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ANTONIo CANDIDO

LITERATURA E SOCIEDADE

9“ edição revista pelo autor

o uro .
sobre Azul | RIO de Ianeiro 2006
CRÍTICA E SOCIOLOGIA
(tentativa de esclareciment0)

ada mais ímportante para chamar a atenção sobre uma


verdade do que exagerá-la. Mas também, nada mais peri-
goso, porque um dia vem a reação indispensável e a relega
injustamente para a categoria do erro, até que se efetue a operação
difícil de chegar a um ponto de vista objetivo, sem desñgurá-la de
um lado nem de outro. É o que tem ocorrido com o estudo da rela-
ção entre a obra e o seu condicionamento socia1, que a certa altura
do século passado chegou a ser vista como chave para compreen~
dê-la, depois foi rebaíxada como falha de visão, - e talvez só agora
comece a ser proposta nos devidos termos. Seria o caso de dizen 13
com ar de paradoxo, que estamos avaliando melhor o vínculo entre
a obra e o ambiente, após termos chegado à conclusão de que a aná-
lise estética precede considerações de outra ordem.
De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o signiñcado
de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da
realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essen~
ciaL Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar
que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importân-
cia deriva das operações formais postas em jogo, conferindthe
uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer
condicionamentos, sobretudo sociaL considerado inoperante como
elemento de compreensão.
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar ne-
nhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fun-
dindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra,

Nota | Este estudo é o desenvolvímemo de uma pequena exposição feita sob a forma
de intervenção nos debates do II Congresso de Crítica e História Literâria. realizado
na Faculdade de F1'losoña. Ciéncias e Letras de Assis, em julho de 196L
y \ _,_~. xv

cuna l socronocu

com as condíçõcs sociais. E o método tradicionaL esboçado no


século XVIlL que encontrou porvemura em Taine o maior rcpre~
sentante e foi tentado entre nós por Süvio Romero. A sua maior
virtude consiste no esforço de discernir uma ordem geraL um u-
ranjo, que facilita o entendimento das seqüencias históricas c traça
o panorama das épocas. O seu dcfeito está na diñculdade de mos-
ura, qUe não trar efetivamente, nesta escala, a ligação entre as condkóes sociais
a enaS ltenderá
à pes q uisa C oncreta (como vem sugerida, por exemplop e as obras. Daí quase sempre, como resultado decepcxo'nante, uma
Robert IEsc. arp1t,
' La Soaologle
' ' de la Littérature), › n0 ivro de composição paralela, em que o estudioso enumeta os fatores. ana- M
'x

mas dei '


as lísa as condiçoe's políticas, econôm1'cas, e em seguida fala das obras t
t amblcwsas _ explícações

'
_ causais d e sabor 01tocentísta
' XamO delado
' segundo as suas intuiçoe's ou os seus preconceitos herdados. inca~ \ \

anto na soc1olog1a quanto na crítica está em ue 0 en


. . 3 ' pengm paz de vincular as duas ordens de realidade. lsto é tanto mais grave
análxse. oblltere a verdade básica, isto é › que a preqcedêp ambas
nc1a'1dor pelae
ógica quanto, para a maioria dos estudiosos desta linha. há emre
empírlca pertence ao todo, embora apreendido por uma referência tipo determin|'sta. E o que sc pode observar não
um nexo causal de
d t dl à fun ç ão ldas pavrtes. Outro pengo
' apenas em obras de menor alcance intelectuaL mas em trabalhos
constante é que a preocupação
Sotiety ín rhe 19
18 0 es u 1.osolcom a 1ntegr1dade e a autonomia da obra exacerbe, de rigorosa informação e bom níveL como Dmma and
Age oflohnson, de L. C. Knights.
além dos llmltes cab1ve15, o senso da função interna dos elementos, quando o
para Os estudos deste tipo ñcam ainda mais decepcionames
em detrimento dos aspectos históricos, - dimensão essencial com a sociedade o con-
estudioso, deixando a tarefa de relacionar
apreender o sentido do objeto estudado. junto de uma h'teratura. ou um género, transpowçgawworeLnü___opv_ara-
lembran-
De qualquer modo, convém evítar novos dogmatísmos, Wlismo à imer reta ão de obras e escritores_. isolados.
que servem
que esteja nos w.___
._ .-_...__._.4.~..
problemas socxais. cuja
maís interessada de mero pretexto para apontar aspectos e
do sempre que a crítica atual, por
nem menosprezar disciplinas exposição não precisaria desta mediação
duvidosa. - como é o caso
aspectos formais, não pode díspensar literá-
da literatura e a história do livro de Heitor Ferreira Lima sobre Castro
Alves.
independentes como a sociologia estudos est udos que procu-
bem como toda a gama de formado pelos
Um segundo tipo poderia ser
ria sociologicamente orientada, bras, - freqüente- obras espelhamrokyuxy_echs~c_ntam
aspectos sociais das o ram veriñcar a mevdalídg xem que as
aplícados à investigação de a sociedade, descrevdenrdgp sr_s#j<.47<u_s_vwnIL"udoisgrlasígk_to~vs..' É a modalidadc \
1iterária. em csitabrclgy \_. i\_. AJ
mente com ñnalidade não
\4»\
›_ ,“\__~_V _ ria W-,-- consistindo hasiéamñeme
ma|s sunpes e mals comum.
aparecem no hvro.
aspectos reais e os que Y \\'»'›
cefrvgorrelagões entre os
-\
htcra\u- “
2 ou em sociologxa da
~.__

lQuandor se fala em crítica srociológlcaq arquénpo


que tcm um
_ n enume- ra. pensa-se geralmente nessa modalidade.
. . terrenos, pode se te tar uma Fables. de Taine. Um exemplo de bom
Para ñxar idéias e dellmltar de tipo sociológiclo iluslre no La Fontuine et ses que a so-
.
com uns de estudos sobrc a ñdelidade com
mais nivel é o estudo de \V. F. Bruford nas suas peças e
ração das modalidades mals ou , Ime nos tradicionals
tempo de Checov é representada
feitos conforme critérios de conteu'do.
ciedade russa do
em literatura, história e a cr1t1ca
a contos (Chekhov and his Russia).
e oscilando entre a sociologia,
seria formlado
Um primeiro tipo
de uma hterat
relacionar o conjunto
CRITICA E SOCIOLOGIA

de partido até as observações matizadas e não raro poderosas de


é, o seu destino, Lukács, na obra posterior a 1930. Na Itália, além dos fragmentos
plo conhecido é o ensaio de Gramsci, há uma floração signiñcativa de obras deste tipo, com
de Lewin Schu"cking,
der Soziologie, de Vierkandt uma liberdade pouco freqüente nos autores de orientação marxista
›...2QS...0L0.GIA uo em outros países, como é o caso de Galvano della Volpe.
~ e> traduz1do~ cm
do renome, nao passa de umaM indic vár ' Lembremos, ñnalmente, um sexto tipo, voltado para a investiga-
ção hipotética das origens, seja da literatura em geraL seja de deter-
neste sentido.
minados gêneros. Estão nesta chave certas obras clássicas, como a
Há outros de teor menos
sístemát 1co, e em compensação de Gunmere sobre as raízes da poesia, a de Bücher sobre a correla-
ancorados nos fatos, como mais
Le Public et la V1e Littéraire ção entre o trabalho e o ritmo poético, ou a investigação marxista
A. M. Gulllemin. Fiction and à Rome, de
the Reading Public, de de Christopher Caudwell sobre a natureza e as origens da poesia.
explora a função da literatura Q D Le '
junto Muito mais sólido é o estudo de George Thomson sobre as raízes
. Í .
- . i 0 autor
avm
sociais da tragédia grega, norteado igualmente pelas diretrizes do '
surge uma variante geralmente rnenos marxismo (Aeschylus and Athens).
sociológica e mais baseada

vübu
20 nos levantamentos tradicionais da erudição; Todas estas modalidades e suas numerosas variantes são legíti~
é o que se observa mas e, quando bem conduzidas, fecundas, na medida em que as to-
igualmente em estudos similares de literatura comparada,
como o marmos, não como crítica, mas como teoria e história sociológica
Byron et le Romantisme Français, de Edmond Estêve.
da literatura, ou como sociologia da literatura, embora algumas de-
Ainda quase exclusivamente dentro da sociologia se sítua o quarto las satisfaçam também as exigéncias próprias do crítico. Em todas

mmmvwxñu
típo, que estuda a posição e a função social do escritor, procurando nota-se o deslocamento de interesse da obra para os elementos so-
relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas ciais que formam a sua matéria, para as circunstãncias do meio que
com a organização da sociedade. No terreno genérico, temos uma influíram na sua elaboração, ou para a sua função na sociedade.
série de obras fora do âmbito literário, como a de Geiger sobre o es- Ora, tais aspectos são capitais para o historiador e o sociólogo,

« W_
mas podem ser secundários e mesmo inúteis para o crítico, inte-
tatuto e a tarefa do intelectual (Aufgabe und Stellung der Intelligenz in
do ressado em interpretar, se não forem considerados segundo a fun~
der Gesellschaft), ou as importantes considerações da sociologia

M
no Acampo ção que exercem na economia interna da obra. para a qual podem
conhecimento, em particular de Mannheim. É exemplar,
ter contribuído de maneira tão remota que se tornam dispensáveis
utiliza est_e angulo
histórico, o espírito com que Henri Brunschvicg
Jçum
para esclarecer os casos concretos.
na form.aça° dVa
para analísar a situação e o papel dos intelectuais Com efeito, todos sabemos que a literatura, como fenômeno de
FÉtat Prussien à la Fm du X d e
Ciedade alemã moderna (La Crise de civilização, depende, para se constituir e caracterizan do entrela-
a monograña dhe Alexan r
Siêcle). No campo literário, é conhecida çamento de vários fatores sociais. Mas, daí a determinar se eles ín-
Beljame sobre o homem de letras na Inglat_e“a setec_ennsttia' a a fun_ terferem diretamente nas características essenciais de determinada

Desdobramento do anterior é o quinto UP0> que-mtuvietso ígdeológi' obra, Vai um abismo, nem sempre transposto com felicídade. Do
mesmo modo, sabemos que a constituiçào neuroglandular e as pri-
v1_«_n.o.«4~.›pci\wlnv~u›m

Ção POlítica das Obras e dos aUtores, -em geral fcoménlcnia dos marxis-
tem tldola õperse perrimárias da Crítica melras experiências da infância traçam o rumo do nosso modo de
co marcado. Nos nossos dias
,, ._›.

as formu aç
tas, - compreendendo desde
_
uma
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Em todos estes casos, o fator social é invocado para explícar a es- dade da obra, que, embora conhecido pela crítica anterior. recebeu
trutura da obra e o seu teor de idéías, fornecendo elementos para de~ das correntes mfgvderrunasoquelhe faltavaz instrumentos de 1'nvesti-
terminar a sua validade e o seu efeito sobre nós. Num plano menos gaçã0, 1'nclusivq\/_\termm'vwolomadeuadad_/
explícíto e mais sutiL mencionemos a tentativa de Erich Auerbach, Hoje sentimos que, ao contrário do que pode parecer à primeira
fundíndo os processos estilísticos com os métodos históríco~socío~ vista, é justamente esta concepção da obra como organismo que
lógicos para ínvestigar os fatos da literatura (Mimesis - Dargestellte permite, no seu estudo, levar em coma e variar o jogo dos fatores
Wirklichkeit in der Abendlündischen Literatur). Foi a propósito de que a condicionam e motivam; pois quando é interpretado como
tentativas semelhantes que Otto María Carpeaux aludiu a um mé- elemento de estrutura, cada fator se torna componente essencial do
todo síntétíco, a que chamou “estilístíco-sociológico”, na lNTRODU- caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser contestada nem
ÇÃO da sua magníñca História da literatura ocidentaL Tal método, gloriñcada a priorLz
cujo aperfeiçoamento será decerto uma das tarefas desta segunda
metade do século, no campo dos estudos literários, permitírá levar
o pomo de vísta sintético à íntimidade da ínterpretação, desfazen-
do a dicotomia tradicional entre fatores externos e inremos, que ain~
da serve atualmente para suprir a carência de critérios adequados.
24 Veremos então, provavelmente, que os elementh d_e oLd,em~u_s_oicrial 25

s_ç_ç_g___'oñ_lt_ra_dos através de uma concepsgãg Lsté_t__\ícra e trazidosa_o


~_~_- ›-v___._..~_ o-- _ -,._...W«r_
> nívwel
\-__›_\

da f_at7uA_ra_,_para entender a____g\ sínu_1aridadeAe_a autoklno^m_ia da obra.


E isto será o avesso do que se observava na crítica determín1'sta,
contra a qual se rebelaram justamente muitos críticos deste sécu-
lo, pois ela anulava a indivídualídade da obra, íntegrando-a numa
visão demasiado ampla e genérica dos elementos sociais, como se
vê no seu exemplo maior: o brilhante esquematísmo de Taíne, ao
estudar a líteratura ínglesa.
No estágio ainda insatísfatório em que nos achamos, a situação
é de caráter polêmico, dada a insegurança dos pontos de vista. São
por isso compreensíveis certos exageros compensatórios, que vão
ao extremo oposto e añrmam que a obra, no que tem de signiñ-
cativo, é um todo que se explica a si mesmo, como um universo
2 I Por ter escolhido, como ponto de referéncia. a linha que sc podzria chamar fun-
fechado. Este estruturalismo radicaL cabível como um dos momen-
cionaL ou estruturaL deixo de mencíonar oulras tematívas dc inlcrcssc, como as
tos da análise, é inviável no trabalho prático de interpretar, porque
que decorrem da obra de Kenneth Burke, voltada para a análisc da lilcratura como
despreza, entre outras coísas, a dimensâo histórica, sem a qual o
forma de comunicação simbólica, envolvendo o individual e 0 social num processo
pensamento contemporâneo não enfrenta de maneira adequada os
dialético. Ver a sua aplicação, ao |ado dc outras sugcsto'cs, em Hugh Dalzícl Dun~
problemas que o preocupam. Mas às suas diversas modalídades de-
can. Languuge and Líterature in Socíety. Chicago University Press, Chicago. 1953.
vemos resultados fecundos, como 0 referido conceito de organici-

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