Aplicada de Lisboa e Doutor em Linguística Aplicada
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realizou estágio de
pós-doutoramento em Educação na Universidade São Francisco (USF). É
professor associado da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Tem experiência em Psicologia com trabalhos nos campos de Saúde e
Educação e atua principalmente nos seguintes temas: Modos de produção
de Subjetividade, Análise do Discurso, Ensino em Saúde e Ensino de Psico-
patologia. Autor do livro “Formações Subjetivas: o sujeito à luz da teoria dos
discursos”, lançado pela editora UFGD (2016). Líder do grupo de Pesquisa
“Território, Discurso e Identidade” — TDI (UFGD/CNPq).
E-mail: conradosathler@ufgd.edu.br

Thissiane Fioreto
Licenciada em Letras — Habilitação Português/Latim pela Universidade
Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis). Mestre e Doutora em Letras
pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Assis), na área
de concentração de Estudos Filológicos e Língua Portuguesa. É professora
adjunta no Curso de Letras da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD) e atua nas áreas de Estudos Clássicos e Língua e Literatura Latina.
Atualmente, é discente do Curso de Psicologia da UFGD e membro do Fó-
rum do Campo Lacaniano de Psicanálise do Mato Grosso do Sul.
E-mail: thissianefioreto@ufgd.edu.br

312
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

“ISSO DÁ DINHEIRO?” REFLEXÕES SOBRE JUVENTUDES


E ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL

Dardielle Santos-Dias
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Integrante do Grupo de Pesquisa “Trabalho, Trajetórias, Juventudes
e Educação” (TRAJE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Possui interesses e produções acadêmicas nas áreas de psicanálise, acolhi-
mento, empatia, orientação profissional e educação para carreiras.
E-mail: dardysantos@hotmail.com

Aldenora Oliveira Coutinho Libraiz


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Bolsista de iniciação científica. Integrante do Projeto de Ensino “Em-
patia e compreensão empática no atendimento psicológico” desenvolvido
na mesma instituição. Auxiliar de pesquisa do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da UFGD. Desenvolve pesquisa e extensão nas áreas de ju-
ventudes, gênero e empatia.
E-mail: aldenora.libraiz873@academico.ufgd.br

Daniela dos Santos Sales


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Monitora do Projeto de Extensão “Agregando Conhecimento” da
Universidade Federal da Bahia (UFBA).
E-mail: sales.danielasantos@gmail.com

Mayara Vieira dos Santos


Graduanda em Psicologia na Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Realiza pesquisa e extensão nas áreas de empatia, psicologia esco-
lar e desenvolvimento humano.
E-mail: mayaravieira0101@hotmail.com

313
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Rebeca Brandão Maia


Bacharel em Teologia pelo Centro Universitário da Grande Dourados (UNI-
GRAN), Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Realizou produções acadêmicas na área da educação e
da orientação profissional.
E-mail: rebecabm26@gmail.com

Verônica Ayumi Oshiro


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Possui interesses nas áreas de terapia cognitivo-comportamental e
orientação profissional.
E-mail: veh1379@gmail.com

Jaqueline Batista de Oliveira Costa


Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Educação: Formação de Professores
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); graduada em Psicologia pela
Universidade da Grande Dourados (UNIGRAN); e licenciada em Pedagogia
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do curso de Gra-
duação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Coordenadora do curso de Psicologia da UFGD e líder
do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde/LEPPSI.
Desenvolve pesquisas em educação, violência, formação de professores e
representações sociais.
E-mail: jaquelineoliveira@ufgd.edu.br

314
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

VENTURAS E DESVENTURAS NA FORMAÇÃO DE


PROFESSORAS(ES) DE PSICOLOGIA NA PANDEMIA DE
COVID-19

Gabriela Manzoni Leite


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Foi bolsista no Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educa-
dores (LIFE). Desenvolve pesquisa na área de Psicologia Escolar e Educa-
cional. Extensionista do Projeto “Plantão psicológico: porta de entrada dos
serviços de Psicologia”.
E-mail: gabrielamanzoni@hotmail.com

Bárbara Yumi Brandão Sakane


Graduanda em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Membro do Grupo de Pesquisa “Psicologia, Educação e Trabalho:
inclusão em contextos de desenvolvimento” (GEPETIn-Contextos UFGD/
CNPq). Bolsista do Programa Fiocruz de fomento à inovação. Monitora vo-
luntária da Disciplina Estágio de Formação de Professores I.
E-mail: barbara.sakane031@academico.ufgd.edu.br

Denise Mesquita de Melo Almeida


Professora Adjunta dos Cursos de Graduação e Mestrado em Psicologia da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pós-doutora em Psico-
logia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Doutora
e Mestre em Educação Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),
Bacharel e Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Líder do Grupo de Pesquisa “Psicologia, Educação e Trabalho: inclu-
são em contextos de desenvolvimento” (GEPETIn-Contextos UFGD/CNPq).
Membro da Coordenadoria do Fórum de Licenciaturas da UFGD.
E-mail: denisealmeida@ufgd.edu.br

315
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE PANDEMIA: relato de


uma oficina on-line de psicologia com estudantes do ensino
médio técnico

Ianara de Lima Mendonça


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Possui interesses nas áreas de desenvolvimento humano, psicologia
escolar e juventude.
E-mail: ianaralm@gmail.com

Allana Isabella Souza


Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Bolsista do grupo PET-Conexão de Saberes Psicologia/Ciências
Sociais/Geografia da UFGD.
E-mail: allanais_@outlook.com

Jaqueline Batista de Oliveira Costa


Doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Educação: Formação de Professores
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP); graduada em Psicologia pela
Universidade da Grande Dourados (UNIGRAN); e licenciada em Pedagogia
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do curso de Gra-
duação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Coordenadora do curso de Psicologia da UFGD e líder
do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde/LEPPSI.
Desenvolve pesquisas em educação, violência, formação de professores e
representações sociais.
E-mail: jaquelineoliveira@ufgd.edu.br

316
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

CONCEITUALIZAÇÃO COGNITIVA NO TRANSTORNO


OBSESSIVO COMPULSIVO: relato de uma prática clínica
supervisionada

Isabela Degani de Oliveira


Psicóloga, egressa do curso de Psicologia da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD), pós-graduada em Psicologia Organizacional pela
Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI), mestranda em Administração
Pública pela UFGD.
Contato: isabeladegani@hotmail.com

Thais Michelle Kohler Barbosa


Psicóloga, egressa do curso de Psicologia da Universidade Federal da Gran-
de Dourados (UFGD), pós-graduanda em Terapia Cognitivo Comportamental
pela PUCRS.
Contato: thaiskohler@gmail.com

Regina Basso Zanon


Psicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Professora Adjunta do curso de Psicologia e do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD), vinculada à linha de pesquisa Processos Comportamentais e
Cognitivos. Coordenadora do Grupo de Estudos em Avaliação-intervenção
Psicológica e Processos Inclusivos: Interfaces com a Educação e a Saúde
(GEAPPI/CNPq) e do Núcleo de Atenção à Pessoa com Autismo (NAPA/
UFGD). Membro do Grupo de Pesquisa (GT) “Transtornos do Espectro Autista
(TEA): Pesquisas em Saúde e Educação” da Associação Nacional de Pesqui-
sa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).
E-mail: reginazanon@ufgd.edu.br

317
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

DO ÚTERO DE PEDRA AO (RE)NASCIMENTO NA


PSICOTERAPIA

Giovanna Loubet Ávila


Psicanalista. Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD). Especialista em Teoria Psicanalítica pela Faculdade Venda
Nova do Imigrante (FAVENI). Mestranda da Pós-Graduação em Psicologia da
UFGD, na linha de Processos Comportamentais e Cognitivos. Bolsista — CA-
PES. Pós-graduanda em Avaliação e Diagnóstico Psicológico pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
E-mail: gloubetavila@gmail.com

Rosalice Lopes
Psicóloga Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pelo Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Especialista em Psicologia
Social e Avaliação Psicológica pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)
na Graduação e Pós-Graduação em Psicologia (Linha: Processos Compor-
tamentais e Cognitivos). Líder do Grupo de Pesquisa “Diálogos Psicológicos
na Fronteira”. Coordena projeto de pesquisa sobre empatia e violência. Atua
também como docente em cursos de aprimoramento profissional de psicó-
logos do sistema prisional paulista, no qual trabalhou como perita-psicóloga
durante 20 anos.
E-mail: rosalicelopes@ufgd.edu.br

UM OLHAR PARA O CONTEXTO: especificidade do cuidado


em Terapia Familiar Sistêmica

Carolina de Campos Borges


Cursou graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Goiás (UCG,
atualmente PUC-GO), Especialização em Terapia Familiar pelo Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), Mestra-

318
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

do em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pelo Instituto de


Psicologia da UFRJ e Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Realizou Estágio Pós-Doutoral na Uni-
versité Nouvelle Sorbonne (Paris 3) e na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). É professora associada da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD), atuando nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em
Psicologia. Realiza pesquisas sobre relações familiares. É membro do GT
“Família e Casal: estudos psicossociais e psicoterapia” da Associação Nacio-
nal de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP).
E-mail: carolinaborges@ufgd.edu.br

Daiany Penzo
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD). Especialista em Terapia Familiar pela Faculdade Venda Nova
do Imigrante (FAVENI). Psicóloga clínica desde 2018, atuando em Dourados-
-MS. Supervisora clínica desde 2020. Psicóloga Clínica on-line, trabalhando
com brasileiros que residem fora do país e em relacionamento intercultural.
E-mail: psicodaianypenzo@gmail.com

Tamiris Imai
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD).
E-mail: tamirisimai@hotmail.com

A SUPERVISÃO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COMO


SUSTENTAÇÃO PARA O DEVIR DO PSICÓLOGO CLÍNICO

Maria Salete Junqueira Lucas


Possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUCC), especialização em Psicologia Clínica pelo Conselho Re-
gional de Psicologia, mestrado em Saúde Mental pela Universidade Estadual
Júlio de Mesquita (UNESP), doutorado em Psicologia como Ciência e Profis-

319
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

são pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC). É professora


adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), do curso de
Graduação em Psicologia, da Pós-Graduação stricto sensu, da Residência
Multiprofissional em Saúde. Líder do Grupo de Pesquisa “Psicanálise e Uni-
versidade”.
E-mail: marialucas@ufgd.edu.br

PLANTÃO PSICOLÓGICO EM UMA CLÍNICA-ESCOLA:


atravessamentos da pandemia da Covid-19

Gabriela Manzoni Leite


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Foi bolsista no Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores
(LIFE). Desenvolve pesquisa na área de Psicologia Escolar e Educacional.
Extensionista do Projeto “Plantão psicológico: porta de entrada dos serviços
de Psicologia”.
E-mail: gabrielamanzoni@hotmail.com

Adrielly Louise Alves Leal


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Extensionista do Projeto “Plantão psicológico: porta de entrada dos serviços
de Psicologia”.
E-mail: adrielly_louise.a.l@hotmail.com

Endy Willians de Assis Gomes


Psicólogo formado pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Extensionista do Projeto “Plantão Psicológico: porta de entrada dos servi-
ços de psicologia” e participante do Programa Institucional Voluntário de
Iniciação Científica (PIVIC) sobre Saúde Mental da População LGBTQI+ no
contexto pandêmico: uma revisão sistemática de literatura (2019-2021).
E-mail: endy_lima@hotmail.com

320
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Pamela Staliano
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco
(UCDB), mestrado em Psicologia pela UCDB e doutorado em Processos de
Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília (UnB). É
professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
do curso de Graduação em Psicologia e da Pós-Graduação stricto sensu em
Psicologia. Líder do Grupo de Pesquisa “Estudos e Pesquisas em Avaliação
e Intervenção Psicológica”. Coordenadora do Projeto de Extensão “Plantão
psicológico: porta de entrada dos serviços de Psicologia”. Tutora do Grupo
PET Psicologia/Geografia/Ciências Sociais — Conexão de Saberes da UFGD.
E-mail: pamelastaliano@ufgd.edu.br

CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA PARA A SAÚDE


MATERNO-INFANTIL: experiências de um estágio
supervisionado

Luciana Leonetti Correia


Possui graduação em Psicologia (Bacharelado e Formação do Psicólogo)
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Mestrado e Doutorado
em Ciências na Área de Concentração em Saúde Mental pela Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP — Ribeirão Preto) e Pós-Douto-
rado pela Universidade de Lisboa. Integra o grupo Pain in Child Health (PICH)
e o GT “Psicologia da saúde da criança e do adolescente” da Associação
Nacional de Pesquisas e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). É líder do
Grupo de Estudos e Pesquisa em Prevenção e Intervenção em Saúde. Tem
experiência em ensino, assistência e pesquisa em Psicologia, com ênfase na
área de tratamento e prevenção psicológica, atuando principalmente nos
seguintes temas: saúde materno-infantil; parentalidade e psicologia jurídica.
Foi professora adjunta do curso de Graduação e Pós-Graduação em Psico-
logia da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) de 2010 a 2017.
Atualmente, é psicóloga do Tribunal de Justiça de São Paulo — Comarca de
Ipuã-SP, além de docente da FACESB e Faculdades Metropolitanas.
E-mail: lucianacorreia@tjsp.jus.br

321
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Ana Beatriz Bento Gonçalves Lemes


Possui formação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD). Atualmente, é gestora do Centro de Especialidades Médicas (CEM) da
cidade de Jardim-MS. Possui interesse em temas ligados a saúde pública.
E-mail: bia_bglemes@hotmail.com

Alexandra Naomi Hiraide Degaki


Possui formação em Psicologia pela Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD). Atualmente, atua em clínica particular de psicologia. Possui
interesse em temas ligados à psicanálise e à saúde materno-infantil.
E-mail: naomi_hiraide@hotmail.com

ECONOMIA SOLIDÁRIA: uma intervenção de estágio em


lavanderias comunitárias

Sandra Fogaça Rosa Ribeiro


Psicóloga. Tem especialização em Psicologia Clínica (USP), Mestrado em
Saúde Coletiva (Unesp) e Doutorado em Educação pela Universidade Esta-
dual de Campinas (UNICAMP). Foi docente da Graduação e Pós-Graduação
em Psicologia na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) de 2013
a 2019. Atualmente, é docente da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Saúde Mental, Trabalho
e Gestão” (CNPq), com produções acadêmicas na área de Psicologia do
Trabalho na interface com Saúde e Educação.
E-mail: sandrafogacarr@gmail.com

Sonia Tsai Huang


Psicóloga. Graduada em bacharelado e licenciatura em Psicologia pela
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), com experiência no
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e no Projeto
de Extensão pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEX/UFGD). Atua

322
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

como psicóloga residente com ênfase em Atenção Cardiovascular pelo


Programa de Pós-Graduação do Hospital Universitário da UFGD.
E-mail: soh_tsai@hotmail.com

PROGRAMA DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL NA


EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA: reflexões
acerca do estágio em psicologia escolar

Lígia Rocha Cavalcante Feitosa


Possui formação em Psicologia pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI),
Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Foi docente do curso de Graduação em Psicologia na Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD) entre os anos de 2018 e 2019. Atualmente,
é docente do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora
do Grupo de Pesquisa “Trabalho, Trajetórias, Juventude e Educação” (CNPq).
Possui interesse e produções acadêmicas ligadas às áreas de Psicologia
Escolar, Juventudes, Educação Superior, Educação Profissional, Formação
Continuada e Metodologias Qualitativas.
E-mail: ligia.cavalcante.feitosa@gmail.com

O COTIDIANO DO SUS COMO ESPAÇO DE (TRANS)


FORMAÇÃO

Catia Paranhos Martins


Possui graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado em Psicologia pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Campus Assis). Especialista em
Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e em
Saúde do Trabalhador pela Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ). É professora
adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) do curso de

323
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Graduação em Psicologia, da Pós-Graduação em Psicologia e do Programa


de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário.
E-mail: catiamartins@ufgd.edu.br

Esmael Alves de Oliveira


Doutor em Antropologia Social (PPGAS/UFSC), docente do curso de Ciências
Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD).
E-mail: esmaeloliveira@ufgd.edu.br

Bruno Passos Pizzi


Possui graduação em Psicologia, Mestrado e Doutorado em Psicologia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É Professor do curso de
Graduação em Psicologia e do Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde do Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Doura-
dos (UFGD).
E-mail: brunopizzi@ufgd.edu.br

Elenita Sureke Abílio


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Especialista em Educação Especial, Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana,
Gestão da Clínica nas Regiões de Saúde e Psicologia Hospitalar; Mestrado em
Ensino em Saúde pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
É professora na Faculdade Anhanguera no curso de Psicologia e Psicóloga do
Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas de Dourados.
E-mail: lesurekeabilio@gmail.com

Letícia da Silva Pereira


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e
residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da
Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande-MS.
E-mail: leticiagspp@gmail.com

324
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

DESAFIOS DO ACOMPANHAMENTO FAMILIAR


NO PERÍODO PÓS-ADOÇÃO: experiências do estágio
supervisionado em Psicologia Jurídica

Veronica Aparecida Pereira


Psicóloga. Doutora em Educação Especial (UFSCar). Pós-Doutorado em
Psicologia pela Universidade do Porto, Portugal. Docente do curso de Gra-
duação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Supervisora de Estágio na Área de Intervenção Precoce e
Psicologia Jurídica. Assessora na área de Psicologia da Associação Nacional
de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD). Representante junto ao Obser-
vatório Nacional da Adoção. Membro do Grupo de Trabalho da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) “Parentali-
dade e desenvolvimento infantil em diferentes contextos”.
E-mail: veronicapereira@ufgd.edu.br

Bruno Carvalho dos Santos


Psicólogo formado pela Universidade Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Foi estagiário em Psicologia Jurídica e em Terapia Com-
portamental Infantil. Atuou no acompanhamento e orientação parental de
famílias em estágio de convivência, mediando práticas para a efetivação da
adoção além de palestras em Grupos de Adoção e Pós-Adoção. Foi bolsista
de Iniciação Científica (2016-2021) em estudos que sobre a Educação Espe-
cial no contexto escolar e clínico.
E-mail: bruno_carvalho1@hotmail.com.br

Diana Rasteli Santos


Psicóloga formada pela Universidade Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). Foi estagiária em Psicologia Jurídica e em Terapia Com-
portamental Infantil. Atuou no acompanhamento e orientação parental de
famílias em estágio de convivência, mediando práticas para a efetivação da
adoção. Realizou pesquisas em Análise Experimental do Comportamento
como bolsista de Iniciação Científica.
E-mail: dianarastelisantos@gmail.com

325
formação e cuidado em psicologia: relatos de experiências de estágios

Endy Willians de Assis Gomes


Psicólogo formado pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Foi estagiário em Psicologia Jurídica. Atuou no acompanhamento e orien-
tação parental de famílias em estágio de convivência, mediando práticas
para a efetivação da adoção. Foi membro do Estágio e Projeto de Extensão
“Plantão Psicológico”. Pesquisa sobre a Saúde Mental da População LGBT
no contexto pandêmico: uma revisão sistemática de literatura.
E-mail: endy_lima@hotmail.com

Letícia Yurica Koizumi Mendes


Psicóloga formada pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
Foi estagiária em Psicologia Jurídica e em Plantão Psicológico. Atuou no
acompanhamento e orientação parental de famílias em estágio de convi-
vência, mediando práticas para a efetivação da adoção. Atuou no Projeto de
Extensão: “O lugar de onde falo: conhecendo territórios a partir do olhar do
morador”.
E-mail: leticiayurika@hotmail.com

326
ESTÁGIOS PARA UMA FORMAÇÃO CRÍTICA,
SÓLIDA E RECONHECIDA EM PSICOLOGIA
O curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas da Universi-
dade Federal da Grande Dourados (FCH/UFGD) compartilha experiên-
cias de Estágios Supervisionados Especíícos nas Ênfases Processos Psi-
cossociais e Processos Clínicos, do Núcleo Comum e de Licenciatura
que buscam ter o Cuidado como eixo organizador de suas relações pe-
dagógicas e, dessa forma, vincular seus egressos aos desaaos postos
para a construção de uma nação mais justa e próspera. As Diretrizes
Curriculares Nacionais para os cursos da área de Saúde aarmam que a
formação de proossionais em nosso país conta com uma particularida-
de: o Sistema Único de Saúde (SUS) é o ordenador dessa formação, en-
quanto em outras áreas do Estado a atuação se dá na forma de coope-
ração ou colaboração. Para atender as diretrizes do SUS, principalmen-
te a de integralidade de suas ações, tornam-se princípios aplicados
aos nossos Projetos Político-Pedagógicos a interdisciplinaridade, a in-
tersetorialidade e a interproossionalidade.
Estágios na formação proossional que produzam práticas proossio-
nais voltadas à promoção da cidadania e à prevenção de problemas
psicossociais nos levam, também, ao encontro da Missão da UFGD:
“Gerar, construir, sistematizar, inovar e socializar conhecimentos, sabe-
res e valores, por meio do ensino, pesquisa e extensão de excelência,
formando proossionais e cidadãos capazes de transformar a socieda-
de no sentido de promover desenvolvimento sustentável com demo-
cracia e justiça social”.

aeditora.com.br

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