São Bernardo,
de Graciliano Ramos.
Graciliano Ramos faz algo dificílimo: a primeira coisa é trabalhar a linguagem de uma
maneira excepcional. E com isso ele vai para outro campo das representações sociais
(encontramos sempre isso em sua obra, o funcionamento dos mecanismos sociais). Graciliano
era um homem pessimista, muito cético, que do ponto de vista filosófico-ideológico
apresentava desde muito cedo uma afinidade com o pensamento socialista, com Marx, Hegel,
etc. Gostava muito da leitura de pensadores russos, como Tolstoi, Dostoievski, etc. Graciliano
consegue demonstrar em seus romances os mecanismos de desigualdade social, de opressão,
de violência, e transformação social da época. Mas aqui acontece um problema, diversos
pesquisadores e estudiosos do autor acabam o reduzindo a esses dois aspectos citados, ou no
da linguagem ou no das relações sociais.
Em “Vidas Secas”, seu único romance escrito em 3º pessoa, seus personagens já são
construídos quase que de maneiras opostas, porque se em “Angústia” temos toda essa
verborragia, que nos dá justamente a dimensão daquele homem cujo maior temor era a
mediocridade, porque Luis da Silva é um homem medíocre que tem medo de ser medíocre.
Essa é a grande questão, existem outras mais ligadas ao ciúme, a paixão doentia, mas
basicamente a questão é que ele olha para sua situação e percebe sua vida reles, ele não se vê
como uma pessoa que deveria estar vivendo aquilo. Esse é exatamente o processo de
pensamento do Raskolnikov, que é um sujeito que se acha um gênio. Em “Vidas Secas” a
própria escrita dele é seca, assim como em “São Bernardo” a linguagem é seca e bruta,
violenta e forte, que condiz exatamente com esse personagem narrador, o Paulo Honório.
O que acontece em São Bernardo? Temos esse homem rude, quase analfabeto, que
aprendeu a ler na prisão, a partir da bíblia de um sujeito que também era presidiário; um
homem sem estudos que em determinada altura da vida, observando o que aconteceu com sua
vida, precisa escrever o que aconteceu para compreendê-la. Então, o que nós temos é um
homem que, apesar de todas essas características, se sente compelido a pôr as coisas em
ordem, pôr os fatos em sucessão e a partir daí compreendê-los. E numa parte, Graciliano
escreve como se fosse o Paulo Honório, há todo um trabalho de vocabulário e de sintaxe para
emular o personagem Paulo Honório, mas Graciliano sabe que se ele escrever o livro todo
como realmente o Paulo Honório escreveria, o resultado seria péssimo. Ele precisava emular a
escrita do Paulo Honório, no entanto, o próprio Graciliano seria apresentado como uma supra
consciência que deixa sua marca de autor, e é a partir dessa supra consciência (que não está no
livro, mesmo estando nele) que conseguimos enxergar a crítica que ele quer fazer. Assim
como se ele decidisse escrever o livro totalmente como Graciliano Ramos a coisa ficaria
estranha, a erudição toda não faria sentido para o personagem.
O que o Paulo Honório pode fazer é ser sincero. Essa é a marca fundamental da escrita
do livro. Paulo não é Bentinho, porque quando lemos Dom Casmurro, vemos que o Bentinho
é um sujeito que tem uma certa proximidade com o Paulo no sentido que os dois vão sendo
tomados pelo ciúme, todavia o Bentinho é alguém que está, de fato, nos querendo passar uma
imagem/impressão, ele quer ser visto de uma determinada maneira. Paulo está mais para um
Brás Cubas, embora ele não seja exatamente o Brás, ele é simplesmente um sujeito que sente
um verdadeiro mal estar em um determinado momento de sua vida (quando já passou por toda
uma ascensão social, quando teve esse casamento mal fadado, quando já foi preso, quando
enfim já fez tudo), e a sua tentativa de escrever um livro é uma resposta a esse mal estar que o
incomoda, mas ele não pode proceder uma análise intelectual, seja de si ou da exterioridade.
O mecanismo do Paulo Honório é tão somente o de falar o que realmente aconteceu, evidente
que aqui haverá a própria visão dele e sua subjetividade, mas veja que uma coisa é eu contar
uma história da minha vida buscando ser o mais honesto e transparente possível, e uma outra
coisa será se eu quiser contar a minha história para que vocês tenham um efeito final
determinado por mim a priori.
Paulo Honório não estava olhando para o seu passado depois de já ter entendido tudo o
que aconteceu e colocando em palavras. Paulo estava escrevendo para tentar entender o que
aconteceu, ele só vai entendendo o que aconteceu à medida que ele vai escrevendo. O Paulo
que começa o livro não é o mesmo que o termina, existem vários pontos em comum, e ele não
se transforma por completo, mas percebemos que, pouco a pouco, ele chega a uma
consciência maior do que ele fez, do que ele foi, do que aconteceu, e isso só acontece porque
ele foi transcrevendo sua vida.
Há uma linha narrativa que não descamba em análises, é uma linha quase reta. No
entanto, a partir de determinado ponto, Paulo, porque escreveu isso tudo, começa a ter um
vestígio do que foi que lhe passou, mas é só um vestígio. Só que, contornando essa linha
narrativa, há a nossa capacidade de leitura, esse contorno é uma espécie de mediação entre
nós (leitores) e essa supra-consciência autoral (Graciliano). Porque o que faz com que nós
entendamos as situações críticas em que o Paulo Honório social ou psicologicamente se mete,
não é a análise do Paulo, mas sim a simples narrativa. É o velho preceito que os professores
de escrita repetem: mostre, não conte. A grande força da literatura é o leitor perceber sem
você ter que explicar. Graciliano é mestre nisso.
Graciliano geralmente utiliza o discurso indireto e, às vezes, usa um monólogo interior
comedido para apresentar a confluência do social e do individual. Ele não precisa trabalhar
apenas a introspecção dos seus personagens, fazendo esse mergulho que, por exemplo, a
Clarice Lispector faz. Na “Paixão Segundo G.H”, o ela está na busca de algo que ela sente
mas não sabe dizer, e é o livro todo ela tentando compreender isso que está dentro dela, e ela
fica tentando compreender aquilo, e quanto mais ela fala mais entendemos, mas ela nunca
alcança o momento final. A obra da Clarice tem muito dessa ideia de você procurar aquilo que
não pode ser dito. Algo como, por exemplo: nós não podemos definir Deus, mas podemos
tentar, por meio dessa linguagem que não o abarca, mencionarmos certas características que
Deus tenha. Graciliano é mais direto e ele diz claramente aquilo que ele está querendo
transmitir. Ele consegue aproximar a escrita com a forma que o povo fala. Ele escreve o São
Bernardo da forma dele, sem se preocupar em pensar como seria o Paulo Honório escrevendo.
Após isso, ele pega o manuscrito inicial e reescreve não mais na língua de Camões (como ele
dizia), e sim na língua brasileira.
Ele tinha alguma facilidade em fazer isso. Nasceu em Quebrangulo - Alagoas, em uma
família marcada pela decadência dos engenhos de açúcar. Graciliano é um sujeito que faz
parte de uma geração inserida em um contexto de transformação, que vivencia o Brasil
mudando totalmente, porque o Graciliano, como o Manuel Bandeira, como Mário de
Andrade, ele nasce em 1892, ou seja, logo após o fim da escravidão e início da república, ele
atravessa a república velha (período no qual as mesmas oligarquias comandavam o país), e em
1930 á uma transformação absoluta com Getúlio Vargas. Há o início de uma modernização
mais robusta do país, e um momento ideológico muito acirrado. Imaginem estar no Brasil em
meados da década de 30 num período entre guerras em que tínhamos ainda o nazismo, o
fascismo italiano, espanhol, portugues, o socialismo soviético. E todas essas questões faziam
parte de um cotidiano brasileiro que cada vez mais tinha menos a ver com aquele Brasil do
passado.
Não se trata de dizer que a revolução de 30 retirou todo o poder das velhas oligarquias,
sabemos que não foi nada disso, mas quando Vargas chega ao poder e ele rompe aquela
política, instaura-se um novo momento que dá uma espécie de sacudidela nas relações sociais
do Brasil, e é nesse período que esse grupo de autores conseguem enxergar aspectos da
realidade que antes não eram matéria literária. Houve muitos escritores que começaram a
escrever sobre os retirantes, os trabalhadores da borracha, os pampas gaúchos, os
trabalhadores das fábricas etc.
Uma das coisas assustadoras do Graciliano Ramos é que ele consegue enxergar
perfeitamente essas transformações que o Brasil está passando no momento: tanto mudanças
políticas, ideológicas, sociais etc. Ele percebe tudo isso e consegue condensar essas
transformações em literatura. Uma das primeiras preocupações do Paulo Honório é não ter em
sua fazenda uma monocultura. E o que era o Nordeste velho senão um lugar de monocultura?
O Nordeste cresce baseando-se somente no açúcar. E com o passar do tempo vão ocorrendo
diversas questões e problemas, como por exemplo, no século XIX, quando a Espanha passa a
produzir açúcar em Cuba ou nas Antilhas e o preço do açúcar cai. Há uma queda no preço do
açúcar e diversos engenhos precisam ser fechados.
Paulo percebe como as coisas estão funcionando. Vejam que ele se aproxima de
pessoas que representam mecanismos da sociedade que vão ter cada vez mais relevância. Ele
é rodeado de um advogado, jornalista, etc. Temos que olhar para esses livros e perceber que
esses personagens vivem numa espécie de dupla dimensionalidade, todo personagem é “si” e
“outro”. O juiz “Dr. Magalhães”, por exemplo, está numa dimensão própria de
individualidade (ele é aquele indivíduo), mas ele também é um representante do poder
judiciário, e aí não é só a pessoa, estamos falando de uma dimensão coletiva, política,
histórica, cultural.
Paulo Honório é dotado de uma enorme força de personalidade, ele não é uma pessoa
medíocre exatamente, ele não é um homem culto, polido, humano (no sentido de
fraternidade), sabemos que ele é violento, bruto, arbitrário, ele é nessa medida um
representante do “velho patriarcalismo”: dos coronéis, daqueles que se impuseram pela força,
pela esperteza, pelos capangas, — até Paulo tem seu jagunço; mas ele não é um sujeito
medíocre. Este homem é ao mesmo tempo a representação de um velho nordeste (arcaico,
patriarcal, o que se chamava de “antigos donos do poder”), mas ele é uma outra coisa muito
maior, ele é, numa certa medida, a representação pérfida dessa ética do capitalismo. E essa
ética do capitalismo é fazer-se a si mesmo, é vencer na vida, compreendendo que vencer é sair
de baixo e chegar lá em cima. Ou, caso já esteja lá em cima, amplie-se ou mantenha-se (pelo
menos).
Só que ele (o artesão) é reabsorvido pelo sistema em uma nova condição: que é a de
trabalhar dentro de um pátio de fábrica. Ele acaba sendo consumido por esse novo sistema. É
como no “Tempos Modernos”, é a materialização de um sistema produtivo fordista, em que o
trabalhador fazia só uma coisa. Então para Marx há o burguês, o detentor do capital, que
controla os meios de produção e é ele que tem o dinheiro para construir máquinas, para
comprá-las etc. E há também lá embaixo os trabalhadores que se antes podiam fazer tudo,
agora já não podem mais. É com esse desenho da sociedade que Graciliano Ramos, Jorge
Amado e José Lins vão construir suas histórias. Não estou dizendo que Graciliano se prendeu
esquematicamente somente a isso, mas é uma espécie de ponto de partida para entender a
visão dele. Como o livro “São Bernardo” começa? A primeira coisa que somos informados é
que essa pessoa que está escrevendo o livro nos conta que havia chamado alguns dos seus
conhecidos (o Padre para cuidar das citações em latim, o jornalista que sabia escrever melhor
para fazer o texto, o fulano para cuidar da impressão, e assim vai..). E o termo que ele utiliza
para justificar isso é a “divisão social do trabalho”. Ele pensa em fazer uma divisão social do
trabalho para que o livro pudesse sair logo.
Paulo Honório está declarando que ele é esse representante da divisão do trabalho, mas
não do ponto de vista do trabalhador, ele é quem contrata e quem não trabalha. No final das
contas ele percebe que há uma impossibilidade, ele mesmo é que precisa escrever sua história,
ele não gostou da forma que o Gondim escreveu (cheio de pombas, verborragias..). Vejam, é
como se Graciliano fosse capaz de ficar saltando de uma dimensão humana para outra a cada
momento do texto: ele aponta para a divisão do trabalho mas percebe que artisticamente isso
não funciona, então ele próprio começa a contar a história.
Estamos tratando de um livro que aponta para muitos aspectos da sociedade. Temos
uma fazenda que foi conseguida de uma maneira senão ilegal bastante contestável, porque
afinal ele vai dando dinheiro para o Padilha até que ele se vê como que enforcado por conta
das dívidas e acaba compelido a vender essa fazenda por preços módicos, e é nessa fazenda,
que Graciliano constroi uma metáfora de algo muito maior que a fazenda. Dentro da fazenda
também há uma divisão do trabalho, cada um faz uma coisa, e o Paulo figura num posto que
não apenas é superior, mas que tem uma visão muito específica daquelas pessoas, daquelas
relações e daquele trabalho. Paulo não é um sujeito que olha os aspectos
existenciais/humanos/ afetivos de cada pessoa, ele trabalha as suas relações a partir de
cálculos, em termos de lucro, como se cada pessoa fosse uma máquina dessa grande
engenharia do capital.
Lembre-se de uma passagem que ele se recorda da velha Margarida que havia cuidado
dele quando ele não tinha nada nem ninguém. Ele vai atrás dela, que já estava muito idosa,
para colocá-la na fazenda, mas ele não calcula aquilo como alguém que tenha afeto/amor por
ela. Na cabeça dele, ele tinha uma dívida para com ela. Até com a mulher que tinha cuidado
dele, uma espécie de mãe, ele enxergava as coisas com termos de lucratividade, de coisa.
Paulo então representa esse "espírito capitalista”.
Ele enxerga tudo a partir da ideia de propriedade individual. O ciúme dele tem duas
origens: uma origem boa e outra má. A boa que é o que advém de um zelo que você tem pela
pessoa, quando você fica preocupado pela pessoa. Mas há também o ciúme colérico, aquele
doentio, que é o ciúme da posse, da propriedade. O ciúme já existia nele desde os 18 anos,
quando ele tem aquele caso com a Germana e é preso por esfaquear o sujeito que tinha tido
um caso com ela. Mais a frente, esse ciúme com Madalena começa a corroê-lo, ele é um
homem que enxerga em tudo a propriedade, é ele que é o proprietário. Quando a Madalena
surge, ela causa uma desestabilização, porque a Madalena, em primeiro lugar, não é nenhuma
santa. Não que fosse traí-lo, ela é uma grande oportunista, ela resolve casar por dinheiro, eles
fazem um acordo de negociação. Não coloque a Madalena como a indefesa, a bobinha, não,
ela teve uma decisão de casar com aquele homem só porque ele tinha dinheiro. Ela quis isso.
E aí ela entra numa armadilha, ela não tem noção do quão bruto, do quão possessivo é aquele
homem que está com ela.
Quando Paulo olha para Madalena ele vê uma “coisa” dele, e a sua função era dar-lhe
um filho. E até a vontade dele ter um filho é uma vontade ligada à posse — o que ele queria
era uma mulher que pudesse parir o seu herdeiro, ele não quer um filho como alguém que
ama, ele quer um herdeiro para que ele se perpetue como dono da fazenda São Bernardo. Ele
começa a desenvolver uma paixão,não no sentido romântico da coisa, mas no sentido páthos,
que é justamente essa doença. Ele começa a se ver enlouquecido porque ela é complexa, ao
mesmo tempo que casou com ele por dinheiro ela se compadece dos outros. A Madalena é um
personagem interessante porque ela é quase que uma contradição, ela é uma oportunista que
pensa nos outros.
Há uma frase que ele fala no final: “Palavras de arrependimento vieram-me a boca”.
Antonio Candido, quando comenta sobre esse livro, ressalta o fato de que Paulo Honório
comete uma espécie de violência contra si mesmo. E essa violência como uma espécie de
auto-açoite está justamente na escrita do livro, porque se fosse uma obra que só tratasse de
desumanização, de opressão, bastaria para o autor parar justamente aí. E é aqui que se
encontra a falha de uma literatura maniqueísta. Se, por exemplo, eu quero construir uma obra
que critique os grandes burgueses proprietários de terra, aí eu crio o Paulo que é um cara que
bate nos empregados, que é um doido ciumento, que mandou matar gente, eu pararia por aqui.
Ou seja, eu fico trabalhando apenas em cima do que ele possui de bárbaro, cruel, de vil etc.
Mas, quando eu quero dar complexidade a uma obra, eu preciso trabalhar com determinadas
contradições e coisas inesperadas, porque assim é na vida. E escrever o livro é algo
inesperado para esse fazendeiro, ele começa o livro dizendo que seu objetivo é vender,
inicialmente é um aspecto de lucro, mas depois ele começa a fazer do livro uma extensão de
um mal estar, a extensão de um arrependimento que, se não é um arrependimento total, é uma
ponta que o machuca de alguma forma.
O final do livro o faz ganhar um pouco de humanidade. Ele, de fato, percebe que todas
as relações que ele tem são relações comerciais e vazias, há um vazio em sua existência. Há
nele um aspecto de autodestruição — enquanto Madalena se destrói fisicamente, Paulo tenta
uma outra espécie de autodestruição, que é trazer à tona aquilo que ele fez e que ele foi. O
livro é um processo de remorso, de remordimento. E mais: é uma espécie de confissão.